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Jerzy Kosinski O Pássaro Pintado Círculo do Livro Tradução de Christiano Oiticica e Marina Colasanti Para minha ex-esposa Mary Hayward Weir, sem a qual até mesmo o passado perderia sua significação. E só Deus, na sua onipotência, soube que eram mamíferos de uma outra espécie. MAIAKÓVSKI I Nas primeiras semanas da Segunda Guerra Mundial, no outono de 1939, um menino de seis anos de idade, proveniente de uma grande cidade da Europa central, foi enviado por seus pais, como centenas de outras crianças, em busca da segurança de uma aldeia distante. Mediante farto pagamento, um viajante a caminho do leste prometeu encontrar uma família disposta a cuidar temporariamente da criança. Sem outra escolha, os pais lhe confiaram o menino. Ao separar-se da criança os pais acreditavam ser este o melhor meio de preservá- la da guerra. Eles próprios, devido a atividades antinazistas do pai, anteriores à guerra, foram obrigados a se esconder para evitar trabalhos forçados na Alemanha ou o confinamento num campo de concentração. Pretendiam salvar a criança e esperavam reencontrá- la mais tarde. Os acontecimentos, entretanto, alteraram seus planos. No caos da guerra e da ocupação, em meio ao contínuo deslocar-se dos refugiados, os pais perderam contato com o homem encarregado de entregar a criança na aldeia, e viram-se em face da possibilidade de jamais encontrarem o filho. Enquanto isso, dois meses depois da chegada do menino, sua mãe adotiva morreu, deixando-o ao desabrigo, vagueando de uma aldeia a outra, ora abrigado, ora rechaçado. As aldeias nas quais ele haveria de passar os próximos quatro anos eram etnicamente diferentes de sua terra de origem. Os habitantes locais, isolados e circunscritos, eram louros, de pele clara e olhos azuis. O menino era moreno, de pele mate e olhos pretos. Falava a língua das classes educadas, praticamente incompreensível para os camponeses do leste. Tomaram-no por um cigano ou por um judeu, num tempo em que abrigar ciganos ou judeus, cujo lugar eram os guetos e os campos de extermínio, expunha os indivíduos e as comunidades aos mais severos castigos por parte dos alemães. Durante séculos as aldeias daquela região haviam sido esquecidas. Inacessíveis e distantes de qualquer centro urbano, podiam ser consideradas as mais atrasadas da Europa central. Não havia escolas nem hospitais, somente algumas estradas pavimentadas, algumas pontes, nenhuma eletricidade. Vivia-se em pequenos núcleos, quase medievais, regidos pelo direito aos rios, aos bosques, aos lagos. A única lei era a do mais forte e mais rico sobre o mais fraco e pobre. Divididos entre a fé católica e a ortodoxa, os habitantes encontravam na extrema superstição e nas numerosas doenças que vitimavam igualmente homens e animais seu único ponto de contato. Eram inapelavelmente brutos e ignorantes. O solo era pobre e o clima rigoroso. Os rios, pouco piscosos, invadiam freqüentemente os pastos e os campos, brejos e pântanos entrecortavam a região, enquanto as densas florestas abrigavam desde sempre bandos de bandidos e rebeldes. A ocupação alemã apenas aumentou a miséria e o atraso daquela parte do país. Os camponeses eram obrigados a entregar a maior parte de sua magra colheita, quer às tropas regulares, quer aos guerrilheiros. A recusa acarretava incursões punitivas, que reduziam as aldeias a ruínas fumegantes. Eu vivia na cabana de Marta, esperando dia após dia, hora após hora, que meus pais viessem buscar-me. Chorar não adiantava, e Marta não prestava atenção às minhas lágrimas. Ela era velha e estava sempre encurvada, como se tentasse inutilmente partir-se ao meio. Seus cabelos compridos, nunca penteados, tinham-se embaraçado em inúmeras tranças grossas, impossíveis de desfazer. Ela as chamava melenas. Demônios se aninhavam nas melenas, torcendo-as e atraindo a senilidade. Ela claudicava apoiada num bastão nodoso, resmungando de si para si numa língua que eu mal entendia. Seu rosto murcho e pequeno era coberto de rugas, a pele escura e avermelhada como uma maçã assada. O corpo ressequido tremia tangido por tempestades interiores, e os dedos das mãos nodosas de juntas retorcidas pela doença tremiam sem parar, enquanto a cabeça, do alto do pescoço descarnado, anuía em todas as direções. Enxergava pouco. Buscava a luz através da estreita fenda dos olhos encravados sob as sobrancelhas espessas. As pálpebras eram como sulcos num solo arado. Lágrimas escorriam sem cessar do canto de seus olhos, descendo pelo rosto ao longo de caminhos já traçados para encontrar-se com a gosma pendente do nariz e a baba espumosa que gotejava de seus lábios. Parecia às vezes um velho cogumelo podre, à espera de que uma última rajada de vento dispersasse sua negra poeira interior. Eu a temi a princípio, e fechava os olhos a cada vez que ela se aproximava. Tudo o que eu percebia então era o cheiro repugnante que dela emanava. Sempre dormia vestida. Era essa, no seu dizer, a melhor defesa contra o perigo das inúmeras doenças que o ar fresco podia trazer para dentro do quarto. Para garantir a saúde, dizia ela, era necessário lavar-se apenas duas vezes por ano, no Natal e na Páscoa, e assim mesmo sumariamente e sem tirar a roupa. Usava água quente somente para aliviar a dor que calos, joanetes e unhas encravadas infligiam a seus pés disformes. Uma ou duas vezes por semana ela os punha de molho. Freqüentemente acariciava-me os cabelos com as velhas mãos trêmulas, tão semelhantes a ancinhos, e me encorajava a brincar no quintal, a procurar a amizade dos animais domésticos. Aos poucos percebi que eram menos perigosos do que pareciam. Lembrei-me das histórias que minha babá lia para mim num livro de figuras. Esses animais tinham sua própria vida, seus amores e desavenças, discutiam numa linguagem própria. As galinhas se apinhavam no galinheiro, empurrando umas às outras na ânsia de alcançar os grãos que eu lhes jogava. Algumas passeavam aos pares, outras bicavam as mais fracas e banhavam-se solitárias nas poças deixadas pela chuva ou sentavam-se sobre os ovos e ajeitavam as penas afetadamente antes de adormecer. Coisas estranhas aconteciam no quintal. Pintos amarelos e pretos surgiam de dentro dos ovos, parecendo eles próprios ovos vivos sobre as pernas longas. Um dia, um pombo solitário veio unir-se ao bando. Foi mal recebido. Quando aterrou entre as galinhas num redemoinho de asas e poeira, elas fugiram espavoridas. Quando começou a cortejá-las, arrulhando e perseguindo-as em pequenos passos, elas se afastaram olhando para ele com desdém. Invariavelmente, quando ele se aproximava demasiado, fugiam cacarejando. Um dia, enquanto o pombo tentava como de costume confraternizar com galinhas e pintos, uma forma negra surgiu das nuvens. As galinhas fugiram aterrorizadas para o celeiro e o galinheiro. A forma preta caiu como uma pedra no meio do bando. Só o pombo não tinha onde se esconder. Antes que tivesse sequer o tempo de abrir as asas, um pássaro possante prendeu- o ao solo e feriu-o com o grande bico adunco. As penas do pombo tingiram-se de sangue. Marta saiu correndo da cabana, empunhando um bastão, mas o gavião levantou vôo mansamente, levando no bico o corpo inerte do pombo. Marta criava uma cobra num jardim de pedras cuidadosamente cercado. A serpente deslizava sinuosa por entre as folhas agitando a língua bífida como estandarte em parada militar. Parecia indiferente ao resto do mundo, e nunca soube se havia jamais reparado em mim. Certa ocasião a cobra escondeu-se debaixo do musgo que crescia no seu ninho, lá permanecendo longo tempo sem água ou comida; participava de estranhos mistérios dos quais até mesmo Marta preferia não falar. Quando finalmente apareceu sua cabeça luzia como fruto maduro. Seguiu-se uma estranha cerimônia. A serpente imobilizou-se, o corpo anelado percorrido de longos arrepios. Em seguida rastejou calmamente para fora da própria pele, parecendo de súbito mais magra e mais jovem. Já não agitava a língua e parecia esperar a consolidação de sua nova pele. O velho invólucro,quase translúcido, jazia completamente esquecido, logo coberto de moscas desrespeitosas. Marta ergueu- o cuidadosamente para escondê-lo num lugar secreto. Uma pele daquelas, disse, tinha valiosas propriedades medicinais, que eu era demasiado criança para entender. Marta e eu tínhamos observado a transformação fascinados. Explicou-me que do mesmo modo o homem se desfaz do corpo, para poder voar aos pés do Senhor. Após longa jornada Deus o recebe nos braços, devolve-lhe a vida com seu sopro, para transformá-lo num anjo celeste ou para lançá-lo à eterna tormenta das chamas do inferno. Um pequeno esquilo vermelho costumava visitar a cabana. Depois de alimentado improvisava uma dança no quintal, batendo com a cauda no chão, soltando pequenos guinchos, rolando, saltando, aterrorizando galinhas e pombos. O esquilo me visitava diariamente, sentava no meu ombro, beijava-me as orelhas, o pescoço, o rosto, brincava nos meus cabelos com suas patinhas delicadas. Depois partia, voltava para o bosque além do campo. Um dia ouvi vozes e corri para o morro vizinho. Escondido no mato, vi horrorizado que alguns meninos da aldeia perseguiam meu esquilo, através do campo. Em corrida alucinada o bichinho tentava alcançar a segurança da floresta, enquanto os garotos atiravam pedras para cortar-lhe o caminho. O esquilo enfraquecido arrefeceu os saltos, atrasou-se. Os meninos o apanharam. Mas ainda ele se defendia debatendo-se e tentando morder. Os meninos então debruçaram-se, encharcando o esquilo com o líquido de uma lata. Percebendo que algo horrível estava para acontecer, pensei desesperadamente em alguma maneira de salvar meu amigo. Mas era tarde demais. Um dos meninos tirou uma madeira em brasa de dentro da lata que trazia pendurada no ombro, e com ela tocou o bichinho, jogando-o ao chão. Incendiou- se imediatamente. Com um guincho que me cortou o fôlego, saltou para o alto como se quisesse escapar ao fogo. As chamas o envolveram; somente a cauda inquieta ainda se