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64 Trabalhadores e vadios; imigrantes e libertos: a construção dos mitos e a patologia social Já dizia Cícero que a escravidão não se podia manter, quando o senhor não dispunha do escravo como do seu boi, do seu arado, do seu carro. Era preciso que dele pudesse usar e abusar. Desde que o escravo adquiria um direito, o senhor per dia na autoridade, e a escravidão estava ameaçada de extinção. V. Exa. conhece a história desta instituição, se tal nome merece o fato da escravidão. Desde o começo, não se reconheceu no escravo uma besta, mas um homem; ti nha direitos, que impunham ao senhor deve res. Esses direitos cresceram, alargaramse, foram mais e mais atendidos pelo legislador, mandados respeitar . Um dia, o instrumento, o boi, o arado, pelo sopro do legislador levantouse; tomou as formas de homem; pôsse em pé, e disse ao poder público, armado desde a cabeça aos pés: — Eu sou livre; fostes vós que re co nhecestes o meu direito; eu sou livre; não me rendo, prefiro a morte (sensação).6 As palavras acima foram pronunciadas diante dos par lamentares do imperador pelo ministro da Justiça, Ferreira Vianna, no dia 20 de julho de 1888. O tom patético do discurso e a sensação que parece ter causado indicam bem o paroxismo das emoções num momento percebido pelos deputados como de extrema gravidade para o país. As pala vras de Ferreira Vianna, na verdade, historiam a seu modo o processo segundo o qual o mundo do trabalho tornouse um problema para as elites brasileiras a partir de meados do século XIX, quando o fim do tráfico negreiro obrigou os barões do Império a pensar o fim da propriedade escrava. TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 64 25/07/2012 09:43:35 Daniel Realce 65 Com efeito, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil do século XIX colocou as classes dominantes da época diante da necessidade premente de realizar reajus tes no seu universo mental, de adequar a sua visão de mun do às transformações socioeconômicas que estavam em andamento. No mundo de outrora, ordenado pela presença do escravo, a questão do trabalho era escassamente proble matizada na esfera das mentalidades: o trabalhador escravo era propriedade do senhor e, sendo assim, o mundo do trabalho estava obviamente circunscrito à esfera mais ampla do mundo da ordem, que consagrava o princípio da pro priedade.7 O processo que culminou no 13 de maio, no entanto, rea lizou finalmente a separação entre o trabalhador e sua for ça de trabalho. Com a libertação dos escravos, as classes pos suidoras não mais poderiam garantir o suprimento de for ça de trabalho aos seus empreendimentos econômicos por meio da propriedade de trabalhadores escravos. O pro ble ma que se coloca, então, é de que o liberto, dono de sua força de trabalho, tornese um trabalhador, isto é, disponhase vender sua capacidade de trabalho ao capitalista empreen dedor. Por um lado, esse problema tinha seu aspecto prático que se traduzia na tentativa de propor medidas que obrigassem o indivíduo ao trabalho. Por outro lado, era preciso tam bém um esforço de revisão de conceitos, de constru ção de valo res que iriam constituir uma nova ética do traba lho. Como já foi sugerido na introdução, o conceito de traba lho pre cisava se despir de seu caráter aviltante e degradador carac terístico de uma sociedade escravista, assumindo uma rou pagem nova que lhe desse um valor positivo, tornandose então o elemento fundamental para a implantação de uma ordem burguesa no Brasil. TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 65 25/07/2012 09:43:35 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 66 Nas páginas seguintes, abordaremos alguns aspectos das transformações no universo mental das classes dominan tes como contrapartida à transição do trabalho escravo para o trabalho livre, a partir da análise dos debates sobre a re pressão da ociosidade na Câmara dos Deputados em 1888. Neste debate, o liberto, o “trabalhador nacional”, parece ser a preocupação exclusiva dos parlamentares, mas podemos clara mente acompanhar o esforço mais amplo de elabora ção, de construção de uma nova ética do trabalho. O imi grante é a grande presença ausente nesses debates: raramen te os debatedores irão se referir a ele explicitamente, mas só este