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VLADIMIR MIGUEL RODRIGUES Malcolm X: entre o texto escrito e o visual Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Teoria Literária (Área de Concentração: História, Cultura e Literatura) Orientador: Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher São José do Rio Preto 2010 COMISSÃO JULGADORA Titulares Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher - Orientador Prof. Dr. Dagoberto José Fonseca Profª. Drª. Giséle Manganelli Fernandes Suplentes Prof. Dr. Fabio A. Durão Profª. Drª. Claudia Ceneviva Nigro Em memória de Zumbi e de toda comunidade Palmarina; aos descendentes malês; para Abdias do Nascimento e ao Movimento Negro Unificado; em memória de Malcolm X, Martin Luther King Jr, Rosa Parks e todos os Panteras Negras que morreram pelos direitos dos afro-americanos; aos fundadores do Hip Hop; em memória de Toussaint e Dessalines que acabaram com a escravidão no Haiti e para todo o povo daquele país; para Nelson Mandela e pela memória de Steve Biko e todos os que lutaram pelo fim do apartheid na África do Sul; em memória de todos os mártires que lutaram pela liberdade no mundo inteiro. Viva! Aos meus pais, Ruben e Suely, pela criação feita com humildade, fraternidade e dignidade que me ensinaram os alicerces da cidadania e pelo incentivo diário ao trabalho acadêmico. Ao meu avô, João Miguel (in memorian), paladino das lutas pela igualdade social, e que me ensinou a irmandade entre os povos; ao professor doutor Alvaro Hattnher, um dos grandes responsáveis pela minha formação profissional e intelectual e sem o qual este trabalho não teria alcançado êxito; aos amigos que contribuíram com sugestões e apoio. A todos, meus sinceros agradecimentos. “Se alcancei patamares tão elevados foi porque me apoiei sobre ombros de gigantes.” Isaac Newton “Sou a soma dos meus antepassados e eles estão vivos dentro de mim. Por isso, sou representante de todos eles e reconheço que eles se manifestam através dos meus pensamentos”. Provérbio oriental “Aprendemos a voar como pássaros, a nadar como peixes, mas não aprendemos a viver como irmãos”. Martin Luther King Jr. “Não se pode separar paz de liberdade porque ninguém consegue estar em paz a menos que tenha sua liberdade”. Malcolm X “Sim, nós podemos”. Barack Hussein Obama “Posso não concordar com uma palavra do que disseres, mas lutarei a vida inteira pelo direito que tens de dizê-la”. Voltaire SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................................ 1 Capítulo I – Contexto Histórico – Malcolm X – uma figura histórica no contexto de uma sociedade racista ...................................................................................................... 7 Capítulo II – Malcolm X –da alienação à consciência moderada ............................. 46 Capítulo III – A representação de Malcolm aos olhos de Spike Lee ...................... 119 Considerações Finais ................................................................................................... 170 Anexo de Imagens ........................................................................................................ 177 Referências Bibliográficas .......................................................................................... 184 Bibliografia Consultada .............................................................................................. 187 RESUMO Malcolm X foi figura exponencial durante a luta pelos direitos civis da população afro- americana nos EUA nas décadas de 1950 e 1960. Seu polêmico discurso pela resistência violenta das populações negras contra o racismo branco marcou gerações naquele país. Esta dissertação de mestrado pretende analisar as representações desse personagem histórico na obra “Autobiografia de Malcolm X”, texto biográfico escrito pelo jornalista Alex Halley e sua transcodificação para o Cinema no filme “Malcolm X” do cineasta Spike Lee. Palavras-chave – Malcolm X, Alex Halley, Spike Lee, Movimento Negro, EUA Abstract: Malcolm X was a remarkable historical character during the Civil Rights struggles in the USA in the 1950s and 1960s. His polemical speech in favor of black resistance against the white racism was fundamental to the next generations in the country. This study aims at analyzing Malcolm´s representations in Alex Halley´s biography – Malcolm X – and its transcodification to the film X, directed by Spike Lee. Keywords – Malcolm X, Alex Halley, Spike Lee, Black Movement, USA 1 INTRODUÇÃO Esta dissertação de Mestrado dá continuidade, em alguns aspectos, ao trabalho de Iniciação Científica desenvolvido durante a graduação de bacharelado em Letras com habilitação em Tradutor. O projeto atual “Malcolm X: entre o texto escrito e o visual”, segue a temática já estudada em projetos anteriores, como o de Estágio Básico, no qual foi abordado o movimento revolucionário dos Panteras Negras, e mais tarde, na Iniciação Científica, em que foi estudada a ligação entre o movimento negro dos EUA e o movimento negro brasileiro. Foi nesse último momento que surgiu o interesse em estudar a figura do líder negro Malcolm X, conhecido por seu discurso áspero contra a elite branca e um dos responsáveis pelo início da chamada Revolução Negra nos EUA. Malcolm X foi figura extremamente importante nos EUA na década de 1960, tendo lutado ativamente pela liberdade dos negros. Muçulmano, inicialmente adepto da Nação do Islã, propagava um discurso radical contra os brancos, afirmando que os negros deveriam criar um país dentro dos EUA e viver em separado da América branca. Após viajar em 1964 a Meca e aos países africanos recém-independentes, reformulou seus ideais, abandonou a violência e a Nação do Islã, caminhando para a construção de um discurso socialista, moderado, conciliatório que objetivava a criação de uma identidade afro-americana. Sua vida teve fim em 1965, quando proferia uma palestra e foi brutalmente assassinado. Nosso objetivo geral pautou-se em estabelecer um estudo comparado sobre as estratégias formais de transcodificação e de representação que se podem observar no 2 diálogo que se estabelece entre a biografia de Malcolm X, escrita por Alex Halley (1965), Autobiografia de Malcolm X, e o filme de Spike Lee (1992), Malcolm X. Dessa maneira, estabelecemos aproximações e distanciamentos entra as duas obras, e também apontamos quais aspectos da vida de Malcolm as duas omitiram. Organizamos esta dissertação de Mestrado em três capítulos: o primeiro - Contexto Histórico – Malcolm X: uma figura histórica no contexto de uma sociedade racista – é uma imersão na História norte-americana. Primeiramente, embasados na teoria do “mito fundador” da filósofa brasileira Marilena Chauí, fizemos uma comparação entre a fundação mítica do Brasil e dos EUA. Chauí afirma que a fundação brasileira foi baseada nas “visões do Paraíso”. Por outro lado, tentamos mostrar que a sociedade americana foi fundada com concepções “libertárias” e todo o seu processo histórico foi conduzido por meio desses ideais. Entretanto, a história do negro norte-americano nos mostra que tais concepções são, na verdade, paradoxais, pois os negros estiveram à margem da sociedade, não possuindo os direitos assegurados pela “democracia” norte-americana,que deveria garantir os direitos das minorias. Realizamos uma análise cronológica dos principais momentos históricos da sociedade norte-americana, e o fizemos pelo viés da população negra. Partimos da chegada dos primeiros africanos por meio dos navios negreiros, passando pela prática da escravidão e o início da opressão racial na formação dos “reinos do algodão” no Sul das 13 Colônias. Em seguida, abordamos as liberdades restritas proporcionadas pelo advento da administração de Lincoln e a participação dos negros na Guerra de Secessão, chegando, 3 por fim, no racismo e segregacionismo institucionalizado pelas leis “Jim Crow” do final do século XIX e começo do século XX que, para nós, teriam levado ao surgimento da personalidade “radical” de Malcolm X e da Nação do Islã e à emergência de vários outros movimentos na luta pelos direitos civis, como o de orientação cristã/batista de Martin Luther King Jr, ou então o de luta armada, o do Partido dos Panteras Negras. O Capítulo 2 - Malcolm X: da alienação à consciência moderada – inicia-se a partir de um estudo sobre as construções biográficas. Primeiramente, assumimos que o livro Autobiografia de Malcolm X, escrito pelo jornalista Alex Halley, é um texto biográfico, ao contrário do que diz o seu título. Na verdade, o livro se chama Autobiografia, mas a maneira como foi escrito nos leva a acreditar que se trata de uma biografia, em que apesar de Halley ter sido auxiliado por Malcolm na elaboração dos textos, foi ele, o jornalista, quem deu os contornos finais ao texto, escolhendo e excluindo os temas principais a serem abordados dentro da obra final. Para analisarmos o texto literário, incluímos nesse estudo, teóricos como: Sérgio Villas Boas, Walter Benjamin, Ecléa Bosi e outros que nos auxiliaram no embasamento teórico para estudar o tipo de imagem foi criada na figura de Malcolm X no livro de Halley, e também para nos auxiliar a demonstrar que o relato biográfico é uma dentre tantas outras possibilidades de análise da vida de uma pessoa, principalmente quando se trata de uma figura histórica, como foi o caso de Malcolm X. Sendo assim, tentamos explicitar que Halley criou um personagem no seu texto, o seu Malcolm X, o qual possui características próprias, não necessariamente reais, pois o processo de criação do biografado leva em conta as perspectivas e ideologias do biógrafo, que impõe no personagem biografado determinadas características que podem ser consideradas fictícias. 