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ESTAÇÃO FLORESTAL NACIONAL JORGE CAPELO Formulação Contemporânea e Métodos Numéricos de Análise da Vegetação CONCEITOS E MÉTODOS DA FITOSSOCIOLOGIA Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 2 ÍNDICE 1 CONCEITOS E MÉTODOS DA FITOSSOCIOLOGIA........................................................3 1.1 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E CONCEPTUAL DA FITOSSOCIOLOGIA ................................3 1.1.1 Antecedentes históricos do estudo científico da vegetação ................................................3 1.1.2 Evolução da Fitossociologia nas primeiras décadas do século XX ...................................7 1.2 FORMULAÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS CONCEITOS E MÉTODOS DA FITOSSOCIOLOGIA ......11 1.2.1 A Fitossociologia no contexto das ciências da Vegetação................................................11 1.2.1.1 Aproximações aos conceitos de comunidade vegetal.........................................11 1.2.1.1.1 Perspectivas recentes sobre o conceito de vegetação ...................................13 1.2.1.2 Conceitos e métodos da Fitossociologia clássica .................................................17 1.2.1.2.1 Conceito de fitocenose e associação vegetal..................................................17 1.2.1.2.2 Conceito e propriedades dos sintáxones........................................................19 1.2.1.2.3 Variação da associação e sintáxones de categoria inferior ..........................23 1.2.1.2.4 Enquadramento epistemológico do método fitossociológico .....................24 1.2.1.2.5 Etapa analítica: amostragem e localização dos inventários.........................28 1.2.1.2.6 Etapa analítica: método do inventário fitossociológico ...............................32 1.2.1.2.7 Classificação da vegetação por comparação tabular ....................................36 1.2.1.3 Fitossociologia e análise da Paisagem...................................................................40 1.2.1.3.1 A Paisagem como objecto de análise geográfico e ecológico ......................40 1.2.1.3.2 Paisagem e vegetação. Desenvolvimento da Fitossociologia Paisagista ...42 1.2.1.3.3 Clímax e sucessão ecológica ............................................................................45 1.2.1.3.4 Tipologia e conceitos geobotânicos da sucessão e zonação.........................51 1.3 ANÁLISE DE DADOS................................................................................................................66 1.3.1 Tratamento estatístico de dados de vegetação. Aspectos gerais. .....................................66 1.3.2 Representação geométrica dos dados de vegetação ..........................................................69 1.3.3 Ordenação.......................................................................................................................70 1.3.3.1 Análise de componentes principais – (PCA)........................................................71 1.3.3.2 Análise de correspondências – (CA) .....................................................................72 1.3.3.2.1 Interpretação matricial da CA .........................................................................73 1.3.3.2.2 Interpretação de Hill: ponderação recíproca.................................................73 1.3.3.2.3 Análise de Correspondências Modificada - (DCA)......................................75 1.3.3.2.4 Interpretação ambiental da CA, DCA e PCA................................................77 1.3.3.2.5 Análise de Correspondências Canónicas - (CCA) ........................................78 1.3.3.2.6 Relação da CCA com a CA e as médias ponderadas ...............................78 1.3.3.2.7 Interpretação dos resultados em CCA .......................................................80 1.3.3.2.8 Limitações epistemológicas das análises directas de gradiente .................82 1.3.4 Classificação....................................................................................................................82 1.3.4.1 Classificação aglomerativa .....................................................................................84 1.3.4.1.1 Índice de similaridade. .....................................................................................84 1.3.4.1.2 Afinidade entre espécies ..................................................................................85 1.3.4.1.3 Estratégias de aglomeração .............................................................................85 1.3.4.2 Métodos divisivos....................................................................................................87 1.3.4.3 Interpretação das classificações .............................................................................90 1.3.4.3.1 Estrutura nodal da tabela. Análise de Concentração - (AOC) ....................90 1.3.4.3.2 Interpretação ambiental das comunidades- tipo ..........................................91 1.3.5 Exemplo de uma estratégia de análise numérica da vegetação........................................94 1.3.5.1 Objectivos gerais da estratégia...............................................................................94 1.3.5.1.1 Estratégia Integrada de Otto Wildi.................................................................95 1.3.5.1.2 Ordenação: DCA e CCA...................................................................................97 1.3.5.1.3 Classificação divisiva TWINSPAN.................................................................97 1.3.5.1.4 Interpolação de dados climáticos....................................................................97 2 REFERÊNCIAS ...........................................................................................................................99 Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 3 1 CONCEITOS E MÉTODOS DA FITOSSOCIOLOGIA 1.1 Desenvolvimento histórico e conceptual da Fitossociologia 1.1.1 Antecedentes históricos do estudo científico da vegetação A percepção da paisagem vegetal como objecto natural mereceu a atenção dos naturalistas desde os primórdios do desenvolvimento do pensamento científico na Cultura Ocidental. São diversas as condições culturais que levam ao surgimento, sem equivalente histórico, da atitude científica na Grécia antiga. As mudanças no uso da razão e da experiência, sobretudo no que respeita à elaboração de procedimentos de demonstração e investigação empírica, constituem uma ruptura fundamental relativamente ao conhecimento pré-racional, não-determinístico e mágico da Natureza (LLOYD, 1990). O desenvolvimento económico e tecnológico, o uso generalizado da escrita, da geometria, da aritmética acrescidos de uma cultura política de debate competitivo exigida pelas instituições das cidades-estado, conduziram a uma atitude perante o Mundo em que a Natureza se converte igualmente num objecto de discussão e análise racional (DÉLEAGE, 1991). É certo que o programa sistemático de investigação experimental do mundo natural, levado a cabo por Aristóteles (384-322 AC.) representa uma formalização do conhecimento baseada nos conhecimentos tradicionais das características utilitárias das entidades naturais, mas acrescidos de uma atitude analítica no contexto de um quadro filosófico dedutivo. Os tratados botânicos de Teofrasto (372-287 AC.) e mais tarde de Plínio, o Antigo (23- 79 DC.), e Dioscórides (40-90 DC.) seguem o modelo de Aristóteles no que respeita à ordenação das principais características morfológicas e afinidades naturais (taxonómicas) das plantas, mas, ao mesmo tempo, descrevem os lugares mais favoráveis para os diversos vegetais, a sua distribuição nas diferentes áreas geográficas e tipos de paisagem natural. Estes textos foram, durante toda a Idade Média, a referência cultural dominante no modelo do mundo natural, tendo sido plenamente integrados no sistema de conhecimentoescolástico associado à cultura eclesiástica. Nos finais do século XV, surge a necessidade de organização de um conhecimento distinto do saber tradicional escolástico, derivada da nova concepção do Homem no mundo renascentista. O início das grandes viagens, no fim do século XV e século XVI, à descoberta dos territórios africanos, asiáticos e americanos, contribui decisivamente para a percepção da enorme diversidade das paisagens naturais para além da Europa. Movidas principalmente pela perspectiva da utilidade económica, as nações europeias promovem a colheita de plantas e animais exóticos, assistindo- se ao multiplicar de missões por parte de naturalistas-viajantes, iniciando-se assim uma cultura científica que rompe com a tradição antiga e medieval. A multiplicação, Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 4 nestes séculos, das colecções naturais, herbários e jardins botânicos, no seio das instituições reais dos estados europeus, leva a um fomento da actividade botânica no sentido da catalogação de um número crescente de plantas, mas também à reflexão acerca da lógica da sua distribuição geográfica e associação com os diferentes ambientes e climas. Os primeiros trabalhos europeus sobre a flora ultramarina devem-se aos naturalistas ibéricos, dos quais se destacam: Garcia de Orta, Cristóvão da Costa, Amato Lusitano (João Rodrigues de Castelo Branco), Gonzalo Fernández de Oviedo e José de Acosta, seguidos por naturalistas de outras nações europeias que prolongaram, pelos séculos seguintes, o conhecimento botânico. Entre os franceses e ingleses, foram responsáveis por viagens botânicas dentro, e fora da Europa, por exemplo, Plumier, Tournefort, Adamson, Poivre