agitou por um segundo. O corpinho fumegante rolou no chão e logo quedou-se. Os meninos ficaram olhando, rindo, cutucando-o com um pedaço de pau. Meu amigo morto, eu não tinha mais por quem esperar. Contei a Marta o acontecido, mas ela não pareceu entender. Resmungou algo para si mesma, rezou e lançou um esconjuro secreto sobre a casa para afastar a morte, que, ela garantia, estava nos rondando, querendo entrar. Marta adoeceu. Queixava-se de uma dor aguda sob as costelas, lá onde o coração, para sempre retido, bate as asas. Explicou-me que Deus ou o Diabo tinha enviado uma doença para destruir mais um ser e assim pôr fim à sua permanência na terra. Eu não podia entender por que Marta não se desfazia da pele como a cobra, recomeçando a vida. Quando sugeri que o fizesse, zangou-se e me amaldiçoou, chamando-me de cigano blasfemo, bastardo e aparentado com o Diabo. Disse que a doença entra nas pessoas quando elas menos esperam; pode estar sentada atrás da gente na carroça, pular nos nossos ombros quando nos abaixamos para colher framboesas no mato, ou sair de dentro da água enquanto o bote atravessa o rio. Invisível e astuta, a doença se infiltra no corpo através do ar, da água, por contato com um animal ou outra pessoa, ou mesmo e nesse ponto lançou-me um olhar desconfiado através de um par de olhos escuros separados por um nariz adunco. Tais olhos, conhecidos como pertencentes a bruxas e ciganos, podiam aleijar, trazer peste ou morte. Por isso me proibia de olhá-la diretamente ou a qualquer animal da casa. Ordenou-me que cuspisse três vezes rapidamente e fizesse o sinal-da-cruz se, mesmo sem querer, a encarasse. Freqüentemente se enraivecia se a massa de fazer pão azedava. Acusava-me de ter lançado uma praga e me deixava dois dias de castigo sem comer pão. Tentando não encarar Marta, para agradá-la, eu andava na cabana de olhos fechados, esbarrando nos móveis e virando os baldes, lá fora pisoteava os canteiros e tropeçava como um inseto ofuscado pela luz. Enquanto isso Marta juntava penugens de ganso, que lançava sobre as brasas, soprando a fumaça em todas as direções e murmurando rezas para exorcizar os maus espíritos. Afinal, anunciava que a praga estava esconjurada. E tinha razão, pois a próxima fornada sempre produzia pão saboroso. Marta sobrevivia à dor e à doença, contra as quais mantinha uma luta selvagem e constante. Quando a dor começava a incomodá-la, picava cuidadosamente um pedaço de carne crua e a colocava num pote de barro. Em seguida despejava sobre ela água do poço, tirada antes do amanhecer, e enterrava o pote num canto da cabana. Dizia que isso lhe aliviava as dores por alguns dias, até a carne apodrecer. Logo, porém, quando as dores voltavam, repetia novamente toda a cerimônia. Marta jamais bebia na minha presença, e nunca sorria. Acreditava que se o fizesse me daria a oportunidade de contar-lhe os dentes, e cada dente contado significava um ano a menos na sua vida. Na verdade, não tinha muitos dentes, mas eu compreendi que na sua idade até mesmo um ano é muito precioso. Eu também tentava beber e comer sem mostrar os dentes, e treinava olhando minha imagem no espelho azulado do poço, procurando sorrir sem abrir os lábios. Marta proibiu-me também de catar do chão os cabelos que ela perdia. Era conhecido o poder do olhar maligno, que pousado sobre um único fio podia acarretar as piores dores de garganta. À noite Marta sentava-se perto do fogo, balançando a cabeça e murmurando orações. Eu sentava por perto pensando nos meus pais. Lembrava-me dos meus brinquedos, que agora provavelmente pertenciam a outras crianças. O urso de pelúcia com olhos de vidro, o avião com suas hélices e os passageiros visíveis através das janelinhas, o pequeno tanque fácil de movimentar, o carro de bombeiros e sua longa escada. À medida que as imagens ficavam mais vívidas e reais, a cabana de Marta parecia aquecer-se ao meu redor. Via minha mãe sentada ao piano. Ouvia as palavras de sua canção. Relembrava o medo antes da operação de apêndice, feita quando tinha apenas quatro anos, o chão brilhante do hospital, a máscara de clorofórmio que os médicos tinham posto no meu rosto impedindo que eu contasse sequer até dez. Esse meu passado, porém, transformava-se rapidamente numa espécie de ilusão, fabuloso como as histórias da minha velha babá. Perguntava-me se meus pais jamais me achariam. Saberiam eles que não deviam beber ou sorrir diante de pessoas de mau-olhado que lhes pudessem contar os dentes? Preocupava-me lembrando o sorriso aberto e franco de meu pai, tão cheio de dentes que se olhos malignos os contassem não tardaria a morrer. Um dia, ao acordar, percebi que a cabana estava fria. Não havia fogo e Marta ainda estava sentada no meio do quarto, com as saias arregaçadas e os pés metidos no balde cheio de água. Tentei falar-lhe, mas não me respondeu. Segurei-lhe a mão rígida e fria; os dedos nodosos não se moveram, a mão continuou pendurada ao longo da cadeira, imóvel como roupa molhada na corda em dia sem vento. Quando lhe ergui a cabeça, os olhos aguados pareceram me encarar. Olhos assim eu tinha visto uma só vez, nos peixes mortos trazidos pela correnteza. Concluí que Marta preparava-se para mudar de pele, e, como a cobra, não devia ser perturbada. Sem saber o que fazer, tentei ser paciente. Era outono avançado. O vento fazia estalar os galhos arrancando as últimas folhas secas, que se dispersavam no céu. As galinhas encorujadas nos poleiros, tristes e sonolentas, abriam, um de cada vez, os olhos desgostosos. Fazia frio e eu não sabia acender o fogo. Meus esforços para obter de Marta uma resposta foram inúteis. Ela continuava sentada, imóvel, olhando fixamente para algo que eu não conseguia ver. Não tendo mais nada a fazer voltei a dormir, certo de que ao acordar encontraria Marta andando pela cozinha, murmurando seus lúgubres salmos. Mas quando acordei, já noite, ela ainda estava com os pés de molho. Eu tinha fome e medo do escuro. Decidi acender a lâmpada de querosene. Procurei os fósforos que Marta guardava escondidos.Apanhei a lâmpada da prateleira, mas escorregou-me levemente da mão e um pouco de querosene molhou o chão. Os fósforos não queriam acender. Quando finalmente um se inflamou, partiu-se ao meio e caiu na poça de querosene. A chama hesitou a princípio, envolta em fumaça azulada. De repente, pulou para o meio do quarto. No clarão, via Marta perfeitamente. Não parecia ligar para o que estava acontecendo, como se não visse a chama que àquela altura se alastrava pela parede e lambia as pernas de sua cadeira. Já não fazia frio. As chamas se aproximavam do balde em que Marta banhava os pés. Apesar do calor, devia estar sentindo frio, mas não se mexeu. Admirei-lhe a coragem. Depois de ter estado sentada uma noite e um dia, continuava imóvel. O calor no quarto aumentava. Monstruosas trepadeiras, as chamas subiam pelas paredes, gemendo e crepitando como cascas que estalam sob o pé, sobretudo perto da janela, por onde penetrava um sopro de ar. Eu permanecia junto à porta, pronto para correr, mas ainda à espera de Marta. Ela porém continuava sentada, alheia a tudo. As chamas começaram a lamber-lhe as mãos pendentes, como o teria feito um cão amigo. Cobriram-nas de marcas rubras, e subiram em busca dos cabelos emaranhados. Marta cintilava como uma árvore de Natal, até que uma labareda abriu-lhe um chapéu de fogo sobre a cabeça, e ela não foi mais do que uma tocha. As chamas rodeavam-na por todos os lados, ternamente. Pedaços de seu velho casaco de pele de coelho caíam chiando na água do balde. Por entre as chamas eu via a pele enrugada e as manchas brancas dos braços ossudos. Chamei-a pela última vez e fugi para o quintal. No galinheiro perto da casa as galinhas cacarejavam, batendo as asas desesperadamente. A vaca, em geral tão calma, mugia golpeando com a cabeça a porta do celeiro. Decidi não esperar a permissão de Marta e soltar as galinhas por minha conta. Saíram correndo histéricas, tentando voar num frenético bater de asas. A vaca conseguiu derrubar a porta. Distante do fogo, escolheu um ponto de observação e, pensativa, pôs-se a ruminar. O interior da cabana era um braseiro. Chamas saltavam pelas janelas e aberturas. Fumaça grossa desprendia-se do teto de palha. Espantava-me Marta. Até tal ponto ia sua indiferença? Teriam podido seus sortilégios e magias imunizá-la contra um fogo que transformava tudo o mais em cinzas? Ainda não saía. Tive que afastar-me para o canto mais remoto do quintal. O calor estava insuportável. Agora também o galinheiro e o celeiro ardiam. Ratos assustados pelo fogo cruzavam o quintal em todas as direções. Os olhos de um gato, refletindo as chamas, brilharam amarelos na beira escura do campo. Marta não aparecia, apesar da minha certeza de que pudesse surgir ilesa. Mas quando uma das paredes ruiu, mergulhando no interior devastado da cabana, comecei a duvidar de que alguma vez tornaria a vê-la. Pareceu-me distinguir uma estranha forma oblonga nas nuvens de fumaça que subiam aos céus. O que seria? Talvez a alma de Marta fugindo a caminho do paraíso? Ou a própria Marta, renascida do fogo, livre de sua velha pele enrugada, deixando a terra montada numa vassoura como as bruxas das histórias que minha mãe me contava? Ainda fascinado pelo espetáculo de chamas e centelhas, fui arrancado de meus devaneios por vozes de gente e ladrar de cães. Eram os fazendeiros chegando. Marta tinha-me prevenido contra os moradores da aldeia. Dizia que se alguma vez me pegassem sozinho tratariam de me afogar como um gato ou me matariam a machadadas. Comecei a correr assim que o primeiro apareceu no círculo de luz. Não me viram. Corri feito louco, esbarrando nos tocos de árvore, rasgado pelos arbustos espinhentos. Afinal, caí num barranco. Ouvia as vozes distantes e o baque das paredes desabando. Então adormeci. Acordei ao alvorecer, gelado. Estendido como uma teia de aranha, um sudário de neblina ia de um lado a outro do barranco. Escalei o topo do morro. Fios de fumaça e pequenas chamas indecisas erguiam-se no monte de cinzas