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O Passaro Pintado - Jerzy Kosinski

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Jerzy	Kosinski
	
O	Pássaro	Pintado
	
Círculo	do	Livro
	
Tradução	de
Christiano	Oiticica	e	Marina	Colasanti
	
Para	minha	ex-esposa	Mary	Hayward	Weir,	sem	a	qual	até	mesmo	o	passado
perderia	sua	significação.
	
E	só	Deus,	na	sua	onipotência,	soube	que	eram	mamíferos	de	uma	outra	espécie.
MAIAKÓVSKI
	
I
Nas	primeiras	semanas	da	Segunda	Guerra	Mundial,	no	outono	de	1939,	um
menino	de	seis	anos	de	idade,	proveniente	de	uma	grande	cidade	da	Europa
central,	foi	enviado	por	seus	pais,	como	centenas	de	outras	crianças,	em	busca	da
segurança	de	uma	aldeia	distante.
Mediante	farto	pagamento,	um	viajante	a	caminho	do	leste	prometeu	encontrar
uma	família	disposta	a	cuidar	temporariamente	da	criança.	Sem	outra	escolha,	os
pais	lhe	confiaram	o	menino.
Ao	separar-se	da	criança	os	pais	acreditavam	ser	este	o	melhor	meio	de	preservá-
la	da	guerra.	Eles	próprios,	devido	a	atividades	antinazistas	do	pai,	anteriores	à
guerra,	foram	obrigados	a	se	esconder	para	evitar	trabalhos	forçados	na
Alemanha	ou	o	confinamento	num	campo	de	concentração.
Pretendiam	salvar	a	criança	e	esperavam	reencontrá-
la	mais	tarde.
Os	acontecimentos,	entretanto,	alteraram	seus	planos.
No	caos	da	guerra	e	da	ocupação,	em	meio	ao	contínuo	deslocar-se	dos
refugiados,	os	pais	perderam	contato	com	o	homem	encarregado	de	entregar	a
criança	na	aldeia,	e	viram-se	em	face	da	possibilidade	de	jamais	encontrarem	o
filho.
Enquanto	isso,	dois	meses	depois	da	chegada	do	menino,	sua	mãe	adotiva
morreu,	deixando-o	ao	desabrigo,	vagueando	de	uma	aldeia	a	outra,	ora
abrigado,	ora	rechaçado.
As	aldeias	nas	quais	ele	haveria	de	passar	os	próximos	quatro	anos	eram
etnicamente	diferentes	de	sua	terra	de	origem.	Os	habitantes	locais,	isolados	e
circunscritos,	eram	louros,	de	pele	clara	e	olhos	azuis.
O	menino	era	moreno,	de	pele	mate	e	olhos	pretos.
Falava	a	língua	das	classes	educadas,	praticamente	incompreensível	para	os
camponeses	do	leste.
Tomaram-no	por	um	cigano	ou	por	um	judeu,	num	tempo	em	que	abrigar
ciganos	ou	judeus,	cujo	lugar	eram	os	guetos	e	os	campos	de	extermínio,
expunha	os	indivíduos	e	as	comunidades	aos	mais	severos	castigos	por	parte	dos
alemães.
Durante	séculos	as	aldeias	daquela	região	haviam	sido	esquecidas.	Inacessíveis	e
distantes	de	qualquer	centro	urbano,	podiam	ser	consideradas	as	mais	atrasadas
da	Europa	central.	Não	havia	escolas	nem	hospitais,	somente	algumas	estradas
pavimentadas,	algumas	pontes,	nenhuma	eletricidade.	Vivia-se	em	pequenos
núcleos,	quase	medievais,	regidos	pelo	direito	aos	rios,	aos	bosques,	aos	lagos.	A
única	lei	era	a	do	mais	forte	e	mais	rico	sobre	o	mais	fraco	e	pobre.
Divididos	entre	a	fé	católica	e	a	ortodoxa,	os	habitantes	encontravam	na	extrema
superstição	e	nas	numerosas	doenças	que	vitimavam	igualmente	homens	e
animais	seu	único	ponto	de	contato.
Eram	inapelavelmente	brutos	e	ignorantes.	O	solo	era	pobre	e	o	clima	rigoroso.
Os	rios,	pouco	piscosos,	invadiam	freqüentemente	os	pastos	e	os	campos,	brejos
e	pântanos	entrecortavam	a	região,	enquanto	as	densas	florestas	abrigavam	desde
sempre	bandos	de	bandidos	e	rebeldes.
A	ocupação	alemã	apenas	aumentou	a	miséria	e	o	atraso	daquela	parte	do	país.
Os	camponeses	eram	obrigados	a	entregar	a	maior	parte	de	sua	magra	colheita,
quer	às	tropas	regulares,	quer	aos	guerrilheiros.	A	recusa	acarretava	incursões
punitivas,	que	reduziam	as	aldeias	a	ruínas	fumegantes.
Eu	vivia	na	cabana	de	Marta,	esperando	dia	após	dia,	hora	após	hora,	que	meus
pais	viessem	buscar-me.	Chorar	não	adiantava,	e	Marta	não	prestava	atenção	às
minhas	lágrimas.
Ela	era	velha	e	estava	sempre	encurvada,	como	se	tentasse	inutilmente	partir-se
ao	meio.	Seus	cabelos	compridos,	nunca	penteados,	tinham-se	embaraçado	em
inúmeras	tranças	grossas,	impossíveis	de	desfazer.	Ela	as	chamava	melenas.
Demônios	se	aninhavam	nas	melenas,	torcendo-as	e	atraindo	a	senilidade.
Ela	claudicava	apoiada	num	bastão	nodoso,	resmungando	de	si	para	si	numa
língua	que	eu	mal	entendia.	Seu	rosto	murcho	e	pequeno	era	coberto	de	rugas,	a
pele	escura	e	avermelhada	como	uma	maçã	assada.	O	corpo	ressequido	tremia
tangido	por	tempestades	interiores,	e	os	dedos	das	mãos	nodosas	de	juntas
retorcidas	pela	doença	tremiam	sem	parar,	enquanto	a	cabeça,	do	alto	do	pescoço
descarnado,	anuía	em	todas	as	direções.
Enxergava	pouco.	Buscava	a	luz	através	da	estreita	fenda	dos	olhos	encravados
sob	as	sobrancelhas	espessas.	As	pálpebras	eram	como	sulcos	num	solo	arado.
Lágrimas	escorriam	sem	cessar	do	canto	de	seus	olhos,	descendo	pelo	rosto	ao
longo	de	caminhos	já	traçados	para	encontrar-se	com	a	gosma	pendente	do	nariz
e	a	baba	espumosa	que	gotejava	de	seus	lábios.	Parecia	às	vezes	um	velho
cogumelo	podre,	à	espera	de	que	uma	última	rajada	de	vento	dispersasse	sua
negra	poeira	interior.
Eu	a	temi	a	princípio,	e	fechava	os	olhos	a	cada	vez	que	ela	se	aproximava.	Tudo
o	que	eu	percebia	então	era	o	cheiro	repugnante	que	dela	emanava.	Sempre
dormia	vestida.	Era	essa,	no	seu	dizer,	a	melhor	defesa	contra	o	perigo	das
inúmeras	doenças	que	o	ar	fresco	podia	trazer	para	dentro	do	quarto.
Para	garantir	a	saúde,	dizia	ela,	era	necessário	lavar-se	apenas	duas	vezes	por
ano,	no	Natal	e	na	Páscoa,	e	assim	mesmo	sumariamente	e	sem	tirar	a	roupa.
Usava	água	quente	somente	para	aliviar	a	dor	que	calos,	joanetes	e	unhas
encravadas	infligiam	a	seus	pés	disformes.	Uma	ou	duas	vezes	por	semana	ela	os
punha	de	molho.
Freqüentemente	acariciava-me	os	cabelos	com	as	velhas	mãos	trêmulas,	tão
semelhantes	a	ancinhos,	e	me	encorajava	a	brincar	no	quintal,	a	procurar	a
amizade	dos	animais	domésticos.
Aos	poucos	percebi	que	eram	menos	perigosos	do	que	pareciam.	Lembrei-me
das	histórias	que	minha	babá	lia	para	mim	num	livro	de	figuras.	Esses	animais
tinham	sua	própria	vida,	seus	amores	e	desavenças,	discutiam	numa	linguagem
própria.
As	galinhas	se	apinhavam	no	galinheiro,	empurrando	umas	às	outras	na	ânsia	de
alcançar	os	grãos	que	eu	lhes	jogava.
Algumas	passeavam	aos	pares,	outras	bicavam	as	mais	fracas	e	banhavam-se
solitárias	nas	poças	deixadas	pela	chuva	ou	sentavam-se	sobre	os	ovos	e
ajeitavam	as	penas	afetadamente	antes	de	adormecer.
Coisas	estranhas	aconteciam	no	quintal.	Pintos	amarelos	e	pretos	surgiam	de
dentro	dos	ovos,	parecendo	eles	próprios	ovos	vivos	sobre	as	pernas	longas.	Um
dia,	um	pombo	solitário	veio	unir-se	ao	bando.	Foi	mal	recebido.	Quando	aterrou
entre	as	galinhas	num	redemoinho	de	asas	e	poeira,	elas	fugiram	espavoridas.
Quando	começou	a	cortejá-las,	arrulhando	e	perseguindo-as	em	pequenos
passos,	elas	se	afastaram	olhando	para	ele	com	desdém.	Invariavelmente,	quando
ele	se	aproximava	demasiado,	fugiam	cacarejando.
Um	dia,	enquanto	o	pombo	tentava	como	de	costume	confraternizar	com
galinhas	e	pintos,	uma	forma	negra	surgiu	das	nuvens.	As	galinhas	fugiram
aterrorizadas	para	o	celeiro	e	o	galinheiro.	A	forma	preta	caiu	como	uma	pedra
no	meio	do	bando.	Só	o	pombo	não	tinha	onde	se	esconder.
Antes	que	tivesse	sequer	o	tempo	de	abrir	as	asas,	um	pássaro	possante	prendeu-
o	ao	solo	e	feriu-o	com	o	grande	bico	adunco.	As	penas	do	pombo	tingiram-se	de
sangue.
Marta	saiu	correndo	da	cabana,	empunhando	um	bastão,	mas	o	gavião	levantou
vôo	mansamente,	levando	no	bico	o	corpo	inerte	do	pombo.
Marta	criava	uma	cobra	num	jardim	de	pedras	cuidadosamente	cercado.	A
serpente	deslizava	sinuosa	por	entre	as	folhas	agitando	a	língua	bífida	como
estandarte	em	parada	militar.	Parecia	indiferente	ao	resto	do	mundo,	e	nunca
soube	se	havia	jamais	reparado	em	mim.
Certa	ocasião	a	cobra	escondeu-se	debaixo	do	musgo	que	crescia	no	seu	ninho,
lá	permanecendo	longo	tempo	sem	água	ou	comida;	participava	de	estranhos
mistérios	dos	quais	até	mesmo	Marta	preferia	não	falar.	Quando	finalmente
apareceu	sua	cabeça	luzia	como	fruto	maduro.	Seguiu-se	uma	estranha
cerimônia.	A	serpente	imobilizou-se,	o	corpo	anelado	percorrido	de	longos
arrepios.	Em	seguida	rastejou	calmamente	para	fora	da	própria	pele,	parecendo
de	súbito	mais	magra	e	mais	jovem.	Já	não	agitava	a	língua	e	parecia	esperar	a
consolidação	de	sua	nova	pele.	O	velho	invólucro,quase	translúcido,	jazia
completamente	esquecido,	logo	coberto	de	moscas	desrespeitosas.	Marta	ergueu-
o	cuidadosamente	para	escondê-lo	num	lugar	secreto.	Uma	pele	daquelas,	disse,
tinha	valiosas	propriedades	medicinais,	que	eu	era	demasiado	criança	para
entender.
Marta	e	eu	tínhamos	observado	a	transformação	fascinados.
Explicou-me	que	do	mesmo	modo	o	homem	se	desfaz	do	corpo,	para	poder	voar
aos	pés	do	Senhor.	Após	longa	jornada	Deus	o	recebe	nos	braços,	devolve-lhe	a
vida	com	seu	sopro,	para	transformá-lo	num	anjo	celeste	ou	para	lançá-lo	à
eterna	tormenta	das	chamas	do	inferno.
Um	pequeno	esquilo	vermelho	costumava	visitar	a	cabana.
Depois	de	alimentado	improvisava	uma	dança	no	quintal,	batendo	com	a	cauda
no	chão,	soltando	pequenos	guinchos,	rolando,	saltando,	aterrorizando	galinhas	e
pombos.
O	esquilo	me	visitava	diariamente,	sentava	no	meu	ombro,	beijava-me	as
orelhas,	o	pescoço,	o	rosto,	brincava	nos	meus	cabelos	com	suas	patinhas
delicadas.	Depois	partia,	voltava	para	o	bosque	além	do	campo.
Um	dia	ouvi	vozes	e	corri	para	o	morro	vizinho.	Escondido	no	mato,	vi
horrorizado	que	alguns	meninos	da	aldeia	perseguiam	meu	esquilo,	através	do
campo.	Em	corrida	alucinada	o	bichinho	tentava	alcançar	a	segurança	da
floresta,	enquanto	os	garotos	atiravam	pedras	para	cortar-lhe	o	caminho.	O
esquilo	enfraquecido	arrefeceu	os	saltos,	atrasou-se.	Os	meninos	o	apanharam.
Mas	ainda	ele	se	defendia	debatendo-se	e	tentando	morder.	Os	meninos	então
debruçaram-se,	encharcando	o	esquilo	com	o	líquido	de	uma	lata.	Percebendo
que	algo	horrível	estava	para	acontecer,	pensei	desesperadamente	em	alguma
maneira	de	salvar	meu	amigo.	Mas	era	tarde	demais.
Um	dos	meninos	tirou	uma	madeira	em	brasa	de	dentro	da	lata	que	trazia
pendurada	no	ombro,	e	com	ela	tocou	o	bichinho,	jogando-o	ao	chão.	Incendiou-
se	imediatamente.
Com	um	guincho	que	me	cortou	o	fôlego,	saltou	para	o	alto	como	se	quisesse
escapar	ao	fogo.	As	chamas	o	envolveram;	somente	a	cauda	inquieta	ainda	se
agitou	por	um	segundo.	O
corpinho	fumegante	rolou	no	chão	e	logo	quedou-se.	Os	meninos	ficaram
olhando,	rindo,	cutucando-o	com	um	pedaço	de	pau.