e os irmãos Jussieu. Simultaneamente, decorre um enorme esforço de descrição taxonómica das plantas, que nestes séculos é liderada por naturalistas como Cesalpin, Tournefort ou John Ray. Com a publicação do Systema Naturae (1735) e Species Plantarum (1753), Lineu (Carl Maria von Linné: 1707-1778) veio dotar as descrições taxonómicas de um sistema prático, consistente e de aplicação universal, de categorização e nomenclatura das plantas. O sistema sexual e a nomenclatura binomial do sistema de Lineu vieram permitir uniformizar um conhecimento heterogéneo com origem nas diferentes escolas de naturalistas europeus e, sobretudo, categorizar os organismos segundo as suas relações recíprocas de afinidade dentro da hierarquia da cadeia do Ser. Para além da suma importância no avanço da Sistemática, devem-se a Lineu as primeiras intuições acerca das ideias evolutivas e da importância do estudo da distribuição geográfica e ecológica das espécies. Este autor refere nas suas obras, ainda que de forma incipiente, alguns conceitos geobotânicos que se verão formulados com precisão mais tarde no decorrer da história da Ciência (DU RIETZ, 1936). São exemplos os conceitos de óptimo bioclimático de uma planta, relação planta-tipo de solo e distribuição altitudinal dos andares de vegetação1. Lineu introduz ainda os conceitos de planta indicadora de determinado habitat, na Flora lapponica, de 1737, e ainda de gradiente de vegetação, na descrição do lago Möckeln que faz na Flora suecica. Na sua obra O equilíbrio da Natureza, de 1749, surgem descrições do ciclo geral de nutrientes por via do processo de produção primária -produção secundária - decomposição e ainda detalhadas descrições de processos de sucessão vegetal primária. A obra de Lineu é uma produção científica notável do Iluminismo, que apesar de não transcender ainda o dogmatismo creacionista próprio da visão cristã, nem a visão providencialista do equilíbrio natural (DELÉAGE, op. cit.), abriu a 1 O conceito de andar de vegetação pode ser encontrado nos escritos de vários naturalistas. De acordo com THEURILLAT (1992), o conceito de andar de vegetação terá sido enunciado por Gessner em 1555, e posteriormente por Haller em 1768. RIVAS-MARTÍNEZ (1981) cita Giraud-Soulavie como o autor, que em 1783, terá usado pela primeira vez a expressão "andar de vegetação". No entanto, foi apenas com HUMBOLDT & BONPLAND (1807) que foram enunciadas as bases científicas da zonação altitudinal da vegetação. Humboldt relaciona claramente a distribuição altitudinal da vegetação com a variação da temperatura média anual e efectua a equivalência entre os andares de uma clisérie e a zonação latitudinal dos zonobiomas da Terra. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 5 possibilidade de ordenação do conhecimento taxonómico e ecológico do mundo natural, que seria determinante no trabalho futuro dos naturalistas estudiosos das plantas na sua relação com o meio e sua distribuição geográfica. Nos finais do século XVIII e princípios do século XIX assiste-se à proliferação dos estudos e viagens científicas promovidos pelas potências coloniais, na sequência do quase total domínio europeu do território planetário. Exploradores como James Cook, no Pacífico, Joseph Banks, na América do Norte e Ásia, Bouganville e La Perouse, na Oceânia e La Condamine na América do Sul, produzem importantes colecções e descrições dos territórios visitados. Alexander von Humboldt (1769 - 1859) foi um dos mais notáveis naturalistas deste período. Seguramente está na base de uma parte importante das ideias científicas modernas acerca do estudo da paisagem vegetal nas suas componentes florísticas, estruturais, funcionais e geográficas. A sua grande curiosidade científica, aliada a largos conhecimentos de sistemática vegetal, geografia e ciências físicas (astronomia, climatologia), levou-o a percorrer largas extensões interiores das Américas (do Sul e do Norte, de 1799 a 1804), assim como partes da Ásia (Urais, montes Altai e Sibéria em 1829). As fontes da sua sensibilidade ao mundo natural, radicam por um lado, na produção naturalista dos seus contemporâneos nos campos da taxonomia das plantas, mas também no espírito romântico, que encontra na paisagem natural um dos seus objectos de predilecção (ASENSI, 1996). Humboldt distancia-se dos botânicos seus contemporâneos, que se ocupam quase exclusivamente da descoberta de novos táxones e da sua classificação, sem interesse pela sua distribuição geográfica ou relações com o meio. A ciência da geografia das plantas, escreve Humboldt, é aquela ciência que considera os vegetais segundo as relações da sua associação local nos diferentes climas (…) A geografia das plantas não ordena somente os vegetais segundo as zonas e as altitudes diferentes nas quais se encontram; não se contenta em considerá-los segundo o grau de pressão atmosférica, de temperatura, de humidade ou tensão eléctrica, sob as quais vivem: distingue entre elas, como entre os animais, duas classes que possuem uma maneira de viver e, se o ouso dizer, hábitos muito distintos. Umas crescem isoladas (…). Outras plantas, reunidas em sociedade como as formigas e as abelhas cobrem terrenos imensos (HUMBOLDT & BONPLAND, 1807). Na sua Narrativa pessoal de uma viagem às regiões equinociais do Novo Continente (1814-1825), refere insistentemente a necessidade de considerar a paisagem vegetal como unidade integradora do carácter total de uma região da Terra, da realização de estudos da vegetação como nível de complexidade estrutural superior à enumeração e descrição da flora de uma dada região e a sua resposta às variações dos climas e topografia. Insiste também na necessidade de estudar as estratégias de associação das diferentes espécies como forma de resposta adaptativa repetitiva às diferentes condições de habitat. Estas ideias estão apresentadas, de forma exemplar, nos esboços de seriação altitudinal da vegetação das altas montanhas da Terra (clisérie), em relação à variação de parâmetros climáticos (temperaturas médias, máximas e mínimas, precipitação,Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 6 etc.2), natureza litológica dos solos e factores de intervenção humana na Paisagem. Cite-se, por exemplo, o diagramas da zonação altitudinal dos andares de vegetação que acompanham a Narrativa Pessoal e ainda os esboços e tabelas das obras Visões da Natureza e da notável obra fundadora da Geobotânica3 Ensaio sobre a Geografia das Plantas (HUMBOLDT & BONPLAND, op. cit.). Nesta última, a disposição da vegetação em franjas horizontais desde o nível do mar até aos cumes dos Andes (Monte Chimborazo - 6267 m.s.m.) é comparada com a sucessão latitudinal dos zonobiomas do Equador ao Pólo. Humboldt anota, para além das espécies dominantes em cada andar, quais as formas vegetais (i.e. tipos fisionómicos) dominantes que caracterizam as paisagens terrestres, para as quais propõe também formas de classificação que irão, no decorrer do século XIX ser aperfeiçoadas por Grisebach, Diels, Rübel e Brockmann-Jerosch, entre outros. As concepções pioneiras de Humboldt abriram aos naturalistas um campo de reflexão e de observação imenso. Assim, por exemplo, Alphonse Pyramus de Candolle (1778-1841) introduz a noção de agrupamento vegetal - conceito nuclear a partir do qual se desenvolveram as escolas de pensamento fitossociológico do séculos XIX e XX. Na sua Geografia botânica, este autor debruça-se longamente sobre as relações planta-clima-geografia e sobre a noção de associação vegetal como realidade material repetitiva, fundamental na compreensão do mundo natural (DE CANDOLLE, 1855). Apresenta ainda observações acerca da substituição temporal das associações nas rotações naturais (sucessão ecológica)4. Especulações acerca das razões da existência de espécies vicariantes em territórios distantes e considerações acerca da biogeografia das ilhas surgem também na obra de De Candolle. Algum tempo antes, o botânico dinamarquês Schow propunha uma nomenclatura para as associações vegetais, que consistiria em acrescentar o sufixo -etum à raiz do nome genérico da planta dominante na associação (DELÉAGE, op. cit.). Neste período assiste-se, em simultâneo, à reorganização conceptual das ciências físicas e naturais, o que leva ao estabelecimento de importantes ideias no âmbito da fisiologia das plantas e relação com os processos físicos do clima, ciclos dos elementos químicos no solo (Lavoisier, Liebig), transformação geológica da Terra (Lyell), e, sobretudo, acerca da dinâmica populacional e evolutiva dos seres vivos (Lamarck, Wallace e Darwin). O conceito de evolução das espécies por selecção natural veio estabelecer-se como ideia central, com enormes implicações no desenvolvimento ulterior de todas as ciências naturais. Nos finais do século XIX, os naturalistas acumulam observações e análises sobre as comunidades vivas, que dão lugar à emergência de conceitos novos : Ecologia por 2 Humboldt pode ser considerado um dos pioneiros da Bioclimatologia, ciência que estuda a relação clima-vegetação, tendo introduzido diversas ferramentas climatológicas (os mapas de isolinhas de temperaturas, por exemplo.) 3 Este termo foi cunhado por Huget del Villar em 1925. 4 O estudo dos processos de sucessão ecológica tinham atraído já Dureau de la Malle em 1825. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 7 Ernst Haeckel, em 1866, na Morfologia geral dos organismos: o estudo das relações entre os organismos e o seu ambiente físico e biológico; biocenose, por Karl Möbius, em 1877: a comunidade de organismos, num dado espaço geográfico em relação com os factores do meio que determinam as suas condições de existência. O desenvolvimento da Ecologia desenrola-se nos finais do século XIX e princípios do século XX, segundo várias tendências e escolas nacionais, mas onde o estudo ecológico da vegetação ocupará sempre um papel central. 