4 Essa é uma colocação que nos leva a analisar Malcolm pelo ponto de vista da construção literária – um personagem dentro de um texto escrito, personagem que, aliás, foi criado com traços heróicos, que conheceu o inferno das drogas e da marginalidade, que passou pela prisão e lá encontrou o caminho da religião e da alfabetização que o levaram, mais tarde, para a liderança de um movimento político-religioso de massas negras marginalizadas pelo sistema social norte-americano para, mais tarde, ser brutalmente assassinado em uma mesquita muçulmana, e em condições obscuras até os dias atuais. Neste capítulo, procuramos escolher vários fragmentos da obra de Halley e comentarmos como foi criado o personagem “Malcolm X” na obra literária. Tentamos mostrar que em alguns momentos Halley selecionou características da vida de Malcolm que foram supervalorizadas, o que demonstra a sua total parcialidade quanto à vida e obra de Malcolm X. E também mostramos que Halley deixou várias lacunas sobre a vida de Malcolm em seu texto, como um encontro com membros da KKK, entre outros aspectos controversos de sua vida pessoal. Por fim, o Capítulo 3 – A representação de Malcolm aos olhos de Spike Lee – é uma análise sobre o filme Malcolm X do cineasta negro, norte-americano, Spike Lee. Neste capítulo, em primeiro lugar, demos uma atenção especial à trajetória cinematográfica de Lee, conhecido mundialmente pelos seus polêmicos filmes de temática racial, em que expôs as dificuldades e o racismo encontrado pela população negra nos EUA contemporâneo. Posteriormente, munidos de concepções teóricas de Bernadet, Heynemann e Vanoye e Goliot-Lété, selecionamos uma série de cenas do filme Malcolm X para serem 5 analisadas do ponto de vista da transcodificação do texto literário para a linguagem cinematográfica. Procuramos mostrar como Lee criou o seu Malcolm X, mediante a análise fílmica de várias cenas. Apontamos, neste momento, as aproximações e os distanciamentos entre a obra escrita de Halley e a obra visual de Lee. Este último, aliás, assim como constatamos no texto escrito, não revelou para o público algumas possíveis características da vida de Malcolm, como o relacionamento com o desafeto Louis Farrakhan, ou então o envolvimento com o homossexualismo na juventude. Um aspecto que procuramos evidenciar foi o de que Lee, assim como Halley, teve uma visão parcial dos fatos, e impôs ao seu Malcolm características heróicas. Vale destacar que a distância entre ambas as construções históricas da personalidade de Malcolm é de quase 30 anos. Dessa maneira, Lee teve acesso a mais informações e revelações sobre a vida de Malcolm, podendo, assim, especular sobre o seu obscuro assassinato, algo que Halley não dissertou, talvez por pressão de envolvidos, ou então por falta de informações. Lee terminou seu filme deixando como mensagem para o público, que a figura de Malcolm é a de um herói dos negros norte-americanos e um dos grandes responsáveis pela integração racial no país. E, finalizando, o filme de Lee tentou relacionar a imagem de Malcolm às lutas internacionais pelos Direitos Humanos, como é o caso da África do Sul de Mandela, que na época em que o filme foi lançado, acabava de sair do regime racista do apartheid, perspectiva que mostra o quanto o contexto histórico influencia na criação de uma memória histórica. 6 Nas Considerações Finais procuramos mostrar como a figura de Malcolm, independentemente do julgamento de Alex Halley e Spike Lee, foi importante para o desenvolvimento social dos EUA, e em especial para a comunidade negra. E, acima de tudo, os resultados de sua luta para os EUA dos dias atuais, 45 anos após sua morte, como, por exemplo, a eleição do primeiro presidente negro do país, Barack Obama. 7 Capítulo I Contexto Histórico – Malcolm X: um protagonista de uma sociedade racista I.I - Fundação e Formação dos EUA Na arena de lidar com seres humanos, a Inteligência funcional do homem branco titubeia. E essa inteligência falha inteiramente se por acaso os outros seres humanos não são brancos. É capaz de cometer contra os não- brancos os atos emocionais espontâneos mais inacreditáveis, tão profundamente arraigado é o seu complexo da ‘superioridade branca’. Onde foi lançada a bomba atômica... ‘para salvar vidas americanas’? Malcolm X As nações americanas começaram a nascer a partir do final do século XVIII, principalmente por meio da crise do sistema colonial europeu e o início dos movimentos emancipacionistas que surgiram de Norte a Sul no continente nas últimas décadas daquele século, como nas Treze Colônias inglesas, no Haiti francês, nos vice-reinados espanhóis e no Brasil português. A construção de uma nação é o resultado de sua formação e de sua fundação. Entende-se pela primeira, de acordo com a Chauí (2000, p. 9), “não só às determinações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento histórico, mas também em transformação e, portanto, na continuidade ou na descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos temporais”. Em síntese, formação significa as transformações dialéticas do processo histórico. Já o segundo conceito, o de fundação, ainda segundo Chauí, 8 refere-se a um momento passado imaginário tido como instante originário que se mantém vivo e presenteno curso do tempo, isto é, a fundação visa algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido. A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar. 1 Dessa maneira, a fundação surge de uma visão mítica do primeiro contato dos colonizadores com o novo território (no caso aqui analisado, as Treze Colônias que darão origem à sociedade norte-americana, da qual Malcolm X é participante) e, ao mesmo tempo, essa fundação mitológica, segundo a filósofa, é a força ideológica e transcendental propulsora das transformações históricas. Chauí chama esse processo de mito fundador. Embora a concepção de mito fundador proposta por Chauí tenha surgido e sido aplicada à sociedade brasileira, com base nas “visões do Paraíso” relacionadas à simbologia da chegada dos portugueses à América, verifica-se que é possível também a aplicação deste conceito ao surgimento da sociedade americana. As ideologias constituintes da fundação mitológica de qualquer país, seja dos EUA ou do Brasil, renovam-se para se adequarem ao novo momento histórico. Como diz Chauí (2000, p. 10), “é exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente”.2 Isso ocorre pelo fato do mito simplesmente ser transcendente à realidade. As representações da fundação se consolidam por meio da própria cultura do país, manifestando-se em aspectos culturais gerais, na economia, política, sociedade em geral. Quando aplicamos essa perspectiva aos Estados Unidos, é possível afirmar que a fundação das Treze Colônias, que em 1776 ganhariam o nome de Estados Unidos da 9 América, baseou-se em uma potencial “busca por liberdade”. Na chegada dos primeiros ingleses à América do Norte nos navios do Capitão Christopher Newport3 no início do século XVII, começa a se constituir uma visão da liberdade. Embora os colonos também se deslumbrassem com a geografia da Virgínia, com seus “prados abertos e boas árvores, com uma água tão fresca que a simples visão quase os arrebatava”,4 foi a oportunidade de viver em uma comunidade baseada na liberdade que lhes deu uma maior empolgação. Por razões históricas que remontam à Reforma Protestante inglesa e ao repressivo e intolerante regime absolutista daquele país, essa liberdade, primeiramente, seria a religiosa. Os ingleses que saíram da Inglaterra para se tornarem colonos na América o fizeram, principalmente, em conseqüência da perseguição religiosa aos puritanos, feita ora por católicos, ora por anglicanos. Em todos os lugares onde os peregrinos chegassem seriam inerentes, em tese, os direitos dos ingleses nascidos livres,5 herdeiros de seus ancestrais que lutaram incessantemente pela liberdade na Inglaterra. Esses direitos já estavam incluídos na Constituição da Virgínia, a então “terra da liberdade”: todos os colonos deveriam ter acesso às liberdades, imunidades e privilégios cujos ideais também já se encontram na filosofia renovadora e pré-iluminista de John Locke. Para que esses direitos realmente entrassem em vigor foi essencial a total vigilância dos colonos para todo e qualquer tipo de interferência da Coroa nas suas liberdades. Formou-se, então, o chamado auto- governo6, característica peculiar da colonização inglesa na Nova Inglaterra, que dava àquelas colônias uma maior autonomia em relação à Inglaterra. Talvez essa maneira peculiar de governar seja o principal fator de diferenciação entre a colonização inglesa e 3 In: Commager.H. S.; Nevins,A. História dos EUA. Rio de Janeiro: Bloch, 1966, p. 13. 4 Idem, p. 9. 5 Idem, p. 33. 6 Idem, p. 34. 