fato, num momento em que a ociosidade está em foco, já é elucidativo do papel que os nossos deputados reservavam para os imigrantes neste processo de construção de uma nova ética do trabalho. O projeto de repressão à ociosidade de 1888 — elabo rado pelo ministro Ferreira Vianna — começou a ser apre ciado na Câmara dos Deputados em julho, e sua discussão foi bastante marcada pelos ânimos ainda exaltados pelas repercussões da lei de 13 de maio. A utilidade do projeto foi votada quase que unanimemente pela Câmara, sendo que muitos deputados o viam como “de salvação pública para o Império do Brasil”. Havia um claro consenso entre os deputados de que a Abolição trazia consigo os contornos do fantasma da desor dem. Na mesma época em que o projeto sobre a ocio sidade tramitava na Câmara, um grupo de deputados, liderado por Lacerda Werneck e se identificando claramente com os inte resses das “classes dos lavradores”, dirigia uma interpelação ao ministro da Justiça que visava exigir medidas do governo para garantir a defesa da propriedade e da segurança indi TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 66 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce 67 vidual dos cidadãos, já que estas, de acordo com os inter pelan tes, estavam seriamente ameaçadas pelas “ordas” de libertos que supostamente vagavam pelas estradas “a furtar e rapinar”.8 Dramatizando ao máximo a situação, os deputados falam da solidão e do deserto a que ficaram reduzidas as fazendas de Vassouras, onde as “pacíficas e laboriosas populações lo cais” — isto é, os proprietários e suas famílias — eram agora obri gadas a trabalhar dia e noite para “salvarem alguns caro ços de feijão” que garantissem sua alimentação. Mais do que isto, a lei de 13 de maio era percebida como uma amea ça à ordem porque nivelava todas as classes de um dia para o outro, pro vocando um deslocamento de profissões e de há bitos de conseqüências imprevisíveis. Para concluir, os inter pelantes citavam diversos casos de crimes que teriam sido cometidos por libertos nos dias anteriores, provando assim o caos social que reinava especialmente nas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Como paliativo imediato para o problema, su geriase que os libertos fossem recrutados em massa para o exército. Em sua resposta, Ferreira Vianna mostra claramente os exageros das afirmações dos interpelantes e diz que uma das respostas do governo aos temores gerais de comprometi mento da ordem era o projeto de repressão à ociosidade que estava em discussão na Câmara. O problema, portanto, é de ênfase e de decidir que medidas práticas tomar; contudo, havia, sem dúvida, o consenso de que a ordem estava amea çada. Na ver dade, um dos pontos principais de toda essa discussão por ocasião da interpelação, assim como do pro jeto sobre a ocio sidade propriamente, é o consenso que se estabelece quanto ao suposto caráter do liberto. Em primei ro lugar, os libertos eram em geral pensados como indiví TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 67 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 68 duos que estavam despreparados para a vida em sociedade. A escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção de justiça, de respeito à propriedade, de liberdade. A liber dade do cativeiro não significava para o liberto a responsa bilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar ocioso, furtar, roubar etc. Os libertos traziam em si os vícios de seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o bem e de obter um trabalho honesto e não eram “civilizados” o suficiente para se tornarem cida dãos plenos em poucos me ses. Era necessário, portanto, evi tar que oslibertos compro metessem a ordem, e para isso ha via de se reprimir os seus vícios. Esses vícios seriam venci dos através da educação, e educar libertos significava criar o hábito do trabalho através da repressão, da obriga torie dade. Este era exatamente o objetivo do projeto de Ferreira Vianna, como bem resume o deputado MacDowell: Votei pela utilidade do projeto, convencido, como todos estamos, de que hoje, mais do que nunca, é preciso reprimir a vadiação, a mendicidade desnecessária, etc. [...] Há o dever imperioso por parte do Estado de re primir e opor um dique a todos os vícios que o liberto trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito miraculoso de uma lei fazer desaparecer, porque a lei não pode de um momento para outro transformar o que está na natureza. [...] a lei produzirá os desejados efeitos com pelin dose a população ociosa ao trabalho honesto, mino randose o efeito desastroso que fatalmente se prevê como con seqüência da libertação de uma massa enorme de escra vos, atirada no meio da sociedade civilizada, escravos sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sen timentos nobres que só pode adquirir uma população livre e finalmente será regulada a educação dos menores, que se tornarão instrumentos do trabalho inteligente, TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 68 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 69 cidadãos morigerados, [...] servindo de exemplo e edi ficação aos outros da mesma classe social.9 O problema com que se defrontavam os parlamentares era, em síntese, o de transformar o liberto em trabalhador. Tomavase como ponto de partida, então, o suposto de que todos os libertos eram ociosos, o que visava garantir, de início, o direito da sociedade civilizada em emen dálos. Mas a trans formação do liberto em trabalhador não podia se dar apenas através da repressão, da violência explícita. Afinal, não se desejava um retorno a alguma forma disfar çada da hedionda instituição da escravidão. Que fazer, então? Bem, era necessário educar os libertos. Educar sig nifica incutir no indivíduo “essas grandes qualidades que tornam um cidadão útil e o fazem compreender os seus deveres e os seus direitos”.10 Ora, que grandes qualidades são essas que fazem de um indivíduo um cidadão “útil”, de “caráter”? O amor e o respeito reli gioso à propriedade são, sem dúvida, qualidades fundamentais do bom cidadão. Mas esse não é o ponto essencial a enfa tizar neste contexto. Estamos pensando nos libertos, e convém acenar apenas muito remotamente a esses indivíduos com a possibilidade de se tornarem proprietários. Para o liberto, tornarse bom cidadão deve significar, acima de tudo, amar o trabalho em si, independentemente das vantagens materiais que possam daí advir. Educar o liberto significa transmitir lhe a noção de que o trabalho é o valor supremo da vida em sociedade; o trabalho é o elemento característico da vida “civi lizada”. Mas como pensar no trabalho como algo positivo, nobili tador, em uma sociedade que foi escravista durante mais de três séculos? Como “convencer” o liberto a ser trabalha dor, logo ele, recémadvindo da escravidão? Mais do que TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 69 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 70 isso, como justificar as medidas repressivas visando garan tir a organização do trabalho? Os debates sobre o projeto de repressão à ociosidade mostram claramente a tentativa dos parlamentares de pre cisar o conceito de trabalho e seu significado no mundo em que viviam. Procuravase uma justificativa ideológica para o trabalho, isto é, razões que pudessem justificar a sua obri gatoriedade para as classes populares. A construção do con ceito de trabalho passa por diversas etapas. A noção pri meira e funda mental é a de que o trabalho é o elemento orde nador da sociedade, a sua “lei suprema”.11 O cidadão recebe tudo da sociedade, pois esta lhe garante a segurança, os di reitos individuais, a liberdade, a honra etc. O cidadão, portanto, está permanentemente endividado com a socieda de e deve retribuir o que dela recebe com o seu trabalho. O trecho abaixo, de um discurso do deputado Ro drigues Pei xoto, ilustra bem esse ponto: Em todos os tempos, o trabalho foi considerado o pri meiro elemento de uma sociedade bem organi zada. Cada membro da comunidade deve a esta uma parte do seu tempo e do seu esforço no interesse geral, cuja inobser vância apresenta gravidade, o que autoriza de certo modo a intervenção do Estado. [...] é preciso que tenham todos uma ocupação porque V. Exa. sabe que, desde que o indivíduo respira, como que contrai uma dívida com a sociedade, a qual só paga rá com o trabalho.12 Outro ponto fundamental é a relação que se estabelece entre trabalho e moralidade: quanto mais dedicação e abne gação o indivíduo tiver em seu trabalho, maiores serão os seus atributos morais. Uma das justificativas ideológicas fundamentais