e madeira calcinada onde havia sido a cabana de Marta. Ao redor, o silêncio. Tinha certeza de que, agora, encontraria meus pais no fundo do barranco. Por mais longe que estivessem, saberiam o que me tinha acontecido. Não era eu seu filho? E para que servem os pais senão para socorrer seus filhos na hora do perigo? Pensando que talvez estivessem perto, chamei por eles. Ninguém respondeu. Sentia-me enfraquecido pela fome e pelo frio. Não sabia o que fazer nem aonde ir. Meus pais não chegavam. Fui tomado de arrepios e vomitei. Precisava encontrar alguém. Tinha que ir até a aldeia. Manquejando sobre o capim amarelecido pelo outono, os pés e as pernas machucados, encaminhei-me lentamente para o povoado distante. II Meus pais não estavam em parte alguma. Comecei a correr através dos campos em direção às cabanas dos camponeses. Um crucifixo apodrecido, outrora pintado de azul, surgiu na encruzilhada. No alto pendia uma imagem sacra cujos olhos apenas visíveis pareciam fixar, cheios de lágrimas, os campos desertos e o halo vermelho do sol nascente. Um pássaro cinzento estava pousado num dos braços da cruz. Ao verme, abriu as asas e fugiu. Vinha no vento o cheiro do incêndio. Das cinzas já frias um fio de fumaça subia para o céu escuro. Trêmulo e aterrorizado, entrei na aldeia. Dos dois lados da estrada as cabanas de tetos de palha e janelas trancadas pareciam afundar na terra. Os cães amarrados às cercas perceberam minha presença e começaram a latir, retesando as correntes. Apavorado, parei no meio da estrada, à espera de que um deles se soltasse a qualquer instante. O pensamento monstruoso de que meus pais não estavam comigo, nem viriam, atravessou-me a mente. Sentei-me no chão chorando enquanto chamava meu pai, minha mãe e até mesmo minha velha babá. Homens e mulheres reuniam-se ao meu redor falando num dialeto que eu não entendia. Seus gestos e olhares suspeitosos enchiam-me de medo. Alguns seguravam cães que rosnavam e ameaçavam lançar-se contra mim. Alguém me golpeou por trás com um ancinho. Pulei para o lado. Espetaram-me com um forcado. Pulei novamente, gritando. A multidão foi se animando. Uma pedrada me atingiu. Estirei-me de rosto colado ao chão sem querer saber o que aconteceria em seguida. Bombardeavam-me a cabeça com bosta seca de vaca, batatas podres, pedaços de maçãs, punhados de terra e pedras. Eu cobria o rosto com as mãos, os gritos abafados na poeira da estrada. Alguém me ergueu do chão. Um homenzarrão ruivo agarrou-me pelo cabelo, puxando-me a si enquanto com a outra mão me torcia uma orelha. Eu resistia desesperadamente. A multidão gargalhava. O homem me deu um safanão e chutou-me com o tamanco. Todos riam, os homens seguravam o ventre, os cães lutavam para se soltar, cada vez mais próximos. Um camponês abriu caminho na multidão; trazia um saco de lona. Agarrou-me pelo pescoço e me enfiou o saco na cabeça. Em seguida me jogou no chão, tentando enfiar-me inteiro no saco fétido. Eu bracejava e esperneava, mordia e arranhava. Até que um golpe na nuca tirou- me a consciência. Acordei cheio de dores. O saco em que eu jazia enrodilhado ia sendo carregado nas costas de alguém cujo calor eu sentia através do pano grosso. Acima da minha cabeça a boca do saco tinha sido amarrada com uma corda. Mas quando tentei me libertar o homem me botou no chão e me encheu de pontapés. Com medo de fazer sequer um gesto, deixei-me ficar quieto e enrodilhado num semitorpor. Pelo cheiro de esterco, pelo balir de uma cabra e o mugir de uma vaca soube que tínhamos chegado a uma granja. O saco foi depositado no chão de uma cabana e chicoteado. A pele em fogo, saltei pela boca do saco. Lá estava o camponês de chicote em punho, agora golpeando as minhas pernas, enquanto eu pulava como um esquilo. Pessoas foram se aproximando: uma mulher enrolada num avental sujo, criancinhas que saíam de trás da cama e do fogão, rastejando como baratas, e dois trabalhadores. Rodearam-me. Um tentou tocar-me os cabelos, mas quando olhei para ele retirou rapidamentea mão. Nos comentários que faziam a meu respeito e que quase não entendia, distingui a palavra “cigano”, muitas vezes repetida. Tentei explicar, mas minha língua e meu modo de falar eram para eles cômicos e incompreensíveis. O camponês que me tinha trazido recomeçou a chicotear-me as pernas. Eu saltava cada vez mais alto, enquanto crianças e adultos torciam-se de rir. Deram-me um pedaço de pão e me trancaram no depósito de lenha. Meu corpo ardia lanhado de chicotadas, não conseguia adormecer. Na escuridão do depósito ouvia os ratos remexendo ao meu lado, e, cada vez que me roçavam as pernas, gritava assustando as galinhas que dormiam além da parede. Nos dias que se seguiram famílias inteiras de camponeses vieram à cabana me examinar. Para que eu pulasse como uma rã, o dono da casa me chicoteava os tornozelos já cobertos de cascas de feridas. Minha única vestimenta era o saco, no qual tinham aberto dois buracos para as pernas. Freqüentemente, quando pulava, o saco caía. Os homens então gargalhavam e as mulheres riam contrafeitas enquanto eu tentava cobrir meus pequenos órgãos. Encarei alguns deles, e sempre desviavam o olhar, ou cuspiam três vezes abaixando as pálpebras. Um dia, uma mulher de idade chamada Olga, a Sábia, veio à cabana. Foi tratada com visível respeito. Examinou-me bem, perscrutou os olhos e os dentes, apalpou-me os ossos e mandou que urinasse numa bacia, estudando em seguida a cor da urina. Depois contemplou longamente a cicatriz no meu abdome, lembrança da apendicite, e me apalpou o estômago. Finda a inspeção, regateou longa e decididamente com o camponês, terminando por atar-me uma corda ao pescoço e levar-me consigo. Eu havia sido vendido. Comecei a viver em sua choupana. Eram dois quartos um pouco abaixo do nível do solo, entulhados de folhas, feixes de ervas secas, arbustos, pedrinhas coloridas de estranhos feitios, rãs, toupeiras e potes fervilhantes de vermes e lagartixas. No meio da choupana ardia um fogo sobre o qual se punham a ferver os caldeirões. Olga me mostrou tudo. Dali por diante fiquei encarregado de cuidar do fogo, trazer lenha da floresta e tratar dos bichos. Havia também na cabana os mais variados pós, que Olga preparava num almofariz, socando e misturando os diversos componentes. Ajudá-la nisso era outra de minhas tarefas. De manhã cedo Olga me acordava para visitar as cabanas da aldeia. Homens e mulheres persignavam-se ao nos ver, mas, apesar disso, assim mesmo nos recebiam delicadamente. Os doentes esperavam lá dentro. Se por acaso encontrássemos uma mulher chorosa segurando o ventre com as mãos, Olga me mandava massagear a barriga macia e quente sem abandoná-la com o olhar, enquanto ela própria murmurava estranhas palavras e descrevia sinais sobre nossas cabeças. Certa vez fomos atender uma criança com uma perna infeccionada, de onde o pus sanguinolento escorria sobre a pele já escura e enrugada. O cheiro era tão fétido que até mesmo Olga via-se obrigada a abrir a porta a cada instante para deixar entrar lufadas de ar fresco. Durante todo o dia olhei fixamente a perna gangrenada enquanto a criança ora chorava, ora dormia. A família desesperada rezava em voz alta do lado de fora. Quando a atenção da criança arrefecia, Olga aplicava sobre a perna um ferro em brasa, cauterizando cuidadosamente a ferida. O doente debatia-se em todas as direções, gritava, desmaiava, voltava a si. O cheiro de carne queimada empestava o quarto, a ferida chiava como bacon na frigideira. Em seguida Olga cobria a ferida com pedaços de pão molhado misturado com mofo e teias de aranha recém-colhidas. Olga conhecia o tratamento para quase todas as doenças, e minha admiração por ela crescia gradativamente. Pessoas vinham consultá-la sobre todos os males e ela sempre sabia como ajudá-las. Se alguém tinha dor de ouvido, Olga lavava- lhe as orelhas com óleo de cominho e introduzia em cada uma um pedaço de linho enrolado em feitio de funil e molhado na cera quente, cujas pontas incendiava. O paciente, atado à mesa, gritava de dor enquanto o fogo queimava o pano dentro dos ouvidos. Olga então soprava para retirar os resíduos, “a serragem”, como ela dizia, e medicava a área queimada com um unguento feito do sumo de uma cebola, bile de um bode ou coelho, e um pouco de vodca bruta. Ela sabia também acabar com furúnculos, tumores e quistos, e arrancar dentes estragados. Guardava os furúnculos no vinagre, onde os deixava imersos até que por sua vez se transformassem em remédios. Recolhia cuidadosamente o pus que escorria das feridas para que fermentasse durante alguns dias em potinhos especiais. Quanto aos dentes extraídos, eu próprio os pulverizava no almofariz, e secava o pó em pedaços de cortiça colocados sobre o fogão. Às vezes, no meio da noite, um camponês assustado vinha buscar Olga para atender um parto, e lá ia ela, coberta com um xale, tiritando de frio e sono. Se partia para alguma aldeia vizinha e demorava alguns dias, eu cuidava da casa, alimentava os animais e mantinha o fogo aceso. Apesar do dialeto de Olga me ser estranho, chegamos a nos entender perfeitamente. No inverno, quando a tormenta imperava e a aldeia jazia envolta no abraço de neves intransponíveis, nós ficávamos sentados no calor da cabana enquanto Olga me contava das criaturas de Deus e dos espíritos do Demônio. Ela me chamava o Moreno. Dela, soube pela primeira vez ser possuído por um mau espírito que se aninhava em mim como uma toupeira no fundo de sua toca, e cuja presença eu desconhecia. Pessoas como eu, possuídas por maus espíritos, podiam ser reconhecidas por seus olhos pretos e enfeitiçados, que não pestanejavam diante de brilhantes olhos claros. Daí, declarou Olga, eu poder olhar para os outros e, sem querer, lançar uma praga. Explicou-me que os olhos pretos não só podem lançar pragas, como eliminá-las. Ao ajudá-la na cura de uma pessoa, de um animal, ou mesmo de uma planta, eu devia tomar cuidado e afastar todo pensamento estranho, pois basta um olhar enfeitiçado para que uma criança saudável adoeça, um bezerro caia