10 as demais colonizações ibéricas: um oásis dentro da América, visto que praticamente todas as outras colônias no Continente, sejam elas de espanhóis ou portugueses, eram subordinadas à Metrópole por meio do Pacto Colonial mercantilista e monopolista. A autonomia das colônias nortistas, principalmente, foi fundamental para o seu desenvolvimento e fator de diferenciação econômica, política e cultural em relação às outras colônias ao longo do continente recém-descoberto. Percebe-se, aqui nesta passagem, uma manifestação própria do mito fundador, uma vez que os colonos manifestaram seus princípios libertários no campo político, não aceitando a submissão à Metrópole. Ao longo do processo histórico das Treze Colônias inglesas, o exercício da liberdade, que num primeiro momento estava relacionado às práticas religiosas, acabou se difundindo para todos os setores da sociedade que emergia, principalmente nas esferas política e econômica. A Assembléia da Virgínia decretou leis fundamentais para preservar os direitos da colônia, principalmente no que tange ao fisco e ao legislativo.7 O pioneirismo virginiano foi seguido por muitas outras colônias que eram estruturadas pelo auto-governo, contribuindo para a formação de uma significativa e ímpar representatividade política interna nas colônias. Em 1776, momento singular da história dos EUA, ocorreria o cisma com a Coroa Inglesa devido à decisão da Coroa Britânica de intensificar o controle político e a exploração econômica das colônias após as perdas ocasionadas pelo conflito contra os rivais franceses por territórios na América do Norte na chamada Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Esta guerra acabou por estreitar os laços ideológicos entre franceses e os colonos americanos, principalmente pelas doutrinas iluministas que nortearam os processos revolucionários de ambos os países no mesmo contexto histórico, pois é 7Idem, p.34. 11 completamente pertinente relacionar a referida guerra à emergência de dois episódios fundamentais na História dos EUA, a Revolução Americana, e no caso francês, a Revolução Francesa. Embora tivessem ganhado a guerra, os ingleses saíram do conflito com suas finanças desestabilizadas. Tiveram que mexer no fisco e no bolso dos colonos. Dessa forma, a autonomia colonial foi ameaçada por um conjunto de imposições que os prejudicavam, culminando com a criação de novos impostos, como a Lei do Selo, Lei do Açúcar, Lei do Chá e, por fim, as Leis Intoleráveis.8 Na América do Norte, a situação tornou-se insustentável, levando os colonos à Declaração de Independência em 4 de Julho de 1776 no Segundo Congresso da Filadélfia.9 Liderados por George Washington, Thomas Jefferson, entre outros chamados de “pais da pátria” e inspirados nos ideais iluministas, os agora norte- americanos lutaram até 1783 pela criação da nova nação, que teve a primeira constituição promulgada em 1787. O regime político era republicano-federativo, sendo que a autonomia estadual era prioridade devido às diferenças econômicas e culturais dentro dos estados, ex-colônias.10 O mito fundador estaria presente em outros episódios importantes da História do EUA: após a Segunda Guerra de Independência (1811-1812), a Doutrina Monroe fazia frente ao Congresso de Viena, lutando pela liberdade dos povos da América e não aceitando a idéia de recolonização do continente. Em outro momento décadas depois, na Guerra Civil (1861-1865), os Confederados (estados do Sul), que queriam a continuidade da escravidão, pleitearam sua liberdade em relação aos estados do Norte, que objetivavam o fim da escravidão.11 8 Idem, p. 84. 9 Idem, p.108. 10 Idem, p.136. 11 Idem, p. 240. 12 Os sulistas então criaram os Estados Confederados e a Secessão teve início. Dentro do imaginário político norte-americano, esse fato histórico pode ser identificado como uma manifestação de liberdade política, uma das características do mito fundador. No século XX, durante e logo após aSegunda Guerra Mundial, os EUA lutaram pela liberdade mundial e pela democracia, primeiro contra o nazismo, e depois contra o comunismo no âmbito da Guerra Fria, embora isso tenha sido feito utilizando meios nem um pouco lícitos, como o patrocínio de ditaduras militares que desrespeitaram os Direitos Humanos, como no caso latino-americano.12 Enfim, é possível enumerar diversos outros episódios da historiografia americana que utilizaram à sua maneira e interesse os ideais de liberdade. Talvez, nenhum outro foi mais importante, justo e humanitário que a luta pela liberdade dos negros. Eles lutaram por algo que já era considerado um direito natural, afinal a fundação dos EUA e a filosofia da Revolução Americana colocavam em primeiro lugar o “direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. Entretanto, já que essa liberdade era voltada somente aos seres humanos e não a “seres inferiores” como eram considerados os negros pelo pensamento dos colonos sulistas, ou por outra perspectiva, como a capitalista, que tornava os negros uma mercadoria, coube a eles uma dura luta para conseguir suas liberdades individuais. Durante uma considerável parte da história dos EUA, os negros foram humilhados e subjugados por uma sociedade, que foi dominada, política e economicamente por brancos. A conjuntura de exploração em que o negro viveu durante séculos propiciou, principalmente a partir da década de 1950, o advento de personalidades e grupos que lutavam pelos direitos civis da comunidade afro-americana, como é o caso de Malcolm X, Martin Luther King Jr e os Panteras Negras. 12 Idem, p. 518. 13 A escravidão do negro e sua humilhação posterior à Guerra Civil, em um suposto momento de “liberdade civil”, é uma mancha sangrenta no coração da sociedade norte-americana, fundada em ideais de liberdade, mas que na prática foram válidos somente para os indivíduos de cor branca. Na verdade, cidadania e cor da pele estiveram lado a lado em quase toda a História dos EUA, estando os afro-americanos à margem dos direitos humanos em geral. Dessa forma, como acontece na análise brasileira de Marilena Chauí, percebe-se que o mito fundador americano é contraditório. No Brasil, as “visões do Paraíso” que fundaram nosso país se contradizem com a realidade social marcada por uma miséria e corrupção crônicas. Já nos EUA, o mito fundador, criado por uma ideologia libertária, excluindo de suas concepções míticas o negro, tratado ao longo de boa parte da história dos EUA como uma mercadoria do sistema capitalista, afastado das liberdades civis da população branca. 14 I. II - A chegada dos primeiros negreiros e a volta à África Ninguém sabe quando chegará a hora da redenção da África. Mas está no vento. Está vindo. Um dia, como uma tempestade, estará aqui. Earl Little, pai de Malcolm No período pós-descolonização do continente africano, por volta das décadas de 1960 e 1970, a historiografia mundial passou a dar uma significativa atenção à história africana. Por ora, analisaremos os principais momentos da História do continente, iniciando-a a partir da Idade Média e enfatizando o momento do advento do tráfico de escravizados, por volta do final do século XV. Entretanto, isso não significa desconsiderar os fatos históricos anteriores à medievalidade, muito pelo contrário. Os estudos biológicos, arqueológicos e antropológicos nos mostram que a espécie humana apareceu pela primeira vez no continente negro. O hominídeo mais antigo que se conhece é o Australopithecus, encontrado na África do Sul.13 Existiram, no mínimo, três importantes Estados africanos durante a Idade Média. Mali, Gana e Songai sobreviveram por vários séculos até serem submetidos ao domínio muçulmano.14 Mais do que a invasão e a dominação muçulmana, que ocorreu na segunda metade do primeiro milênio, os africanos vieram a sofrer, a partir do século XV, o domínio e a humilhação do seu povo por parte dos europeus. A vida e a história da África devem ser divididas em antes e depois do início do tráfico negreiro, que mudou o curso de milhões de vidas e almas negras. Com o interesse predominantemente comercial e incentivados pela descoberta de um novo continente, a América, os traficantes de escravos encontraram na África o 13 ARRUDA, J. J. História Antiga e Medieval. São Paulo: Ática, 1974, p. 30. 14 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: A história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 15 seu paraíso econômico. A Revolução Comercial, a necessidade de mão-de-obra barata e a justificativa cristã, (que desde o início da escravidão usou o argumento de que os negros não possuíam alma e por isso deveriam ser escravizados) foram fundamentais para que a escravidão dos africanos crescesse vertiginosamente do século XVI ao XVIII, tendo entrado em declínio no século XIX. Pode-se afirmar de maneira genérica que o capitalismo triunfou na América e na Europa principalmente pela submissão do continente africano e de seus filhos. O que hoje se chama “dumping social”15 foi mais do que notável naquela época. Enquanto a Europa e parte de seus filhos enriqueciam no Novo Continente, os habitantes nativos da América e os africanos eram explorados das mais diferentes formas. Os traficantes apoiavam seus atos no fato da escravidão já existir na África. Naquele continente a escravidão não estava relacionada à acumulação de capital, ela ocorria, principalmente, por conquista e guerras tribais, não estando inserida ao processo exploratório capitalista.16 O tráfico negreiro era um grande negócio, sem precedentes históricos. Na contemporaneidade, no mundo globalizado, não há atividade lícita que corresponda aos lucros obtidos pelos traficantes de escravos na Época Moderna. Os lucros eram tremendos.17 Portugueses, holandeses e ingleses dominaram a atividade que durou até a segunda metade do século XIX. A passagem da África para as Américas era desumana, como viria a ser ainda o trabalho dos negros no novo continente. As embarcações eram precárias e a alimentação insuficiente. Havia a disseminação de doenças. Uma significativa parte dos africanos nem chegava à terra encontrada por Colombo. Entre os séculos XVI e XIX, o número 15 O “dumping social” consiste em vender uma mercadoria a preço baixo por meio da utilização de mão- de-obra barata. 