para o projeto era a intenção de moralizar o TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 70 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 71 indivíduo pelo trabalho. Era preciso incutir nos cidadãos o hábito do trabalho, pois essa era a única forma de regenerar a sociedade, protegendoa dos efeitos nocivos trazidos por centenas de milhares de libertos — indiví duos sem nenhum senso de moralidade. Dentro deste espírito, o projeto prevê que os ociosos serão conduzidos a colô nias de trabalho, com preferência para atividades agrícolas, onde serão internados com o objetivo de adquirir o hábito do trabalho. Essa retó rica moralista mal acoberta o obje tivo dos legisladores: a pena para o ocioso devia ser bastante longa (de um a três anos para o reincidente), pois o que se desejava não era a punição pura e simples do indivíduo, mas sim sua reforma moral — e este objetivo não podia ser alcançado em curto prazo. A severidade das penas, portanto, explicase pelo seu caráter educativo, de regeneração moral do condenado, como expressa o relator da comissão parlamentar encarre gada de dar um parecer inicial sobre o projeto: Desde que o objetivo é a correção moral, evidentemen te eram insuficientes, para se alcançar esse objetivo, as disposições penais do nosso Código Cri minal, que es tabelecem a prisão de 9 a 24 dias; era necessário corri gir um ato inveterado, por conseguinte, fazêlo substi tuir por outro, regenerando, fazendo adquirir o amor ao trabalho, pela prática do trabalho. Ora, um hábito desses não se adquire em pouco tempo...13 O projeto previa ainda que uma parte do dinheiro obti do por meio do trabalho dos condenados nos estabeleci mentos correcionais seria depositado em um fundo e cada condenado receberia um certo pecúlio por ocasião de sua saída da prisão. O objetivo aqui era também educacional, pois vi sava formar no indivíduo a ambição de possuir alguma TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 71 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce 72 coisa através de uma atividade honrada. Tomese o cuidado de não dar a este “possuir” a ênfase na esperança de ad quirir propriedade — o que se pensa antes é incutir no indivíduo o hábito de ser econômico e de viver mais confor tavelmente, pois esses hábitos o estimulariam para o trabalho.14 De qualquer forma, o respeito religioso à propriedade é consagrado no projeto no item das circunstâncias agravan tes na prática da vadiagem: um dos agravantes da pena era quando o indivíduo possuidor de certa fortuna acaba por esbanjála, ficando na miséria e sem condições de sustentar a família. O debate deste item mostra o paroxismo a que pode chegar esse respeito devido à propriedade, como, por exemplo, quando um dos deputados não concorda com o fato de um indivíduo que esbanja sua fortuna ter a pena agravada, já que o tal indivíduo precisaria era de tratamen to médico, pois só poderia estar louco! Diz o deputado: Ora, S. Exa. sabe que quase sempre a prodigalidade é inerente a uma enfermidade,porque ninguém, na inte gridade das suas faculdades, porá fora aquilo que possui. Sabe ainda V. Exa. que todos nós temos amor aos nos sos bens, ao fruto do nosso trabalho ou ao que de ou trem herdamos. Por conseqüência, um indivíduo que esbanja aquilo que possui, que perde o amor à proprie dade, não é simplesmente um viúvo: é principalmente um enfermo e a circunstância do esbanjamento não deve ser para ele um agravante.15 Vejamos agora como os deputados percebiam a relação patrão–empregado neste mundo do trabalho em processo de construção ideológica. O paternalismo é o elemento fundamental neste contexto: a autoridade do patrão é enfa tizada e considerada essencial para que o trabalhador se veja TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 72 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce 73 obrigado a desempenhar suas tarefas com a eficiência exigi da, mas os possíveis excessos na autoridade patronal são dissimulados sob a forma de proteção, da orientação que o bom patrão devia a seus trabalhadores passivos e abnegados. Diz o deputado Rodrigues Peixoto: O patrão, depois de celebrado o contrato, se constitui uma espécie de juiz doméstico e tem ação incontestável sobre o trabalhador, para guiálo e acon selhálo. Se al guma vez esse indivíduo