1.1.2 Evolução da Fitossociologia nas primeiras décadas do século XX Os abundantes estudos botânicos dos primeiros anos do século XX tiveram um importante papel na definição das linhas mestras da Ecologia como disciplina científica. August Grisebach e Charles Flahault foram dois botânicos que influenciaram fortemente o estudo da vegetação neste século, dos dois lados do Atlântico. A obra de Grisebach A vegetação do globo segundo a sua disposição de acordo com os climas (1875) marcou o inicio de importantes progressos conceptuais relativamente à descrição fisionómica da vegetação e à sua relação com o clima. No entanto, foi Flahault, que ao elaborar um balanço do estado dos conhecimentos geobotânicos em 1904, sublinhou a ideia de que a vegetação respondia a três grandes ordens de factores ambientais: o meio climático, o meio edáfico e o meio biológico. Os desenvolvimentos posteriores da Fitossociologia, e da Ecologia em geral, são inseparáveis do estudo destes três meios definidos por Flahault (DELÉAGE, op. cit). A contribuição fundamental de C. Flahault consiste no esforço de definição da noção de associação vegetal, que constitui o conceito fundamental do paradigma científico da Fitossociologia (BRAUN-BLANQUET & PAVILLARD, 1922). Apesar da primeira formulação do conceito de associação vegetal ser tradicionalmente atribuída a Humboldt (HUMBOLDT & BONPLAND, op. cit.; DU RIETZ, 1921; WESTHOFF & VAN DER MAAREL, 1978), foi apenas um século mais tarde, no congresso de botânica de Bruxelas, em 1910, que Flahault apresentou o conceito de maneira precisa e elaborada na sua forma moderna (FLAHAULT & SCHRÖTER, 1910)5: Uma associação (Bestandtypus) é um agrupamento vegetal de composição determinada, apresentando uma fisionomia uniforme e crescendo em condições estacionais igualmente uniformes. A associação é a unidade fundamental da Sinecologia. Esta definição é seguida de dez notas precisando o significado do conceito. THEURILLAT (op. cit.) cita o 5 A passagem muito citada de Humboldt (ver 2.1.1.1) , relativamente ao carácter social das plantas não corresponde, em nossa opinião, a uma formulação do conceito de associação no sentido moderno. Este autor reconhece a oposição que existe entre os vegetais que crescem isolados e as plantas sociais. Por análise da referida passagem (HUMBOLDT & BONPLAND, op. cit.: 14-15), é fácil constatar que o autor não se refere verdadeiramente ao fenómeno das sociabilizações inter-específicas de plantas, mas ao mero reconhecimento da existência de populações monoespecíficas extensas de algumas plantas, por oposição à ocorrência isolada de outros táxones. THEURILLAT (1992) faz exactamente esta interpretação da mesma passagem de Humboldt. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 8 essencial das sete notas mais importantes, que apresentamos com modificações de linguagem: 1. A associação não é uma unidade topográfica. Num dado local pode ocorrer um mosaico de associações de acordo com a heterogeneidade ambiental presente. 2. A associação é determinada pelo estação (habitat) como uma unidade ecológica. 3. A associação revela, pela sua resposta fisionómica, um carácter ecológico determinado. 4. A fisionomia da associação é função da frequência relativa dos diversos tipos fisionómicos que a constituem. 5. Diversas associações, particularmente as florestais, podem ser constituídas por vários estratos: herbáceo, arbustivo e arbóreo. 6. A fisionomia das associações muda no decurso do ano. Importa distinguir na sua descrição, estes aspectos sazonais. 7. A associação está limitada corologicamente pela área de distribuição dos táxones que a constituem, nomeadamente dos dominantes. Deste modo, a associação pode servir de base para delimitar territórios biogeográficos. Esta definição representa um marco conceptual extremamente importante poiscircunscreve a noção de associação vegetal, como modelo da fitocenose, à unidade elementar do coberto vegetal que se associa de forma unívoca a um habitat homogéneo6. A espantosa modernidade e precisão do conceito de Flahault constitui, sem a menor dúvida, o acto fundador que em definitivo vem permitir, com bases científicas precisas, os estudos sinecológicos da vegetação dos que se lhe seguiram até à actualidade. Este conceito está na base da prática das duas principais escolas fitossociológicas europeias que surgem então: a Escola de Upsala, impulsionada por Einar Du Rietz, e a de Zurique-Montpellier, iniciada por Flahault e Pavillard, seguidamente consolidada em definitivo por Josias Braun-Blanquet, Reinhold Tüxen e Salvador Rivas-Goday. DU RIETZ (1921) desenvolve a ideia, a partir da definição de Flahault, de que o conceito florístico em que se deve basear a distinção de associações consta principalmente da repetição estatística das proporções de constância-dominância dos táxones7. Esta visão da associação como uma unidade estável, rígida, quase matemática (…) é muito adequada para a descrição de paisagens austeras com floras pobres como as do norte da Europa (DELÉAGE, op. cit.). A sua aplicação pelos fitossociólogos europeus não foi no 6 O alcance conceptual do conceito de Flahault é enorme. A associação corresponde a uma forma uniforme de resposta fisionómica e combinação florística da vegetação a um habitat determinado. Repare-se sobretudo que o modelos da vegetação produzidos pela Fitossociologia resultam da construção, por um método indutivo, de uma classificação hierárquica das associações como modelos das fitocenoses. Como a associação tem como base a univocidade fitocenose - ambiente, o modelo fitossociológico possui assim uma enorme aderência na explicação e previsão das correlações entre o coberto vegetal e o meio ambiente. 7 Isto é, na constância das suas frequências relativas de ocorrência, que numa mesma associação deveriam ser estatisticamente constantes e corresponder ao mesmo grau de dominância ecológica na comunidade. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 9 entanto, generalizada. A partir das ideias de Flahault, surge uma interpretação distinta da de Du Rietz, acerca de quais os caracteres florísticos definidores da circunscrição das associações. A denominada escola sigmatista 8 ou de Zurique-Montpelier, fundada pelo botânico suíço Josias Braun-Blanquet (1884-1980), produz aperfeiçoamentos fundamentais do conceito florístico e ecológico de associação e desenvolve um edifício conceptual que constitui, sem dúvida, o passo definitivo no avanço da ciência da Vegetação. Em primeiro lugar, deu ao indefinido conceito florístico de Flahault uma definição operacional concreta, baseada no conceito de fidelidade de uma combinação de plantas indicadoras de cada associação (BRAUN-BLANQUET & PAVILLARD, 1922 e 1928). Em segundo lugar, estabeleceu um procedimento metodológico indutivo de categorização das associações que permite a construção de um sistema taxonómico das unidades vegetais como modelo geral da vegetação (sintaxonomia). Em 1913, Braun-Blanquet apresenta o conceito de espécie característica na definição de associação vegetal (BRAUN & FURRER, 1913; v. DELÉAGE, op. cit.), mas é no decorrer da década seguinte que apresenta o conceito de associação que fundamentará a prática fitossociológica europeia até a actualidade. Assim, em 1922 (BRAUN-BLANQUET & PAVILLARD, op. cit.), o conceito de associação é definido de acordo com os seguintes princípios: 1. A associação é a unidade sociológica fundamental. 2. Cada associação reconhece-se e caracteriza-se pelas suas espécies características9. 3. A associação, conceito abstracto, está representada na Natureza por indivíduos de associação: sem serem idênticos, estes indivíduos possuem um certo número de caracteres comuns, permitindo considerá-los como pertencentes a um tipo médio. 4. Os povoamentos pobres em espécies que, apesar de se filiarem claramente numa dada associação, se desviam demasiado (…) desse tipo médio, podem ser considerados fragmentos de associação (Assoziationfragmente). 5. No seio de uma associação poder-se-ão distinguir sub-associações. 6. A terminação -etum será somente reservada aos agrupamentos com valor de associação. Posteriormente, no Vocabulário de sociologia vegetal (BRAUN-BLANQUET & PAVILLARD, 1928), este conceito surge de forma mais elaborada com as seguintes precisões: 7. Cada associação reconhece-se pelo seu conjunto específico (charakteristische Artenkombination10) e principalmente pelas suas espécies características. 8. As espécies diferenciais podem ser usadas para distinguir associações pobres em características. (…) Para caracterizar mais completamente e acentuar a unidade da 8 Expressão aplicada à fitossociologia europeia clássica com origem na sigla S. I. G. M. A. (Station Internationale de Geobotanique Mediterranéne et Alpine fundada por J. Braun-Blanquet). BRAUN- BLANQUET (1968), relata em detalhe a história desta instituição. 9 Divididas pelo autor segundo o grau de fidelidade em : exclusivas, electivas e preferentes. 10 Conjunto específico é, no contexto da obra citada, o conjunto das espécies características, diferenciais e companheiras. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 10 associação poder-se-ão usar outras categorias de caracteres, ecológicos, genéticos, corológicos. 