16 NASCIMENTO, Elisa Larkin. Pan-africanismo na América do Sul, emergência de uma rebelião negra. Petrópolis: Ed. Vozes, 1980, p. 23. 17 GOMES, F, FERREIRA, R. A lógica da crueldade. Revista Nossa História, São Paulo, Edição Especial nº 3, 2005, p. 14. 16 de escravizados trazidos para as Américas variou entre 10 e 12 milhões de pessoas,18 sendo que o número de mortos durante a viagem é impossível de ser determinado com precisão. Embora os números não sejam precisos, aumentando ou diminuindo de acordo com a fonte histórica, é notável a enorme quantidade de africanos que tiveram seus destinos alterados pelo homem branco. Chegando à América, os negros foram distribuídos por todo o território. Estiveram presentes nas Antilhas, América Continental em grande número — Panamá, Caracas, Cartagena, Bahia, Pernambuco — na América Andina em menor quantidade, e é claro, na América do Norte, principalmente no Sul dos Estados Unidos. Nas Treze colônias a maior presença de escravos esteve no Sul, embora seus serviços também fossem utilizados em muito menor grau nas Colônias Centrais e Nova Inglaterra. Porém, o tratamento dispensado ao negro recebia no início de sua jornada nas Treze Colônias variava de acordo com a região em que trabalhava. Por exemplo, em Nova York já se reconhecia a imoralidade da instituição, o que não ocorrianas Carolinas e na Virgínia, que contavam com Códigos Escravistas que excluíam os negros de todas as instâncias sociais e baseavam sua economia nas mãos e nos pés dos escravos.19 O ambiente de trabalho dos escravos das Treze Colônias era praticamente igual aos dos outros negros da América: trabalhavam de maneira extenuante, em altas jornadas de trabalho.20 Seus esforços estavam voltados, principalmente, para a produção de fumo, algodão, anil, açúcar, entre outras atividades. Apesar de a escravidão ser uma instituição repugnante, não foram muitas as pessoas que atentaram para a questão durante a sua existência. E foram poucos os homens públicos dos EUA que se 18 Idem, ibidem. 19 Commager, H. S.; Nevins, A. História dos EUA. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966, p. 60. 20 FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002, p. 41. 17 dedicaram a lutar pelo seu fim. Dizia-se que na Pensilvânia o negro era relativamente respeitado, pois nessa colônia a escravidão não foi bem sucedida graças à perda de espaço da agricultura devido ao desenvolvimento do comércio. Talvez, o negro recebesse seu pior tratamento nas Carolinas, Maryland, Geórgia e Virgínia.21 Nesses locais existiam códigos escravistas extremamente rigorosos e foi nelas que se desenvolveu mais fortemente o preconceito e o racismo ao negro. Tratamento que se expandiu pelos outros estados sulistas que viriam a surgir com a expansão territorial norte-americana, como o Mississipi, Tennessee e Alabama, regiões que compõem o chamado “sul profundo”. Principalmente no Sul das Treze Colônias os números da população negra ultrapassaram ou se mantiveram bem próximos aos da população branca, o que causou um forte desgaste na sociedade, justamente pelo temor de revoltas dos escravos.22 A questão do fim da escravidão não era prioridade dos políticos importantes, mesmo após a independência, embora fosse muito debatida. O texto de Thomas Jefferson contra a escravidão foi retirado da Declaração de Independência e os negros ficaram desamparados por um bom tempo. Um possível fragmento que não foi incluído na Declaração dizia: Ele (Thomas Jefferson) travou uma batalha cruel contra a natureza humana, violando os seus mais sagrados direitos à vida e à liberdade de um povo distante que jamais o ofendeu; preendendo-os e levando-os para a escravidão em um outro hemisfério, ou matando de uma forma miserável nos transportes que os trazem. Esse empreendimento pirata, a vergonha pública dos Poderes Infiéis, é a guerra do Reino Cristão da Grã- Bretanha. Determinado a manter aberto o mercado onde homens podem ser comprados e vendidos, ele prostituiu a sua posição contrária de suprimir toda tentativa do legislativo que viria a proibir ou conter esse terrível comércio.23 21 Commager.H. S.; Nevins,A. História dos EUA.Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966, p. 60 22 James M. McPherson. Drawn with the Sword: Reflections on the American Civil War. New York: Oxford University Press, 1996, p. 15. 23 CHRISTIAN, M, Charles. Black Saga – The African American Experience. New York: Houghton Mifflin Company, 2003, p.52. Tradução de Vladimir M. Rodrigues. 18 Provavelmente, esse trecho que fez parte do rascunho da famosa Declaração de Independência de 1776, não foi utilizado pelo fato da maioria dos líderes da Revolução serem a favor da instituição. Afinal, a escravidão foi fundamental para a formação dos Estados Unidos da América. Possivelmente, sem os negros teria sido impossível construir a potência que são hoje os EUA. A filosofia revolucionária da década de 1770 não se estendia aos negros. George Washington voltou sua sabedoria para a “superioridade branca”. O próprio Jefferson se posicionou diversas vezes contrário à abolição, embora fosse dono de escravos. É de sua autoria a frase, “qualquer que seja o grau dos talentos dos negros, ele não é a medida dos seus direitos”.24 Em uma outra oportunidade, o mesmo Jefferson declarou também: “Nada está mais certamente escrito no livro do destino que estas pessoas [os negros] devem ser livres. Mas também não é menos certo de que as duas raças, igualmente livres, não podem viver sob o mesmo governo. Natureza, hábito, opinião, traçaram linhas indeléveis de distinção entre elas”.25 Esse pensamento de Thomas Jefferson era lugar comum na sociedade norte-americana. Por esse e outros motivos começou uma manifestação conservadora dentro da sociedade, (a que acreditava na “pureza da raça”), para que os escravos libertos fossem mandados de volta à África. Assim, com o passar dos anos, foram surgindo organizações que trabalhavam para levar os escravos alforriados de volta a sua terra natal. O próprio Jefferson presidiu em 1777 uma comissão legislativa da Virgínia que apresentava um plano de gradativa emancipação e deportação. Por volta de 1817, organizou-se a Sociedade Norte-Americana de Colonização que teve como principal 24STAA, Betina Von. Jefferson foi um presidente hipócrita? Disponível em http://revistaescola.abril.uol.com.br/ensino-medio/jefferson-foi-presidente-hipocrita-427346.shtml. Acesso em 23 de Julho de 2009. 25STAA, Betina Von. Jefferson foi um presidente hipócrita? Disponível em http://revistaescola.abril.uol.com.br/ensino-medio/jefferson-foi-presidente-hipocrita-427346.shtml. Acesso em 23 de Julho de 2009. 19 obra a fundação de uma colônia para receber os escravos, a Libéria. Ainda hoje o país, que conseguiu sua independência em 1847, tem o formato e as cores da bandeira dos EUA e o nome de sua capital, Monróvia, deriva de James Monroe (1823-1830), presidente americano na época de sua fundação. Mesmo com o incentivo do governo federal, juntamente com o capital privado, não mais de 15 mil negros migraram do país. A Sociedade foi bem ativa durante algumas décadas, chegando ao seu fim antes da Guerra de Secessão. Muitos veículos de comunicação e também algumas comunidades negras apoiaram a idéia da volta à África, idéia melhor elaborada na transição entre o século XIX e XX por algumas vertentes do nacionalismo negro, principalmente quando tratamos da ideologia de Marcus Garvey, do qual falaremos mais à frente. No entanto, essa tese não era consenso nos EUA, e foi motivo de muita discussão na sociedade. O movimento abolicionista, no começo do século XIX começava a ganhar cada vez mais forças, e as diferenças entre Norte e Sul aumentavam, principalmente quando o assunto era a escravidão. A maioria da população negra rechaçou a idéia. Talvez esse projeto fosse um dos projetos mais desvairados já patrocinados por homens esclarecidos. Esses homens esclarecidos, os chamados “pais da pátria”, também trataram com ingratidão a participação dos negros durante o conturbado período de pré e pós-guerra de independência. É importante destacar que o general Washington só se posicionou a favor do alistamento negro no Exército revolucionário após a Inglaterra flertar com os mesmos para que eles entrassem na guerra ao seu lado.26 Washington argumentava que, se os negros tivessem armas em mãos, poderiam se rebelar contra os brancos. Essa passagem histórica é parecida com outro fato de talvez mesma proporção ocorrido no Brasil, quando da Guerra do Paraguai, em que os líderes do Exército brasileiro, destacando o conde d’Eu, marido da princesa Isabel, diziam temer que “os negros que 26 Commager.H.S.; Nevins,A. História dos EUA.Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 112. 