fulminado por súbita doença e o feno apodreça depois da colheita. O espírito maligno que me habitava atraía por sua própria natureza outros seres misteriosos. Fantasmas adejavam ao meu redor. Silenciosos, reticentes e quase sempre invisíveis, os fantasmas são, porém, muito persistentes; perseguem as pessoas nos campos e florestas, esgueiram-se nas casas, podem transformar-se em gatos malévolos ou em cães raivosos, e à meia-noite viram lobisomens. Almas do outro mundo acompanham os maus espíritos. São pessoas de há muito mortas, condenadas à danação eterna, que voltam à vida somente na lua cheia, com poderes sobre-humanos; seus olhos tristes estão sempre voltados para o leste. Os vampiros, talvez a mais perigosa dessas ameaças impalpáveis, adquirem forma humana, e são, eles também, atraídos por seres possessos. Trata-se de crianças afogadas antes de receber o batismo ou abandonadas pelas próprias mães. Até a idade de sete anos crescem nas florestas e nas águas, para só então readquirirem forma humana e, sob forma de vagabundos, rondar as igrejas católicas e uniatas. Conseguindo entrar, mantêm-se junto aos altares, conspurcando as imagens, mordendo, quebrando ou destruindo os objetos do culto e, se possível, sugando o sangue de pessoas adormecidas. Olga suspeitava que eu fosse um vampiro e não me escondia suas suspeitas. Para conter os desejos do meu espírito maligno e evitar que se transformasse num fantasma ou numa alma do outro mundo, preparava cada manhã uma infusão amarga que eu bebia mastigando um pedaço de carvão esfregado com alho. Os outros também me temiam. Todas as vezes que eu tentava atravessar a aldeia sozinho, as pessoas viravam o rosto e faziam o sinal-da-cruz, as mulheres grávidas fugiam espavoridas, e os mais corajosos soltavam seus cães em cima de mim. Não tivesse eu aprendido a correr rápido e a nunca me afastar demais da cabana de Olga, não teria voltado vivo dessas incursões. Eu ficava a maior parte do tempo na cabana, cuidando para que ogato albino não matasse a galinha de estimação de Olga, que, preta e rara, vivia engaiolada. Tomava conta dos sapos de olhar embaçado que pulavam no fundo de um pote, atiçava o fogo, remexia misturas borbulhantes e descascava batatas podres, cujo mofo, medicamento para feridas e queimaduras, recolhia cuidadosamente numa tigela. Olga era muito respeitada na aldeia, e quando a acompanhava eu não temia ninguém. Chamavam-na freqüentemente para borrifar os olhos do gado e desse modo protegê-lo contra o mau-olhado a caminho do mercado. Ela ensinava aos camponeses como cuspir três vezes antes de perseguir um porco, e como preparar uma massa especial de ervas bentas para alimentar as novilhas antes de cruzá-las com o touro. Ninguém na aldeia comprava vacas ou cavalos sem o beneplácito de Olga. Derramava água sobre o bicho, e, após observá-lo enquanto se sacudia, dava o veredicto do qual dependiam o preço e, às vezes, a própria venda. Aproximava-se a primavera. O gelo rompia sua crosta sobre o rio, raios oblíquos de sol varavam os redemoinhos, brincavam no contínuo enovelar-se da água. Libélulas azuis pairavam sobre a correnteza, lutando contra súbitas lufadas do ar ainda frio e úmido. Farrapos de bruma formavam-se na superfície do lago aquecido pelo sol, para logo, envolvidos nos turbilhões do vento, desfazer-se em flocos e desaparecer. Entretanto, quando o calor tão longamente esperado chegou afinal, trouxe consigo a peste. Suas vítimas contorciam-se de dor como vermes trespassados, eram sacudidas por temores e morriam sem recobrar a consciência. Eu acompanhava Olga de cabana em cabana, olhando fixamente para os doentes na esperança de arrancá-los à morte, mas sem resultado. A doença era por demais poderosa. Atrás das janelas fechadas, na penumbra das cabanas, os doentes e os moribundos gemiam e gritavam. As mulheres apertavam os filhos ao peito, corpinhos enrolados em panos dos quais a vida fugia rapidamente. Homens desesperados cobriam com edredons e peles de carneiro as mulheres devoradas pela febre. As crianças olhavam horrorizadas para o rosto azulado de seus pais mortos. A peste persistia. Os habitantes da aldeia vinham à porta de suas cabanas e erguiam os olhos em busca de Deus. Só ele podia aliviar a dor. Só ele podia conceder aos corpos atormentados a graça de um sono tranqüilo. Só ele podia transformar os terríveis enigmas da doença em saúde infindável. Só ele podia apaziguar o desespero de uma mãe chorando o filho morto. Só ele. .. Mas Deus, na sua infindável sabedoria, aguardava. Acendiam-se fogueiras ao redor das cabanas, defumando os caminhos, os jardins e os quintais. Ouviam-se os golpes de machado e o desabar das árvores nas florestas vizinhas, enquanto os homens providenciavam a lenha necessária para manter o fogo aceso. O som cortante das lâminas e o barulho dos troncos caindo atravessavam o ar claro e parado, enfraquecendo, abafados, à medida que alcançavam os pastos e a aldeia; como a neblina esconde a chama da vela, assim a atmosfera densa e empestada envolvia os sons em sua rede mortífera. Uma noite meu rosto começou a arder e fui sacudido por tremores incontroláveis. Olga estudou-me os olhos por um momento e encostou a mão fria em minha testa. Em seguida, sem dizer palavra, carregou-me rapidamente para um campo distante, cavou um poço profundo, despiu-me e ordenou que eu pulasse para dentro dele. De pé, tremendo de frio e febre, vi Olga encher o poço novamente, enterrando- me até o pescoço. Nivelou o chão ao meu redor, alisando-o com a pá, assegurou- se de não haver por perto nenhum formigueiro, e acendeu três fogueiras de turfa. Enfiado na terra gélida, meu corpo esfriou rapidamente, como a raiz de uma planta seca. Perdi o conhecimento. Qual repolho solitário minha cabeça incorporou-se ao campo. Olga não me esquecia. Várias vezes durante o dia trouxe bebidas frias que me despejava na boca e pareciam escorrer do meu corpo para a terra. A fumaça das fogueiras que ela alimentava com musgos frescos ardia-me nos olhos e sufocava-me a garganta. Vistas do nível do chão nas raras ocasiões em que o vento dispersava a fumaça, a terra parecia um tapete grosseiro, as plantinhas que cresciam ao redor adquiriam proporções de árvores, e a figura de Olga que se aproximava lançava sobre minha paisagem uma sombra gigantesca. Tendo me alimentado pela última vez ao entardecer, Olga lançou mais turfa nas fogueiras e foi dormir na cabana. Fiquei sozinho no campo, preso à terra, que parecia querer tragar-me para suas profundezas. As fogueiras ardiam devagar, soltando centelhas que subiam como vaga-lumes na escuridão da noite. Parecia-me ser uma planta ansiando pelo sol, mas com os galhos retidos na terra. Ou então sentia a cabeça subitamente independente do corpo, rolando e rolando, cada vez mais rápida, até atingir o disco do sol, que a tinha tão gentilmente aquecido durante o dia. Às vezes, quando o vento me acariciava a testa, ficava tomado de pavor. Imaginava exércitos de formigas e baratas reunindo-se e marchando em direção à minha cabeça para introduzir-se no cérebro e construir novos ninhos. Ali proliferariam, comendo meus pensamentos um depois do outro, até deixar-me tão vazio quanto uma casca de abóbora. Fui acordado por um ruído. Abri os olhos sem saber ao certo onde estava. Fundido na terra, sentia a cabeça pesada num tumulto de pensamentos. Clareava. As fogueiras estavam apagadas. Sentia nos lábios o frescor do orvalho que me escorria do rosto e dos cabelos. Os ruídos se fizeram ouvir novamente. Um bando de corvos sobrevoava minha cabeça. Um deles pousou perto, num farfalhar de asas, e aproximou-se devagar, enquanto os outros começavam a descer. Aterrorizado, via o brilhar de suas penas negras e o seu olhar penetrante. Rodearam-me, cada vez mais próximos, avançando com o pescoço estendido, tentando descobrir se eu estava vivo ou morto. Não esperei mais. Gritei. Os corvos, assustados, recuaram. Alguns ergueram-se em breve vôo, pousando mais adiante. Desconfiados, fecharam o círculo e tornaram a avançar. Gritei novamente. Mas dessa vez nem sequer se assustaram; com redobrada coragem, aproximavam-se. Meu coração parecia romper-se no peito. Não sabia o que fazer. Tornei a gritar. Inútil. Os pássaros já estavam a poucos palmos do meu rosto. Pareciam aumentar a cada passo, os bicos mais e mais cruéis, as garras espalmadas sobre o chão. Um dos corvos estacou a poucos centímetros do meu nariz. Gritei com todas as minhas forças, mas o corvo estremeceu apenas e abriu o bico. Antes que eu pudesse gritar de novo, bicou-me a cabeça, arrancando-me um chumaço de cabelos. Outro golpe me atingiu, vi mais cabelos pendentes do bico. Sacudi a cabeça de um lado para outro, afofando a terra ao redor do pescoço. Mas meus movimentos pareciam atiçar a curiosidade das aves, que me rodeavam bicando a esmo. Meus gritos já enfraquecidos não conseguiam erguer-se para alcançar a cabana de Olga. Os pássaros divertiam-se. Quanto mais eu sacudia a cabeça, mais excitados e atrevidos ficavam. Parecendo desprezar meu rosto, atacavam a cabeça e a nuca. As forças me deixavam. Mover a cabeça me era tão doloroso quanto carregar um saco de trigo. Estonteado, via tudo através de densa neblina. Desisti da luta. Agora pássaro, eu tentava libertar da terra minhas asas enregeladas, até que, livre, juntei-me ao bando de corvos. Erguido numa lufada de vento, voei para o raio de sol que se desenhava no horizonte, nítido e retesado. Acompanhavam-me os gritos alegres de meus companheiros alados. Olga me encontrou em meio à massa palpitante dos corvos, enregelado e com a cabeça lacerada pelos muitos golpes. Desenterrou-me rapidamente. Só me restabeleci muitos dias depois. Olga disse que a terra fria tinha arrancado a doença do meu corpo e que um bando de fantasmas disfarçados em corvos tinha vindo buscá-la, provando meu sangue para se assegurar de que eu fosse um deles. Só por isso, garantiu-me ela, não me tinham arrancado os olhos. Passaram-se semanas. A peste continuava, e sobre os numerosostúmulos novos crescia capim