9. Os povoamentos mais ou menos incompletos, i.e., possuindo apenas um conjunto específico fragmentário, poderão ser consideradas fragmentos de associações. Assim, o conceito de composição florística determinada da definição de Flahault surge definido concretamente, enfatizando-se ainda que a associação é um conceito abstracto (uma classe conceptual) que modeliza a realidade concreta do conjunto dos indivíduos de associação. Enfatiza-se também o facto de a associação ser a unidade fundamental do sistema que, à semelhança da espécie em ideotaxonomia, admite subdivisões (sub-associações, facies). No entanto, é na associação vegetal que se encontram os atributos definidores da unidade sinecológica fundamental: uma fisionomia uniforme, uma combinação característica definida e repetitiva de táxones, e uma correspondência unívoca com um habitat determinado. Todas as subdivisões correspondem a variações em torno do conceito central de associação11. Posteriormente, na edição de 1964 da obra Pflanzensoziologie (BRAUN-BLANQUET, 1964), Braun-Blanquet introduz explicitamente o conceito de combinação característica de espécies (charackteristische Artenverbindung) como o critério fundamental na definição florística da associação. Para além da formulação concreta e operacional dos conceitos-base da Fitossociologia, foi também enorme a contribuição deste cientista para a construção de modelos gerais da vegetação no que respeita às relações comunidades-habitat, ao estudo corológico dos sintáxones como base metodológica para a Biogeografia e ao início do estudo dos mosaicos de paisagem como expressão dos processos ecológicos de sucessão e zonação. Por via de um enorme esforço prático na descrição da vegetação dos territórios circum-mediterrânicos, impulsionou o trabalho de outros fitossociólogos posteriormente muito influentes. De entre os botânicos que mais contribuíram para a consolidação da Fitossociologia europeia neste século, a par com J. Braun-Blanquet, há que citar principalmente Reinhold Tüxen e Salvador Rivas Goday. 11 Dum ponto de vista epistemológico, o conceito de Braun-Blanquet é essencialista, pois refere os objectos naturais a um arquétipo fundamental do qual derivam. Por ex., oconceito de Du Rietz é nominalista pois encara cada comunidade como um dado irrepetível, em que o conceito e a realidade concreta que representa são indistinguíveis. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 11 1.2 Formulação contemporânea dos conceitos e métodos da Fitossociologia 1.2.1 A Fitossociologia no contexto das ciências da Vegetação 1.2.1.1 Aproximações aos conceitos de comunidade vegetal O estudo da vegetação desempenhou um papel fundamental na evolução conceptual da Ecologia desde os seus primeiros desenvolvimentos como ciência autónoma. Os principais aspectos da descrição do coberto vegetal que têm interessado os estudiosos podem resumir-se genericamente aos seguintes (NOY-MEYER & VAN DER MAAREL, 1987): 1. Estrutura, fisionomia. 2. Diversidade, dominância. 3. Variação espacial da composição específica, relações entre a distribuição das espécies (…). 4. Variação temporal, estabilidade. Cada um destes aspectos envolve também as relações da vegetação com o ambiente. A ciência da vegetação tem centrado a sua atenção, de há longa data, sobretudo no terceiro aspecto. Este diz respeito à estrutura fitossociológica das comunidades vegetais, ao padrão ou ordem que possa ser encontrada na ocorrência ou co- ocorrência das várias espécies e a sua variação no espaço. No que respeita a cada um destes aspectos da vegetação, os botânicos têm tentado induzir proposições empíricas ao nível da comunidade por análise dos dados de campo e, a posteriori , de forma teórica, deduzir estes padrões a partir dos processos e relações ao nível das populações das espécies. As duas abordagens, a empírica e a teórica, são logicamente complementares. No primeiro quartel do século XX, assistiu-se, quer na ciência da vegetação, quer na Ecologia em geral, à formulação de diversas teorias gerais da vegetação, assim como ao desenvolvimento de métodos sistemáticos de recolha e análise de dados fitossociológicos. Nesta fase, dois botânicos norte-americanos, F. E. Clements e H. A. Gleason e dois europeus,J. Braun-Blanquet e E. Du Rietz, merecem destaque como fundadores de teorias gerais da vegetação. Ao analisarmos a importância relativa que cada um destes autores dá às diferentes ordens de factores nas teorias da vegetação, conclui-se que todos eles consideram as respostas das espécies ao habitat como a influência dominante na estruturação da vegetação. No entanto, desde cedo, as diferenças nos pressupostos teóricos relativamente aos factores, que em segundo lugar, influem nos padrões do coberto vegetal, deram origem a visões distintas da vegetação (v. CLEMENTS, 1904, 1905, 1916; GLEASON, 1917 & 1926). Clements desenvolveu o conceito de comunidade vegetal como uma entidade autónoma, discreta, individualizável e possuidora de propriedades Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 12 estruturais e funcionais próprias. A co-ocorrência de espécies num dado habitat daria origem, segundo este autor, à emergência de propriedades colectivas perceptíveis ao nível da comunidade, que não resultam apenas dos comportamentos autoecológicos individuais das espécies, mas sobretudo da interacção entre as mesmas. Para Clements, as interacções positivas (facilitação) entre as espécies de uma dada comunidade constituiriam a segunda ordem de factores mais importantes na estruturação e estabilização da comunidade e nos processos de sucessão ecológica. O modelo de comunidade vegetal, sucessão e clímax que desenvolve posteriormente baseiam-se precisamente neste pressuposto (NOY-MEYER & VAN DER MAAREL, 1987). Para Clements as comunidades constituem entidades claramente reconhecíveis e definíveis que se repetem, numa dada região. O reconhecimento de um nível de complexidade biológica de ordem superior ao organismo levou à conhecida metáfora do super-organismo ou conceito organísmico da comunidade, em que cada uma das espécies seria comparável aos órgãos de um super-organismo12. Também o processo de sucessão ecológica, em direcção a um máximo de complexidade estrutural em equilíbrio com o clima, decorre do reconhecimento das interacções positivas entre as plantas como determinante da composição, estrutura e função da comunidade. O processo de sucessão de uma comunidade a outra, para Clements, decorre sobretudo a partir da facilitação de espécies não-dominantes, por via das alterações no habitat produzidas pelas espécies dominantes da comunidade precedente (alterações nas condições do solo, micro-clima interno, etc.). A alteração nas condições do habitat pelas pioneiras levaria a que os óptimos ecológicos das espécies, relativamente a um dado factor ambiental fossem favoráveis, em termos de vantagem competitiva às espécies da comunidade seguinte.13 Por seu turno, Gleason (1917 & 1926) formula um conceito individualista da vegetação, pois nega a importância das interacções positivas entre as espécies. Propõe assim, um conceito de continuum vegetal em que as combinações de espécies resultam apenas das respostas individuais das mesmas aos factores ambientais. Acrescenta ainda a ocorrência da dispersão aleatória dos indivíduos como resposta às flutuações ambientais. Enfatiza assim a natureza contínua da vegetação, atribuindo o caracter de artefacto arbitrário às comunidades de Clements. No entanto, reconhece a existência da possibilidade de competição inter-específica (GLEASON, 1926). 12 A metáfora quasi-organísmica da comunidade levou alguns dos seus detractores a formular objecções baseadas numa imagem de super-estrutura demasiado literais (GLEASON, 1917, 1926 & 1939; WIHTAKER, 1951; AUSTIN& SMITH, 1989). Segundo estes autores, a equiparação das fases de uma sucessão progressiva primária às fases de juventude, maturidade, senescência de um organismo é inaceitável de um ponto de vista epistemológico e como tal abusiva. 13 No modelo de Clements, as comunidades ou etapas da sucessão corresponderiam a etapas meta- estáveis, ou seja soluções estruturalmente estáveis no decorrer do processo. Na terminologia da Teoria dos Sistemas (BERTALANFY, 1969; THOM, 1972; BOHM & PEAT, 2000), o processo de modificação, num mesmo biótopo, de comunidades e habitat, corresponde a um processo de estruturação, enquanto que os produtos relativamente estáveis do mesmo se designam estruturas. As comunidades são estruturas, neste sentido. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 13 Esta oposição teórica deu origem a duas correntes de estudo da vegetação que se mantêm opostas até a actualidade (WITTAKER, 1962; CURTIS & MACHINTOSH, 1951; AUSTIN & SMITH, 1989): hipótese do continuum vs. hipótese da comunidade14. Por seu turno, na Europa, quer Braun-Blanquet, quer Du Rietz reconhecem a utilidade operacional do modelo de Clements. Braun-Blanquet (1964) enfatiza igualmente a natureza da comunidade como uma resposta vegetacional discreta ao habitat, fortemente reforçada pelas dependências positivas que existem entre os indivíduos e determinam o carácter e comportamento global da comunidade15. Como vimos, os conceitos inovadores de Braun-Blanquet podem sumariar-se na asserção de que as comunidades vegetais podem, então, ser concebidas ou modelizáveis por tipos lógicos definíveis principalmente por combinações florísticas que expressam as suas relações com o ambiente melhor que qualquer outro caracter. A partir desta definição de comunidade, deriva a construção de um sistema de representação hierárquica das comunidades baseado em critérios florísticos e ecológicos (sintaxonomia). A analogia entre os conceitos de espécie e comunidade como unidades básicas de um sistema taxonómico de representação do conhecimento foram criticadas (v. MULLER-DOMBOIS & ELLEMBERG, 1974), pois não existe unidade genética nem conecção físicade facto entre os indivíduos da mesma comunidade. No entanto, o sistema fitossociológico não pretende, segundo Braun- Blanquet, transpor a ideotaxonomia baseado na realidade da comunidade como quasi-organismo. Pretende representar a afinidade florística, estrutural e ecológica entre as comunidades (BRAUN-BLANQUET, 1964). 