20 lutaram pelo país no Paraguai tivessem o mesmo comportamento se lutassem contra a escravidão internamente”. Washington, no entanto, ao ver que era possível a entrada de negros no Exército Real, incorporou-os às tropas revolucionárias. Durante o apoio francêsà Revolução Americana, que foi de extrema importância para a vitória dos revolucionários, o general Lafayette apontou para a imoralidade da escravidão, fato que foi desprezado pelos comandantes da rebelião.27 A Independência dos EUA é um dos maiores eventos da historiografia do país e, assim, contribui para a reconstituição do mito fundador norte-americano, baseado originariamente na liberdade. O episódio retoma a fundação dos EUA ao invocar os ideais de liberdade dos colonos, que estavam sendo explicitamente incomodados política e economicamente pela Coroa da Inglaterra após a Guerra dos Sete Anos contra a França. É um movimento reconhecido e prestigiado por se tratar de um fenômeno libertário e iluminista, embora não tenha englobado a questão da escravidão. Nessa perspectiva, é possível afirmar que, para o negro, devido ao mau tratamento recebido, a Revolução foi uma grande farsa, na medida em que não correspondeu aos anseios da população negra, que almejava a abolição. O 4 de Julho de 1776 é uma data em que a liberdade será lembrada, sim, mas somente para a população branca. Nesse sentido, é interessante o comentário de Fredrick Douglass, um dos expoentes do movimento abolicionista norte-americano. Convidado a fazer um discurso durante as comemorações de 4 de julho de 1852, Douglass expõe, por meio de perguntas retóricas, o significado da independência americana para os negros diante de uma platéia predominantemente branca: 27 KAMINSKY, John. A Necessary Evil? Slavery and the Debate of the Constitution. Vol. 2. Lanhan MD: Rowman & Littlefield, 2005. p. 34-35. 21 Por que fui chamado para falar aqui hoje? O que tenho eu, ou aqueles a quem represento, a ver com a sua independência nacional? Será que os grandes princípios de liberdade política e de justiça verdadeira incluídos na Declaração de Independência estendem-se a nós? (...) O que é, para o escravo americano, o Quatro de Julho? Eu respondo: é o dia que a ele revela, mais do que todos os outros dias do ano, as injustiças e crueldades brutais das quais ele é uma vítima constante.28 Para o negro, após pegar em armas e dar sua vida em nome da Independência, sobraram incertezas quanto ao seu futuro. Aliás, uma certeza eles tiveram, a de que continuariam a ser escravos. A própria declaração de Independência29 soava como uma grande mentira, pelo menos para os negros, quando afirmava: Que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis, que entre estes está a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade – Que para assegurar estes direitos, são instituídos governos entre os homens, derivando seu poder do consentimento dos governados – Que, quando qualquer forma de Governo se torna destrutiva destas finalidades, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo Governo, estabelecendo suas bases em tais princípios e organizando seus poderes de tal foram, que lhes pareça mais capaz de resultar em sua Segurança e Felicidade. É mais do que evidente que os trechos grifados no texto estavam muito longe de serem aplicados aos negros, comprovando a visão paradoxal do mito fundador. Enquanto a tão vangloriada e imitada Declaração de Independência garantia uma suposta liberdade a “todos os homens”, em 1787, a primeira Constituição americana garantia o exercício da escravidão quando ressaltava, “o governo deve repousar sobre o domínio da propriedade”. Como o negro era considerado uma mercadoria, inerente à fazenda, a escravidão estava justificada e contida dentro da Carta maior. Os poucos e 28 Apud HASLAM, G. W. The Awakening of American Negro Literature, 1619-1900. In: BIGSBY, C. W. E. (Ed.) The Black American Writer. volume II: Poetry and Drama. Baltimore: Penguin, 1971. p.47. 29 Commager.H. S., Nevins, A.. História dos EUA. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 105. (grifos nossos) 22 únicos escravos que foram libertos naquele período foram os que lutaram e ajudaram as Colônias a vencer a Coroa Inglesa. 23 I.III - O Destino Manifesto e a Secessão O branco do Sul sempre recebeu justiça do Sr. Muhammad. Uma coisa que se pode se pode dizer a respeito do branco do Sul: ele é honesto. Mostra os dentes para o homem preto. Diz ao homem preto, na cara, que os brancos do Sul jamais aceitarão a falsa ‘integração’... Mas o branco do Norte sorri com os dentes e apresenta a boca sempre cheia de truques e mentiras de ‘igualdade’ e ‘integração’. Malcolm X No início do século XIX, a população negra chegava perto de um milhão de habitantes e estes viviam majoritariamente na zona rural.30 Nessa época, muitos negros acabaram indo trabalhar nos chamados “reinos de algodão” do Sul. Da mesma forma que ocorria em praticamente todos os sistemas de plantation das Américas, da Georgia a Pernambuco, os escravos eram extremamente explorados, a serviço do sistema capitalista, chegando a trabalhar, no verão, cerca de 16 horas diárias, com um pequeno intervalo de descanso ao meio-dia.31 Em 1808, nos EUA, uma lei que, teoricamente, ajudaria os negros foi decretada: estabelecia o fim do tráfico negreiro. Porém, devido aos interesses financeiros dos sulistas, a lei não foi cumprida em grande parte do país. Pelo contrário, os códigos escravistas ganharam mais força nessas regiões e deu-se início a um forte tráfico interno de escravos, (da mesma forma que ocorreu no Brasil após 1850 quando da proibição do tráfico por meio da Lei Eusébio de Queiróz, transferindo os escravos das ociosas plantações de cana-de-açúcar do Nordeste para a explosão do café no Sudeste). Os escravos começaram a ser deslocados principalmente para a região Oeste, a fim de 30 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: a história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 31 Commager.H.S.; Nevins,A. História dos EUA.Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 225. 24 auxiliar os colonos na Marcha para a conquista de outros territórios, que se desenhava nessa região. Embora o Oeste fosse usado, também, para a expansão da escravidão pelos senhores brancos, muitos negros o viam com bons olhos. Poderia ser um lugar de oportunidades, de uma vida mais justa onde a possibilidade de alforria era significativa, principalmente com a perspectiva de enriquecimento que estava no imaginário de todo residente nos EUA após a descoberta de ouro na Califórnia, a chamada Gold Rush, fato histórico semelhante à interiorização e ao achamento de metais preciosos nas veredas de Minas Gerais na passagem do século XVII para o XVIII, no auge da mineração. Muitos negros que queriam a liberdade a todo custo tentavam seu objetivo por meio de fugas. A historiografia dedicada à questão dos escravos africanos vem tentando insistentemente desconstruir a idéia de passividade dos negros em relação à escravidão, dando grande destaque aos diversos motins e sublevações de escravos que lutavam contra o regime escravocrata. No século XIX, nos EUA, ficou consagrada a chamada Underground Railroad, um caminho para a liberdade que levava os negros do Sul sempre para o Norte. Foi nesse contexto de oposição à escravatura, que o Sul se aproveitou para criar mais leis favorecendo os grandes latifundiários, que jamais aceitariam viver em pé de igualdade com os negros. Cabe destacar que as populações de origem anglo-saxônica, como ingleses, escoceses e irlandeses – colonizadores da América do Norte – chegaram ao novo continente com o ideal de superioridade, ao contrário do que acontecia com portugueses e em menor grau com espanhóis.32. Os ibéricos aprenderam desde a Idade Média a conviver com o “outro”, como por exemplo,os islâmicos, primeiramente e depois os africanos no início da Idade Moderna. 32 Commager.H. S.; Nevins,A. História dos EUA.Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 13. 25 Foi de suma importância para o desenvolvimento das sociedades ibéricas o contato secular com a civilização muçulmana durante a expansão da fé islâmica na Idade Média e a posterior conquista da Península Ibérica e a formação dos califados em território europeu, fato que contribuiu substancialmente para o intercâmbio e incremento cultural na Europa medieval e, principalmente, aqui no caso, no convívio dos portugueses com povos de diferentes etnias e cultura.33 Temendo perder a supremacia sobre a população “de cor”, a população branca do Sul, na década de 1830, estava mais do que apreensiva. A divulgação de um material contra a escravidão, o Appeal de David Walker, incentivou o surgimento de movimentos abolicionistas. Várias revoltas explodiram desde a Louisiana até a Carolina do Norte. A maior revolta de escravos que se tem notícia foi liderada por Nat Turner. Escravo do Condado de Southampton, Virgínia, Turner considerava-se o messias dos negros, imbuído de uma força vinda da Providência que seria usada para libertar seus irmãos da escravidão. Planejou sua revolta durante algum tempo, e, depois de um eclipse solar, decidiu que o sinal dos céus já havia sido dado e o levante deveria ser iniciado. No dia 13 de agosto de 1831, explodiu a famosa Revolta de Nat Turner34, na qual morreram dezenas de brancos e centenas de negros. Depois da insurreição, que foi contornada rapidamente pelos fazendeiros sulistas, várias outras pequenas revoltas ocorreram, mas nenhuma maior que a de Turner. Dentro do imaginário insurrecional dos negros na luta contra a escravidão, numa comparação entre Brasil e EUA, respeitadas as suas particularidades e devidas proporções, a revolta de Nat Turner gerou medo entre os senhores brancos dos EUA da mesma forma que Zumbi e Palmares geraram entre os fazendeiros do Nordeste 33 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: introdução à história patriarcal no Brasil. 42. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. p. 125. 