em que não se devia tocar, pois continha certamente o contágio dos mortos. Uma bela manhã Olga foi chamada na beira do rio, de onde um enorme peixe- gato, de longos bigodes eriçados, estava sendo puxado para a margem. Era um peixe monstruoso, de aspecto aterrador, um dos maiores jamais vistos na região. Ao pescá-lo, um pescador tinha se cortado na rede. Enquanto Olga aplicava um torniquete no braço para estancar o sangue, os outros destriparam o peixe e, em meio à alegria geral, extraíram a bexiga natatória, que estava intacta. De repente, estando eu absolutamente tranqüilo e distraído, um homenzarrão levantou-me no ar, gritando para os outros coisas que eu não conseguia entender. A multidão aplaudiu, e fui rapidamente passado de mão em mão. Antes que me desse conta do que acontecia, vi-me na água, agarrado à bexiga natatória, que, meio afundada e empurrada pelo chute de um dos homens, afastou-se da margem. Com braços e pernas, eu me agarrava freneticamente ao balão flutuante, submergindo a todo momento na água fria e lamacenta do rio, gritando por socorro. Mas derivava rapidamente; via as pessoas correndo na margem, alguns atirando pedras que caíam a meu lado espirrando água, uma delas quase atingindo a bexiga. A correnteza me levava para o meio do rio. As margens pareciam inatingíveis. A multidão desapareceu atrás de um morro. Uma brisa fria, nunca percebida em terra, encrespava a superfície da água. Docemente, eu deslizava rio abaixo. Numerosas vezes a bexiga ameaçou afundar, tangida pelas marolas. Mas logo voltava a boiar, navegando lenta e majestosamente. De súbito, fui tragado por um redemoinho. A bexiga girava num torvelinho, mergulhando, sem sair do lugar. Balancei o corpo, tentando com meu próprio movimento arrancá-la dali. Aterrorizava-me a idéia de passar a noite girando. Se a bexiga estourasse eu morreria, pois não sabia nadar. Aos poucos o sol se punha. A cada volta da bexiga os últimos raios ofuscavam- me os olhos, os reflexos cintilavam na superfície turbulenta. Sentia-me enregelado. O vento aumentava. A bexiga, atraída por novos repuxos, escapou ao redemoinho. Eu estava a muitos quilômetros da aldeia de Olga. A correnteza me arrastava para uma prainha submersa em sombras profundas. Aos poucos comecei a distinguir a margem pantanosa, os juncos ondulantes, os ninhos dos patos adormecidos. A bexiga aproximou-se lentamente através dos tufos de vegetação. Pernilongos voavam nervosos ao meu redor. Os cálices amarelos dos nenúfares farfa-lhavam, uma rã assustada pulou na água rasa. Súbito, um caniço furou a bexiga, e eu pisei no fundo esponjoso. Tudo estava parado. Vozes longínquas, de gente ou de animais, vinham dos bosques de bétulas e dos alagadiços vizinhos. Arrepiado, torcia-me de cãibras. Por mais atenção que prestasse, nada havia além do silêncio. III Assustava-me a solidão. Mas lembrei-me das duas coisas que Olga considerava básicas para sobreviver sem ajuda de ninguém. O conhecimento de plantas, animais, venenos e ervas medicinais; a posse de fogo, ou de um “cometa”. O primeiro era mais difícil de obter, pois requeria grande experiência. Mas o segundo consistia apenas numa lata de conserva, aberta numa extremidade e cheia de furos de pregos nos lados, à qual se amarrava uma alça de arame para poder balançá-la quer como um laço, quer como um incensório. O fogãozinho portátil servia como uma fonte constante de calor e como cozinha em miniatura; bastava enchê-lo de qualquer combustível, mantendo sempre algumas brasas no fundo. Rodando a lata energicamente, o ar entrava pelos buracos, agindo como um fole, enquanto a força centrífuga mantinha seguro o combustível. A escolha apropriada do combustível e o apropriado movimento rotativo permitiam a obtenção de temperaturas diversas para vários fins, e a alimentação constante do cometa garantia sua duração. Para cozinhar batatas, nabos ou peixe bastava o fogo brando de turfa e folhas úmidas, enquanto para assar passarinhos era necessária a chama viva de palha e gravetos secos, e nada era melhor do que fogo de casca de batatas para preparar os ovos tirados dos ninhos. Para manter o fogo durante a noite, devia-se encher o cometa de musgos úmidos, colhidos nos troncos das mais altas árvores. Queimavam lentamente, assustando com sua fumaça cobras e insetos; em caso de perigo, bastavam algumas rodadas no ar para acender um fogo chamejante. Em dias de neve, o cometa, alimentado freqüentemente com casca de árvore ou madeiras secas e resinosas, exigia constantes e vigorosas rodadas. Em dias quentes, secos ou com vento quase não era preciso sacudir o cometa, mas seu fogo podia ser abrandado acrescentando- se-lhe capim fresco, ou borrifando as brasas com água. O cometa constituía também valiosa proteção contra cães e pessoas. Mesmo os cães mais ferozes paravam imediatamente diante daquele objeto ondeante cujas centelhas ameaçavam incendiar-lhe o pêlo, e nem mesmo o mais corajoso dos homens arriscava-se a perder a vista ou a ter o rosto desfigurado pelo fogo. Armado das brasas de um cometa, qualquer homem tornava-se uma fortaleza, vencível apenas quando atacado com lanças ou apedrejado. Por isso, deixar que o cometa se apagasse por falta de cuidado, excesso de sono ou chuvas súbitas, era muito perigoso. Havia poucos fósforos naquela região, caros e de difícil obtenção, e quem os tinha rachava cada palito ao meio para economizá-los. Assim, mantinha-se o fogo sempre aceso nos fogões e nos fornos. Antes de se recolher para a noite, as mulheres empilhavam achas sobre as brasas para ter certeza de que continuariam ardendo até de manhã. E ao amanhecer faziam o sinal-da-cruz antes de reavivá-las. O fogo, diziam, não é amigo natural do homem, por isso deve-se-lhe satisfazer os caprichos. Acreditavam também que partilhar o fogo ou mesmo emprestá-lo podia acarretar somente desgraças; os que pedem fogo emprestado na terra talvez o devolvam no inferno. Por outro lado, levar o fogo para fora de casa secava o leite das vacas e as tornava estéreis, enquanto deixar apagar um fogo podia ter sinistras conseqüências em caso de parto. Assim como o fogo era essencial para o cometa, este era essencial para a vida. Indispensável para entrar nas aldeias sempre protegidas por bandos de cães ferozes, para evitar o congelamento no inverno e para garantir comida quente. Todos carregavam sacolas nas costas ou presas no cinto para a coleta de combustíveis. De dia, os camponeses que trabalhavam no campo assavam em seus cometas legumes, peixes e pássaros; de noite, homens e garotos a caminho de casa agitavam-nos com força, deixando que brilhassem no escuro, vermelhos discos chamejantes. O nome lhes vinha dos círculos amplos que a cauda luminosa desenhava no céu; pareciam realmente cometas, aqueles cuja aparição, segundo Olga, anunciava guerras, pragas ou morte. Difícil era obter uma lata para confeccioná-lo. Encontravam-se somente ao longo de estradas de ferro distantes por onde passavam os comboios militares, e os habitantes locais evitavam que outros as levassem, recolhendo-as todas e cobrando por elas preços extorsivos. As comunidades de ambos os lados da estrada lutavam pela posse das latas, enviando diariamente grupos de homens e garotos equipados com sacos e armados de machados, destinados a desencorajar as equipes rivais. Foi Olga quem me deu meu primeiro cometa, recebido em pagamento por tratar de um doente. Eu cuidava dele com carinho, martelando os buracos que ameaçavam aumentar, limando as arestas, polindo o metal. Temeroso de que me roubassem meu único bem, enrolei no pulso parte do arame da empunhadura, jamais me separando dele. O cintilar do fogo me enchia de orgulho e segurança, e eu nunca perdia oportunidade de encher minha sacola com os combustíveis apropriados. Quando, enviado por Olga em busca de ervas medicinais, atravessava a floresta, bastava a presença do cometa para que me sentisse protegido. Mas Olga estava distante, e eu não tinha meu cometa. Tiritava de frio e de medo. Os pés sangravam,cortados pelas arestas afiadas das pedras. Arranquei das pernas as sanguessugas inchadas de meu próprio sangue. Sombras longas e sinuosas envolviam o rio, sons abafados escalavam as margens tenebrosas. No estalar dos ramos das faias, no gemer dos chorões que arrastavam suas folhas sobre a água, eu reconhecia as vozes dos seres misteriosos de que Olga falava. Capazes de adquirir formas estranhas de corpo ondulante e cara pontuda, como serpentes com cabeça de morcego , enroscavam-se nas pernas dos homens, sugando-lhes a vontade e obrigando-os a deitarem-se em busca de um sono eterno. Eu já tinha visto dessas serpentes nos estábulos, aterrorizando o gado. Dizia-se que sugavam o leite das vacas, ou, pior ainda, rastejavam para dentro do animal, onde devoravam todos os alimentos até matá-los de fome. Correndo através de juncos e ervas cortantes, afastei-me do rio, varei a barreira de arbustos, rastejando sob impenetráveis camadas de galhos entrelaçados, ameaçado a todo instante de cair sobre espinheiros e pedras aguçadas. Uma vaca mugiu ao longe. Rapidamente subi numa árvore e, esquadrinhando o campo, descobri a luz dos cometas. Os homens voltavam dos pastos. Cauteloso, segui em sua direção, atento aos movimentos do cão que a vegetação rasteira transmitia. As vozes se aproximavam. Havia certamente um caminho além da espessa parede de folhagens. Ouvia o bufar das vacas e as vozes dos jovens pastores. De vez em quando as centelhas de seus cometas acendiam-se no céu escuro, para logo desaparecer rodopiando. Eu os acompanhava através do mato, decidido a atacá-los e roubar um cometa. Diversas vezes o cão que os acompanhava, percebendo meu cheiro, investiu contra o mato, mas visivelmente não se sentia seguro na escuridão; bastava que eu assoviasse como uma cobra para que voltasse à trilha, rosnando de vez em quando. Os pastores, pressentindo o perigo, ficaram silenciosos, atentos aos sons da floresta. Aproximei-me da trilha. As vacas quase roçavam as ancas nos galhos que me escondiam. Estavam tão perto que sentia