Meu	amigo	morto,	eu	não	tinha	mais	por	quem	esperar.
Contei	a	Marta	o	acontecido,	mas	ela	não	pareceu	entender.
Resmungou	algo	para	si	mesma,	rezou	e	lançou	um	esconjuro	secreto	sobre	a
casa	para	afastar	a	morte,	que,	ela	garantia,	estava	nos	rondando,	querendo
entrar.
Marta	adoeceu.	Queixava-se	de	uma	dor	aguda	sob	as	costelas,	lá	onde	o
coração,	para	sempre	retido,	bate	as	asas.
Explicou-me	que	Deus	ou	o	Diabo	tinha	enviado	uma	doença	para	destruir	mais
um	ser	e	assim	pôr	fim	à	sua	permanência	na	terra.	Eu	não	podia	entender	por
que	Marta	não	se	desfazia	da	pele	como	a	cobra,	recomeçando	a	vida.
Quando	sugeri	que	o	fizesse,	zangou-se	e	me	amaldiçoou,	chamando-me	de
cigano	blasfemo,	bastardo	e	aparentado	com	o	Diabo.	Disse	que	a	doença	entra
nas	pessoas	quando	elas	menos	esperam;	pode	estar	sentada	atrás	da	gente	na
carroça,	pular	nos	nossos	ombros	quando	nos	abaixamos	para	colher	framboesas
no	mato,	ou	sair	de	dentro	da	água	enquanto	o	bote	atravessa	o	rio.	Invisível	e
astuta,	a	doença	se	infiltra	no	corpo	através	do	ar,	da	água,	por	contato	com	um
animal	ou	outra	pessoa,	ou	mesmo		e	nesse	ponto	lançou-me	um	olhar
desconfiado		através	de	um	par	de	olhos	escuros	separados	por	um	nariz	adunco.
Tais	olhos,	conhecidos	como	pertencentes	a	bruxas	e	ciganos,	podiam	aleijar,
trazer	peste	ou	morte.	Por	isso	me	proibia	de	olhá-la	diretamente	ou	a	qualquer
animal	da	casa.	Ordenou-me	que	cuspisse	três	vezes	rapidamente	e	fizesse	o
sinal-da-cruz	se,	mesmo	sem	querer,	a	encarasse.
Freqüentemente	se	enraivecia	se	a	massa	de	fazer	pão	azedava.	Acusava-me	de
ter	lançado	uma	praga	e	me	deixava	dois	dias	de	castigo	sem	comer	pão.
Tentando	não	encarar	Marta,	para	agradá-la,	eu	andava	na	cabana	de	olhos
fechados,	esbarrando	nos	móveis	e	virando	os	baldes,	lá	fora	pisoteava	os
canteiros	e	tropeçava	como	um	inseto	ofuscado	pela	luz.	Enquanto	isso	Marta
juntava	penugens	de	ganso,	que	lançava	sobre	as	brasas,	soprando	a	fumaça	em
todas	as	direções	e	murmurando	rezas	para	exorcizar	os	maus	espíritos.
Afinal,	anunciava	que	a	praga	estava	esconjurada.	E	tinha	razão,	pois	a	próxima
fornada	sempre	produzia	pão	saboroso.
Marta	sobrevivia	à	dor	e	à	doença,	contra	as	quais	mantinha	uma	luta	selvagem	e
constante.	Quando	a	dor	começava	a	incomodá-la,	picava	cuidadosamente	um
pedaço	de	carne	crua	e	a	colocava	num	pote	de	barro.	Em	seguida	despejava
sobre	ela	água	do	poço,	tirada	antes	do	amanhecer,	e	enterrava	o	pote	num	canto
da	cabana.	Dizia	que	isso	lhe	aliviava	as	dores	por	alguns	dias,	até	a	carne
apodrecer.
Logo,	porém,	quando	as	dores	voltavam,	repetia	novamente	toda	a	cerimônia.
Marta	jamais	bebia	na	minha	presença,	e	nunca	sorria.
Acreditava	que	se	o	fizesse	me	daria	a	oportunidade	de	contar-lhe	os	dentes,	e
cada	dente	contado	significava	um	ano	a	menos	na	sua	vida.	Na	verdade,	não
tinha	muitos	dentes,	mas	eu	compreendi	que	na	sua	idade	até	mesmo	um	ano	é
muito	precioso.
Eu	também	tentava	beber	e	comer	sem	mostrar	os	dentes,	e	treinava	olhando
minha	imagem	no	espelho	azulado	do	poço,	procurando	sorrir	sem	abrir	os
lábios.
Marta	proibiu-me	também	de	catar	do	chão	os	cabelos	que	ela	perdia.	Era
conhecido	o	poder	do	olhar	maligno,	que	pousado	sobre	um	único	fio	podia
acarretar	as	piores	dores	de	garganta.
À	noite	Marta	sentava-se	perto	do	fogo,	balançando	a	cabeça	e	murmurando
orações.	Eu	sentava	por	perto	pensando	nos	meus	pais.	Lembrava-me	dos	meus
brinquedos,	que	agora	provavelmente	pertenciam	a	outras	crianças.	O	urso	de
pelúcia	com	olhos	de	vidro,	o	avião	com	suas	hélices	e	os	passageiros	visíveis
através	das	janelinhas,	o	pequeno	tanque	fácil	de	movimentar,	o	carro	de
bombeiros	e	sua	longa	escada.
À	medida	que	as	imagens	ficavam	mais	vívidas	e	reais,	a	cabana	de	Marta
parecia	aquecer-se	ao	meu	redor.	Via	minha	mãe	sentada	ao	piano.	Ouvia	as
palavras	de	sua	canção.	Relembrava	o	medo	antes	da	operação	de	apêndice,	feita
quando	tinha	apenas	quatro	anos,	o	chão	brilhante	do	hospital,	a	máscara	de
clorofórmio	que	os	médicos	tinham	posto	no	meu	rosto	impedindo	que	eu
contasse	sequer	até	dez.
Esse	meu	passado,	porém,	transformava-se	rapidamente	numa	espécie	de	ilusão,
fabuloso	como	as	histórias	da	minha	velha	babá.	Perguntava-me	se	meus	pais
jamais	me	achariam.	Saberiam	eles	que	não	deviam	beber	ou	sorrir	diante	de
pessoas	de	mau-olhado	que	lhes	pudessem	contar	os	dentes?	Preocupava-me
lembrando	o	sorriso	aberto	e	franco	de	meu	pai,	tão	cheio	de	dentes	que	se	olhos
malignos	os	contassem	não	tardaria	a	morrer.
Um	dia,	ao	acordar,	percebi	que	a	cabana	estava	fria.	Não	havia	fogo	e	Marta
ainda	estava	sentada	no	meio	do	quarto,	com	as	saias	arregaçadas	e	os	pés
metidos	no	balde	cheio	de	água.
Tentei	falar-lhe,	mas	não	me	respondeu.	Segurei-lhe	a	mão	rígida	e	fria;	os	dedos
nodosos	não	se	moveram,	a	mão	continuou	pendurada	ao	longo	da	cadeira,
imóvel	como	roupa	molhada	na	corda	em	dia	sem	vento.	Quando	lhe	ergui	a
cabeça,	os	olhos	aguados	pareceram	me	encarar.
Olhos	assim	eu	tinha	visto	uma	só	vez,	nos	peixes	mortos	trazidos	pela
correnteza.
Concluí	que	Marta	preparava-se	para	mudar	de	pele,	e,	como	a	cobra,	não	devia
ser	perturbada.	Sem	saber	o	que	fazer,	tentei	ser	paciente.
Era	outono	avançado.	O	vento	fazia	estalar	os	galhos	arrancando	as	últimas
folhas	secas,	que	se	dispersavam	no	céu.	As	galinhas	encorujadas	nos	poleiros,
tristes	e	sonolentas,	abriam,	um	de	cada	vez,	os	olhos	desgostosos.	Fazia	frio	e
eu	não	sabia	acender	o	fogo.	Meus	esforços	para	obter	de	Marta	uma	resposta
foram	inúteis.	Ela	continuava	sentada,	imóvel,	olhando	fixamente	para	algo	que
eu	não	conseguia	ver.
Não	tendo	mais	nada	a	fazer	voltei	a	dormir,	certo	de	que	ao	acordar	encontraria
Marta	andando	pela	cozinha,	murmurando	seus	lúgubres	salmos.	Mas	quando
acordei,	já	noite,	ela	ainda	estava	com	os	pés	de	molho.	Eu	tinha	fome	e	medo
do	escuro.
Decidi	acender	a	lâmpada	de	querosene.	Procurei	os	fósforos	que	Marta
guardava	escondidos.Apanhei	a	lâmpada	da	prateleira,	mas	escorregou-me
levemente	da	mão	e	um	pouco	de	querosene	molhou	o	chão.
Os	fósforos	não	queriam	acender.	Quando	finalmente	um	se	inflamou,	partiu-se
ao	meio	e	caiu	na	poça	de	querosene.	A	chama	hesitou	a	princípio,	envolta	em
fumaça	azulada.	De	repente,	pulou	para	o	meio	do	quarto.
No	clarão,	via	Marta	perfeitamente.	Não	parecia	ligar	para	o	que	estava
acontecendo,	como	se	não	visse	a	chama	que	àquela	altura	se	alastrava	pela
parede	e	lambia	as	pernas	de	sua	cadeira.
Já	não	fazia	frio.	As	chamas	se	aproximavam	do	balde	em	que	Marta	banhava	os
pés.	Apesar	do	calor,	devia	estar	sentindo	frio,	mas	não	se	mexeu.	Admirei-lhe	a
coragem.
Depois	de	ter	estado	sentada	uma	noite	e	um	dia,	continuava	imóvel.
O	calor	no	quarto	aumentava.	Monstruosas	trepadeiras,	as	chamas	subiam	pelas
paredes,	gemendo	e	crepitando	como	cascas	que	estalam	sob	o	pé,	sobretudo
perto	da	janela,	por	onde	penetrava	um	sopro	de	ar.	Eu	permanecia	junto	à	porta,
pronto	para	correr,	mas	ainda	à	espera	de	Marta.	Ela	porém	continuava	sentada,
alheia	a	tudo.	As	chamas	começaram	a	lamber-lhe	as	mãos	pendentes,	como	o
teria	feito	um	cão	amigo.	Cobriram-nas	de	marcas	rubras,	e	subiram	em	busca
dos	cabelos	emaranhados.
Marta	cintilava	como	uma	árvore	de	Natal,	até	que	uma	labareda	abriu-lhe	um
chapéu	de	fogo	sobre	a	cabeça,	e	ela	não	foi	mais	do	que	uma	tocha.	As	chamas
rodeavam-na	por	todos	os	lados,	ternamente.	Pedaços	de	seu	velho	casaco	de
pele	de	coelho	caíam	chiando	na	água	do	balde.	Por	entre	as	chamas	eu	via	a
pele	enrugada	e	as	manchas	brancas	dos	braços	ossudos.
Chamei-a	pela	última	vez	e	fugi	para	o	quintal.	No	galinheiro	perto	da	casa	as
galinhas	cacarejavam,	batendo	as	asas	desesperadamente.	A	vaca,	em	geral	tão
calma,	mugia	golpeando	com	a	cabeça	a	porta	do	celeiro.	Decidi	não	esperar	a
permissão	de	Marta	e	soltar	as	galinhas	por	minha	conta.	Saíram	correndo
histéricas,	tentando	voar	num	frenético	bater	de	asas.	A	vaca	conseguiu	derrubar
a	porta.
Distante	do	fogo,	escolheu	um	ponto	de	observação	e,	pensativa,	pôs-se	a
ruminar.
O	interior	da	cabana	era	um	braseiro.	Chamas	saltavam	pelas	janelas	e	aberturas.
Fumaça	grossa	desprendia-se	do	teto	de	palha.	Espantava-me	Marta.	Até	tal
ponto	ia	sua	indiferença?
Teriam	podido	seus	sortilégios	e	magias	imunizá-la	contra	um	fogo	que
transformava	tudo	o	mais	em	cinzas?
Ainda	não	saía.	Tive	que	afastar-me	para	o	canto	mais	remoto	do	quintal.	O	calor
estava	insuportável.	Agora	também	o	galinheiro	e	o	celeiro	ardiam.	Ratos
assustados	pelo	fogo	cruzavam	o	quintal	em	todas	as	direções.	Os	olhos	de	um
gato,	refletindo	as	chamas,	brilharam	amarelos	na	beira	escura	do	campo.
Marta	não	aparecia,	apesar	da	minha	certeza	de	que	pudesse	surgir	ilesa.	Mas
quando	uma	das	paredes	ruiu,	mergulhando	no	interior	devastado	da	cabana,
comecei	a	duvidar	de	que	alguma	vez	tornaria	a	vê-la.
Pareceu-me	distinguir	uma	estranha	forma	oblonga	nas	nuvens	de	fumaça	que
subiam	aos	céus.	O	que	seria?	Talvez	a	alma	de	Marta	fugindo	a	caminho	do
paraíso?	Ou	a	própria	Marta,	renascida	do	fogo,	livre	de	sua	velha	pele	enrugada,
deixando	a	terra	montada	numa	vassoura	como	as	bruxas	das	histórias	que	minha
mãe	me	contava?
Ainda	fascinado	pelo	espetáculo	de	chamas	e	centelhas,	fui	arrancado	de	meus
devaneios	por	vozes	de	gente	e	ladrar	de	cães.	Eram	os	fazendeiros	chegando.
Marta	tinha-me	prevenido	contra	os	moradores	da	aldeia.	Dizia	que	se	alguma
vez	me	pegassem	sozinho	tratariam	de	me	afogar	como	um	gato	ou	me	matariam
a	machadadas.
Comecei	a	correr	assim	que	o	primeiro	apareceu	no	círculo	de	luz.	Não	me
viram.	Corri	feito	louco,	esbarrando	nos	tocos	de	árvore,	rasgado	pelos	arbustos
espinhentos.	Afinal,	caí	num	barranco.	Ouvia	as	vozes	distantes	e	o	baque	das
paredes	desabando.	Então	adormeci.
Acordei	ao	alvorecer,	gelado.	Estendido	como	uma	teia	de	aranha,	um	sudário	de
neblina	ia	de	um	lado	a	outro	do	barranco.	Escalei	o	topo	do	morro.	Fios	de
fumaça	e	pequenas	chamas	indecisas	erguiam-se	no	monte	de	cinzas	e	madeira
calcinada	onde	havia	sido	a	cabana	de	Marta.