34 Cf. GRANT, J. (Ed.) Black Protest: History, Documents and Analyses (1619 to the present). New York: Fawcett, 1991. p. 53-59. 26 brasileiro e que, indo além, Toussaint e Dessalines e os negros revolucionários da libertária Santo Domingo, Haiti, geraram em franceses e em Napoleão Bonaparte, a ponto do então primeiro cônsul francês vender a Louisiana aos EUA, com medo de perder o território para a população escrava, que estava em grande número naquela região sulista.35 Nessa conjuntura de contestação da escravidão, de revoltas escravistas, de expansão econômica do algodão e com a aquisição e a incorporação de novos territórios, como a Flórida, que surgiu um ideário que de certa maneira existe até hoje nos EUA. A frase do periódico New Orleans Courier em meados da década de 1850 mostra bem o que viria a ser esse ideário: “A pura raça anglo-americana está destinada a estender-se por todo o mundo com a força de um tufão. A raça hispano-mourisca será abatida”.36 O enunciado, nitidamente preconceituoso, evidencia o caráter da sociedade da época. O primeiro a usar o termo “destino manifesto” foi, possivelmente, o jornalista John L. O’Sullivan (O’Sullivan, John L., A Divine Destiny for America, 1848), importante entusiasta do Partido Democrata da época, um dos agrupamentos políticos mais conservadores durante a passagem da primeira para a segunda metade do século XIX, aliás, partido que incentivou à Secessão e advogou pela anexação dos territórios a Oeste, principalmente no conflito contra o México, tendo como destaque o então presidente James K. Polk.37 Os enunciados do Destino Manifesto, de certa forma, dialogavam com uma outra ideologia imperialista que circulava em alguns países europeus, principalmente a Inglaterra: a idéia do “fardo do homem branco”, doutrina próxima ao darwinismo social que afirmava a superioridade européia e que serviu de inspiração para as potências do 35 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: A história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 36 SCHILING, V. EUA x América Latina – As etapas da Dominação – Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. 37 Commager.H.S.; Nevins,A. História dos EUA. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 220. 27 Velho Continente colonizarem, justificarem e espoliarem territórios da África e Ásia. O ideário americano de expansão territorial visava incorporar e colonizar novos territórios para os EUA, sendo essas regiões localizadas, principalmente, a oeste e ao sul da América. Pode-se dizer, também, que neste momento o mito fundador reaparece com uma nova roupagem. Expressava a ambição de uma nação jovem, que se considerava superior, e que queria expandir ao mundo seus ideais “democráticos” de civilização avançada.38 Foi uma espécie de nacionalismo romântico. Esses americanos consideravam-se a Israel do novo tempo, imbuídos de uma força da Providência Cristã para que pudessem realizar sua “nobre” tarefa, a de criar um grande “império para a liberdade”, liberdade que, na prática, era somente para os senhores brancos escravocratas que ao mesmo tempo em que conquistavam novos territórios ao custo da destruição de populações indígenas à Oeste do país, faziam do Destino Manifesto um elemento de defesa e expansão da escravidão aos novos territórios conquistados, mostrando mais uma vez a incoerência do mito fundador entre a visão mitológica e visão real da sociedade norte-americana. Os colonos acreditavam que o negro estava à margem da religião cristã e o seu destino era servir o homem branco, sendo essencial para a liberdade e enriquecimento dos grandes fazendeiros. O Destino Manifesto foi uma das mais eficientes formas de expansionismo territorial, dominação e justificação da escravidão já vistas na América, contribuindo diretamente para a destruição de diversas populações indígenas, e a anexação39 de quase metade dos territórios mexicanos. Dentre os presidentes dos EUA da década de 1840, possivelmente aquele mais patrocinou a idéia foi o já citado James K. Polk (1845-1849), responsável pela Guerra contra o México. 38 Idem, p. 208. 39 SCHILING, V. EUA x América Latina: as etapas da dominação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. 28 Após a vitória contra os mexicanos e a anexação de quase metade do território daquele país, o próximo evento de grande magnitude nos EUA foi a Guerra de Secessão. Aliás, a questão abolicionista foi fundamental para que ocorresse a Guerra Civil. Em 1850, quando a população do país era de mais de 35 milhões de habitantes, o número total de escravos era de 3,2 milhões de pessoas.40 Ficou evidente que, com o passar dos anos, Norte e Sul não entrariam em acordo quanto aos principais debates da sociedade, destacando: a marcha para oeste, a política alfandegária e, principalmente, ao caráter da mão-de-obra escravista. Não que o Norte, e Lincoln, que fora eleito em 1860, tivessem um lado mais humanitário que o Sul, a ponto de proclamarem a emancipação do negro baseando-se na igualdade de direitos. O presidente Abraham Lincoln (1861-1865) foi objeto de centenas de análises após a sua morte. Existe até hoje no país um sentimento de reverência ao 16o presidente. Quando falamos da Guerra Civil e do líder que a conduziu dando a vitória à União, de alguma maneira os norte-americanos se sentem muito próximos do verdadeiro cerne da identidade nacional. De acordo com Wilfred McClay (2009), “essa imagem de semideus se enquadra mal ao Lincoln mais humano que pensamos conhecer – desajeitado, melancólico, piadista,manipulador, infeliz no casamento, vulgar, ferozmente ambicioso e superlativamente eloqüente — o mais incomum dos homens comuns.”41 Ao longo dos tempos, a literatura sobre Lincoln variou bastante e vale aqui dissertar um pouco mais sobre as suas atitudes como político, pois alguns de seus atos foram decisivos para a vida dos escravos e além, obviamente, para o futuro da nação. 40 Commager.H. S.; Nevins,A. História dos EUA.Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1966. p. 227. 41 Mcclay, Wilfred. Lincoln da América. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 fev. 2009. MAIS, p. 6. 29 O líder da União, republicano,42 foi visto de inúmeras maneiras – bem-sucedido advogado empresarial, um homem desajeitado, um simplório, adepto do humor sujo, “caipirão” político, de humor exagerado, líder sábio e prudente que dirigiu a nação, até que na década de 1960, Lincoln foi insultado como racista. Em um de seus discursos antes de assumir a presidência dos EUA, ele declara o seu pensamento em relação a brancos e negros: Um velho cavalheiro interrogou-me para saber se eu era realmente a favor de estabelecer uma igualdade perfeita entre negros e brancos. Como eu não propusera a mim mesmo nesta ocasião não falar sobre esse assunto, uma vez que a pergunta me tinha sido feita, pensei que eu pudesse usar talvez cinco minutos para dizer algo a esse respeito. Digo, então, que não sou, nem nunca fui, favorável à igualdade social e política das raças branca e negra; que não sou, nem nunca fui, favorável a fazer dos negros jurados ou eleitores, nem de qualificá-los para assumir cargos públicos, nem de permitir que se casem com brancos; e digo, além do mais, que há uma diferença física entre as raças branca e negra, que eu acredito que impedirá para sempre as duas raças de viverem juntas em termos de igualdade social e política. E visto que não podem viver dessa maneira, enquanto elas permanecerem juntas, a posição de superior e inferior deve existir, e eu, assim como qualquer outro homem, sou a favor da atribuição da posição superior à raça branca. (Discurso em Charleston, Illinois,18 de setembro de 1858, tradução nossa.)43 A política da União e do próprio Lincoln para com os negros e a escravidão era mais do que complexa, baseada no que muitos chamaram de “meias-medidas”. Uns queriam ver o negro livre para que ele pudesse complementar o mercado consumidor do país e se tornar mão-de-obra assalariada e barata, que também poderia ser entendida no linguajar comum como “pau para toda obra”. Outros, como o próprio Lincoln, queriam uma emancipação gradativa, talvez concedendo uma indenização aos proprietários de escravos e depois retirando os negros dos EUA e mandando-os para as Antilhas, Panamá, Haiti, Libéria. A estratégia preferida de Lincoln, inicialmente, teria envolvido 42 A concepção polarizada de democratas e republicanos que temos hoje em dia é completamente diferente e oposta da ideologia política desses mesmos partidos no século XIX, ou seja, republicanos no contexto da Secessão eram mais liberais e democratas mais conservadores. 43 STERN, P. V. D. (Ed.) The Life and Writings of Abraham Lincoln. New York: The Modern Library, 1942, p. 492-493). 