seu calor. O cachorro tentou outro ataque, mas o assovio o rechaçou. Quando as vacas se aproximaram ainda mais, fustiguei duas delas com uma vareta. Mugindo, partiram a trote seguidas pelo cão. Então lancei um grito aterrador e golpeei no rosto o pastor mais próximo. Antes que se desse conta do que estava acontecendo, agarrei seu cometa e voltei para o mato. Os outros, assustados pelo grito e pela fuga das vacas, saíram correndo em direção à aldeia, arrastando consigo o companheiro atordoado. Eu penetrei na profundeza da floresta, abafando o fogo com folhas secas. Somente quando me vi bastante afastado, soprei no cometa. Sua luz revelou bandos de insetos escondidos na escuridão. Vi bruxas debruçadas nas árvores. Olhavam-me tentando confundir meus passos. Ouvia distintamente o murmurar das almas penadas saídas dos cadáveres dos pecadores. Na luz avermelhada de meu cometa via as árvores dobrando-se sobre mim. Ouvia os lamentos e o mover-se de espíritos e fantasmas tentando escapar de seus caixões. Aqui e acolá percebia machadadas nos troncos. Lembrei-me de que Olga havia contado que os camponeses entalhavam as árvores para lançar maldições contra seus inimigos. Repetindo o nome da pessoa odiada e visualizando seu rosto enquanto a lâmina busca a seiva da árvore, é certo que doença e morte se abaterão sobre o inimigo. Havia muitas cicatrizes nos troncos ao meu redor. Os moradores destas redondezas certamente tinham muitos inimigos e grande era seu trabalho no afã de abatê-los. Assustado, eu rodava o cometa violentamente. Vi filas intermináveis de árvores curvando-se obsequiosas em minha direção, convidando-me a penetrar cada vez mais profundamente. Mais cedo ou mais tarde eu teria que atender a seu convite, pois queria manter- me afastado das aldeias ribeirinhas. Prossegui, firmemente convencido de que os encan-tamentos de Olga me conduziriam até ela. Não dizia sempre que se eu tentasse fugir encantaria meus pés, obrigando-os a me trazer de volta? Não tinha nada a temer. Forças desconhecidas, que me habitavam ou me seguiam, levavam-me inapelavelmente para Olga. IV Morava agora com o moleiro, a quem os aldeões tinham apelidado Ciumento. Era ainda mais taciturno que os outros habitantes do lugar. Mesmo quando os vizinhos vinham visitá-lo, ficava quieto bebericando vodca, murmurando uma palavra de vez em quando, perdido em seus próprios pensamentos ou olhando fixamente uma mosca morta grudada na parede. Abandonava seus devaneios apenas quando a mulher entrava no aposento. Igualmente quieta e taciturna, sentava-se sempre atrás dele, baixando o olhar modestamente toda vez que outros homens entravam e a olhavam furtivos. Eu dormia no sótão, bem em cima do-quarto deles. À noite era acordado por suas brigas. O moleiro suspeitava que a mulher flertasse com um jovem ajudante, mostrando-lhe o corpo cheio de lascívia nos campos e no moinho. A mulher não negava as acusações, mas continuava sentada e quieta. Às vezes as brigas ficavam mais violentas. O moleiro, furioso, acendia as velas, calçava as botas e batia na mulher. Através de uma fresta nas tábuas do chão, eu espiava o moleiro, que armado de chicote golpeava o corpo nu da mulher. A mulher tentava se proteger com um edredom de plumas arrancado à cama, mas o homem o arrancava, atirando-o contra a porta, e, de pé diante dela com as pernas afastadas, continuava chicoteando o corpo roliço. Após cada golpe, vergões de sangue apareciam na pele delicada. O moleiro era impiedoso. Com um gesto amplo do braço baixava a língua de couro nas nádegas e nas coxas, lanhava os seios e o pescoço, feria os ombros e as pernas. A mulher, enfraquecida, gemia no chão. Depois rastejava para as pernas do marido, implorando perdão. Finalmente o moleiro jogava fora o chicote e, após soprar as velas, entrava na cama. A mulher continuava gemendo. No dia seguinte encobria as feridas, movia-se com dificuldade e enxugava as lágrimas do rosto com as mãos machucadas. Havia, na casa, outro morador: uma bela gata malhada. Um dia foi tomada por estranho delírio. Soltando pequenos miados deslizava ao longo das paredes sinuosas como uma serpente, meneava o corpo e rastejava, esfregando-se na saia da mulher do moleiro. Seus gemidos roucos, seu ronronar foram deixando todos enervados. À noitinha a gata gritava enlouquecida, o nariz ardendo de febre, a cauda batendo nos flancos. O moleiro trancou a fêmea ardente no celeiro e, depois de avisar à mulher que traria o ajudante para jantar, saiu em direção ao moinho. Sem dizer palavra, a mulher começou a aprontar a comida e a pôr a mesa. O ajudante, um órfão, tinha vindo recentemente trabalhar com o moleiro. Era um rapaz alto e taciturno, de cabelos louros sempre caídos sobre os olhos. O moleiro sabia o que toda a aldeia comentava. Diziam que sua mulher mudava quando via o rapaz, que, sem abandonar com o olhar os seus olhos azuis e indiferente ao risco de ser descoberta pelo marido, erguia com uma mão a saia acima dos joelhos, enquanto com a outra abaixava o corpete do vestido desnudando os seios palpitantes. O moleiro voltou acompanhado pelo rapaz. No saco que trazia ao ombro vinha um gato emprestado pelo vizinho. Era um gatarrão de enorme cabeça e cauda possante. A gata, trancada no celeiro, miava lasciva. Solta pelo moleiro, pulou no meio do quarto. Os dois gatos começaram a andar um ao redor do outro, desconfiados, ofegantes, aproximando-se lentamente. A mulher do moleiro serviu o jantar. Comiam em silêncio, o moleiro sentado ao meio, a mulher de um lado e o ajudante de outro. Eu jantava acocorado perto do fogão, admirado com o apetite dos dois homens, em cujas gargantas desapareciam nacos de pão e carne tragados como avelãs em meio a fartas goladas de vodca. Somente a mulher comia devagar. E, a cada vez que baixava a cabeça sobre o prato, o ajudante envolvia com um olhar rápido seu busto farto. Subitamente, no meio do quarto, a gata arqueou o dorso, arreganhou dentes e unhas e pulou sobre o gato. Este estacouenrijecido, lançando jatos de saliva nos olhos inflamados da fêmea, e recuou. A gata, andando ao seu redor, aproximava- se e afastava-se em pequenos saltos, a arranhar-lhe o focinho com a pata. O gato caminhou para ela cauteloso, sorvendo seu cheiro intoxicante. Ergueu o rabo e tentou chegar-se por detrás. Mas a fêmea não deixava; achatada contra o chão, rodava sobre si mesma, toda unhas e dentes. Fascinados, o moleiro e os outros dois olhavam a cena em silêncio, comendo. O rosto da mulher enrubesceu, o sangue pulsava-lhe no pescoço. O ajudante levantou os olhos para tornar a baixá-los imediatamente; o suor escorria-lhe pelo cabelo, que ele afastava sem parar da testa escaldante. Só o moleiro continuava jantando calmamente, olhando os gatos, relanceando um olhar ora para a mulher ora para o convidado. De repente, o gato decidiu-se. Seus movimentos tornaram-se mais leves. Avançava. Ela se mexeu, ameaçando recuar, mas o macho, de um pulo, caiu’sobre a gata. Afundou-lhe os dentes no pescoço. Intento firme, penetrou-a. Só então, saciado, exausto, afrouxou a presa. A gata, pregada ao chão, soltou um grito lancinante e, num salto, libertou-se dele. Pulou para o fogão apagado remexendo-se como um peixe, esfregando as patas no pescoço, roçando a cabeça contra a parede ainda morna. A mulher do moleiro e o ajudante pararam de comer. Olhavam-se fixamente, arfavam com as bocas cheias de comida. Respirando fundo, sem se dar conta do que fazia, a mulher apertou os seios com as mãos. O ajudante olhava alternadamente para ela e para os gatos; passou a língua nos lábios secos, engoliu a custo a comida. O moleiro limpou o prato, reclinou a cabeça para trás e bebeu de um gole seu copo de vodca. Apesar de bêbado, levantou-se brandindo a colher, e, batendo com ela sobre a mesa, aproximou-se do rapaz, que o olhava enfeitiçado. A mulher recolheu a saia e começou a remexer no fogão. O moleiro inclinou-se para o ajudante, murmurando-lhe alguma coisa ao ouvido. Como se espetado por uma faca, o rapaz ergueu-se, negando. Desta vez em voz alta, o moleiro perguntou-lhe se desejava sua mulher. O rapaz enrubesceu e não deu resposta. A mulher do moleiro, ofegante, continuava limpando as panelas. O moleiro apontou para o gato e, novamente, murmurou algo para o rapaz. Este tentou afastar-se da mesa para deixar o quarto. O moleiro avançou com a colher em punho, e, antes que o ajudante percebesse o que acontecia, empurrou-o contra a parede, esmagando-lhe a garganta com o braço, enquanto o seu joelho mergulhava-lhe no estômago. O rapaz estava imobilizado. Em pânico, arquejante, murmurou alguma coisa ininteligível. A mulher precipitou-se para junto do marido, implorando e soluçando. Do alto do fogão a gata, subitamente desperta, olhou a cena; o gato, assustado, pulou para cima da mesa. Com um pontapé o moleiro afastou a mulher, e num gesto rápido, como o das mulheres ao limpar batatas, mergulhou a colher num dos olhos do rapaz e rodou- a na órbita. O olho saltou-lhe do rosto como uma gema de ovo, rolou pela mão do moleiro e caiu no chão. O ajudante gritava e guinchava, mas o moleiro o mantinha preso contra a parede. A colher ensangüentada mergulhou no outro olho, que saltou ainda mais depressa. Pareceu ficar por um momento indeciso, depois rolou pela camisa até o chão. Tudo tinha acontecido num minuto. Eu não conseguia acreditar no que tinha visto. Uma esperança me atravessou a mente, de que os olhos arrancados pudessem ser recolocados no lugar. Gritando, a mulher do moleiro correu para o outro quarto e acordou as crianças, que começaram também a gritar aterrorizadas. O ajudante lançou um uivo pungente, depois, em silêncio, cobriu o rosto com as mãos. Filetes de sangue jorraram por entre os seus dedos, escorreram-lhe pelos braços, pingando lentamente na camisa e nas calças. O moleiro, ainda enraivecido, empurrou-o para a janela, como se esquecido de que o outro estava cego. O rapaz tropeçou, gritou, quase caiu sobre a mesa. O moleiro agarrou-o pelos ombros e, abrindo a porta com o pé, lançou-o lá fora. O rapaz