Ao	redor,	o	silêncio.	Tinha	certeza	de	que,	agora,	encontraria	meus	pais	no	fundo
do	barranco.	Por	mais	longe	que	estivessem,	saberiam	o	que	me	tinha
acontecido.	Não	era	eu	seu	filho?	E	para	que	servem	os	pais	senão	para	socorrer
seus	filhos	na	hora	do	perigo?
Pensando	que	talvez	estivessem	perto,	chamei	por	eles.
Ninguém	respondeu.
Sentia-me	enfraquecido	pela	fome	e	pelo	frio.	Não	sabia	o	que	fazer	nem	aonde
ir.	Meus	pais	não	chegavam.
Fui	tomado	de	arrepios	e	vomitei.	Precisava	encontrar	alguém.	Tinha	que	ir	até	a
aldeia.
Manquejando	sobre	o	capim	amarelecido	pelo	outono,	os	pés	e	as	pernas
machucados,	encaminhei-me	lentamente	para	o	povoado	distante.
	
II
Meus	pais	não	estavam	em	parte	alguma.	Comecei	a	correr	através	dos	campos
em	direção	às	cabanas	dos	camponeses.
Um	crucifixo	apodrecido,	outrora	pintado	de	azul,	surgiu	na	encruzilhada.	No
alto	pendia	uma	imagem	sacra	cujos	olhos	apenas	visíveis	pareciam	fixar,	cheios
de	lágrimas,	os	campos	desertos	e	o	halo	vermelho	do	sol	nascente.	Um	pássaro
cinzento	estava	pousado	num	dos	braços	da	cruz.	Ao	verme,	abriu	as	asas	e
fugiu.
Vinha	no	vento	o	cheiro	do	incêndio.	Das	cinzas	já	frias	um	fio	de	fumaça	subia
para	o	céu	escuro.
Trêmulo	e	aterrorizado,	entrei	na	aldeia.	Dos	dois	lados	da	estrada	as	cabanas	de
tetos	de	palha	e	janelas	trancadas	pareciam	afundar	na	terra.
Os	cães	amarrados	às	cercas	perceberam	minha	presença	e	começaram	a	latir,
retesando	as	correntes.	Apavorado,	parei	no	meio	da	estrada,	à	espera	de	que	um
deles	se	soltasse	a	qualquer	instante.
O	pensamento	monstruoso	de	que	meus	pais	não	estavam	comigo,	nem	viriam,
atravessou-me	a	mente.	Sentei-me	no	chão	chorando	enquanto	chamava	meu	pai,
minha	mãe	e	até	mesmo	minha	velha	babá.
Homens	e	mulheres	reuniam-se	ao	meu	redor	falando	num	dialeto	que	eu	não
entendia.	Seus	gestos	e	olhares	suspeitosos	enchiam-me	de	medo.	Alguns
seguravam	cães	que	rosnavam	e	ameaçavam	lançar-se	contra	mim.
Alguém	me	golpeou	por	trás	com	um	ancinho.	Pulei	para	o	lado.	Espetaram-me
com	um	forcado.	Pulei	novamente,	gritando.
A	multidão	foi	se	animando.	Uma	pedrada	me	atingiu.
Estirei-me	de	rosto	colado	ao	chão	sem	querer	saber	o	que	aconteceria	em
seguida.	Bombardeavam-me	a	cabeça	com	bosta	seca	de	vaca,	batatas	podres,
pedaços	de	maçãs,	punhados	de	terra	e	pedras.	Eu	cobria	o	rosto	com	as	mãos,	os
gritos	abafados	na	poeira	da	estrada.
Alguém	me	ergueu	do	chão.	Um	homenzarrão	ruivo	agarrou-me	pelo	cabelo,
puxando-me	a	si	enquanto	com	a	outra	mão	me	torcia	uma	orelha.	Eu	resistia
desesperadamente.	A	multidão	gargalhava.	O	homem	me	deu	um	safanão	e
chutou-me	com	o	tamanco.	Todos	riam,	os	homens	seguravam	o	ventre,	os	cães
lutavam	para	se	soltar,	cada	vez	mais	próximos.
Um	camponês	abriu	caminho	na	multidão;	trazia	um	saco	de	lona.	Agarrou-me
pelo	pescoço	e	me	enfiou	o	saco	na	cabeça.	Em	seguida	me	jogou	no	chão,
tentando	enfiar-me	inteiro	no	saco	fétido.
Eu	bracejava	e	esperneava,	mordia	e	arranhava.	Até	que	um	golpe	na	nuca	tirou-
me	a	consciência.
Acordei	cheio	de	dores.	O	saco	em	que	eu	jazia	enrodilhado	ia	sendo	carregado
nas	costas	de	alguém	cujo	calor	eu	sentia	através	do	pano	grosso.	Acima	da
minha	cabeça	a	boca	do	saco	tinha	sido	amarrada	com	uma	corda.	Mas	quando
tentei	me	libertar	o	homem	me	botou	no	chão	e	me	encheu	de	pontapés.	Com
medo	de	fazer	sequer	um	gesto,	deixei-me	ficar	quieto	e	enrodilhado	num
semitorpor.
Pelo	cheiro	de	esterco,	pelo	balir	de	uma	cabra	e	o	mugir	de	uma	vaca	soube	que
tínhamos	chegado	a	uma	granja.	O	saco	foi	depositado	no	chão	de	uma	cabana	e
chicoteado.	A	pele	em	fogo,	saltei	pela	boca	do	saco.	Lá	estava	o	camponês	de
chicote	em	punho,	agora	golpeando	as	minhas	pernas,	enquanto	eu	pulava	como
um	esquilo.	Pessoas	foram	se	aproximando:	uma	mulher	enrolada	num	avental
sujo,	criancinhas	que	saíam	de	trás	da	cama	e	do	fogão,	rastejando	como	baratas,
e	dois	trabalhadores.
Rodearam-me.	Um	tentou	tocar-me	os	cabelos,	mas	quando	olhei	para	ele	retirou
rapidamentea	mão.	Nos	comentários	que	faziam	a	meu	respeito	e	que	quase	não
entendia,	distingui	a	palavra	“cigano”,	muitas	vezes	repetida.	Tentei	explicar,
mas	minha	língua	e	meu	modo	de	falar	eram	para	eles	cômicos	e
incompreensíveis.
O	camponês	que	me	tinha	trazido	recomeçou	a	chicotear-me	as	pernas.	Eu
saltava	cada	vez	mais	alto,	enquanto	crianças	e	adultos	torciam-se	de	rir.
Deram-me	um	pedaço	de	pão	e	me	trancaram	no	depósito	de	lenha.	Meu	corpo
ardia	lanhado	de	chicotadas,	não	conseguia	adormecer.	Na	escuridão	do	depósito
ouvia	os	ratos	remexendo	ao	meu	lado,	e,	cada	vez	que	me	roçavam	as	pernas,
gritava	assustando	as	galinhas	que	dormiam	além	da	parede.
Nos	dias	que	se	seguiram	famílias	inteiras	de	camponeses	vieram	à	cabana	me
examinar.	Para	que	eu	pulasse	como	uma	rã,	o	dono	da	casa	me	chicoteava	os
tornozelos	já	cobertos	de	cascas	de	feridas.	Minha	única	vestimenta	era	o	saco,
no	qual	tinham	aberto	dois	buracos	para	as	pernas.
Freqüentemente,	quando	pulava,	o	saco	caía.	Os	homens	então	gargalhavam	e	as
mulheres	riam	contrafeitas	enquanto	eu	tentava	cobrir	meus	pequenos	órgãos.
Encarei	alguns	deles,	e	sempre	desviavam	o	olhar,	ou	cuspiam	três	vezes
abaixando	as	pálpebras.
Um	dia,	uma	mulher	de	idade	chamada	Olga,	a	Sábia,	veio	à	cabana.	Foi	tratada
com	visível	respeito.	Examinou-me	bem,	perscrutou	os	olhos	e	os	dentes,
apalpou-me	os	ossos	e	mandou	que	urinasse	numa	bacia,	estudando	em	seguida
a	cor	da	urina.
Depois	contemplou	longamente	a	cicatriz	no	meu	abdome,	lembrança	da
apendicite,	e	me	apalpou	o	estômago.	Finda	a	inspeção,	regateou	longa	e
decididamente	com	o	camponês,	terminando	por	atar-me	uma	corda	ao	pescoço
e	levar-me	consigo.	Eu	havia	sido	vendido.
Comecei	a	viver	em	sua	choupana.	Eram	dois	quartos	um	pouco	abaixo	do	nível
do	solo,	entulhados	de	folhas,	feixes	de	ervas	secas,	arbustos,	pedrinhas
coloridas	de	estranhos	feitios,	rãs,	toupeiras	e	potes	fervilhantes	de	vermes	e
lagartixas.	No	meio	da	choupana	ardia	um	fogo	sobre	o	qual	se	punham	a	ferver
os	caldeirões.
Olga	me	mostrou	tudo.	Dali	por	diante	fiquei	encarregado	de	cuidar	do	fogo,
trazer	lenha	da	floresta	e	tratar	dos	bichos.
Havia	também	na	cabana	os	mais	variados	pós,	que	Olga	preparava	num
almofariz,	socando	e	misturando	os	diversos	componentes.	Ajudá-la	nisso	era
outra	de	minhas	tarefas.
De	manhã	cedo	Olga	me	acordava	para	visitar	as	cabanas	da	aldeia.	Homens	e
mulheres	persignavam-se	ao	nos	ver,	mas,	apesar	disso,	assim	mesmo	nos
recebiam	delicadamente.	Os	doentes	esperavam	lá	dentro.
Se	por	acaso	encontrássemos	uma	mulher	chorosa	segurando	o	ventre	com	as
mãos,	Olga	me	mandava	massagear	a	barriga	macia	e	quente	sem	abandoná-la
com	o	olhar,	enquanto	ela	própria	murmurava	estranhas	palavras	e	descrevia
sinais	sobre	nossas	cabeças.	Certa	vez	fomos	atender	uma	criança	com	uma
perna	infeccionada,	de	onde	o	pus	sanguinolento	escorria	sobre	a	pele	já	escura	e
enrugada.	O	cheiro	era	tão	fétido	que	até	mesmo	Olga	via-se	obrigada	a	abrir	a
porta	a	cada	instante	para	deixar	entrar	lufadas	de	ar	fresco.
Durante	todo	o	dia	olhei	fixamente	a	perna	gangrenada	enquanto	a	criança	ora
chorava,	ora	dormia.	A	família	desesperada	rezava	em	voz	alta	do	lado	de	fora.
Quando	a	atenção	da	criança	arrefecia,	Olga	aplicava	sobre	a	perna	um	ferro	em
brasa,	cauterizando	cuidadosamente	a	ferida.	O
doente	debatia-se	em	todas	as	direções,	gritava,	desmaiava,	voltava	a	si.	O	cheiro
de	carne	queimada	empestava	o	quarto,	a	ferida	chiava	como	bacon	na	frigideira.
Em	seguida	Olga	cobria	a	ferida	com	pedaços	de	pão	molhado	misturado	com
mofo	e	teias	de	aranha	recém-colhidas.
Olga	conhecia	o	tratamento	para	quase	todas	as	doenças,	e	minha	admiração	por
ela	crescia	gradativamente.	Pessoas	vinham	consultá-la	sobre	todos	os	males	e
ela	sempre	sabia	como	ajudá-las.	Se	alguém	tinha	dor	de	ouvido,	Olga	lavava-
lhe	as	orelhas	com	óleo	de	cominho	e	introduzia	em	cada	uma	um	pedaço	de
linho	enrolado	em	feitio	de	funil	e	molhado	na	cera	quente,	cujas	pontas
incendiava.	O
paciente,	atado	à	mesa,	gritava	de	dor	enquanto	o	fogo	queimava	o	pano	dentro
dos	ouvidos.	Olga	então	soprava	para	retirar	os	resíduos,	“a	serragem”,	como	ela
dizia,	e	medicava	a	área	queimada	com	um	unguento	feito	do	sumo	de	uma
cebola,	bile	de	um	bode	ou	coelho,	e	um	pouco	de	vodca	bruta.
Ela	sabia	também	acabar	com	furúnculos,	tumores	e	quistos,	e	arrancar	dentes
estragados.	Guardava	os	furúnculos	no	vinagre,	onde	os	deixava	imersos	até	que
por	sua	vez	se	transformassem	em	remédios.	Recolhia	cuidadosamente	o	pus	que
escorria	das	feridas	para	que	fermentasse	durante	alguns	dias	em	potinhos
especiais.	Quanto	aos	dentes	extraídos,	eu	próprio	os	pulverizava	no	almofariz,	e
secava	o	pó	em	pedaços	de	cortiça	colocados	sobre	o	fogão.
Às	vezes,	no	meio	da	noite,	um	camponês	assustado	vinha	buscar	Olga	para
atender	um	parto,	e	lá	ia	ela,	coberta	com	um	xale,	tiritando	de	frio	e	sono.	Se
partia	para	alguma	aldeia	vizinha	e	demorava	alguns	dias,	eu	cuidava	da	casa,
alimentava	os	animais	e	mantinha	o	fogo	aceso.
Apesar	do	dialeto	de	Olga	me	ser	estranho,	chegamos	a	nos	entender
perfeitamente.	No	inverno,	quando	a	tormenta	imperava	e	a	aldeia	jazia	envolta
no	abraço	de	neves	intransponíveis,	nós	ficávamos	sentados	no	calor	da	cabana
enquanto	Olga	me	contava	das	criaturas	de	Deus	e	dos	espíritos	do	Demônio.
Ela	me	chamava	o	Moreno.	Dela,	soube	pela	primeira	vez	ser	possuído	por	um
mau	espírito	que	se	aninhava	em	mim	como	uma	toupeira	no	fundo	de	sua	toca,
e	cuja	presença	eu	desconhecia.	Pessoas	como	eu,	possuídas	por	maus	espíritos,
podiam	ser	reconhecidas	por	seus	olhos	pretos	e	enfeitiçados,	que	não
pestanejavam	diante	de	brilhantes	olhos	claros.	Daí,	declarou	Olga,	eu	poder
olhar	para	os	outros	e,	sem	querer,	lançar	uma	praga.
Explicou-me	que	os	olhos	pretos	não	só	podem	lançar	pragas,	como	eliminá-las.
Ao	ajudá-la	na	cura	de	uma	pessoa,	de	um	animal,	ou	mesmo	de	uma	planta,	eu
devia	tomar	cuidado	e	afastar	todo	pensamento	estranho,	pois	basta	um	olhar
enfeitiçado	para	que	uma	criança	saudável	adoeça,	um	bezerro	caia	fulminado
por	súbita	doença	e	o	feno	apodreça	depois	da	colheita.