30 conter a difusão da escravatura pelo Oeste e Sul e depois eliminá-la gradualmente, ao invés de aboli-la em um grande e abrangente gesto. O envio de negros de volta à África também estava em pauta. O fato é que, retirando ou não os negros dos EUA, o fim da escravidão entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1863 em caráter de “necessidade militar”. Na posição de um estadista, é preciso encarar Lincoln sob as condições nebulosas e indeterminadas que enfrentava enquanto os acontecimentos se desenrolavam. “Não alego ter controlado os acontecimentos”, Lincoln declarou certa vez durante sua presidência, em carta a A. G. Hodges, datada de 4 de abril de 1864. “Confesso abertamente que os acontecimentos me controlaram”.44 Lincoln foi um político nato, “o Bismarck americano”. Como disse Wilfred McClay: “Compreendia bem algo que nem os confederados, nem os abolicionistas podiam admitir: que o futuro da liberdade constitucional – e a possibilidade até mesmo das mais dignas reformas sociais – dependiam fundamentalmente da perpetuação de uma nação forte e coesa”.45 É por esse motivo que o crítico literário Edmund Wilson definiu de maneira brilhante, Abraham Lincoln como o “Bismarck americano”,46 inserindo, dessa forma, a Guerra de Secessão no contexto dos demais movimentos de unificação e construção que surgiram na segunda metade do século XIX, como é o caso da Itália de Garibaldi e da Alemanha liderada pelo próprio Otto Von Bismarck. Edmund Wilson vai além, também destacando o fator melancólico da guerra, vista como último, efetivo e definitivo ponto de coesão nacional da história contemporânea. Para Wilson, a guerra é o extremo que cria a identidade da nação. Embora não desejasse a violência, como ficou evidente ao não apoiar a Guerra contra o México em 1848, Lincoln, 44 STERN, P. V. D. (Ed.) The Life and Writings of Abraham Lincoln. New York: Random House, 1942. p. 809. 45 MCCLAY, Wilfred. Lincoln da América. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 fev. 2009. MAIS, p. 6. 46 WILSON, Edmund. Patriotic Gore. New York: Norton, 1994. p. xvi. 31 controlado pelos fatos, teve de lutar a “sangue e ferro” pela causa da unidade, que fez dele o possível criador do nacionalismo americano. Em relação aos negros durante o conflito com o Sul, temos de ver Lincoln como um pragmático, agindo pelo contexto em que viveu, embora não devemos esquecer as suas concepções racistas. Ele enxergou nos afro-americanos uma grande possibilidade de vencer a guerra e manter a união do país, deixou os “acontecimentos controlarem seus atos”. Emancipando-os ganharia apoio tanto político como militar. A medida de guerra decretada por Lincoln trouxe uma enorme quantidade de escravos/soldados ao seu Exército, sendo este um dos principais fatores da vitória do Norte, embora políticos e outros generais do alto escalão do governo republicano duvidassem da capacidade do negro de lutar em guerras, além do temor que tinham deles pegarem em armas e se rebelarem contra o Exército. É importante ressaltar também a importância, é claro, das campanhas militares de sucesso dos generais sanguinários, Grant e Sherman. A previsão desses oficiais estava errada. Os negros lutaram de maneira eficiente, contribuindo significativamente para a vitória da União, vencendo os Confederados. Destacou-se durante a Guerra Civil, o 54th Massachusetts Volunteer Infantry Regiment,47 composto por escravos e negros libertos. O batalhão teve papel importante durante o conflito, lutando pela União e abrindo precedente para a entrada de mais escravos ao lado dos nortistas, fato que foi decisivo para vitória dos republicanos liderados por Lincoln.48 Por mais paradoxal que pareça, os negros norte-americanos lutaram em uma guerra que não foram eles que criaram e, diga-se de passagem, lutaram por uma 47 Emilio, Luis F. (1995). A Brave Black Regiment: The History of the Fifty-Fourth Regiment of Massachusetts Volunteer Infantry, 1863-1865. New York: Da Capo Press. 1995. p. 4. 48 A participação dos escravos na Secessão foi dramatizada no filme Glory (1989), dirigido por Edward Zick), encenado por atores negros renomados, como Denzell Washginton e Morgan Freeman. 32 bandeira de um país que lhes negava a cidadania e os direitos naturais supostamente garantidos pela Constituição. Lutavam pelos ideais libertários do mito fundador! Mesmo assim, cerca de 50 mil negros morreram em mais uma grande guerra pela liberdade dentro do “seu país”.49 Foi uma vitória de Lincoln, da União, dos abolicionistas,e, é claro, dos negros. Nos anos seguintes, estaria lançado um difícil desafio democrático que talvez até o próprio Lincoln já visualizasse em um futuro próximo: efetivar o negro como cidadão dentro da sociedade. Parafraseando o que disse o importante líder afro-americano dos EUA, Martin Luther King Jr, em seu célebre discurso, conhecido como “Eu tenho um sonho”, em agosto de 1963 em Washington: “O cheque sem fundo da liberdade havia sido dado aos negros”. Demorou quase um século depois da Secessão para ele ser pago. 49 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: A história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 33 I.IV - A Reconstrução do país e a década de 1960 O homem branco é um jogador profissional, todas as cartas e probabilidades estão ao seu lado, sempre tira para o nosso povo as cartas do fundo do baralho. Malcolm X Após o fim da guerra, a União juntava suas forças para reconstruir o país, destruído pela Secessão. As incertezas rondavam a nação, Lincoln havia sido assassinado logo após a guerra por um extremista do Sul, que julgava Lincoln um ditador. O Sul se sentia humilhada pela derrota e não aceitaria ser dominada pelo Norte, que agora tentaria levar o país inteiro ao caminho da industrialização. Os negros, recém- libertos, tentariam ser reconhecidos pela sociedade. Todas essas dúvidas, entre tantas outras, ocupariam as mentes dos americanos pelas próximas décadas. É possível que, nos anos da Reconstrução, mais do que em qualquer outra época, o ódio entre brancos e negros foi gritante. O branco sulista estava envergonhado pela sua submissão aos nortistas e não aceitaria jamais o status de cidadão do negro. Nesse contexto, surgiu uma organização secreta que lutava pela superioridade da raça branca. A Ku Klux Klan50 começou a ser idealizada no Natal de 1865, inicialmente como um grupo de veteranos da Secessão que estavam interessados em se auto-ajudar socialmente devido ao flagelo que assolava o sul após o fim da guerra. Para ser um membro da Klan era necessário ser branco, americano e protestante Em seus líderes podia-se identificar uma ideologia evangélico-fundamentalista. Os membros da KKK Inspiravam-se na Cavalaria Medieval, de espírito nobre e patriota, e adotavam um estatuto interno secreto e místico, sendo essa última 50 O nome da entidade vem da palavra “Kukloi” que é derivada do grego “Kuklos”, que é raiz da palavra inglesa “circle”. E a palavra klan é de origem inglesa, simbolizando os ancestrais de seus membros. 34 característica marcante em suas atitudes e nomeações de seus representantes, como o seu chefe máximo, o Mago Imperial. Com o passar dos anos, a KKK foi ganhando milhares de novos adeptos e sofreu uma transformação na sua mentalidade, passando a perseguir os negros que, naquela época, começavam a migrar daquela região para o Norte onde acreditavam que a vida poderia ser mais digna. Membros da KKK infiltraram-se na política, sendo as prefeituras e parlamentos municipais e estaduais instrumentos da força branca e sulista que brigava para manter “o negro em seu devido lugar”, como queriam seus membros. Atuaram forte e decisivamente pela instauração dos chamados “Códigos Negros”, responsáveis pelo controle dos ex-escravos do Sul, retirando sua cidadania e direitos civis, fato que negou a 13ª emenda constitucional que declarava o fim da escravidão e o direito ao voto, ainda que mediante pagamento de taxas de votação a todos os negros. Ao contrário do que muitos diziam, não eram somente os negros que eram perseguidos. Nas grandes cidades, membros da KKK atacavam judeus e católicos; na costa oeste, os japoneses e chineses. A KKK chegou ao auge por volta de 1915, entrando em decadência após o crack da Bolsa de Nova York em 1929. Durante a 2ª Grande Guerra apoiaram o regime nazista de Adolf Hitler e retomaram suas atividades com destaque para as décadas de 1950, entrando novamente no ostracismo após a Lei dos Direitos Civis em 1964. Vários de seus seguidores eram parlamentares de nome e respeito dentro da República. Dessa forma, barravam leis que beneficiavam os negros e apoiavam emendas a favor do conservadorismo sulista. Eram vistos pelos negros como “verdadeiros fantasmas”, causando alvoroço e medo dentro de suas comunidades. Foram responsáveis por inúmeras perseguições, assassinatos e linchamentos de negros durante e após o período da Reconstrução. Aliás, o ódio dos negros em relação aos 35 brancos cresceu significativamente devido aos linchamentos de afro-americanos praticados livremente pelos brancos. Somente em meados da década de 1960 foi criada a lei que proibia os linchamentos após gigantescas pressões por parte da comunidade civil organizada, principalmente por meio da liderança de Martin Luther King Jr. Disse o pastor batista51 em discurso proferido no ano de 1957 em peregrinação a Washington, D.C.: “Deixem-nos votar, e não mais imploraremos ao governo federal pela promulgação de uma lei anti-linchamento; com a força de nosso voto, inscreveremos essa lei nas leis do Sul e acabaremos com os atos covardes dos encapuzados que disseminam a violência.” O Instituto Tuskegee, órgão da Universidade que leva o mesmo nome, do estado do Alabama, fez um estudo sobre a incidência de linchamentos nos EUA. De acordo com a instituição, de 1882 a 1959, houve 4.733 mortes por linchamentos no país, sendo que a maioria absoluta era afro-americana. O ano de 1882 apontou um recorde, 231 mortos. De 1882 a 1901, a média de linchamentos foi de 150 ao ano. A partir de 1924 a freqüência diminuiu, chegando a uma média anual de 30 casos anuais até a década de 1960.52 Segue abaixo gráfico preparado por B. Crowell (2005) que mostra o percentual de linchamentos de 1865, fim da Secessão, a 1965, logo após a lei dos Direitos Civis que garantia o voto aos negros e o fim dos linchamentos. No entanto, não é de maneira nenhuma descartada a possibilidade de terem ocorrido casos de linchamentos após essa data. Após a criminalização do linchamento, a maior incidência de violência contra o negro deixou de ser a morte brutal por espancamento para se tornar uma violência policial dentro dos chamados “guetos”, bairros redutos de negros, como é o caso do 51 CURY, F. Martin Luther King, o pacificador. São Paulo: Ed. Minuano, São Paulo, 2006. p. 96. 