tornou a gritar, vacilou no umbral, e caiu no pátio. Os cães, sem saber o que tinha acontecido, começaram a latir. Os olhos continuavam no chão. Caminhei ao seu redor, sempre ao alcance de seu olhar. Timidamente os gatos se aproximaram do centro do quarto e começaram a brincar com eles como se fossem novelos; à luz do lampião de querosene, suas próprias pupilas tornaram-se estreitas como fendas. Os gatos cheiravam, lambiam, rolavam os olhos, que passavam um para o outro, empurrando-os delicadamente, com as patas macias. Parecia-me agora que os olhos me olhavam de todos os cantos do quarto, como se donos de uma nova vida independente. Eu os observava fascinado. Não fora a presença do moleiro, os teria pegado para mim. Certamente ainda viam. Eu os guardaria no bolso, e os usaria quando preciso, por cima dos meus, passando a ver o dobro ou quem sabe até mais. Talvez os pudesse prender na nuca, para que me dissessem, não sabia bem como, o que se passava às minhas costas. Ou, melhor ainda, poderia deixar os olhos nalgum lugar e eles me contariam depois o que tinha acontecido em minha ausência. Talvez os olhos não quisessem servir a ninguém. Podiam facilmente fugir dos gatos e rolar porta afora, vagueando em seguida pelos campos, lagos e florestas, olhando tudo, livres como pássaros fora da gaiola. Libertos do corpo, não morreriam mais, e assim pequenos poderiam se esconder em qualquer lugar, espionando as pessoas. Excitado, decidi fechar a porta e capturar os olhos. O moleiro, evidentemente aborrecido com a brincadeira dos gatos, chutou os animais e esmagou os olhos sob as botas pesadas. Ouviu-se um estalo. Um espelho maravilhoso, capaz de refletir o mundo inteiro, tinha sido partido. Ficava no chão apenas uma espécie de geléia, e em mim o terrível sentimento de perda. Sem me dar atenção, o moleiro sentou-se, escorregando aos poucos à medida que adormecia. Levantei-me silenciosamente, peguei a colher ensangüentada e comecei a juntar a louça. Era minha obrigação arrumar e varrer o quarto. Mantinha-me afastado dos olhos, por não saber o que fazer com eles, mas afinal, sem olhar, varri-os rapidamente para dentro da pá e joguei-os no fogão. De manhã, acordei cedo. Ouvia lá embaixo o ressonar do moleiro e da mulher. Com cuidado preparei uma sacola de comida, enchi o cometa de brasas e, distraindo o cachorro com uin pedaço de salsicha, abandonei a casa. Encostado na parede do moinho, perto do estábulo, jazia o ajudante. A princípio pensei em passar por ele rapidamente, mas logo lembrei-me de que ele não enxergava. Estava ainda sob o efeito do choque; o rosto coberto com as mãos, chorava e gemia, todo ensangüentado. Tive vontade de dizer alguma coisa, mas refreei-me, com medo de que me perguntasse o que havia sido feito de seus olhos, obrigando-me a contar que o moleiro os tinha esmagado. Sentia muita pena dele. Perguntava a mim mesmo se a perda da visão implicaria também o esquecimento de tudo o que havia sido visto antes. Se assim fosse, o homem não enxergaria realmente mais, nem em sonho. Caso contrário, porém, mantida a visão da memória, a cegueira não seria assim tão ruim. O mundo parecia-me quase igual em toda parte, e apesar de as pessoas serem diferentes umas das outras, como os animais e as árvores, não deveria ser difícil saber-lhes as feições depois de tê-las visto durante tantos anos. Eu tinha vivido apenas sete anos, mas já lembrava muitas coisas, e quando fechava os olhos reencontrava, ainda mais vívidos, inúmeros detalhes. Quem sabe sem os olhos o ajudante talvez descobrisse um mundo novo e fascinante. Ouvi sons vindos da aldeia. Temendo que o moleiro acordasse, prossegui meu caminho, tocando os olhos de vez em quando. Caminhava com cuidado, pois sabia agora que os olhos têm raízes delicadas. Quando a gente se abaixa, pendem como maçãs no galho, e podem cair facilmente. Resolvi pular as cercas de cabeça erguida; mas, na primeira tentativa, tropecei e caí. Assustado, levei os dedos aos olhospara certificar-me de que ainda estavam no lugar. Depois de perceber que se abriam e fechavam corretamente, contemplei feliz a revoada de perdizes e tordos. Voavam ligeiros, mas eu os acompanhava com o olhar e os precedia quando se escondiam sob as nuvens, menores do que gotas de chuva. Prometi a mim mesmo lembrar tudo o que visse. Assim, se me arrancassem os olhos, guardaria para sempre a memória de todas as minhas imagens. V Meu trabalho era colocar armadilhas para Lekh, que vendia pássaros em várias aldeias. Era insuperável na profissão. Costumava trabalhar sozinho, e só me empregou por eu ser muito pequeno, muito magro e muito leve, o que me permitia colocar armadilhas lá onde Lekh não alcançava: galhos mais frágeis, densos emaranhados de cardos e urtigas, ilhotas alagadiças de brejos e pântanos. Lekh não tinha família. Sua cabana vivia cheia de pássaros de todas as qualidades, do modesto pardal à sábia coruja. Os camponeses trocavam os pássaros de Lekh por comida, de modo que ele não precisava preocupar-se com o essencial: leite, manteiga, coalhada, queijo, pão, salsichas, vodca, frutas e até mesmo roupas. Tudo isso ele trazia dos povoados quando levava seus pássaros engaiolados, gabando-lhes a beleza e as qualidades canoras. Lekh tinha o rosto sardento e cheio de espinhas. Os camponeses garantiam ser essa a marca dos que roubam ovos de andorinha no ninho. Para Lekh, isso ocorrera porque cuspira descuidadamente no fogo durante a sua juventude, dizendo que seu pai era um escrivão de aldeia que queria fazer dele um padre. Mas Lekh tinha a vocação da floresta. Estudava a vida dos pássaros e lhes invejava a capacidade de voar. Um dia fugiu da casa de seu pai e como um pássaro selvagem começou a errar de aldeia em aldeia, de floresta em floresta. Aprisionou seus primeiros pássaros. Observava os hábitos surpreendentes da codorna e da cotovia,, sabia imitar o chamado alegre do cuco, o grito rouco da gralha, o pio plangente da coruja. Conhecia o ritual amoroso do pisco chilreiro, a fúria ciumenta da galinha-d’água macho rodeando o ninho abandonado pela fêmea; e a tristeza da andorinha cujo ninho foi destruído em brincadeiras de meninos. Entendia os mistérios do vôo do. falcão, e admirava a paciência da cegonha ao pescar rãs. Ao rouxinol, invejava o canto. Assim, passou sua juventude em meio às árvores e às aves. Agora estava perdendo o cabelo, os dentes apodreciam, a pele do rosto pendia enrugada, e começava a perder a vista. Tinha-se estabelecido numa cabana construída por ele mesmo, da qual ocupava apenas um canto, reservando o resto para os viveiros. Foi no fundo de um deles que conseguiu um lugar para mim. Lekh falava freqüentemente dos pássaros. Eu o ouvia atento. Aprendi que as cegonhas dão sorte às casas em que nidificam, e que chegam sempre em bandos no dia de São José, vindas de terras longínquas. Ficam nas aldeias até que São Bartolomeu expulsa as rãs para dentro da lama. Sem ouvir- lhes o coaxar as cegonhas não podem caçá-las, e são obrigadas a partir. Meu patrão era o único da região capaz de preparar-lhes ninhos com antecedência, e elas sempre os ocupavam. Mas Lekh cobrava caro, e só os fazendeiros mais ricos podiam dar-se ao luxo de encomendá-los. Era um trabalho que exigia atenção. Em primeiro lugar Lekh colocava no telhado escolhido um gradeado que servisse de estrutura, sempre ligeiramente orientado para o leste, de modo a evitar os ventos dominantes. Depois disso atravessava grandes pregos na ossatura do ninho, para que as cegonhas trançassem neles os gravetos e a palha que elas próprias recolhiam. Afinal, antes da chegada dos bandos, amarrava no meio do gradeado um pedaço de pano vermelho, para chamar-lhes a atenção. Dizia-se que ver a primeira cegonha da primavera em vôo trazia boa sorte, mas vê-la pousando era presságio de um ano inteiro de infelicidade. As cegonhas forneciam também elementos para saber o que acontecia na aldeia, pois nunca voltavam a um telhado sob o qual algum crime tivesse sido cometido em sua ausência, nem que abrigasse pecadores. Eram aves estranhas. Lekh contou-me como havia sido bicado por uma fêmea que chocava, ao tentar corrigir a posição do ninho. Vingou-se colocando um ovo de pato entre os da cegonha. Quando os ovos se abriram, as cegonhas olharam espantadas sua prole. Um dos filhotes era aleijado, de pernas curtas e bico chato. O macho acusou a fêmea de adultério e queria matar o bastardo imediatamente. Mas a mãe achou que o nenê devia continuar no ninho. As discussões familiares continuaram durante alguns dias. Afinal a mãe decidiu salvar o filhote por sua própria conta, e o fez rolar pelo teto de palha, de onde caiu em segurança no pátio. Poderia parecer que isso encerrava o caso, restaurando a paz familiar, mas quando chegou a hora da partida todas as cegonhas conferenciaram como de costume. No debate decidiu-se que a fêmea era culpada de adultério e que não tinha direito a acompanhar o marido. A sentença foi executada duramente. Antes que o bando levantasse vôo em formação perfeita, a esposa infiel foi atacada com asas e bicos. Caiu morta junto ao telhado de palha no qual tinha vivido com o marido. Ao lado do corpo os camponeses encontraram um patinho feio em lágrimas. As andorinhas também tinham vidas interessantes. Pássaros favoritos da Virgem Maria, são mensageiras da primavera e da alegria. No outono abandonam os homens, para pousar, cansadas e sonolentas, nos caniços de pântanos distantes. Lekh dizia que descansavam no caniço até que este se quebrasse sob seu peso, mergulhando-as na água. Acreditava-se que ficassem ali durante todo o inverno, protegidas pela capa gelada. O chamado do cuco podia significar muitas coisas. Quem o ouvisse pela primeira vez em cada estação devia sacudir imediatamente as moedas do bolso e contar todo o seu dinheiro, garantindo assim pelo menos a mesma quantidade durante todo o ano. Se ainda não houvesse folhas nas árvores, era aconselhável abandonar qualquer plano de furto, pois não daria certo. Lekh tinha especial carinho por cucos. Considerava-os seres