O	espírito	maligno	que	me	habitava	atraía	por	sua	própria	natureza	outros	seres
misteriosos.	Fantasmas	adejavam	ao	meu	redor.	Silenciosos,	reticentes	e	quase
sempre	invisíveis,	os	fantasmas	são,	porém,	muito	persistentes;	perseguem	as
pessoas	nos	campos	e	florestas,	esgueiram-se	nas	casas,	podem	transformar-se
em	gatos	malévolos	ou	em	cães	raivosos,	e	à	meia-noite	viram	lobisomens.
Almas	do	outro	mundo	acompanham	os	maus	espíritos.	São	pessoas	de	há	muito
mortas,	condenadas	à	danação	eterna,	que	voltam	à	vida	somente	na	lua	cheia,
com	poderes	sobre-humanos;	seus	olhos	tristes	estão	sempre	voltados	para	o
leste.
Os	vampiros,	talvez	a	mais	perigosa	dessas	ameaças	impalpáveis,	adquirem
forma	humana,	e	são,	eles	também,	atraídos	por	seres	possessos.	Trata-se	de
crianças	afogadas	antes	de	receber	o	batismo	ou	abandonadas	pelas	próprias
mães.	Até	a	idade	de	sete	anos	crescem	nas	florestas	e	nas	águas,	para	só	então
readquirirem	forma	humana	e,	sob	forma	de	vagabundos,	rondar	as	igrejas
católicas	e	uniatas.
Conseguindo	entrar,	mantêm-se	junto	aos	altares,	conspurcando	as	imagens,
mordendo,	quebrando	ou	destruindo	os	objetos	do	culto	e,	se	possível,	sugando	o
sangue	de	pessoas	adormecidas.
Olga	suspeitava	que	eu	fosse	um	vampiro	e	não	me	escondia	suas	suspeitas.	Para
conter	os	desejos	do	meu	espírito	maligno	e	evitar	que	se	transformasse	num
fantasma	ou	numa	alma	do	outro	mundo,	preparava	cada	manhã	uma	infusão
amarga	que	eu	bebia	mastigando	um	pedaço	de	carvão	esfregado	com	alho.	Os
outros	também	me	temiam.
Todas	as	vezes	que	eu	tentava	atravessar	a	aldeia	sozinho,	as	pessoas	viravam	o
rosto	e	faziam	o	sinal-da-cruz,	as	mulheres	grávidas	fugiam	espavoridas,	e	os
mais	corajosos	soltavam	seus	cães	em	cima	de	mim.	Não	tivesse	eu	aprendido	a
correr	rápido	e	a	nunca	me	afastar	demais	da	cabana	de	Olga,	não	teria	voltado
vivo	dessas	incursões.
Eu	ficava	a	maior	parte	do	tempo	na	cabana,	cuidando	para	que	ogato	albino
não	matasse	a	galinha	de	estimação	de	Olga,	que,	preta	e	rara,	vivia	engaiolada.
Tomava	conta	dos	sapos	de	olhar	embaçado	que	pulavam	no	fundo	de	um	pote,
atiçava	o	fogo,	remexia	misturas	borbulhantes	e	descascava	batatas	podres,	cujo
mofo,	medicamento	para	feridas	e	queimaduras,	recolhia	cuidadosamente	numa
tigela.
Olga	era	muito	respeitada	na	aldeia,	e	quando	a	acompanhava	eu	não	temia
ninguém.	Chamavam-na	freqüentemente	para	borrifar	os	olhos	do	gado	e	desse
modo	protegê-lo	contra	o	mau-olhado	a	caminho	do	mercado.	Ela	ensinava	aos
camponeses	como	cuspir	três	vezes	antes	de	perseguir	um	porco,	e	como
preparar	uma	massa	especial	de	ervas	bentas	para	alimentar	as	novilhas	antes	de
cruzá-las	com	o	touro.	Ninguém	na	aldeia	comprava	vacas	ou	cavalos	sem	o
beneplácito	de	Olga.	Derramava	água	sobre	o	bicho,	e,	após	observá-lo	enquanto
se	sacudia,	dava	o	veredicto	do	qual	dependiam	o	preço	e,	às	vezes,	a	própria
venda.
Aproximava-se	a	primavera.	O	gelo	rompia	sua	crosta	sobre	o	rio,	raios	oblíquos
de	sol	varavam	os	redemoinhos,	brincavam	no	contínuo	enovelar-se	da	água.
Libélulas	azuis	pairavam	sobre	a	correnteza,	lutando	contra	súbitas	lufadas	do	ar
ainda	frio	e	úmido.	Farrapos	de	bruma	formavam-se	na	superfície	do	lago
aquecido	pelo	sol,	para	logo,	envolvidos	nos	turbilhões	do	vento,	desfazer-se	em
flocos	e	desaparecer.
Entretanto,	quando	o	calor	tão	longamente	esperado	chegou	afinal,	trouxe
consigo	a	peste.	Suas	vítimas	contorciam-se	de	dor	como	vermes	trespassados,
eram	sacudidas	por	temores	e	morriam	sem	recobrar	a	consciência.	Eu
acompanhava	Olga	de	cabana	em	cabana,	olhando	fixamente	para	os	doentes	na
esperança	de	arrancá-los	à	morte,	mas	sem	resultado.	A	doença	era	por	demais
poderosa.
Atrás	das	janelas	fechadas,	na	penumbra	das	cabanas,	os	doentes	e	os
moribundos	gemiam	e	gritavam.	As	mulheres	apertavam	os	filhos	ao	peito,
corpinhos	enrolados	em	panos	dos	quais	a	vida	fugia	rapidamente.	Homens
desesperados	cobriam	com	edredons	e	peles	de	carneiro	as	mulheres	devoradas
pela	febre.	As	crianças	olhavam	horrorizadas	para	o	rosto	azulado	de	seus	pais
mortos.
A	peste	persistia.
Os	habitantes	da	aldeia	vinham	à	porta	de	suas	cabanas	e	erguiam	os	olhos	em
busca	de	Deus.	Só	ele	podia	aliviar	a	dor.	Só	ele	podia	conceder	aos	corpos
atormentados	a	graça	de	um	sono	tranqüilo.	Só	ele	podia	transformar	os	terríveis
enigmas	da	doença	em	saúde	infindável.	Só	ele	podia	apaziguar	o	desespero	de
uma	mãe	chorando	o	filho	morto.
Só	ele.	..
Mas	Deus,	na	sua	infindável	sabedoria,	aguardava.
Acendiam-se	fogueiras	ao	redor	das	cabanas,	defumando	os	caminhos,	os	jardins
e	os	quintais.	Ouviam-se	os	golpes	de	machado	e	o	desabar	das	árvores	nas
florestas	vizinhas,	enquanto	os	homens	providenciavam	a	lenha	necessária	para
manter	o	fogo	aceso.	O	som	cortante	das	lâminas	e	o	barulho	dos	troncos	caindo
atravessavam	o	ar	claro	e	parado,	enfraquecendo,	abafados,	à	medida	que
alcançavam	os	pastos	e	a	aldeia;	como	a	neblina	esconde	a	chama	da	vela,	assim
a	atmosfera	densa	e	empestada	envolvia	os	sons	em	sua	rede	mortífera.
Uma	noite	meu	rosto	começou	a	arder	e	fui	sacudido	por	tremores
incontroláveis.	Olga	estudou-me	os	olhos	por	um	momento	e	encostou	a	mão
fria	em	minha	testa.	Em	seguida,	sem	dizer	palavra,	carregou-me	rapidamente
para	um	campo	distante,	cavou	um	poço	profundo,	despiu-me	e	ordenou	que	eu
pulasse	para	dentro	dele.
De	pé,	tremendo	de	frio	e	febre,	vi	Olga	encher	o	poço	novamente,	enterrando-
me	até	o	pescoço.	Nivelou	o	chão	ao	meu	redor,	alisando-o	com	a	pá,	assegurou-
se	de	não	haver	por	perto	nenhum	formigueiro,	e	acendeu	três	fogueiras	de	turfa.
Enfiado	na	terra	gélida,	meu	corpo	esfriou	rapidamente,	como	a	raiz	de	uma
planta	seca.	Perdi	o	conhecimento.	Qual	repolho	solitário	minha	cabeça
incorporou-se	ao	campo.
Olga	não	me	esquecia.	Várias	vezes	durante	o	dia	trouxe	bebidas	frias	que	me
despejava	na	boca	e	pareciam	escorrer	do	meu	corpo	para	a	terra.	A	fumaça	das
fogueiras	que	ela	alimentava	com	musgos	frescos	ardia-me	nos	olhos	e
sufocava-me	a	garganta.	Vistas	do	nível	do	chão	nas	raras	ocasiões	em	que	o
vento	dispersava	a	fumaça,	a	terra	parecia	um	tapete	grosseiro,	as	plantinhas	que
cresciam	ao	redor	adquiriam	proporções	de	árvores,	e	a	figura	de	Olga	que	se
aproximava	lançava	sobre	minha	paisagem	uma	sombra	gigantesca.
Tendo	me	alimentado	pela	última	vez	ao	entardecer,	Olga	lançou	mais	turfa	nas
fogueiras	e	foi	dormir	na	cabana.
Fiquei	sozinho	no	campo,	preso	à	terra,	que	parecia	querer	tragar-me	para	suas
profundezas.
As	fogueiras	ardiam	devagar,	soltando	centelhas	que	subiam	como	vaga-lumes
na	escuridão	da	noite.	Parecia-me	ser	uma	planta	ansiando	pelo	sol,	mas	com	os
galhos	retidos	na	terra.
Ou	então	sentia	a	cabeça	subitamente	independente	do	corpo,	rolando	e	rolando,
cada	vez	mais	rápida,	até	atingir	o	disco	do	sol,	que	a	tinha	tão	gentilmente
aquecido	durante	o	dia.
Às	vezes,	quando	o	vento	me	acariciava	a	testa,	ficava	tomado	de	pavor.
Imaginava	exércitos	de	formigas	e	baratas	reunindo-se	e	marchando	em	direção
à	minha	cabeça	para	introduzir-se	no	cérebro	e	construir	novos	ninhos.	Ali
proliferariam,	comendo	meus	pensamentos	um	depois	do	outro,	até	deixar-me
tão	vazio	quanto	uma	casca	de	abóbora.
Fui	acordado	por	um	ruído.	Abri	os	olhos	sem	saber	ao	certo	onde	estava.
Fundido	na	terra,	sentia	a	cabeça	pesada	num	tumulto	de	pensamentos.	Clareava.
As	fogueiras	estavam	apagadas.	Sentia	nos	lábios	o	frescor	do	orvalho	que	me
escorria	do	rosto	e	dos	cabelos.
Os	ruídos	se	fizeram	ouvir	novamente.	Um	bando	de	corvos	sobrevoava	minha
cabeça.	Um	deles	pousou	perto,	num	farfalhar	de	asas,	e	aproximou-se	devagar,
enquanto	os	outros	começavam	a	descer.
Aterrorizado,	via	o	brilhar	de	suas	penas	negras	e	o	seu	olhar	penetrante.
Rodearam-me,	cada	vez	mais	próximos,	avançando	com	o	pescoço	estendido,
tentando	descobrir	se	eu	estava	vivo	ou	morto.
Não	esperei	mais.	Gritei.	Os	corvos,	assustados,	recuaram.
Alguns	ergueram-se	em	breve	vôo,	pousando	mais	adiante.
Desconfiados,	fecharam	o	círculo	e	tornaram	a	avançar.
Gritei	novamente.	Mas	dessa	vez	nem	sequer	se	assustaram;	com	redobrada
coragem,	aproximavam-se.	Meu	coração	parecia	romper-se	no	peito.	Não	sabia	o
que	fazer.	Tornei	a	gritar.	Inútil.	Os	pássaros	já	estavam	a	poucos	palmos	do	meu
rosto.	Pareciam	aumentar	a	cada	passo,	os	bicos	mais	e	mais	cruéis,	as	garras
espalmadas	sobre	o	chão.
Um	dos	corvos	estacou	a	poucos	centímetros	do	meu	nariz.
Gritei	com	todas	as	minhas	forças,	mas	o	corvo	estremeceu	apenas	e	abriu	o
bico.	Antes	que	eu	pudesse	gritar	de	novo,	bicou-me	a	cabeça,	arrancando-me
um	chumaço	de	cabelos.
Outro	golpe	me	atingiu,	vi	mais	cabelos	pendentes	do	bico.
Sacudi	a	cabeça	de	um	lado	para	outro,	afofando	a	terra	ao	redor	do	pescoço.
Mas	meus	movimentos	pareciam	atiçar	a	curiosidade	das	aves,	que	me	rodeavam
bicando	a	esmo.
Meus	gritos	já	enfraquecidos	não	conseguiam	erguer-se	para	alcançar	a	cabana
de	Olga.
Os	pássaros	divertiam-se.	Quanto	mais	eu	sacudia	a	cabeça,	mais	excitados	e
atrevidos	ficavam.	Parecendo	desprezar	meu	rosto,	atacavam	a	cabeça	e	a	nuca.
As	forças	me	deixavam.	Mover	a	cabeça	me	era	tão	doloroso	quanto	carregar	um
saco	de	trigo.	Estonteado,	via	tudo	através	de	densa	neblina.
Desisti	da	luta.	Agora	pássaro,	eu	tentava	libertar	da	terra	minhas	asas
enregeladas,	até	que,	livre,	juntei-me	ao	bando	de	corvos.	Erguido	numa	lufada
de	vento,	voei	para	o	raio	de	sol	que	se	desenhava	no	horizonte,	nítido	e
retesado.
Acompanhavam-me	os	gritos	alegres	de	meus	companheiros	alados.
Olga	me	encontrou	em	meio	à	massa	palpitante	dos	corvos,	enregelado	e	com	a
cabeça	lacerada	pelos	muitos	golpes.
Desenterrou-me	rapidamente.
Só	me	restabeleci	muitos	dias	depois.	Olga	disse	que	a	terra	fria	tinha	arrancado
a	doença	do	meu	corpo	e	que	um	bando	de	fantasmas	disfarçados	em	corvos
tinha	vindo	buscá-la,	provando	meu	sangue	para	se	assegurar	de	que	eu	fosse	um
deles.	Só	por	isso,	garantiu-me	ela,	não	me	tinham	arrancado	os	olhos.
Passaram-se	semanas.	A	peste	continuava,	e	sobre	os	numerosostúmulos	novos
crescia	capim	em	que	não	se	devia	tocar,	pois	continha	certamente	o	contágio
dos	mortos.