1.2.1.1.1 Perspectivas recentes sobre o conceito de vegetação Recentemente surgiram novos modelos teóricos da natureza da vegetação que se situam algures entre as visões reducionista e holística. As críticas ao conceito gleasoniano, assentam sobretudo na evidência da importância da competição e facilitação dentro da comunidade, negada por este autor em favor absoluto da resposta individual ao habitat. Existe também o reconhecimento da importância dos 14 A discussão dos aspectos teóricos opondo estas duas escolas podem ser encontradas em WITTAKER (1951), GOODAL (1966), MCHINTOSH (1967, 1980 & 1986), GREIG-SMITH (1986) e SHIPLEY & KEDDY (1987). 15 A discussão das propriedades emergentes na comunidade vegetal quer em Clements quer em Braun- Blanquet, foi mais recentemente reformulada por autores como Ellemberg (1953), Walter (1994) e Muller-Dombois & Ellemberg (1974). Estes autores distinguem, relativamente a um dado factor ambiental, o óptimo fisiológico de uma planta isolada ou em cultura, do óptimo ecológico quando inserida numa comunidade. Numa comunidade, por via dos processos de competição (espacial e pelos recursos disponíveis), o óptimo ecológico de cada planta acha-se deslocado relativamente ao fisiológico. Ou seja, a presença simultânea dos diversos indivíduos na comunidade altera os óptimos de cada um deles. Assim, o comportamento global da comunidade (i.e. o habitat) é a resultante de todos estes óptimos ecológicos, que num plano teórico será obrigatoriamente diferente da mera soma dos óptimos fisiológicos considerados per se. Assim, é lícito considerar a comunidade como uma entidade em que os factores ambientais actuam como condições de fronteira do sistema, e não sobre cada indivíduo. O comportamento global da comunidade relativamente aos factores ecológicos resulta, em grande medida de propriedades emergentes do sistema não contidas em nenhuma das suas partes. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 14 tipos funcionais como estratégias autoecológicas que apenas fazem sentido como fenómenos adaptativos resultantes de processos de co-evolução no seio de comunidades. Outros conceitos recentes integram a possibilidade de representar os padrões recorrentes na estrutura e combinação florística, de forma a não os referir a tipos lógicos ou classes conceptuais com limites definidos. Cite-se, por exemplo, ROBERTS (1989) que modela as fitocenoses com recurso à teoria dos fuzzy sets ou à teoria dos sistemas dinâmicos (ROBERTS, 1987). Uma formulação moderna da hipótese do continuum vegetal é a de AUSTIN & SMITH (1989). Em termos sintéticos, esta reformulação do conceito de Gleason resolve a incompatibilidade entre os modelos comunidade vs. continuum. A distinção efectuada diz respeito a duas possibilidades alternativas de conceber a co-ocorrência de espécies: 1. No espaço concreto da Paisagem, i.e. no mesmo biótopo. 2. No espaço abstracto do habitat (hiper-espaço multidimensional em que os factores de habitat constituem um sistema de eixos cartesianos). Relativamente a esta distinção, autores como BARNES et al. (1998), referem-se ao ecossistema-paisagem, i.e. à concretização efectiva no território das fitocenoses, ocupando biótopos definidos e conformado o mosaico da paisagem. Neste sentido quer a comunidade quer o ecossistema concretos são propriedades do ecossistema- paisagem. Por seu turno, o continuum seria uma formulação do ecossistema ou comunidade num espaço ambiental abstracto . Isto é, refere-se a porções do hiper- espaço cartesiano do habitat, correspondendo aos intervalos multidimensionais na combinação de variáveis ambientais onde as comunidades encontram as suas condições de existência [definição de habitat]. Feita esta distinção de perspectivas sobre o mesmo objecto, é possível conceber a co- ocorrência de espécies como variando continuamente ao longo de gradientes ambientais (variação clinal) apresentando ou não soluções de continuidade no espaço ambiental abstracto. Assim, a existência de comunidades distintas ou contínuos vegetacionais é apenas uma questão de grau, sendo arbitrária a decisão sobre a sua existência objectiva ou não. Por outro lado, as comunidades como propriedade do ecossistema-paisagem, sobretudo por via das descontinuidades ambientais (litologia, bioclima, etc.) apresentam na esmagadora maioria dos casos uma distribuição descontínua e correlacionável com as residências ecológicas distintas que se observam na Paisagem – i.e. formam comunidades. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 15 Assim, pode-se conceber a vegetação como podendo ser descrita de forma contínua ou descontínua consoante o sistema de referência usado: dualidade contiuum – comunidade. AUSTIN & SMITH cit. BARNES et al. (1998) concluem que: 1. O conceito de co-ocorrência de espécies só é relevante para uma dada paisagem e as suas combinações de factores ambientais. 2. O conceito de continuum aplica-se ao espaço ambiental abstracto [espaço do habitat], sem qualquer implicação obrigatória relativamente à distância geográfica no território ou posição num qualquer gradiente ambiental entre as comunidades. Relativamente a este ponto, AUSTIN & SMITH (1989) apresentam um exemplo hipotético relativo à distribuição altitudinal de quatro espécies. A sua distribuição correlaciona-se com a variação de temperatura média anual e se a sua abundância for ordenada de acordo com este gradiente é possível verificar a sua variação gradual contínua (um gráfico temperatura – abundância das espécies). No entanto, a sua posição topográfica no espaço , permite verificar a co-ocorrência de combinações de espécies claramente descontínuas [figura 1]. Figura 1. – Fonte: AUSTIN & SMITH (1989). Padrão de co-ocorrência de quatro espécies numa paisagem ao longo de um gradiente ambiental indirecto de elevação. A distribuição das espécies do eixo das ordenadas (distância) ilustra a existência de associações de espécies – A, AB, BC, C e D que ocorrem caracteristicamente em posições determinadas. Por outro lado, observe-se a variação contínua de composição ( substituição regular de A, B, C e D) ao longo do gradiente altitudinal representado em ordenadas. No exemplo, a elevação constitui uma expressão espacial do gradiente de temperatura. Como enfatizam LAMBERT & DALE (1964), muita da polémica entre as duas escolas de pensamento deriva da confusão entre continuum e continuidade, i.e. entre continuidade no terreno e continuidade no espaço abstracto do habitat. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 16 A discussão assume actualmente uma marcada vertente empírica e utilitária, pois como demonstram SHIPLEY & KEDDY (1987) ambas as teorias são formuláveis em termos do método científico como hipóteses falsificáveis. Neste sentido, RIVAS- MARTÍNEZ (1996), referindo-se à utilidade prática dos sistemas de classificação do coberto vegetal como modelos de referência para a classificação dos biomas terrestres, diz: é pratica habitual dos ecólogos botânicos terrestres sistematizar as biogeocenoses com base nas comunidades vegetais, assim como aos seus (…) factores mesológicos e distribuição geográfica. A validade desta forma de operar (…) está amparada pelo êxito da sua capacidade de predição e da afinada jurisdição eco-geográfica de tais unidades. Reconhecem-se actualmente necessidades relativas às políticas de conservação e deordenamento do território, baseadas num modelo simplificado e manuseável da vegetação. Por exemplo, as classificações de habitat naturais, nos seus aspectos tipológicos e cartográficos, podem beneficiar largamente dos modelos sintaxonómicos 16. A elaboração de hipóteses científicas realistas na interpretação da paisagem vegetal, como base para a sua restauração com fins agrícolas, de conservação, desenvolvimento sustentável e em face do estado de degradação em que se encontra em inúmeros territórios da Terra, tem sido enfatizado por inúmeros estudiosos da vegetação (ALCARAZ, 1996; RIVAS-MARTÍNEZ, 1996)17. O sistema fitossociológico na sua formulação moderna, possui claramente a maior aptidão para estas tarefas. A Fitossociologia como Escola científica que progride também no estudo do coberto vegetal a outros níveis de complexidade, como sejam o da paisagem e biogeográfico (RIVAS-MARTÌNEZ, 1996; ALCARAZ, 1996; THEURILLAT, 1992), caminha no sentido da formulação de uma Teoria geral da Ciência da Vegetação (ALCARAZ, op. cit.)18. 16 Um sistema de representação do conhecimento sobre a vegetação, como seja o caso dos modelos sintaxonómicos, possui para além do seu caracter de modelo simplificado da vegetação, um enorme poder predictivo, que seguramente não encontramos nas representações individualistas da vegetação. A validade das representações ecológicas da vegetação que estas últimas produzem, não ultrapassam geralmente o universo das parcelas de estudo consideradas das quais não se podem normalmente inferir quaisquer padrões gerais com aplicabilidade prática. A atitude reducionista em que se baseiam, resulta no extremo, numa atitude niilista, em que se acredita não ser possível discernir ordem na Natureza, i.e. que o conhecimento acerca desta não é possível. 