52 IN: 1959 Tuskegee Institute Lynch Report", Montgomery Advertiser; April 26, 1959, re- printed in 100 Years Of Lynching by Ralph Ginzburg (1962, 1988). 36 Bronx e do Harlem em meados da década de 1960. Até hoje, resquícios dessa mentalidade racista ainda está presente na sociedade, quando constatamos a persistente violência policial contra os afro-americanos. 53 Outros episódios também marcam a desigualdade racial nos EUA: na primeira eleição de George Walker Bush, em 2000, quando milhares de votos de comunidades negras da Flórida foram simplesmente invalidados, e em 2005, quando o furacão Katrina devastou o Sul do país, principalmente Nova Orleans, cidade considerada centro cultural dos EUA e grande centro da cultura negra. A catástrofe expôs a realidade racial ainda contrastante nos EUA, pois a população da cidade é composta por maioria negra. Nos dias atuais, a situação dos afro-americanos da Louisiana ainda necessita da recuperação de seu patrimônio histórico e de suas necessidades básicas de estrutura. 53 IN: 1959 Tuskegee Institute Lynch Report", Montgomery Advertiser; April 26, 1959, re- printed in 100 Years Of Lynching by Ralph Ginzburg (1962, 1988). 37 Negros do Sul criticaram a administração Bush pelo fato de o presidente não ter recuperadoos locais afetados, tendo gasto cifras muito maiores com a Guerra do Iraque do que com a reconstrução de Nova Orleans depois da passagem do furacão Katrina.54 Alguns presidentes dessas épocas, como Theodore Roosevelt (1901-1909) tentaram agir contra os linchamentos. O 20º presidente do país escreveu uma carta ao governador de Indiana, Winfield T. Durbin, destacando sua atuação contra os linchamentos que cresciam no estado. Ambos tentaram impor punições aos assassinos, proibindo os linchamentos. Seus atos foram em vão. A pressão dos sulistas barrava os projetos no parlamento federal, deixando a população negra desamparada. O papel desempenhado pelos linchamentos no imaginário social do negro americano é fundamental para entendermos algumas posições radicais tomadas por líderes afro-americanos ao longo do século XX, incluindo entre eles o próprio Malcolm X. Os casos de linchamentos eram passados de geração a geração, de pai para filho, de neto para avô, de pastor para fiel. Esse “griotismo”, a difusão de conhecimento que é transmitido ao longo dos tempos, originário da África negra e tribal, auxiliou a consolidação e a separação de duas Américas, a branca e a negra, servindo, principalmente de elemento segregacionista entre ambos os grupos, e também agiu como elemento catalisador do ódio racial em ambos os lados. A família de Malcolm X conheceu profundamente o ódio racial dos brancos, pois os Little (sobrenome de Malcolm) foram perseguidos incansavelmente pelos cavaleiros da KKK, sendo o pai de Malcolm assassinado brutalmente por um dos integrantes da organização. Possivelmente, este episódio da vida de Malcolm tenha sido um dos grandes responsáveis pela formação de sua personalidade extremista. Depois do 54 CAVALLARI, Marcelo Musa. Onde estão os negros? Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75215-6013,00- ONDE+ESTAO+OS+NEGROS.html. Acesso em 23 de Julho de 2009. 38 fim da 2ª Guerra Mundial, a KKK adotou uma linha ainda mais radical, próxima ao nazismo; porém, sua força política e social não era mais a mesma. Entretanto, o relinchar de seus cavalos e seus assustadores trajes brancos ainda hoje ecoam e são vistos em determinados lugares dos EUA, principalmente no Sul. O grupo possui até um sítio virtual55 em que apresentam suas doutrinas e vendem souvenirs para os interessados. Os negros, além de conviverem com a perseguição da KKK, lutavam pela confirmação da sua liberdade conseguida em 1863. Contavam, para tanto, com a ajuda de instituições que surgiriam durante a Reconstrução. Entre elas, destacou-se, entre outras, a Agência dos Libertos,56 que atuava principalmente na área da Educação, levando o ensino aos negros, e o surgimento de várias igrejas, principalmente as batistas. Também é importante lembrar o papel do islamismo na conscientização da população negra, perspectiva que será melhor enfocada no capítulo seguinte. Muitas foram as conquistas no período imediatamente após a Secessão. Alguns negros bem remunerados podiam votar e tornar-se delegados eleitorais, uma minoria inicialmente. Ocuparam, também, importantes cargos políticos, inclusive no Congresso Nacional. Porém, com o final do processo de Reconstrução, ou seja, na saída dos interventores nortistas dos estados do Sul (1875), o movimento contra os Direitos Civis dos negros cresceu vertiginosamente. A corrupção dentro da política nacional dos republicanos favoreceu o ressurgimento do partido Democrata que era apoiado pelos sulistas, retomando o poder nesses seus domínios, fato que dificultou a inclusão social dos negros, alcançada somente em meados da década de 1960. 55 www.kkk.com 56 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: A história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 39 Dessa maneira, houve um regresso na cidadania dos afro-americanos, que, entre outras coisas, tiveram o seu direito ao voto restrito quando houve uma revisão Constitucional em vários estados do Sul por volta de 1890. Somente negros que pagassem o imposto de dois dólares poderiam votar.57 A princípio, essa quantia parece ser irrisória. Porém, a remuneração naquela época era ínfima, principalmente a dos negros. E os gastos com esse tipo de imposto específico não eram possíveis para essa população. Também é interessante destacar que era significativa a quantidade de pessoas brancas que também não tinham renda para pagar esse imposto. Dessa forma, também podemos afirmar que o voto naquela época estava em um estágio praticamente censitário. Não podemos afirmar que o sufrágio nos EUA, ao passar do século XIX para o XX, era universal, pois um enorme contingente de pessoas, em sua maioria de pele negra, não tinha acesso ao voto, sem contar as próprias mulheres, fossem brancas ou negras, que não poderiam votar. A partir desse período, várias outras leis consagradas como “Jim Crow”,58 de caráter segregacionista, espalharam-se pela sociedade sulista, afirmando a superioridade branca. Essas leis separavam institucionalmente brancos e negros. Nas escolas para brancos não entravam negros. Lanchonetes, bares, restaurantes, cinemas e tantos outros estabelecimentos. Os negros, colored people como eram chamados, não podiam viver ao lado dos brancos. Toda essa segregação levou a um isolamento da população negra. A ajuda material aos negros veio do lado nortista. O espírito de iniciativa da população da Nova Inglaterra baseava-se em ajudar, como fez a Agência dos Libertos, na Educação, elevando o grau de estudo e competitividade dos negros para que mais tarde eles pudessem compor a mão-de-obra no norte. Jornais negros surgiram. Esses 57 FRANKLIN, J. H; JR, A. A. M. Da escravidão à liberdade: A história do negro americano. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. 58 Leis estaduais e locais de caráter segregacionista que duraram de 1876-1865. O nome provém do artista branco Thomas D. Rice que se pintava e fantasiava de negro, satirizando os negros por meio de um personagem chamado de Jump Jim Crow. 40 fatos também viriam a contribuir mais tarde, no século XX, com as diversas manifestações culturais dos negros. Na virada do século, surgiu um novo mentor para a população negra. O educador Booker T. Washington fazia o papel de conciliador entre Norte e Sul. Até 1915 foi a figura central dos negros. Seu ensino vocacional inspirou e influenciou diversas pessoas. Embora muitos o reconhecessem de maneira positiva, sua imagem também é marcada por uma falta de engajamento mais efetivo na luta pelos direitos civis. Mais tarde, durante a Revolução negra da década de 1960, foi criticado por isso. Com a chegada do século XX, uma forte migração ocorreu quando milhares de negros saíram do Sul e foram em direção ao Norte e ao Oeste. Ainda nessa conjuntura, os negros estavam principalmente na zona rural, enfrentando sérias dificuldades de se inserirem no ramo industrial. Os trabalhadores negros ganhavam um salário médio de 11 dólares no Sul e 26 dólares no Norte.59 No início do século XX, Theodor Roosevelt governava os EUA e impunha à América Latina a política do Big Stick. Entre suas ações, destacou-se o imperialismo político e econômico na região do Caribe, conhecida como mare nostrum para os americanos.60 Para que sua política de submissão desses povos triunfasse, era necessário um forte Exército. A Marinha dos EUA desenvolveu-se de modo expressivo na época, tendo destaque a corporação dos marines. E nela foi importante a presença dos negros. O Império norte-americano começava a surgir. E, paradoxalmente, o negro por meio do Exército contribuía para que outros povos fossem dominados, como em Cuba, Santo Domingo e Haiti, locais em que a população afro-americana chega a ser ampla maioria.