Uma	bela	manhã	Olga	foi	chamada	na	beira	do	rio,	de	onde	um	enorme	peixe-
gato,	de	longos	bigodes	eriçados,	estava	sendo	puxado	para	a	margem.	Era	um
peixe	monstruoso,	de	aspecto	aterrador,	um	dos	maiores	jamais	vistos	na	região.
Ao	pescá-lo,	um	pescador	tinha	se	cortado	na	rede.
Enquanto	Olga	aplicava	um	torniquete	no	braço	para	estancar	o	sangue,	os
outros	destriparam	o	peixe	e,	em	meio	à	alegria	geral,	extraíram	a	bexiga
natatória,	que	estava	intacta.
De	repente,	estando	eu	absolutamente	tranqüilo	e	distraído,	um	homenzarrão
levantou-me	no	ar,	gritando	para	os	outros	coisas	que	eu	não	conseguia	entender.
A	multidão	aplaudiu,	e	fui	rapidamente	passado	de	mão	em	mão.	Antes	que	me
desse	conta	do	que	acontecia,	vi-me	na	água,	agarrado	à	bexiga	natatória,	que,
meio	afundada	e	empurrada	pelo	chute	de	um	dos	homens,	afastou-se	da
margem.	Com	braços	e	pernas,	eu	me	agarrava	freneticamente	ao	balão
flutuante,	submergindo	a	todo	momento	na	água	fria	e	lamacenta	do	rio,	gritando
por	socorro.
Mas	derivava	rapidamente;	via	as	pessoas	correndo	na	margem,	alguns	atirando
pedras	que	caíam	a	meu	lado	espirrando	água,	uma	delas	quase	atingindo	a
bexiga.	A	correnteza	me	levava	para	o	meio	do	rio.	As	margens	pareciam
inatingíveis.	A	multidão	desapareceu	atrás	de	um	morro.
Uma	brisa	fria,	nunca	percebida	em	terra,	encrespava	a	superfície	da	água.
Docemente,	eu	deslizava	rio	abaixo.
Numerosas	vezes	a	bexiga	ameaçou	afundar,	tangida	pelas	marolas.	Mas	logo
voltava	a	boiar,	navegando	lenta	e	majestosamente.	De	súbito,	fui	tragado	por
um	redemoinho.
A	bexiga	girava	num	torvelinho,	mergulhando,	sem	sair	do	lugar.
Balancei	o	corpo,	tentando	com	meu	próprio	movimento	arrancá-la	dali.
Aterrorizava-me	a	idéia	de	passar	a	noite	girando.	Se	a	bexiga	estourasse	eu
morreria,	pois	não	sabia	nadar.
Aos	poucos	o	sol	se	punha.	A	cada	volta	da	bexiga	os	últimos	raios	ofuscavam-
me	os	olhos,	os	reflexos	cintilavam	na	superfície	turbulenta.	Sentia-me
enregelado.	O	vento	aumentava.	A	bexiga,	atraída	por	novos	repuxos,	escapou
ao	redemoinho.
Eu	estava	a	muitos	quilômetros	da	aldeia	de	Olga.	A	correnteza	me	arrastava
para	uma	prainha	submersa	em	sombras	profundas.	Aos	poucos	comecei	a
distinguir	a	margem	pantanosa,	os	juncos	ondulantes,	os	ninhos	dos	patos
adormecidos.	A	bexiga	aproximou-se	lentamente	através	dos	tufos	de	vegetação.
Pernilongos	voavam	nervosos	ao	meu	redor.	Os	cálices	amarelos	dos	nenúfares
farfa-lhavam,	uma	rã	assustada	pulou	na	água	rasa.	Súbito,	um	caniço	furou	a
bexiga,	e	eu	pisei	no	fundo	esponjoso.
Tudo	estava	parado.	Vozes	longínquas,	de	gente	ou	de	animais,	vinham	dos
bosques	de	bétulas	e	dos	alagadiços	vizinhos.	Arrepiado,	torcia-me	de	cãibras.
Por	mais	atenção	que	prestasse,	nada	havia	além	do	silêncio.
	
III
Assustava-me	a	solidão.	Mas	lembrei-me	das	duas	coisas	que	Olga	considerava
básicas	para	sobreviver	sem	ajuda	de	ninguém.	O	conhecimento	de	plantas,
animais,	venenos	e	ervas	medicinais;	a	posse	de	fogo,	ou	de	um	“cometa”.	O
primeiro	era	mais	difícil	de	obter,	pois	requeria	grande	experiência.	Mas	o
segundo	consistia	apenas	numa	lata	de	conserva,	aberta	numa	extremidade	e
cheia	de	furos	de	pregos	nos	lados,	à	qual	se	amarrava	uma	alça	de	arame	para
poder	balançá-la	quer	como	um	laço,	quer	como	um	incensório.
O	fogãozinho	portátil	servia	como	uma	fonte	constante	de	calor	e	como	cozinha
em	miniatura;	bastava	enchê-lo	de	qualquer	combustível,	mantendo	sempre
algumas	brasas	no	fundo.	Rodando	a	lata	energicamente,	o	ar	entrava	pelos
buracos,	agindo	como	um	fole,	enquanto	a	força	centrífuga	mantinha	seguro	o
combustível.	A	escolha	apropriada	do	combustível	e	o	apropriado	movimento
rotativo	permitiam	a	obtenção	de	temperaturas	diversas	para	vários	fins,	e	a
alimentação	constante	do	cometa	garantia	sua	duração.	Para	cozinhar	batatas,
nabos	ou	peixe	bastava	o	fogo	brando	de	turfa	e	folhas	úmidas,	enquanto	para
assar	passarinhos	era	necessária	a	chama	viva	de	palha	e	gravetos	secos,	e	nada
era	melhor	do	que	fogo	de	casca	de	batatas	para	preparar	os	ovos	tirados	dos
ninhos.
Para	manter	o	fogo	durante	a	noite,	devia-se	encher	o	cometa	de	musgos	úmidos,
colhidos	nos	troncos	das	mais	altas	árvores.	Queimavam	lentamente,	assustando
com	sua	fumaça	cobras	e	insetos;	em	caso	de	perigo,	bastavam	algumas	rodadas
no	ar	para	acender	um	fogo	chamejante.	Em	dias	de	neve,	o	cometa,	alimentado
freqüentemente	com	casca	de	árvore	ou	madeiras	secas	e	resinosas,	exigia
constantes	e	vigorosas	rodadas.	Em	dias	quentes,	secos	ou	com	vento	quase	não
era	preciso	sacudir	o	cometa,	mas	seu	fogo	podia	ser	abrandado	acrescentando-
se-lhe	capim	fresco,	ou	borrifando	as	brasas	com	água.
O	cometa	constituía	também	valiosa	proteção	contra	cães	e	pessoas.	Mesmo	os
cães	mais	ferozes	paravam	imediatamente	diante	daquele	objeto	ondeante	cujas
centelhas	ameaçavam	incendiar-lhe	o	pêlo,	e	nem	mesmo	o	mais	corajoso	dos
homens	arriscava-se	a	perder	a	vista	ou	a	ter	o	rosto	desfigurado	pelo	fogo.
Armado	das	brasas	de	um	cometa,	qualquer	homem	tornava-se	uma	fortaleza,
vencível	apenas	quando	atacado	com	lanças	ou	apedrejado.
Por	isso,	deixar	que	o	cometa	se	apagasse	por	falta	de	cuidado,	excesso	de	sono
ou	chuvas	súbitas,	era	muito	perigoso.	Havia	poucos	fósforos	naquela	região,
caros	e	de	difícil	obtenção,	e	quem	os	tinha	rachava	cada	palito	ao	meio	para
economizá-los.
Assim,	mantinha-se	o	fogo	sempre	aceso	nos	fogões	e	nos	fornos.	Antes	de	se
recolher	para	a	noite,	as	mulheres	empilhavam	achas	sobre	as	brasas	para	ter
certeza	de	que	continuariam	ardendo	até	de	manhã.	E	ao	amanhecer	faziam	o
sinal-da-cruz	antes	de	reavivá-las.	O	fogo,	diziam,	não	é	amigo	natural	do
homem,	por	isso	deve-se-lhe	satisfazer	os	caprichos.	Acreditavam	também	que
partilhar	o	fogo	ou	mesmo	emprestá-lo	podia	acarretar	somente	desgraças;	os
que	pedem	fogo	emprestado	na	terra	talvez	o	devolvam	no	inferno.	Por	outro
lado,	levar	o	fogo	para	fora	de	casa	secava	o	leite	das	vacas	e	as	tornava	estéreis,
enquanto	deixar	apagar	um	fogo	podia	ter	sinistras	conseqüências	em	caso	de
parto.
Assim	como	o	fogo	era	essencial	para	o	cometa,	este	era	essencial	para	a	vida.
Indispensável	para	entrar	nas	aldeias	sempre	protegidas	por	bandos	de	cães
ferozes,	para	evitar	o	congelamento	no	inverno	e	para	garantir	comida	quente.
Todos	carregavam	sacolas	nas	costas	ou	presas	no	cinto	para	a	coleta	de
combustíveis.	De	dia,	os	camponeses	que	trabalhavam	no	campo	assavam	em
seus	cometas	legumes,	peixes	e	pássaros;	de	noite,	homens	e	garotos	a	caminho
de	casa	agitavam-nos	com	força,	deixando	que	brilhassem	no	escuro,	vermelhos
discos	chamejantes.	O	nome	lhes	vinha	dos	círculos	amplos	que	a	cauda
luminosa	desenhava	no	céu;	pareciam	realmente	cometas,	aqueles	cuja	aparição,
segundo	Olga,	anunciava	guerras,	pragas	ou	morte.
Difícil	era	obter	uma	lata	para	confeccioná-lo.	Encontravam-se	somente	ao
longo	de	estradas	de	ferro	distantes	por	onde	passavam	os	comboios	militares,	e
os	habitantes	locais	evitavam	que	outros	as	levassem,	recolhendo-as	todas	e
cobrando	por	elas	preços	extorsivos.
As	comunidades	de	ambos	os	lados	da	estrada	lutavam	pela	posse	das	latas,
enviando	diariamente	grupos	de	homens	e	garotos	equipados	com	sacos	e
armados	de	machados,	destinados	a	desencorajar	as	equipes	rivais.
Foi	Olga	quem	me	deu	meu	primeiro	cometa,	recebido	em	pagamento	por	tratar
de	um	doente.	Eu	cuidava	dele	com	carinho,	martelando	os	buracos	que
ameaçavam	aumentar,	limando	as	arestas,	polindo	o	metal.	Temeroso	de	que	me
roubassem	meu	único	bem,	enrolei	no	pulso	parte	do	arame	da	empunhadura,
jamais	me	separando	dele.	O	cintilar	do	fogo	me	enchia	de	orgulho	e	segurança,
e	eu	nunca	perdia	oportunidade	de	encher	minha	sacola	com	os	combustíveis
apropriados.	Quando,	enviado	por	Olga	em	busca	de	ervas	medicinais,
atravessava	a	floresta,	bastava	a	presença	do	cometa	para	que	me	sentisse
protegido.
Mas	Olga	estava	distante,	e	eu	não	tinha	meu	cometa.
Tiritava	de	frio	e	de	medo.	Os	pés	sangravam,cortados	pelas	arestas	afiadas	das
pedras.	Arranquei	das	pernas	as	sanguessugas	inchadas	de	meu	próprio	sangue.
Sombras	longas	e	sinuosas	envolviam	o	rio,	sons	abafados	escalavam	as	margens
tenebrosas.	No	estalar	dos	ramos	das	faias,	no	gemer	dos	chorões	que	arrastavam
suas	folhas	sobre	a	água,	eu	reconhecia	as	vozes	dos	seres	misteriosos	de	que
Olga	falava.	Capazes	de	adquirir	formas	estranhas		de	corpo	ondulante	e	cara
pontuda,	como	serpentes	com	cabeça	de	morcego	,	enroscavam-se	nas	pernas
dos	homens,	sugando-lhes	a	vontade	e	obrigando-os	a	deitarem-se	em	busca	de
um	sono	eterno.	Eu	já	tinha	visto	dessas	serpentes	nos	estábulos,	aterrorizando	o
gado.	Dizia-se	que	sugavam	o	leite	das	vacas,	ou,	pior	ainda,	rastejavam	para
dentro	do	animal,	onde	devoravam	todos	os	alimentos	até	matá-los	de	fome.
Correndo	através	de	juncos	e	ervas	cortantes,	afastei-me	do	rio,	varei	a	barreira
de	arbustos,	rastejando	sob	impenetráveis	camadas	de	galhos	entrelaçados,
ameaçado	a	todo	instante	de	cair	sobre	espinheiros	e	pedras	aguçadas.
Uma	vaca	mugiu	ao	longe.	Rapidamente	subi	numa	árvore	e,	esquadrinhando	o
campo,	descobri	a	luz	dos	cometas.	Os	homens	voltavam	dos	pastos.	Cauteloso,
segui	em	sua	direção,	atento	aos	movimentos	do	cão	que	a	vegetação	rasteira
transmitia.
As	vozes	se	aproximavam.	Havia	certamente	um	caminho	além	da	espessa
parede	de	folhagens.	Ouvia	o	bufar	das	vacas	e	as	vozes	dos	jovens	pastores.	De
vez	em	quando	as	centelhas	de	seus	cometas	acendiam-se	no	céu	escuro,	para
logo	desaparecer	rodopiando.	Eu	os	acompanhava	através	do	mato,	decidido	a
atacá-los	e	roubar	um	cometa.
Diversas	vezes	o	cão	que	os	acompanhava,	percebendo	meu	cheiro,	investiu
contra	o	mato,	mas	visivelmente	não	se	sentia	seguro	na	escuridão;	bastava	que
eu	assoviasse	como	uma	cobra	para	que	voltasse	à	trilha,	rosnando	de	vez	em
quando.	Os	pastores,	pressentindo	o	perigo,	ficaram	silenciosos,	atentos	aos	sons
da	floresta.
Aproximei-me	da	trilha.	As	vacas	quase	roçavam	as	ancas	nos	galhos	que	me
escondiam.	Estavam	tão	perto	que	sentia	seu	calor.	O	cachorro	tentou	outro
ataque,	mas	o	assovio	o	rechaçou.
Quando	as	vacas	se	aproximaram	ainda	mais,	fustiguei	duas	delas	com	uma
vareta.	Mugindo,	partiram	a	trote	seguidas	pelo	cão.	Então	lancei	um	grito
aterrador	e	golpeei	no	rosto	o	pastor	mais	próximo.	Antes	que	se	desse	conta	do
que	estava	acontecendo,	agarrei	seu	cometa	e	voltei	para	o	mato.