17 KENT & COKER (1992), no seu recente manual Vegetation description and analysis, comentando as principais críticas à Fitossociologia por parte dos partidários dos princípios de Gleason, conclui acerca desta ciência: (…) the system undoubtedly works, and a very detailed and accurate classification of most of the vegetation of Europe has been achieved. 18 O sistema fitossociológico, pode no quadro desta Teoria, servir de quadro geral de referência para os estudos noutras escalas, sejam ao nível dos processos populacionais, dos estudos de ecótonos entre comunidades etc. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 17 1.2.1.2 Conceitos e métodos da Fitossociologia clássica 1.2.1.2.1 Conceito de fitocenose e associação vegetal A Ecologia tem como objecto os ecossistemas, que constituem as unidades biológicas fundamentais da Bioesfera. Este conceito foi introduzido por Tansley no contexto da discussão da especificidade do objecto da Ecologia. TANSLEY (1935) recorda que é próprio do método científico isolar mentalmente os sistemas segundo as necessidades de investigação. Deste modo, a noção mais fundamental é, segundo este autor, a totalidade do sistema (no sentido em que se fala de um sistema em física), que inclui não só o complexo de organismos, mas também todo o complexo de factores físicos que formam o meio do bioma, os factores do habitat num sentido amplo. (…) Os sistemas assim formados são, do ponto de vista do ecologista, as unidades de base da Natureza na superfície da Terra. Estes ecossistemas, como lhes podemos chamar, oferecem a maior diversidade de tipo e de tamanho. Para Tansley, os ecossistemas não são dados brutos da Natureza, mas sim o produto de uma criação mental que nos permite isolá-los imaginando uma fronteira entre eles e o resto do Universo (DELÉAGE, op. cit.). No conceito de ecossistema distinguem-se diversas componentes ontologicamente distintas. A primeira respeita à componente estrutural constituída pelas comunidades de organismos. No caso específico das comunidades vegetais, estas entendem-se como conjuntos mais ou menos homogéneos de plantas pertencentes a distintos táxones, que coexistem e interagem num espaço ou território determinado (biótopo). Em segundo lugar, as comunidades estão sujeitas a um conjunto de factores mesológicos de natureza biótica e abiótica designado por habitat. No seu conjunto, a unidade bio-estrutural e ambiental formada pela comunidade, biótopo e habitat designa-se por biocenose (SUCKACHEV & DYLIS, 1964)19. Por último, o ecossistema possui uma componente funcional. De um modo muito genérico, os ecossistemas são sistemas abertos auto-regulados por processos de retroacção (feed- back), em que as matérias produzidas (output) afectam positiva ou negativamente as que entram no sistema (input). Ou seja, a entrada permanente de energia e matéria no sistema, metabolizadas no seu interior e novamente perdidas para o exterior, regula o conjunto da biocenose. Ao conjunto dos processos de interacção funcional de uma biocenose com o habitat aplica-se a designação de ecofunção (RIVAS-MARTÍNEZ, 1996). Pode, em resumo, definir-se a Ecologia como a ciência que estuda as biocenoses e a sua ecofunção. Isto é, as interacções dos organismos entre si, as comunidades que constituem, o ambiente onde se integram (habitat), o espaço que ocupam (biótopo), assim como a sua regulação em relação ao meio (ecofunção). 19 O conjunto do biótopo + habitat designa-se por biócora. No caso dos ecossistemas terrestres, a biocenose designa-se biogeocenose. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 18 A Fitossociologia define-se, portanto, como a ciência ecológica que tem como objecto a componente vegetal das biocenoses (fitocenoses)20. Ou seja, a Fitossociologia ocupa- se das comunidades vegetais, das suas relações com o meio e dos processos temporais que as modificam21. THEURILLAT (op. cit.) analisa em detalhe os critérios de delimitação da fitocenose como objecto de investigação fitossociológica. Em primeiro lugar, enfatiza a primazia do critério de homogeneidade florística e estrutural de uma dada fitocenose em face das adjacentes. Este critério é também referido por BARKMAN (1989): uma fitocenose pode ser definida como um segmento concreto de vegetação no qual as diferenças florísticas internas são significativamente menores que aquelas relativas à vegetação circundante. Ao critério florístico há que acrescentar ainda os critérios estruturais e de unidade funcional relativamente ao habitat. As fitocenoses possuem uma arquitectura própria, nomeadamente uma estratificação vertical e uma organização espacial que são a expressão do potencial estrutural arquitectónico máximo permitido pelos factores do meio. Em certos casos, a organização arquitectónica pode encontrar-se extremamente simplificada. É o caso das comunidades pioneiras ou, por exemplo, das de herbáceas ruderais. Neste sentido, há que distinguir as fitocenoses estáveis, organizadas espacial e temporalmente das fitoaglomerações dominadas por processos estocásticos enviesados de dispersão a partir dos propágulos disponíveis na vegetação adjacente. Nas fitoaglomerações, existe uma dominância da mera selecção ambiental e ausência de interacções bióticas ou estabilização estrutural. Por último, uma fitocenose resulta de um processo de selecção ambiental estabilizado pela competição e facilitação inter-específica. Numa fitocenose, é atingido, durante um período de tempo mais ou menos prolongado, um estado meta-estável de equilíbrio com os factores do habitat que se traduz igualmente numa estabilidade e independência funcional. O período em que decorre esta estabilização depende, em geral, da escala temporal dos processos de estabelecimento das espécies dominantes, do seu tipo fisionómico e da velocidade com que alteram o meio (e.g. solo, endoclima). Assim, por exemplo, nas comunidades herbáceas anuais, cujo ciclobiológico decorre em poucos meses, a estabilização decorre rapidamente. Por oposição, uma comunidade florestal madura só se encontrará em equilíbrio funcional em termos de reciclagem de nutrientes e selecção dos táxones adaptados ao endoclima florestal decorrido tempo suficiente para o estabelecimento da dominância ecológica das árvores. 20 Segundo THEURILLAT (op. cit.) o uso do termo fitocenose é da autoria de Gams em 1918, para designar a comunidade vegetal. Mas foi Sukachev em 1954, que lhe dá o sentido actual, em que a fitocenose resulta dos agrupamentos de plantas seleccionados pelas condições de habitat e pelas interacções intra e inter-específicas, que em conjunto modificam , por sua vez, o meio . 21 Os aspectos funcionais dos ecossistemas não são habitualmente do domínio da Fitossociologia, que circunscreve a sua atenção às fitocenoses. Num sentido mais preciso, esta área de estudo cai no domínio geral da Ecologia vegetal ou Geobotânica, onde se inclui a Fitossociologia. O estudo da ecofunção, produtividade e ciclos bio-geoquímicos das fitocenoses constituiriam o domínio da Fitossociologia funcional. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 19 Nos processos de sucessão ecológica, primários ou secundários, assiste-se normalmente, numa primeira fase, à instalação e dominância de espécies pioneiras com grandes amplitudes ecológicas relativamente aos factores dominantes do meio. Este facto ocorre quer na ocupação de um biótopo que se encontra livre por destruição da vegetação previamente existente (e.g. um campo agrícola abandonado), quer na transição entre duas etapas de uma sucessão secundária (e.g. a substituição de uma floresta por um matagal por intervenção humana). KOPECKÝ & HEJNÝ (1974) definem, relativamente a este processo, o conceito de grau de saturação cenótica de uma comunidade. Este conceito diz respeito ao grau em que os nichos ecológicos22 no biótopo se encontram preenchidos por espécies de amplitude ecológica estreita. A primeira fase de estabelecimento de uma fitocenose consiste na dominância exclusiva de espécies pioneiras de larga amplitude, que estes autores designam por comunidade basal. A comunidade basal não possui estabilidade sucessional, possuindo normalmente duração transitória, à medida que os nichos que define vão sendo preenchidos por espécies especializadas nas condições de habitat, seleccionadas positivamente pelas condições criadas pelas pioneiras23. A meta-estabilização assim atingida define então a comunidade cenoticamente saturada. Nesta fase, a par da estabilização funcional e estrutural, assiste-se à presença estatística da combinação dos táxones bio-indicadores especializados da fitocenose24. As fitocenoses assim definidas são o objecto de atenção preferencial da Fitossociologia no sentido da construção de um modelo da vegetação. Tradicionalmente, todas as fitoaglomerações e sociabilizações de plantas ao nível da comunidade basal, por não possuírem uma quantidade de informação suficiente relevante para o modelo da vegetação e não corresponderem a produtos estáveis do processo de estruturação do coberto vegetal, são normalmente inventariadas apenas para fins de registo, mas não utilizadas para fins sintaxonómicos. As expressões fitossociológicas, aglomerações, fragmentos, semi- associações, etc. correspondem normalmente a comunidades basais. 1.2.1.2.2 Conceito e propriedades dos sintáxones Em Fitossociologia, por via de um processo estatístico indutivo de comparação de inventários25, estabelece-se uma classe conceptual que representa ou modeliza a fitocenose. O tipo lógico abstraído da comparação de inventários, formalmente representado por uma combinação florística, tipo estrutural e ambiental, designa-se 22 Nicho ecológico: porção multidimensional do biótopo e do espaço definido pelos factores ambientais onde uma população encontra as suas condições de existência. 