humanos, nobres, transformados em pássaros, pedindo inutilmente a Deus que lhes restituísse a forma humana. Reconhecia a ligação com seus antepassados na maneira de criarem os filhos. Os cucos, dizia, nunca se dedicam à educação das próprias crias, mas contratam lavandiscas para alimentá-los e criá-los, enquanto eles continuam voando na floresta e pedindo ao Senhor que os transforme novamente em cavalheiros. Lekh tinha nojo dos morcegos, meio pássaros e meio ratos. Via-os como emissários dos maus espíritos em busca de novas vítimas, capazes de se agarrar aos cabelos de uma pessoa, infundindo-lhe desejos pecaminosos. Entretanto, até mesmo os morcegos tinham sua utilidade. Certa vez Lekh capturou um morcego no sótão, com uma rede, e o colocou no alto de um formigueiro ao lado da casa. No dia seguinte restavam apenas ossos descarnados. Lekh pegou cuidadosamente o esqueleto, retirando dele a fúrcula, que passou a usar pendurada no pescoço. Após pulverizar o resto dos ossos misturou-os a um copo de vodca e o deu de beber à mulher que amava. Isso, disse, aumentaria seus ímpetos amorosos. Lekh me ensinou que um homem deve sempre observar os pássaros atentamente e tirar conclusões de seu comportamento. Vê-los voando em grande número e de diferentes espécies contra o céu vermelho do entardecer significa que maus espíritos à procura de almas danadas cavalgam suas asas. Quando corvos e gralhas se juntam num campo, pode-se ter certeza de que a reunião é promovida por um demônio que tenta incutir-lhes ódio pelos outros pássaros. O aparecer de corvos brancos de longas asas anuncia um aguaceiro e patos selvagens em vôo rasante durante a primavera significam um verão chuvoso e uma colheita pobre. De madrugada, quando os pássaros dormiam, saíamos para surpreendê-los nos ninhos. Lekh caminhava na frente, saltando silencioso por cima de galhos e arbustos. Eu o seguia. Mais tarde, quando a luminosidade do dia alcançava até mesmo os cantos maisescuros dos campos e das florestas, recolhíamos os pássaros aterrorizados que se debatiam nas armadilhas colocadas por nós no dia anterior. Lekh os levantava com cuidado, quer falando-lhes carinhosamente, quer ameaçando-os de morte. Em seguida os colocava numa sacola que trazia ao ombro, onde lutavam e se debatiam até perder as forças. A chegada de cada novo prisioneiro reanimava os outros, e a sacola agitava-se contra as costas de Lekh. No alto, acima de nossas cabeças, os parentes e amigos da vítima voavam em círculos, amaldiçoando-nos com seus gritos estridentes. Lekh então erguia o olhar por sob as sobrancelhas grisalhas, insultan-do-os por sua vez. Se insistiam, depositava a sa ;ola no chão, pegava o estilingue, tomava uma pedra pontiaguda e, fazendo pontaria cuidadosamente, atirava-a no meio do bando. Nunca errava: o pássaro morto despencava do céu, sem que Lekh se dignasse sequer a examinar-lhe o corpo. À medida que a manhã avançava, Lekh apressava o passo e enxugava o suor da testa com redobrada freqüência. Aproximava-se a hora mais importante de seu dia. Uma mulher apelidada Ludmilla, a Idiota, o esperava nalguma clareira da floresta conhecida somente dos dois. Eu trotava orgulhoso atrás dele, carregando a sacola dos pássaros. A floresta tornava-se densa e intransponível. Os troncos das faias, lodosos, manchados como couro de cobra, erguiam-se contra as nuvens. As tílias, que no dizer de Lekh tinham assistido ao início da raça humana, surgiam festonadas pela pátina cinzenta dos musgos, como gigantescas cotas de malha. Os carvalhos estendiam seus galhos como pescoços de aves famintas em busca de comida, vedando a luz do sol, mergulhando em sombra pinheiros e choupos. Lekh parava de vez em quando para observar rastos deixados nas fendas das cortiças apodrecidas, estudar os nós das árvores, os bugalhos cheios de buracos escuros em cujo fundo via-se cintilar o brancor da madeira nua. Atravessávamos bosquetes de jovens bétulas em brotamento, que vergavam seus galhos flexíveis e delicados ao nosso passar. Bandos de pássaros debruçados nos galhos fugiam em revoada ao verem a nossa aproximação através da diáfana cortina de folhagem. Seus gritos misturavam-se ao zunir das abelhas, que enxameavam ao nosso derredor como nuvem cintilante. Lekh protegia o rosto com as mãos, abrigando-se em moitas mais densas, enquanto eu o acompanhava sem deixar cair nem a sacola dos pássaros nem a cesta das armadilhas, e sacudindo a mão livre para afastar o enxame feroz e vingativo. Ludmilla, a Idiota, era uma mulher estranha, que eu temia cada vez mais. Bem feita, mais alta do que a maioria das mulheres, de longos cabelos aparentemente nunca cortados, seios fartos que pendiam até quase a cintura, pernas musculosas, vestia-se no verão apenas com um saco desbotado que lhe revelava o busto e o tufo ruivo do sexo. Homens e rapazes gabavam-se do que faziam com ela quando estava disposta. Freqüentemente as mulheres da aldeia tentavam agarrá-la, mas, como dizia Lekh com orgulho, Ludmilla era mais veloz do que o vento e ninguém podia alcançá- la contra a sua vontade. Desaparecia no mato, reaparecendo somente findo o perigo. Ninguém sabia onde era sua toca. Às vezes, ao alvorecer, indo para o campo de foice ao ombro, os camponeses a viam acenando-lhes ao longe. Então paravam e acenavam de volta, apagando com o gesto do braço a vontade de trabalhar. Traziam-nos novamente à realidade os gritos das mães e esposas, que se aproximavam carregando as enxadas e que, vez ou outra, soltavam os cães em cima de Ludmilla. Entretanto, o mais feroz jamais lançado ao seu alcance preferiu não voltar, e a partir de então ela sempre aparecia trazendo-o amarrado por uma corda, pondo em fuga os outros cães. Diziam que Ludmilla, a Idiota, vivia maritalmente com o cachorro. Outros afirmavam que um dia acabaria dando à luz crianças peludas, de quatro patas, com orelhas caninas, monstros que ficariam vagueando na floresta. Lekh nunca repetiu essas histórias a respeito de Ludmilla. Contou-me apenas que quando ela era muito jovem e inocente os pais ordenaram-lhe que casasse com o filho do salmista da aldeia, conhecido por sua feiúra e perversidade. A recusa de Ludmilla enfureceu o noivo de tal forma que ele a atraiu para longe do povoado, entregando-a a um bando de camponeses bêbados para que a violentassem até deixá-la desacordada. Ludmilla mudou depois disso, ficou com a mente abalada, e como ninguém se lembrasse da sua família apelidaram-na Ludmilla, a Idiota. Vivia na floresta, atraindo os camponeses para o mato, e envolvendo-os em tais prazeres que lhes tornava odiosa a visão de suas esposas gordas e fedorentas. Não bastava um homem para satisfazê-la; tinham que ser vários, um depois do outro. Era, apesar disso, o grande amor de Lekh. Para ela, compunha doces canções em que a descrevia como pássaro de cores estranhas em vôo para terras longínquas, mais lindo e veloz do que qualquer outro. Ele a via como pertencente ao mundo primitivo e pagão de pássaros e florestas, onde tudo é infinitamente abundante, selvagem, florescente, cheio de nobreza no seu ciclo perpétuo de decadência, morte e renascença, ilícito e adverso ao mundo dos homens. Todos os dias Lekh e eu caminhávamos para a clareira onde ele esperava encontrar Ludmilla. Ao chegar, Lekh piava imitando coruja, e Ludmilla, a Idiota, surgia por entre a grama, os cabelos entrelaçados de papoulas e flores azuis. Lekh corria ansioso para ela. Abraçados, ondulavam levemente como a grama ao redor, os corpos unidos, árvores crescendo de uma só raiz. Eu os observava da margem da clareira, por trás das samambaias. Na sacola, os pássaros, assustados pela súbita calma, gritavam e esvoaçavam agitados, batendo as asas uns contra os outros. O homem e a mulher beijavam-se nos cabelos e nos olhos, roçavam os rostos, intoxicados pelo cheiro e pelo contato dos próprios corpos. Aos poucos as mãos tornavam-se mais ativas. As de Lekh, pesadas e calosas, desciam pelos braços macios da mulher, enquanto ela aproximava ainda mais seu rosto do dele. Juntos, deixavam-se escorrer na grama, que agora ondeava ao ritmo de seus corpos, escondendo-se ao olhar curioso dos pássaros que sobrevoavam a clareira. Mais tarde me dizia Lekh que enquanto jaziam abraçados Ludmilla lhe contava sua vida e suas tristezas, revelando voltas e labirintos de suas selvagens e estranhas emoções, todos os atalhos e passagens secretas por onde vagueava sua mente frágil. Fazia calor. Sem vento, o topo das árvores permanecia imóvel. Ouvia-se o zumbir de libélulas e gafanhotos. Uma borboleta varava os raios do sol, levada por brisa invisível. O pica-pau cessava sua tarefa, o cuco calava. Eu adormecia. Acordavam-me as vozes. De pé, o homem e a mulher abraçados pareciam nascer do solo. Diziam-se coisas que eu não entendia e se separavam a contragosto. Ludmilla, a Idiota, acenava com a mão. Lekh caminhava para mim. O passo incerto, um sorriso sonhador nos lábios, virava-se repetidas vezes para olhá-la. A caminho de casa colocávamos mais armadilhas. Lekh vinha cansado e taciturno. Só à noite, quando os pássaros adormeciam nas gaiolas, recobrava o bom humor. Então, falava de Ludmilla. Seu corpo tremia, ele ria sozinho fechando os olhos, seu rosto pálido e sardento recobrava a cor. Às vezes passavam-se dias sem que Ludmilla, a Idiota, aparecesse na floresta. Uma raiva silenciosa apossava-se de Lekh, que, murmurando algo de si para si, fixava longamente os pássaros nas gaiolas. Afinal, após demorados estudos, escolhia o pássaro mais forte, amarrava-o ao pulso, e, misturando os mais variados ingredientes, preparava tintas fétidas de diferentes cores. Quando estas o satisfaziam, virava o pássaro e pintava-lhe as asas, a cabeça e o peito em tons brilhantes, até torná-lo mais colorido do que um buquê de flores silvestres. Íamos então para a parte mais densa da floresta; Lekh me entregava o pássaro pintado, mandando que eu o apertasse de leve nas mãos. Cedo seus gritos atraíam companheiros da mesma espécie, que se punham a
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