Os	outros,	assustados	pelo	grito	e	pela	fuga	das	vacas,	saíram	correndo	em
direção	à	aldeia,	arrastando	consigo	o	companheiro	atordoado.	Eu	penetrei	na
profundeza	da	floresta,	abafando	o	fogo	com	folhas	secas.
Somente	quando	me	vi	bastante	afastado,	soprei	no	cometa.
Sua	luz	revelou	bandos	de	insetos	escondidos	na	escuridão.
Vi	bruxas	debruçadas	nas	árvores.	Olhavam-me	tentando	confundir	meus	passos.
Ouvia	distintamente	o	murmurar	das	almas	penadas	saídas	dos	cadáveres	dos
pecadores.	Na	luz	avermelhada	de	meu	cometa	via	as	árvores	dobrando-se	sobre
mim.	Ouvia	os	lamentos	e	o	mover-se	de	espíritos	e	fantasmas	tentando	escapar
de	seus	caixões.
Aqui	e	acolá	percebia	machadadas	nos	troncos.	Lembrei-me	de	que	Olga	havia
contado	que	os	camponeses	entalhavam	as	árvores	para	lançar	maldições	contra
seus	inimigos.
Repetindo	o	nome	da	pessoa	odiada	e	visualizando	seu	rosto	enquanto	a	lâmina
busca	a	seiva	da	árvore,	é	certo	que	doença	e	morte	se	abaterão	sobre	o	inimigo.
Havia	muitas	cicatrizes	nos	troncos	ao	meu	redor.	Os	moradores	destas
redondezas	certamente	tinham	muitos	inimigos	e	grande	era	seu	trabalho	no	afã
de	abatê-los.
Assustado,	eu	rodava	o	cometa	violentamente.	Vi	filas	intermináveis	de	árvores
curvando-se	obsequiosas	em	minha	direção,	convidando-me	a	penetrar	cada	vez
mais	profundamente.
Mais	cedo	ou	mais	tarde	eu	teria	que	atender	a	seu	convite,	pois	queria	manter-
me	afastado	das	aldeias	ribeirinhas.
Prossegui,	firmemente	convencido	de	que	os	encan-tamentos	de	Olga	me
conduziriam	até	ela.	Não	dizia	sempre	que	se	eu	tentasse	fugir	encantaria	meus
pés,	obrigando-os	a	me	trazer	de	volta?	Não	tinha	nada	a	temer.	Forças
desconhecidas,	que	me	habitavam	ou	me	seguiam,	levavam-me	inapelavelmente
para	Olga.
	
IV
Morava	agora	com	o	moleiro,	a	quem	os	aldeões	tinham	apelidado	Ciumento.
Era	ainda	mais	taciturno	que	os	outros	habitantes	do	lugar.	Mesmo	quando	os
vizinhos	vinham	visitá-lo,	ficava	quieto	bebericando	vodca,	murmurando	uma
palavra	de	vez	em	quando,	perdido	em	seus	próprios	pensamentos	ou	olhando
fixamente	uma	mosca	morta	grudada	na	parede.
Abandonava	seus	devaneios	apenas	quando	a	mulher	entrava	no	aposento.
Igualmente	quieta	e	taciturna,	sentava-se	sempre	atrás	dele,	baixando	o	olhar
modestamente	toda	vez	que	outros	homens	entravam	e	a	olhavam	furtivos.
Eu	dormia	no	sótão,	bem	em	cima	do-quarto	deles.	À	noite	era	acordado	por
suas	brigas.	O	moleiro	suspeitava	que	a	mulher	flertasse	com	um	jovem
ajudante,	mostrando-lhe	o	corpo	cheio	de	lascívia	nos	campos	e	no	moinho.	A
mulher	não	negava	as	acusações,	mas	continuava	sentada	e	quieta.
Às	vezes	as	brigas	ficavam	mais	violentas.	O	moleiro,	furioso,	acendia	as	velas,
calçava	as	botas	e	batia	na	mulher.
Através	de	uma	fresta	nas	tábuas	do	chão,	eu	espiava	o	moleiro,	que	armado	de
chicote	golpeava	o	corpo	nu	da	mulher.	A	mulher	tentava	se	proteger	com	um
edredom	de	plumas	arrancado	à	cama,	mas	o	homem	o	arrancava,	atirando-o
contra	a	porta,	e,	de	pé	diante	dela	com	as	pernas	afastadas,	continuava
chicoteando	o	corpo	roliço.	Após	cada	golpe,	vergões	de	sangue	apareciam	na
pele	delicada.
O	moleiro	era	impiedoso.	Com	um	gesto	amplo	do	braço	baixava	a	língua	de
couro	nas	nádegas	e	nas	coxas,	lanhava	os	seios	e	o	pescoço,	feria	os	ombros	e
as	pernas.	A	mulher,	enfraquecida,	gemia	no	chão.	Depois	rastejava	para	as
pernas	do	marido,	implorando	perdão.
Finalmente	o	moleiro	jogava	fora	o	chicote	e,	após	soprar	as	velas,	entrava	na
cama.	A	mulher	continuava	gemendo.	No	dia	seguinte	encobria	as	feridas,
movia-se	com	dificuldade	e	enxugava	as	lágrimas	do	rosto	com	as	mãos
machucadas.
Havia,	na	casa,	outro	morador:	uma	bela	gata	malhada.	Um	dia	foi	tomada	por
estranho	delírio.	Soltando	pequenos	miados	deslizava	ao	longo	das	paredes
sinuosas	como	uma	serpente,	meneava	o	corpo	e	rastejava,	esfregando-se	na	saia
da	mulher	do	moleiro.	Seus	gemidos	roucos,	seu	ronronar	foram	deixando	todos
enervados.	À	noitinha	a	gata	gritava	enlouquecida,	o	nariz	ardendo	de	febre,	a
cauda	batendo	nos	flancos.
O	moleiro	trancou	a	fêmea	ardente	no	celeiro	e,	depois	de	avisar	à	mulher	que
traria	o	ajudante	para	jantar,	saiu	em	direção	ao	moinho.	Sem	dizer	palavra,	a
mulher	começou	a	aprontar	a	comida	e	a	pôr	a	mesa.
O	ajudante,	um	órfão,	tinha	vindo	recentemente	trabalhar	com	o	moleiro.	Era	um
rapaz	alto	e	taciturno,	de	cabelos	louros	sempre	caídos	sobre	os	olhos.	O	moleiro
sabia	o	que	toda	a	aldeia	comentava.	Diziam	que	sua	mulher	mudava	quando	via
o	rapaz,	que,	sem	abandonar	com	o	olhar	os	seus	olhos	azuis	e	indiferente	ao
risco	de	ser	descoberta	pelo	marido,	erguia	com	uma	mão	a	saia	acima	dos
joelhos,	enquanto	com	a	outra	abaixava	o	corpete	do	vestido	desnudando	os
seios	palpitantes.
O	moleiro	voltou	acompanhado	pelo	rapaz.	No	saco	que	trazia	ao	ombro	vinha
um	gato	emprestado	pelo	vizinho.	Era	um	gatarrão	de	enorme	cabeça	e	cauda
possante.	A	gata,	trancada	no	celeiro,	miava	lasciva.	Solta	pelo	moleiro,	pulou
no	meio	do	quarto.	Os	dois	gatos	começaram	a	andar	um	ao	redor	do	outro,
desconfiados,	ofegantes,	aproximando-se	lentamente.
A	mulher	do	moleiro	serviu	o	jantar.	Comiam	em	silêncio,	o	moleiro	sentado	ao
meio,	a	mulher	de	um	lado	e	o	ajudante	de	outro.	Eu	jantava	acocorado	perto	do
fogão,	admirado	com	o	apetite	dos	dois	homens,	em	cujas	gargantas
desapareciam	nacos	de	pão	e	carne	tragados	como	avelãs	em	meio	a	fartas
goladas	de	vodca.
Somente	a	mulher	comia	devagar.	E,	a	cada	vez	que	baixava	a	cabeça	sobre	o
prato,	o	ajudante	envolvia	com	um	olhar	rápido	seu	busto	farto.
Subitamente,	no	meio	do	quarto,	a	gata	arqueou	o	dorso,	arreganhou	dentes	e
unhas	e	pulou	sobre	o	gato.	Este	estacouenrijecido,	lançando	jatos	de	saliva	nos
olhos	inflamados	da	fêmea,	e	recuou.	A	gata,	andando	ao	seu	redor,	aproximava-
se	e	afastava-se	em	pequenos	saltos,	a	arranhar-lhe	o	focinho	com	a	pata.	O	gato
caminhou	para	ela	cauteloso,	sorvendo	seu	cheiro	intoxicante.	Ergueu	o	rabo	e
tentou	chegar-se	por	detrás.	Mas	a	fêmea	não	deixava;	achatada	contra	o	chão,
rodava	sobre	si	mesma,	toda	unhas	e	dentes.
Fascinados,	o	moleiro	e	os	outros	dois	olhavam	a	cena	em	silêncio,	comendo.	O
rosto	da	mulher	enrubesceu,	o	sangue	pulsava-lhe	no	pescoço.	O	ajudante
levantou	os	olhos	para	tornar	a	baixá-los	imediatamente;	o	suor	escorria-lhe	pelo
cabelo,	que	ele	afastava	sem	parar	da	testa	escaldante.	Só	o	moleiro	continuava
jantando	calmamente,	olhando	os	gatos,	relanceando	um	olhar	ora	para	a	mulher
ora	para	o	convidado.
De	repente,	o	gato	decidiu-se.	Seus	movimentos	tornaram-se	mais	leves.
Avançava.	Ela	se	mexeu,	ameaçando	recuar,	mas	o	macho,	de	um	pulo,
caiu’sobre	a	gata.	Afundou-lhe	os	dentes	no	pescoço.	Intento	firme,	penetrou-a.
Só	então,	saciado,	exausto,	afrouxou	a	presa.	A	gata,	pregada	ao	chão,	soltou	um
grito	lancinante	e,	num	salto,	libertou-se	dele.
Pulou	para	o	fogão	apagado	remexendo-se	como	um	peixe,	esfregando	as	patas
no	pescoço,	roçando	a	cabeça	contra	a	parede	ainda	morna.
A	mulher	do	moleiro	e	o	ajudante	pararam	de	comer.
Olhavam-se	fixamente,	arfavam	com	as	bocas	cheias	de	comida.	Respirando
fundo,	sem	se	dar	conta	do	que	fazia,	a	mulher	apertou	os	seios	com	as	mãos.	O
ajudante	olhava	alternadamente	para	ela	e	para	os	gatos;	passou	a	língua	nos
lábios	secos,	engoliu	a	custo	a	comida.
O	moleiro	limpou	o	prato,	reclinou	a	cabeça	para	trás	e	bebeu	de	um	gole	seu
copo	de	vodca.	Apesar	de	bêbado,	levantou-se	brandindo	a	colher,	e,	batendo
com	ela	sobre	a	mesa,	aproximou-se	do	rapaz,	que	o	olhava	enfeitiçado.	A
mulher	recolheu	a	saia	e	começou	a	remexer	no	fogão.
O	moleiro	inclinou-se	para	o	ajudante,	murmurando-lhe	alguma	coisa	ao	ouvido.
Como	se	espetado	por	uma	faca,	o	rapaz	ergueu-se,	negando.	Desta	vez	em	voz
alta,	o	moleiro	perguntou-lhe	se	desejava	sua	mulher.	O	rapaz	enrubesceu	e	não
deu	resposta.	A	mulher	do	moleiro,	ofegante,	continuava	limpando	as	panelas.
O	moleiro	apontou	para	o	gato	e,	novamente,	murmurou	algo	para	o	rapaz.	Este
tentou	afastar-se	da	mesa	para	deixar	o	quarto.	O	moleiro	avançou	com	a	colher
em	punho,	e,	antes	que	o	ajudante	percebesse	o	que	acontecia,	empurrou-o
contra	a	parede,	esmagando-lhe	a	garganta	com	o	braço,	enquanto	o	seu	joelho
mergulhava-lhe	no	estômago.	O
rapaz	estava	imobilizado.	Em	pânico,	arquejante,	murmurou	alguma	coisa
ininteligível.
A	mulher	precipitou-se	para	junto	do	marido,	implorando	e	soluçando.	Do	alto
do	fogão	a	gata,	subitamente	desperta,	olhou	a	cena;	o	gato,	assustado,	pulou
para	cima	da	mesa.
Com	um	pontapé	o	moleiro	afastou	a	mulher,	e	num	gesto	rápido,	como	o	das
mulheres	ao	limpar	batatas,	mergulhou	a	colher	num	dos	olhos	do	rapaz	e	rodou-
a	na	órbita.
O	olho	saltou-lhe	do	rosto	como	uma	gema	de	ovo,	rolou	pela	mão	do	moleiro	e
caiu	no	chão.	O	ajudante	gritava	e	guinchava,	mas	o	moleiro	o	mantinha	preso
contra	a	parede.
A	colher	ensangüentada	mergulhou	no	outro	olho,	que	saltou	ainda	mais
depressa.	Pareceu	ficar	por	um	momento	indeciso,	depois	rolou	pela	camisa	até	o
chão.
Tudo	tinha	acontecido	num	minuto.	Eu	não	conseguia	acreditar	no	que	tinha
visto.	Uma	esperança	me	atravessou	a	mente,	de	que	os	olhos	arrancados
pudessem	ser	recolocados	no	lugar.	Gritando,	a	mulher	do	moleiro	correu	para	o
outro	quarto	e	acordou	as	crianças,	que	começaram	também	a	gritar
aterrorizadas.	O	ajudante	lançou	um	uivo	pungente,	depois,	em	silêncio,	cobriu	o
rosto	com	as	mãos.	Filetes	de	sangue	jorraram	por	entre	os	seus	dedos,
escorreram-lhe	pelos	braços,	pingando	lentamente	na	camisa	e	nas	calças.
O	moleiro,	ainda	enraivecido,	empurrou-o	para	a	janela,	como	se	esquecido	de
que	o	outro	estava	cego.	O	rapaz	tropeçou,	gritou,	quase	caiu	sobre	a	mesa.	O
moleiro	agarrou-o	pelos	ombros	e,	abrindo	a	porta	com	o	pé,	lançou-o	lá	fora.	O
rapaz	tornou	a	gritar,	vacilou	no	umbral,	e	caiu	no	pátio.	Os	cães,	sem	saber	o
que	tinha	acontecido,	começaram	a	latir.