23 Em rigor, existe um preenchimento dos espaços sinusiais internos da comunidade. As sinúsias constituem sub-unidades da fitocenose constituídas por grupos ecológicos de espécies associados nos micro-habitat internos da comunidade, que no entanto não são independentes estrutural e funcionalmente desta. Uma discussão detalhada da função das sinúsias num eventual sistema fitossociológico alternativo com base nestas unidades pode ser encontrada em GILLET, FOUCALT & JULVE (1991); THEURILLAT (op. cit.) e GÉHU (1998). 24 I.e. a combinação característica, que no seu conjunto define uma quantidade de informação específica associada à presença de uma comunidade em equilibrio com o habitat. 25 Descrições das fitocenoses. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 20 por sintaxon. Os sintáxones do mesmo nível são mutuamente exclusivos e incluídos em sintáxones de generalidade crescente26. Trata-se de uma classificação empírica, de carácter natural que representa a vegetação de uma dada região da Terra nas suas afinidades florísticas, estruturais, ecológicas, biogeográficas e históricas27 . O sintaxon que representa uma fitocenose designa-se por associação [lat. associatio]. A representação do conhecimento das relações ecológicas e florísticas das fitocenoses parte do nível elementar de associação. Os sintáxones de categoria superior (alianças, ordens, classes) correspondem a conceitos ecológicos de generalidade crescente, consistentes floristicamente. Assim por exemplo, uma dada aliança corresponde a um grupo de associações que partilha caracteres florísticos e ecológico-estruturais e com um significado biogeográfico preciso. Deste modo, e de acordo com as evoluções históricas do conceito já referidas (Flahault, Braun-Blanquet), poder-se-á definir a associação da forma seguinte (GÉHU & RIVAS-MARTÍNEZ, 1980, THEURILLAT, 1992; POTT, 1996; RIVAS-MARTÍNEZ, 1996): A associação é um conceito abstracto cuja realidade concreta corresponde a uma fitocenose (ou indivíduo de associação). A associação possui uma composição florística própria, relativamente constante, distinguindo-se das outras associações próximas pelo seu conjunto específico i.e. pela combinação característica das espécies diagnósticas (espécies características, diferenciais e companheiras). A combinação característica corresponde univocamente à ocorrência uniforme de uma mesma combinação de factores ambientais28. Por outras palavras, a associação é uma entidade sintética que, constitui a expressão estatística das fitocenoses concretas, e que corresponde univocamente a um habitat determinado. Caracteriza-se por possuir, para além dos florísticos, caracteres ecológicos, sucessionais, corológicos (biogeográficos), antropogénicos e históricos próprios. O conceito de associação funda-se na avaliação estatística dos factos concretos constituídos pelos inventários de vegetação efectuados nas fitocenoses ou indivíduos de associação, que são a única realidade ecológica tangível objectivamente delimitáveis nas superfícies de vegetação (RIVAS-MARTÍNEZ, 1996). Não possui, portanto, existência biológica real, da mesma maneira que a espécie, em ideotaxonomia, é um conceito abstracto representando as características médias de um conjunto de indivíduos ou populações morfológica e geneticamente afins. A associação é a base do sistema de classificação tipológica da vegetação, correspondendo à unidade sinecológica elementar . Considerando os diversos níveis 26 As associações agrupam-se alianças, estas em ordens e as últimas em classes. 27 GÉHU (1998) analisa, do ponto de vista epistemológico, a estrutura tipológica da hierarquia sintaxonómica. 28 I.e. dado um território biogeográfico. Associações constituídas por táxones distintos comoresposta a um habitat homólogo, em unidades biogeográficas distintas, designam-se por sinvicariantes. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 21 de complexidade ecológica - indivíduo, população, ecodeme29, sinúsia, comunidade, complexos de vegetação (GILLET, FOUCALT & JULVE, 1991; THEURILLAT, op. cit.), a associação corresponde à unidade mais pequena com autonomia funcional no ecossistema, tendo correspondência unívoca com o habitat, protagonizando os eventos elementares das variações espaciais e sucessionais do coberto vegetal e como tal , objectivamente delimitável. Os sintáxones, independentemente da sua categoria hierárquica, possuem um conjunto de caracteres [ou propriedades], de diferente ordem. Os caracteres gerais dos sintáxones, e da associação em particular, foram expostos em detalhe por GÉHU & RIVAS-MARTÍNEZ (1980). Estes caracteres podem ser sistematizados e acrescidos de alguns comentários adicionais: 1. Caractéres florístico-estatísticos. Os sintáxones, independentemente do seu nível hierárquico, possuem um conjunto de táxones30 característicos que lhe estão exclusivamente associados. Exceptuando a associação, os sintáxones são classes politéticas, i.e. nem todas as espécies características ocorrem obrigatoriamente nos sintáxones subordinados 31. Este carácter acentua-se à medida que se consideram sintáxones de hierarquia crescente. No caso da associação, esta deve possuir uma combinação estatisticamente repetitiva de espécies diagnosticas32, ou conjunto específico. O conjunto específico inclui, no entanto, táxones com diferente valor informativo e grau de fidelidade à associação. A fidelidade exprime o grau de ligação do táxone a um sintáxone. Distinguem-se habitualmente espécies características, diferenciais e companheiras. As características pertencem a uma combinação que define univocamente a associação33. O seu óptimo fitossociológico e ecológico, o seu tipo fisionómico são frequentemente consistentes com o da associação que caracterizam. Fora dos territórios ricos em endemismos, e exceptuando sintáxones muito especializados, pode ser difícil encontrar características absolutas de associação. Para delimitar tais associações, ou sintáxones de outra categoria com carácter regional, mais ou menos afastados de outros geográfica ou ecologicamente, recorre-se a espécies diferenciais. Em termos absolutos, as diferenciais, por terem amplitudes ecológicas e biogeográficas 29 Conjunto de organismos da mesma espécie, num mesmo estado de desenvolvimento ontogénico, partilhando num dado momento a mesma porção do biótopo no interior de uma biocenose. Corresponde grosso modo ao conceito de coorte em Ecologia animal. 30 Neste contexto, trata-se de táxones ao nível de espécie, sub-espécie, variedade, forma ou ecomorfose (ecofene ou fenotipo ecológico). Ao longo do texto, por conveniência, recorre-se a um abuso de linguagem substituindo táxone pela expressão espécie. 31 Frequentemente combinações ou sub-conjuntos das espécies características da unidade superior em que se incluem. 32 Ou num sentido lato combinação característica. 33 BRAUN-BLANQUET & PAVILLARD (1922) distinguem dentro das características, graus de fidelidade decrescentes: exclusivas da associação (com amplitude ecológica absolutamente contida no habitat de uma única associação); electivas (com o óptimo na associação mas com ocorrência esporádica noutras) e preferentes (com uma maior proporção da sua amplitude ecológica na associação apesar de ocorrer noutras). Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 22 maiores que a associação (ou outro sintáxone) que caracterizam, têm valor distintivo dada uma associação em face de outras enunciadas concretamente. I.e. têm apenas valor diferencial dado um território biogeográfico e um contexto ecológico. As companheiras são espécies presentes em vários agrupamentos, ou características de outras classes de vegetação, que ocorrem na associação devido aos contactos catenais (espaciais) ou sucessionais com essa vegetação. No entanto, note-se que muitas espécies diferenciais são formalmente companheiras pois frequentemente têm o seu óptimo fitossociológico noutro sintáxone (i.e. são características desde último). Se bem que muitas companheiras são espécies mais ou menos generalistas na sua amplitude ecológica e, como tal, não-informativas, algumas companheiras podem, no entanto, veicular informação precisa de carácter ecológico, corológico ou sucessional. 2. Caracteres estruturais. A fisionomia e estrutura da fitocenose está condicionada pela forma biológica (tipo fisionómico) dominante na comunidade e pela sua estratificação. No caso das fitocenoses multi-estratificadas, os estratos inferiores são absolutamente condicionados ecologicamente e singeneticamente pelos superiores. Cada um constitui uma sinúsia e não deverão ser separados em inventários distintos. No entanto, na análise de mosaicos de vegetação há que distinguir como fitocenoses distintas as que são dominadas fisionomicamente por um determinado tipo biológico (e.g. clareiras ocupadas por terófitos nos espaços de uma comunidade arbustiva). A resposta vegetacional (florística e fisionómica) à heterogeneidade ambiental é unívoca com a ocorrência de habitat uniformes em mosaico no interior do biótopo. Por fim, fazem parte da estrutura e fisionomia os aspectos fenológicos, as variações sazonais e as substituições temporais de comunidades no mesmo biótopo (e.g. comunidades de herbáceas infestantes ao longo do ciclo cultural). 3. Caracteres ecológicos. Cada fitocenose está associada a uma estação ou habitat definido por uma combinação de factores ambientais da qual depende, e que realiza as suas condições de existência. No seio da fitocenose, a comunidade vegetal interage e modifica o habitat. Os caracteres estacionais podem consistir em factores físicos (solos, clima, geomorfologia, etc.) ou bióticos (antropogénicos). Há ainda que acrescentar os factores biogeográficos. 