sai das órbitas legais e pratica alguma falta ou delito ligeiro, que não precisa ser puni do pela lei, o próprio patrão, em virtude do regulamen to que ali existe, e que estabelece direitos e deveres entre locatário e locador, lhe inflige castigos moderados como aqueles que infligem os pais aos filhos.16 Outro momento importante neste processo de constru ção da ideologia do trabalho é a elaboração do conceito de vadiagem: com todo o alarmismo e os exageros caracterís ticos destes homens quando discutem assuntos que supos tamente ameaçam o seu mundo, o esforço agora é pela afirmação do ainda hoje poderoso mito da preguiça inata do “trabalhador nacional”. O conceito de vadiagem se constrói na mente dos parla mentares do fim do Segundo Reinado basicamente a partir de um simples processo de inversão: todos os predicados as sociados ao mundo do trabalho são negados quando o objeto de reflexão é a vadiagem. Assim, enquanto o trabalho é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é uma amea ça cons tante à ordem. O ocioso é aquele indivíduo que, ne gandose a pagar sua dívida para com a comunidade por meio do trabalho honesto, colocase à margem da sociedade e nada produz para promover o bem comum. TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 73 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce 74 Há, portanto, uma incompatibilidade irredutível entre manutenção da ordem e ociosidade. Mas era essencial para os nossos deputados compreender melhor as causas da ocio sidade do trabalhador brasileiro. A crença nesta ociosidade parecia comum a todos, e citavase, por exemplo, o cai pira paulista, “um verdadeiro parasita, que consome ape nas e nada produz”.17 Como explicar esta anomalia? Um dos de putados nos dá uma explicação didática, elaborando um con ceito que ele chama de “lei da necessidade”.18 Segundo ele, nos países europeus e asiáticos se acha realizada a teoria de Malthus e Ricardo, ou seja, há um excesso de população em relação à capacidade de produzir víveres. A vida é bas tante dura para essas populações, que se sentem então es timuladas para o trabalho pela própria necessidade de lu tar pela sobrevivência. No Brasil, ao contrário, o indivíduo encontra muitas facilidades para subsistir, pois o nosso solo é rico, o nosso clima é ameno e a abundância se nota por to da parte. Sendo assim, a nossa população não precisa ter hábitos ativos de trabalho, pois tem facilidade em obter a carne, o peixe, o fruto, e, além disso, a amenidade do clima permite ao brasileiro passar perfeitamente ao relento, sem cobrir o corpo com vestes pesadas e caras. Em nosso país, portanto, é preciso obrigar o indivíduo ao trabalho, pois a tentação da ociosidade é irresistível. Ociosidade deve ser combatida não só porque negan dose ao trabalho o indivíduo deixa de pagar sua dívida para com a sociedade, mas também porque o ocioso é um per vertido, um viciado que representa uma ameaça à moral e aos bons costumes. Um indivíduo ocioso é um indivíduo sem educação moral, pois não tem noção de responsabili dade, não tem interesse em produzir o bem comum nem possui respeito pela propriedade. Sendo assim, a ociosidade TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 74 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 75 é um estado de depravação de costumes que acaba levando o indivíduo a cometer verdadeiros crimes contra a proprie dade e a segurança individual. Em outras palavras, a vadia gem é um ato preparatório do crime, daí a necessidade de sua repressão. Assim se expressa a comissão parlamentar que estudou o projeto: O projeto [...] revela a intenção de orientar espíritos transviados, corrigir disposições viciosas, antes que punir criminosos. Se o legislador tem o imprescindível dever de consagrar no direito positivo prescrições tendentes à repressão dos crimes que atentam à ordem social, não lhe é lícito desconhecer que esses atos derivamse, o mais das vezes, do relaxamento ou da depravação dos costumes, tendo geralmente como causa geradora a ociosidade.19 Outro aspecto interessante é a relação estabelecida en tre ociosidade e pobreza. O projeto reconhecia que eram duas as condições elementares para que ficasse caracterizado o delito de vadiagem: o hábito e a indigência, especialmen te a última. Se um indivíduo é ocioso, mas