Os	olhos	continuavam	no	chão.	Caminhei	ao	seu	redor,	sempre	ao	alcance	de	seu
olhar.	Timidamente	os	gatos	se	aproximaram	do	centro	do	quarto	e	começaram	a
brincar	com	eles	como	se	fossem	novelos;	à	luz	do	lampião	de	querosene,	suas
próprias	pupilas	tornaram-se	estreitas	como	fendas.	Os	gatos	cheiravam,
lambiam,	rolavam	os	olhos,	que	passavam	um	para	o	outro,	empurrando-os
delicadamente,	com	as	patas	macias.	Parecia-me	agora	que	os	olhos	me	olhavam
de	todos	os	cantos	do	quarto,	como	se	donos	de	uma	nova	vida	independente.
Eu	os	observava	fascinado.	Não	fora	a	presença	do	moleiro,	os	teria	pegado	para
mim.	Certamente	ainda	viam.	Eu	os	guardaria	no	bolso,	e	os	usaria	quando
preciso,	por	cima	dos	meus,	passando	a	ver	o	dobro	ou	quem	sabe	até	mais.
Talvez	os	pudesse	prender	na	nuca,	para	que	me	dissessem,	não	sabia	bem	como,
o	que	se	passava	às	minhas	costas.	Ou,	melhor	ainda,	poderia	deixar	os	olhos
nalgum	lugar	e	eles	me	contariam	depois	o	que	tinha	acontecido	em	minha
ausência.
Talvez	os	olhos	não	quisessem	servir	a	ninguém.	Podiam	facilmente	fugir	dos
gatos	e	rolar	porta	afora,	vagueando	em	seguida	pelos	campos,	lagos	e	florestas,
olhando	tudo,	livres	como	pássaros	fora	da	gaiola.	Libertos	do	corpo,	não
morreriam	mais,	e	assim	pequenos	poderiam	se	esconder	em	qualquer	lugar,
espionando	as	pessoas.	Excitado,	decidi	fechar	a	porta	e	capturar	os	olhos.
O	moleiro,	evidentemente	aborrecido	com	a	brincadeira	dos	gatos,	chutou	os
animais	e	esmagou	os	olhos	sob	as	botas	pesadas.	Ouviu-se	um	estalo.	Um
espelho	maravilhoso,	capaz	de	refletir	o	mundo	inteiro,	tinha	sido	partido.	Ficava
no	chão	apenas	uma	espécie	de	geléia,	e	em	mim	o	terrível	sentimento	de	perda.
Sem	me	dar	atenção,	o	moleiro	sentou-se,	escorregando	aos	poucos	à	medida
que	adormecia.	Levantei-me	silenciosamente,	peguei	a	colher	ensangüentada	e
comecei	a	juntar	a	louça.	Era	minha	obrigação	arrumar	e	varrer	o	quarto.
Mantinha-me	afastado	dos	olhos,	por	não	saber	o	que	fazer	com	eles,	mas	afinal,
sem	olhar,	varri-os	rapidamente	para	dentro	da	pá	e	joguei-os	no	fogão.
De	manhã,	acordei	cedo.	Ouvia	lá	embaixo	o	ressonar	do	moleiro	e	da	mulher.
Com	cuidado	preparei	uma	sacola	de	comida,	enchi	o	cometa	de	brasas	e,
distraindo	o	cachorro	com	uin	pedaço	de	salsicha,	abandonei	a	casa.
Encostado	na	parede	do	moinho,	perto	do	estábulo,	jazia	o	ajudante.	A	princípio
pensei	em	passar	por	ele	rapidamente,	mas	logo	lembrei-me	de	que	ele	não
enxergava.	Estava	ainda	sob	o	efeito	do	choque;	o	rosto	coberto	com	as	mãos,
chorava	e	gemia,	todo	ensangüentado.	Tive	vontade	de	dizer	alguma	coisa,	mas
refreei-me,	com	medo	de	que	me	perguntasse	o	que	havia	sido	feito	de	seus
olhos,	obrigando-me	a	contar	que	o	moleiro	os	tinha	esmagado.	Sentia	muita
pena	dele.
Perguntava	a	mim	mesmo	se	a	perda	da	visão	implicaria	também	o	esquecimento
de	tudo	o	que	havia	sido	visto	antes.	Se	assim	fosse,	o	homem	não	enxergaria
realmente	mais,	nem	em	sonho.	Caso	contrário,	porém,	mantida	a	visão	da
memória,	a	cegueira	não	seria	assim	tão	ruim.	O
mundo	parecia-me	quase	igual	em	toda	parte,	e	apesar	de	as	pessoas	serem
diferentes	umas	das	outras,	como	os	animais	e	as	árvores,	não	deveria	ser	difícil
saber-lhes	as	feições	depois	de	tê-las	visto	durante	tantos	anos.	Eu	tinha	vivido
apenas	sete	anos,	mas	já	lembrava	muitas	coisas,	e	quando	fechava	os	olhos
reencontrava,	ainda	mais	vívidos,	inúmeros	detalhes.	Quem	sabe	sem	os	olhos	o
ajudante	talvez	descobrisse	um	mundo	novo	e	fascinante.
Ouvi	sons	vindos	da	aldeia.	Temendo	que	o	moleiro	acordasse,	prossegui	meu
caminho,	tocando	os	olhos	de	vez	em	quando.	Caminhava	com	cuidado,	pois
sabia	agora	que	os	olhos	têm	raízes	delicadas.	Quando	a	gente	se	abaixa,	pendem
como	maçãs	no	galho,	e	podem	cair	facilmente.
Resolvi	pular	as	cercas	de	cabeça	erguida;	mas,	na	primeira	tentativa,	tropecei	e
caí.	Assustado,	levei	os	dedos	aos	olhospara	certificar-me	de	que	ainda	estavam
no	lugar.	Depois	de	perceber	que	se	abriam	e	fechavam	corretamente,
contemplei	feliz	a	revoada	de	perdizes	e	tordos.	Voavam	ligeiros,	mas	eu	os
acompanhava	com	o	olhar	e	os	precedia	quando	se	escondiam	sob	as	nuvens,
menores	do	que	gotas	de	chuva.	Prometi	a	mim	mesmo	lembrar	tudo	o	que	visse.
Assim,	se	me	arrancassem	os	olhos,	guardaria	para	sempre	a	memória	de	todas
as	minhas	imagens.
	
V
Meu	trabalho	era	colocar	armadilhas	para	Lekh,	que	vendia	pássaros	em	várias
aldeias.	Era	insuperável	na	profissão.
Costumava	trabalhar	sozinho,	e	só	me	empregou	por	eu	ser	muito	pequeno,
muito	magro	e	muito	leve,	o	que	me	permitia	colocar	armadilhas	lá	onde	Lekh
não	alcançava:	galhos	mais	frágeis,	densos	emaranhados	de	cardos	e	urtigas,
ilhotas	alagadiças	de	brejos	e	pântanos.
Lekh	não	tinha	família.	Sua	cabana	vivia	cheia	de	pássaros	de	todas	as
qualidades,	do	modesto	pardal	à	sábia	coruja.	Os	camponeses	trocavam	os
pássaros	de	Lekh	por	comida,	de	modo	que	ele	não	precisava	preocupar-se	com
o	essencial:	leite,	manteiga,	coalhada,	queijo,	pão,	salsichas,	vodca,	frutas	e	até
mesmo	roupas.	Tudo	isso	ele	trazia	dos	povoados	quando	levava	seus	pássaros
engaiolados,	gabando-lhes	a	beleza	e	as	qualidades	canoras.
Lekh	tinha	o	rosto	sardento	e	cheio	de	espinhas.	Os	camponeses	garantiam	ser
essa	a	marca	dos	que	roubam	ovos	de	andorinha	no	ninho.	Para	Lekh,	isso
ocorrera	porque	cuspira	descuidadamente	no	fogo	durante	a	sua	juventude,
dizendo	que	seu	pai	era	um	escrivão	de	aldeia	que	queria	fazer	dele	um	padre.
Mas	Lekh	tinha	a	vocação	da	floresta.	Estudava	a	vida	dos	pássaros	e	lhes
invejava	a	capacidade	de	voar.	Um	dia	fugiu	da	casa	de	seu	pai	e	como	um
pássaro	selvagem	começou	a	errar	de	aldeia	em	aldeia,	de	floresta	em	floresta.
Aprisionou	seus	primeiros	pássaros.
Observava	os	hábitos	surpreendentes	da	codorna	e	da	cotovia,,	sabia	imitar	o
chamado	alegre	do	cuco,	o	grito	rouco	da	gralha,	o	pio	plangente	da	coruja.
Conhecia	o	ritual	amoroso	do	pisco	chilreiro,	a	fúria	ciumenta	da	galinha-d’água
macho	rodeando	o	ninho	abandonado	pela	fêmea;	e	a	tristeza	da	andorinha	cujo
ninho	foi	destruído	em	brincadeiras	de	meninos.	Entendia	os	mistérios	do	vôo
do.
falcão,	e	admirava	a	paciência	da	cegonha	ao	pescar	rãs.	Ao	rouxinol,	invejava	o
canto.
Assim,	passou	sua	juventude	em	meio	às	árvores	e	às	aves.
Agora	estava	perdendo	o	cabelo,	os	dentes	apodreciam,	a	pele	do	rosto	pendia
enrugada,	e	começava	a	perder	a	vista.
Tinha-se	estabelecido	numa	cabana	construída	por	ele	mesmo,	da	qual	ocupava
apenas	um	canto,	reservando	o	resto	para	os	viveiros.	Foi	no	fundo	de	um	deles
que	conseguiu	um	lugar	para	mim.
Lekh	falava	freqüentemente	dos	pássaros.	Eu	o	ouvia	atento.
Aprendi	que	as	cegonhas	dão	sorte	às	casas	em	que	nidificam,	e	que	chegam
sempre	em	bandos	no	dia	de	São	José,	vindas	de	terras	longínquas.	Ficam	nas
aldeias	até	que	São	Bartolomeu	expulsa	as	rãs	para	dentro	da	lama.	Sem	ouvir-
lhes	o	coaxar	as	cegonhas	não	podem	caçá-las,	e	são	obrigadas	a	partir.
Meu	patrão	era	o	único	da	região	capaz	de	preparar-lhes	ninhos	com
antecedência,	e	elas	sempre	os	ocupavam.	Mas	Lekh	cobrava	caro,	e	só	os
fazendeiros	mais	ricos	podiam	dar-se	ao	luxo	de	encomendá-los.
Era	um	trabalho	que	exigia	atenção.	Em	primeiro	lugar	Lekh	colocava	no
telhado	escolhido	um	gradeado	que	servisse	de	estrutura,	sempre	ligeiramente
orientado	para	o	leste,	de	modo	a	evitar	os	ventos	dominantes.	Depois	disso
atravessava	grandes	pregos	na	ossatura	do	ninho,	para	que	as	cegonhas
trançassem	neles	os	gravetos	e	a	palha	que	elas	próprias	recolhiam.	Afinal,	antes
da	chegada	dos	bandos,	amarrava	no	meio	do	gradeado	um	pedaço	de	pano
vermelho,	para	chamar-lhes	a	atenção.
Dizia-se	que	ver	a	primeira	cegonha	da	primavera	em	vôo	trazia	boa	sorte,	mas
vê-la	pousando	era	presságio	de	um	ano	inteiro	de	infelicidade.	As	cegonhas
forneciam	também	elementos	para	saber	o	que	acontecia	na	aldeia,	pois	nunca
voltavam	a	um	telhado	sob	o	qual	algum	crime	tivesse	sido	cometido	em	sua
ausência,	nem	que	abrigasse	pecadores.
Eram	aves	estranhas.	Lekh	contou-me	como	havia	sido	bicado	por	uma	fêmea
que	chocava,	ao	tentar	corrigir	a	posição	do	ninho.	Vingou-se	colocando	um	ovo
de	pato	entre	os	da	cegonha.	Quando	os	ovos	se	abriram,	as	cegonhas	olharam
espantadas	sua	prole.	Um	dos	filhotes	era	aleijado,	de	pernas	curtas	e	bico	chato.
O	macho	acusou	a	fêmea	de	adultério	e	queria	matar	o	bastardo	imediatamente.
Mas	a	mãe	achou	que	o	nenê	devia	continuar	no	ninho.	As	discussões	familiares
continuaram	durante	alguns	dias.
Afinal	a	mãe	decidiu	salvar	o	filhote	por	sua	própria	conta,	e	o	fez	rolar	pelo	teto
de	palha,	de	onde	caiu	em	segurança	no	pátio.
Poderia	parecer	que	isso	encerrava	o	caso,	restaurando	a	paz	familiar,	mas
quando	chegou	a	hora	da	partida	todas	as	cegonhas	conferenciaram	como	de
costume.	No	debate	decidiu-se	que	a	fêmea	era	culpada	de	adultério	e	que	não
tinha	direito	a	acompanhar	o	marido.	A	sentença	foi	executada	duramente.	Antes
que	o	bando	levantasse	vôo	em	formação	perfeita,	a	esposa	infiel	foi	atacada
com	asas	e	bicos.	Caiu	morta	junto	ao	telhado	de	palha	no	qual	tinha	vivido	com
o	marido.	Ao	lado	do	corpo	os	camponeses	encontraram	um	patinho	feio	em
lágrimas.
As	andorinhas	também	tinham	vidas	interessantes.	Pássaros	favoritos	da	Virgem
Maria,	são	mensageiras	da	primavera	e	da	alegria.	No	outono	abandonam	os
homens,	para	pousar,	cansadas	e	sonolentas,	nos	caniços	de	pântanos	distantes.
Lekh	dizia	que	descansavam	no	caniço	até	que	este	se	quebrasse	sob	seu	peso,
mergulhando-as	na	água.
Acreditava-se	que	ficassem	ali	durante	todo	o	inverno,	protegidas	pela	capa
gelada.
O	chamado	do	cuco	podia	significar	muitas	coisas.	Quem	o	ouvisse	pela
primeira	vez	em	cada	estação	devia	sacudir	imediatamente	as	moedas	do	bolso	e
contar	todo	o	seu	dinheiro,	garantindo	assim	pelo	menos	a	mesma	quantidade
durante	todo	o	ano.	Se	ainda	não	houvesse	folhas	nas	árvores,	era	aconselhável
abandonar	qualquer	plano	de	furto,	pois	não	daria	certo.