4. Caracteres sucessionais. Uma dada associação possui sempre um significado evolutivo determinado num processo de sucessão. Pode estar incluída num processo de sucessão progressivo (primário ou secundário) ou regressivo. Cada associação corresponde a uma etapa madura (clímax) de substituição ou recuperação dentro de uma série de vegetação climática ou edafófila. Pode Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 23 ainda, no caso de habitat extremos, corresponder a uma resposta especializada permanente (no contexto de micro-sigma-associações e microgeosigmeta 34). 5. Caracteres corológicos. Todos os sintáxones, e em particular a associação, possuem uma área biogeográfica particular. O grau de conhecimento de uma unidade fitossociológica é tão mais preciso quanto maior for o conhecimento da sua repartição geográfica. 6. Caracteres históricos. Os sintáxones podem possuir significados paleo- ecológicos distintos. São particularmente relevantes as formações reliquiais, fora do contexto actual do clima e solo zonal. São frequentemente agrupamentos especializados em biótopos sujeitos a condições ambientais actualmente raras, mas dominantes nalguma fase da história geológica recente (do Terciário à actualidade). São particularmente úteis na interpretação biogeográfica do território, pois possuem alto valor diagnóstico na reconstituição dos paleo-ambientes, paleo-climas e vias migratórias florísticas. Possuem frequentemente um elevado valor de conservação porquanto constituem relíquias paleo-climáticas de improvável reconstituição em caso de destruição. Alguns agrupamentos resultam da acção directa das populações humanas na conformação da paisagem cultural, pelo que frequentemente são relevantes os dados históricosna compreensão da singénese do sintáxone. A interpretação deste conjunto de caracteres vê-se apoiada pelos dados da arqueologia, paleo-palinologia, paleo-ecologia e biogeografia comparada (histórica e cladística). 1.2.1.2.3 Variação da associação e sintáxones de categoria inferior A variabilidade composicional e ecológica no seio de uma dada associação tem expressão sintaxonómica na utilização de categorias inferiores à associação. Estas correspondem a variações florísticas e ambientais de grau variável em torno do conceito central ou tipo da associação. A definição actual dos conceitos de sub- associação, variante e facies (por ordem decrescente de variação relativamente ao tipo) foi historicamente objecto de controvérsia (RIVAS-MARTÍNEZ, s.d.). A presença não-esporádica de espécies diferenciais relativamente ao tipo pode ter origem em variações geográficas ou ecológicas, ou em contactos sucessionais e catenais entre comunidades. As definições actuais mais consensuais destas unidades são, de acordo com GÉHU & RIVAS-MARTÍNEZ (op. cit) ; RIVAS-MARTÍNEZ (s.d.), as seguintes: 1. Sub-associação. [lat. subassociatio] Consideram-se sub-associações as comunidades vicariantes biogeográficas (ou raças biogeográficas) cuja 34 Os conceitos sucessionais e catenais associados a este grupo de caracteres são explanados adiante na secção sobre Fitossociologia de Paisagem. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 24 combinação florística não tem identidade suficiente para se considerar distinta do tipo. Deste apenas se distingue por espécies diferenciais. No caso de um mesmo território biogeográfico, a diversidade da comunidade pode corresponder a várias sub-associações quando se encontram em diferentes unidades bioclimáticas (ombro-climáticas ou termo-climáticas) ou edáficas não relacionadas com o grau de humidade do solo (e.g. diferenças litológicas)35. GÉHU & RIVAS-MARTÍNEZ (op. cit) conotam claramente a sub-associação com a raça geográfica, que no seio de uma unidade corológica particular se diferencia pela aparição de algumas espécies ligadas a este contexto geográfico. São (…) associações territoriais debilmente ou mal delimitadas. 2. Variante. [lat. variatio] Os contactos sucessionais entre etapas de uma mesma série, os ecótonos entre comunidades distintas com diferentes graus de humidade edáfica e entre comunidades distintas da mesma classe de vegetação são considerados variantes. Estas, em geral, possuem no seu elenco espécies próprias das comunidades espacial ou cronologicamente adjacentes à fitocenose considerada. Não possuem área própria e repetem-se sempre que o factor ambiental ou processo ecológico que a origina ocorre. 3. Fácies. [lat. facies] Corresponde a variações atípicas nas proporções relativas da abundância de quaisquer espécies do conjunto específico da associação (e.g. dominância de uma espécie não habitualmente dominante nas fitocenoses que correspondem ao tipo). 1.2.1.2.4 Enquadramento epistemológico do método fitossociológico No processo lógico de construção do conhecimento científico reconhecem-se essencialmente dois processos. O primeiro tipo, designado por hipotético-dedutivo radica da tradição filosófica do positivismo lógico e tem sido defendido pelos autores ditos racionalistas (CHALMERS, 1987; POPPER, 1984; LAKATOS, 1971). Uma dada teoria científica constitui, neste sentido um modelo explicativo da realidade que se aceita como adequada se, antes de mais, for falsificável. Isto é, se for possível confrontar as previsões que produz com resultados experimentais ou observações da realidade em condições controladas. Uma dada hipótese, decorrente da teoria em causa, assim como a sua negação lógica (hipótese nula), são confrontadas com observações experimentais que alternativamente são consistentes com a hipótese ou incompatíveis com ela36. No caso de a teoria aderir eficientemente aos resultados experimentais, a teoria é aceite como boa, pois prevê aqueles resultados em particular. A adequação (ou bondade) de uma teoria é tanto maior quanto maior e 35 ALCARAZ (1996) conota as variações bioclimáticas com as variantes e não com as sub-associações. Diversos autores tendem a concordar com esta última visão. 36 I.e. os resultados experimentais ou observacionais controlados apoiam positivamente a hipótese ou alternativamente apenas permitem aceitar a hipótese nula, caso no qual se admite que a hipótese testada não tem a capacidade de prever o fenómeno. Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 25 mais diversa for a quantidade de resultados experimentais previstos (verificação). Nenhuma teoria pode ser considerada verdadeira, pois tal assunção é desprovida de sentido epistemológico na medida em que o estatuto lógico de hipótese verdadeira seria apenas obtido no limite, quando o número virtualmente infinito de todas as verificações fosse levado a cabo. No entanto, uma única observação experimental inconsistente com a teoria atribui-lhe imediatamente o estatuto de falsa, pelo que deve ser rejeitada (falsificação). A postura dedutiva ou falsificacionista apresenta, como em muitas outras ciências, inúmeras limitações resultantes da sua inflexibilidade. As críticas principais dirigem- se ao quadro filosófico geral onde se enquadram (positivismo lógico), pois constata- se que a maior parte da actividade científica de verificação não poderá conduzir ao avanço real dos paradigmas científicos enquanto não forem encontradas falsificações, às quais os trabalhos científicos não são normalmente dirigidos (KUHN, 1962; FEYERABEND, 1993). Os programas estritamente falsificacionistas têm sido modernamente abandonados como forma exclusiva de gerar conhecimento científico. A estes sucederam-lhe as atitudes científicas ditas relativistas. Em primeiro lugar reconhece-se que o método dedutivo, apesar de constituir um filtro para o estabelecimento de explicações (relações causa-efeito) por verificação de hipóteses, não tem a capacidade de gerar ou acrescentar novo conhecimento ao paradigma científico em causa. A formulação de hipóteses acerca da Natureza é sobretudo um processo decorrente da imaginação científica e sobretudo da observação indutiva dos fenómenos. Neste processo, a observação repetida leva ao estabelecimento de factos ou leis obtidas por abstracção das qualidades gerais dos fenómenos. No entanto, de um ponto de vista epistemológico, não conduz a um conhecimento certo, pois a observação de um número finito de casos não garante que a regra induzida se aplique à totalidade dos casos. No entanto, as dificuldades de manipulação experimental controlada de objectos naturais como os ecossistemas, pela sua diversidade e dimensão, têm conduzido a programas de investigação incluindo elementos dedutivos e indutivos, assim como à utilização de hipóteses múltiplas de trabalho. A associação de processos empíricos indutivos a hipóteses parcimoniosas conducentes a explicações prováveis [princípio de Occam], é prática corrente nas ciências da vegetação. Em termos genéricos, as observações nos padrões recorrentes de composição florística e factores de habitat, e a sua correlação, conduzem a modelos da vegetação eminentemente empíricos. Estes, podem posteriormente servir de base a verificações experimentais, no âmbito da Ecologia experimental. Numa grande parte dos ecossistemas não é possível discernir hipóteses explicativas imediatamente, devido à ausência de uma descrição suficiente do mesmo, pelo que programas de tipo hipotético-dedutivo se mostram inadequados, em favor de Conceitos e métodos da Fitossociologia _______________________________________________________ 26 modelos descritivos empíricos. Como resultado, a maior parte
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