tem meios de garantir sua sobrevivência, ele não é obviamente perigoso à ordem social. Só a união da vadiagem com a indigência afeta o senso moral, deturpando o homem e engendrando o crime. Fica claro, portanto, que existe uma má ociosidade e uma boa ociosidade. A má ociosidade é aquela caracterís tica das classes pobres, e deve ser prontamente reprimida. A boa ociosidade é, com certeza, atributo dos nobres depu tados e seus iguais... Os parlamentares reconhecem abertamente, portanto, que se deseja reprimir os miseráveis. Passam a utilizar, então, o conceito de “classes perigosas”, avidamente aprendido nos TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 75 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce 76 compêndios europeus da época. Segundo Alberto Passos Gui marães, o termo “classes perigosas” apareceu original mente na Inglaterra e se referia às pessoas que já houvessem passado pela prisão ou às que, mesmo ainda não tendo sido presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua família por meio da prática de furtos e não do trabalho.20 Esta utilização do termo, por conseguinte, é bastante res trita, referindose apenas aos indivíduos que já haviam aber tamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os colocava à margem da lei. Os nossos deputados, contudo, citam principalmente autores franceses e alargam conside ravelmente as proporções do termo.21 Os legisladores bra sileiros utilizam o termo “classes perigosas” como sinônimo de “classes pobres”, e isto significa dizer que o fato de ser pobre torna o indivíduo automaticamente perigoso à socie dade. Os pobres apresentam maior tendência à ociosidade, são cheios de vícios, menos moralizados e podem facilmen te “rolar até o abismo do crime”. Diz um dos deputados: As classes pobres e viciosas [...] sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamen te sob o título de — classes perigosas —; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliarse à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e tornase de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade.22 Resta situarmos como os nossos deputados percebem a inserçãodo imigrante neste mundo do trabalho em pro cesso de construção ideológica. O artigo 3o do projeto sobre TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 76 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce 77 a repressão da ociosidade prevê que o estrangeiro reinci dente no delito de vadiagem poderá ser expulso do país. O rigor da pena para o estrangeiro reincidente e o fato de que qua se não se menciona o imigrante nestes debates sobre a ocio sidade mostram bem que o consenso a respeito do trabalha dor imigrante já havia sido atingido anteriormente. Como mostra José de Souza Martins, as classes dominantes pen savam que o imigrante deveria ser “morigerado, sóbrio e laborioso”,23 isto é, ao cultivar as principais virtudes consa gradas na ética capitalista, o imigrante deveria servir de exemplo ao trabalhador nacional. O imigrante e sua família deveriam estar sempre dispostos ao trabalho árduo e às condições difíceis de vida, pelo menos nos primeiros tempos, sendo que estes sofrimentos seriam mais tarde compensados pelo acesso à pequena agricultura familiar. Dentro deste contexto, é fácil entender o porquê do rigor da pena do estrangeiro que era detido por vadiagem: destinado a servir de exemplo, de protótipo do tra ba lha dor ideal na ordem capitalista que se anuncia, sua nãoadequação a estes parâ metros era vista como uma amea ça à ordem social. Ressal tese, porém, que esta visão positiva do imigrante aplicavase principalmente àqueles que se destinavam, nesse período, às zonas cafeeiras de São Paulo, especialmente os italianos. A situação parecia ser bem mais ambígua e contraditória quando estavam em questão, por exemplo, os 106.461 imi grantes portugueses, geralmente homens solteiros e empre gados no pequeno comércio, que habitavam a cidade do Rio de Janeiro em 1890.24 Voltaremos a este último aspecto oportunamente. Seguemse algumas observações de caráter geral que darão não só a tônica das outras partes deste capítulo, mas TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 77 25/07/2012 09:43:36 Daniel Realce Daniel Realce Daniel Realce
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