Lekh	tinha	especial	carinho	por	cucos.	Considerava-os	seres	humanos,	nobres,
transformados	em	pássaros,	pedindo	inutilmente	a	Deus	que	lhes	restituísse	a
forma	humana.
Reconhecia	a	ligação	com	seus	antepassados	na	maneira	de	criarem	os	filhos.	Os
cucos,	dizia,	nunca	se	dedicam	à	educação	das	próprias	crias,	mas	contratam
lavandiscas	para	alimentá-los	e	criá-los,	enquanto	eles	continuam	voando	na
floresta	e	pedindo	ao	Senhor	que	os	transforme	novamente	em	cavalheiros.
Lekh	tinha	nojo	dos	morcegos,	meio	pássaros	e	meio	ratos.
Via-os	como	emissários	dos	maus	espíritos	em	busca	de	novas	vítimas,	capazes
de	se	agarrar	aos	cabelos	de	uma	pessoa,	infundindo-lhe	desejos	pecaminosos.
Entretanto,	até	mesmo	os	morcegos	tinham	sua	utilidade.	Certa	vez	Lekh
capturou	um	morcego	no	sótão,	com	uma	rede,	e	o	colocou	no	alto	de	um
formigueiro	ao	lado	da	casa.	No	dia	seguinte	restavam	apenas	ossos
descarnados.	Lekh	pegou	cuidadosamente	o	esqueleto,	retirando	dele	a	fúrcula,
que	passou	a	usar	pendurada	no	pescoço.	Após	pulverizar	o	resto	dos	ossos
misturou-os	a	um	copo	de	vodca	e	o	deu	de	beber	à	mulher	que	amava.	Isso,
disse,	aumentaria	seus	ímpetos	amorosos.
Lekh	me	ensinou	que	um	homem	deve	sempre	observar	os	pássaros	atentamente
e	tirar	conclusões	de	seu	comportamento.	Vê-los	voando	em	grande	número	e	de
diferentes	espécies	contra	o	céu	vermelho	do	entardecer	significa	que	maus
espíritos	à	procura	de	almas	danadas	cavalgam	suas	asas.	Quando	corvos	e
gralhas	se	juntam	num	campo,	pode-se	ter	certeza	de	que	a	reunião	é	promovida
por	um	demônio	que	tenta	incutir-lhes	ódio	pelos	outros	pássaros.	O	aparecer	de
corvos	brancos	de	longas	asas	anuncia	um	aguaceiro	e	patos	selvagens	em	vôo
rasante	durante	a	primavera	significam	um	verão	chuvoso	e	uma	colheita	pobre.
De	madrugada,	quando	os	pássaros	dormiam,	saíamos	para	surpreendê-los	nos
ninhos.	Lekh	caminhava	na	frente,	saltando	silencioso	por	cima	de	galhos	e
arbustos.	Eu	o	seguia.	Mais	tarde,	quando	a	luminosidade	do	dia	alcançava	até
mesmo	os	cantos	maisescuros	dos	campos	e	das	florestas,	recolhíamos	os
pássaros	aterrorizados	que	se	debatiam	nas	armadilhas	colocadas	por	nós	no	dia
anterior.
Lekh	os	levantava	com	cuidado,	quer	falando-lhes	carinhosamente,	quer
ameaçando-os	de	morte.	Em	seguida	os	colocava	numa	sacola	que	trazia	ao
ombro,	onde	lutavam	e	se	debatiam	até	perder	as	forças.	A	chegada	de	cada	novo
prisioneiro	reanimava	os	outros,	e	a	sacola	agitava-se	contra	as	costas	de	Lekh.
No	alto,	acima	de	nossas	cabeças,	os	parentes	e	amigos	da	vítima	voavam	em
círculos,	amaldiçoando-nos	com	seus	gritos	estridentes.	Lekh	então	erguia	o
olhar	por	sob	as	sobrancelhas	grisalhas,	insultan-do-os	por	sua	vez.	Se	insistiam,
depositava	a	sa	;ola	no	chão,	pegava	o	estilingue,	tomava	uma	pedra	pontiaguda
e,	fazendo	pontaria	cuidadosamente,	atirava-a	no	meio	do	bando.	Nunca	errava:
o	pássaro	morto	despencava	do	céu,	sem	que	Lekh	se	dignasse	sequer	a
examinar-lhe	o	corpo.
À	medida	que	a	manhã	avançava,	Lekh	apressava	o	passo	e	enxugava	o	suor	da
testa	com	redobrada	freqüência.
Aproximava-se	a	hora	mais	importante	de	seu	dia.	Uma	mulher	apelidada
Ludmilla,	a	Idiota,	o	esperava	nalguma	clareira	da	floresta	conhecida	somente
dos	dois.	Eu	trotava	orgulhoso	atrás	dele,	carregando	a	sacola	dos	pássaros.
A	floresta	tornava-se	densa	e	intransponível.	Os	troncos	das	faias,	lodosos,
manchados	como	couro	de	cobra,	erguiam-se	contra	as	nuvens.	As	tílias,	que	no
dizer	de	Lekh	tinham	assistido	ao	início	da	raça	humana,	surgiam	festonadas
pela	pátina	cinzenta	dos	musgos,	como	gigantescas	cotas	de	malha.	Os	carvalhos
estendiam	seus	galhos	como	pescoços	de	aves	famintas	em	busca	de	comida,
vedando	a	luz	do	sol,	mergulhando	em	sombra	pinheiros	e	choupos.
Lekh	parava	de	vez	em	quando	para	observar	rastos	deixados	nas	fendas	das
cortiças	apodrecidas,	estudar	os	nós	das	árvores,	os	bugalhos	cheios	de	buracos
escuros	em	cujo	fundo	via-se	cintilar	o	brancor	da	madeira	nua.	Atravessávamos
bosquetes	de	jovens	bétulas	em	brotamento,	que	vergavam	seus	galhos	flexíveis
e	delicados	ao	nosso	passar.
Bandos	de	pássaros	debruçados	nos	galhos	fugiam	em	revoada	ao	verem	a	nossa
aproximação	através	da	diáfana	cortina	de	folhagem.	Seus	gritos	misturavam-se
ao	zunir	das	abelhas,	que	enxameavam	ao	nosso	derredor	como	nuvem
cintilante.	Lekh	protegia	o	rosto	com	as	mãos,	abrigando-se	em	moitas	mais
densas,	enquanto	eu	o	acompanhava	sem	deixar	cair	nem	a	sacola	dos	pássaros
nem	a	cesta	das	armadilhas,	e	sacudindo	a	mão	livre	para	afastar	o	enxame	feroz
e	vingativo.
Ludmilla,	a	Idiota,	era	uma	mulher	estranha,	que	eu	temia	cada	vez	mais.	Bem
feita,	mais	alta	do	que	a	maioria	das	mulheres,	de	longos	cabelos	aparentemente
nunca	cortados,	seios	fartos	que	pendiam	até	quase	a	cintura,	pernas	musculosas,
vestia-se	no	verão	apenas	com	um	saco	desbotado	que	lhe	revelava	o	busto	e	o
tufo	ruivo	do	sexo.
Homens	e	rapazes	gabavam-se	do	que	faziam	com	ela	quando	estava	disposta.
Freqüentemente	as	mulheres	da	aldeia	tentavam	agarrá-la,	mas,	como	dizia	Lekh
com	orgulho,	Ludmilla	era	mais	veloz	do	que	o	vento	e	ninguém	podia	alcançá-
la	contra	a	sua	vontade.	Desaparecia	no	mato,	reaparecendo	somente	findo	o
perigo.
Ninguém	sabia	onde	era	sua	toca.	Às	vezes,	ao	alvorecer,	indo	para	o	campo	de
foice	ao	ombro,	os	camponeses	a	viam	acenando-lhes	ao	longe.	Então	paravam	e
acenavam	de	volta,	apagando	com	o	gesto	do	braço	a	vontade	de	trabalhar.
Traziam-nos	novamente	à	realidade	os	gritos	das	mães	e	esposas,	que	se
aproximavam	carregando	as	enxadas	e	que,	vez	ou	outra,	soltavam	os	cães	em
cima	de	Ludmilla.
Entretanto,	o	mais	feroz	jamais	lançado	ao	seu	alcance	preferiu	não	voltar,	e	a
partir	de	então	ela	sempre	aparecia	trazendo-o	amarrado	por	uma	corda,	pondo
em	fuga	os	outros	cães.
Diziam	que	Ludmilla,	a	Idiota,	vivia	maritalmente	com	o	cachorro.	Outros
afirmavam	que	um	dia	acabaria	dando	à	luz	crianças	peludas,	de	quatro	patas,
com	orelhas	caninas,	monstros	que	ficariam	vagueando	na	floresta.
Lekh	nunca	repetiu	essas	histórias	a	respeito	de	Ludmilla.
Contou-me	apenas	que	quando	ela	era	muito	jovem	e	inocente	os	pais
ordenaram-lhe	que	casasse	com	o	filho	do	salmista	da	aldeia,	conhecido	por	sua
feiúra	e	perversidade.
A	recusa	de	Ludmilla	enfureceu	o	noivo	de	tal	forma	que	ele	a	atraiu	para	longe
do	povoado,	entregando-a	a	um	bando	de	camponeses	bêbados	para	que	a
violentassem	até	deixá-la	desacordada.	Ludmilla	mudou	depois	disso,	ficou	com
a	mente	abalada,	e	como	ninguém	se	lembrasse	da	sua	família	apelidaram-na
Ludmilla,	a	Idiota.
Vivia	na	floresta,	atraindo	os	camponeses	para	o	mato,	e	envolvendo-os	em	tais
prazeres	que	lhes	tornava	odiosa	a	visão	de	suas	esposas	gordas	e	fedorentas.
Não	bastava	um	homem	para	satisfazê-la;	tinham	que	ser	vários,	um	depois	do
outro.	Era,	apesar	disso,	o	grande	amor	de	Lekh.	Para	ela,	compunha	doces
canções	em	que	a	descrevia	como	pássaro	de	cores	estranhas	em	vôo	para	terras
longínquas,	mais	lindo	e	veloz	do	que	qualquer	outro.
Ele	a	via	como	pertencente	ao	mundo	primitivo	e	pagão	de	pássaros	e	florestas,
onde	tudo	é	infinitamente	abundante,	selvagem,	florescente,	cheio	de	nobreza	no
seu	ciclo	perpétuo	de	decadência,	morte	e	renascença,	ilícito	e	adverso	ao	mundo
dos	homens.
Todos	os	dias	Lekh	e	eu	caminhávamos	para	a	clareira	onde	ele	esperava
encontrar	Ludmilla.	Ao	chegar,	Lekh	piava	imitando	coruja,	e	Ludmilla,	a	Idiota,
surgia	por	entre	a	grama,	os	cabelos	entrelaçados	de	papoulas	e	flores	azuis.
Lekh	corria	ansioso	para	ela.	Abraçados,	ondulavam	levemente	como	a	grama	ao
redor,	os	corpos	unidos,	árvores	crescendo	de	uma	só	raiz.
Eu	os	observava	da	margem	da	clareira,	por	trás	das	samambaias.	Na	sacola,	os
pássaros,	assustados	pela	súbita	calma,	gritavam	e	esvoaçavam	agitados,	batendo
as	asas	uns	contra	os	outros.	O	homem	e	a	mulher	beijavam-se	nos	cabelos	e	nos
olhos,	roçavam	os	rostos,	intoxicados	pelo	cheiro	e	pelo	contato	dos	próprios
corpos.	Aos	poucos	as	mãos	tornavam-se	mais	ativas.	As	de	Lekh,	pesadas	e
calosas,	desciam	pelos	braços	macios	da	mulher,	enquanto	ela	aproximava	ainda
mais	seu	rosto	do	dele.	Juntos,	deixavam-se	escorrer	na	grama,	que	agora
ondeava	ao	ritmo	de	seus	corpos,	escondendo-se	ao	olhar	curioso	dos	pássaros
que	sobrevoavam	a	clareira.	Mais	tarde	me	dizia	Lekh	que	enquanto	jaziam
abraçados	Ludmilla	lhe	contava	sua	vida	e	suas	tristezas,	revelando	voltas	e
labirintos	de	suas	selvagens	e	estranhas	emoções,	todos	os	atalhos	e	passagens
secretas	por	onde	vagueava	sua	mente	frágil.
Fazia	calor.	Sem	vento,	o	topo	das	árvores	permanecia	imóvel.	Ouvia-se	o
zumbir	de	libélulas	e	gafanhotos.	Uma	borboleta	varava	os	raios	do	sol,	levada
por	brisa	invisível.	O
pica-pau	cessava	sua	tarefa,	o	cuco	calava.	Eu	adormecia.
Acordavam-me	as	vozes.	De	pé,	o	homem	e	a	mulher	abraçados	pareciam	nascer
do	solo.	Diziam-se	coisas	que	eu	não	entendia	e	se	separavam	a	contragosto.
Ludmilla,	a	Idiota,	acenava	com	a	mão.	Lekh	caminhava	para	mim.	O
passo	incerto,	um	sorriso	sonhador	nos	lábios,	virava-se	repetidas	vezes	para
olhá-la.
A	caminho	de	casa	colocávamos	mais	armadilhas.	Lekh	vinha	cansado	e
taciturno.	Só	à	noite,	quando	os	pássaros	adormeciam	nas	gaiolas,	recobrava	o
bom	humor.	Então,	falava	de	Ludmilla.	Seu	corpo	tremia,	ele	ria	sozinho
fechando	os	olhos,	seu	rosto	pálido	e	sardento	recobrava	a	cor.
Às	vezes	passavam-se	dias	sem	que	Ludmilla,	a	Idiota,	aparecesse	na	floresta.
Uma	raiva	silenciosa	apossava-se	de	Lekh,	que,	murmurando	algo	de	si	para	si,
fixava	longamente	os	pássaros	nas	gaiolas.	Afinal,	após	demorados	estudos,
escolhia	o	pássaro	mais	forte,	amarrava-o	ao	pulso,	e,	misturando	os	mais
variados	ingredientes,	preparava	tintas	fétidas	de	diferentes	cores.	Quando	estas
o	satisfaziam,	virava	o	pássaro	e	pintava-lhe	as	asas,	a	cabeça	e	o	peito	em	tons
brilhantes,	até	torná-lo	mais	colorido	do	que	um	buquê	de	flores	silvestres.
Íamos	então	para	a	parte	mais	densa	da	floresta;	Lekh	me	entregava	o	pássaro
pintado,	mandando	que	eu	o	apertasse	de	leve	nas	mãos.	Cedo	seus	gritos
atraíam	companheiros	da	mesma	espécie,	que	se	punham	a

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