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[TEXTO 2] CHALHOUB, S Trabalho, Lar e Botequim

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Trabalhadores e vadios; imigrantes e libertos: a construção dos 
mitos e a patologia social
Já dizia Cícero que a escravidão não se podia manter, 
quando o senhor não dispunha do escravo como do seu 
boi, do seu arado, do seu carro. Era preciso que dele 
pudesse usar e abusar.
Desde que o escravo adquiria um direito, o senhor per­
dia na autoridade, e a escravidão estava ameaçada de 
extinção.
V. Exa. conhece a história desta instituição, se tal nome 
merece o fato da escravidão. Desde o começo, não se 
reconheceu no escravo uma besta, mas um homem; ti­
nha direitos, que impunham ao senhor deve res.
Esses direitos cresceram, alargaram­se, foram mais e mais 
atendidos pelo legislador, mandados respeitar .
Um dia, o instrumento, o boi, o arado, pelo sopro do 
legislador levantou­se; tomou as formas de homem; 
pôs­se em pé, e disse ao poder público, armado desde a 
cabeça aos pés: — Eu sou livre; fostes vós que re co­
nhecestes o meu direito; eu sou livre; não me rendo, 
prefiro a morte (sensação).6
As palavras acima foram pronunciadas diante dos par­
lamentares do imperador pelo ministro da Justiça, Ferreira 
Vianna, no dia 20 de julho de 1888. O tom patético do 
discurso e a sensação que parece ter causado indicam bem 
o paroxismo das emoções num momento percebido pelos 
deputados como de extrema gravidade para o país. As pala­
vras de Ferreira Vianna, na verdade, historiam a seu modo 
o processo segundo o qual o mundo do trabalho tornou­se 
um problema para as elites brasileiras a partir de meados do 
século XIX, quando o fim do tráfico negreiro obrigou os 
barões do Império a pensar o fim da propriedade escrava. 
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Com efeito, a transição do trabalho escravo para o trabalho 
livre no Brasil do século XIX colocou as classes dominantes 
da época diante da necessidade premente de realizar reajus­
tes no seu universo mental, de adequar a sua visão de mun­
do às transformações socioeconômicas que estavam em 
andamento. No mundo de outrora, ordenado pela presença 
do escravo, a questão do trabalho era escassamente proble­
matizada na esfera das mentalidades: o trabalhador escravo 
era propriedade do senhor e, sendo assim, o mundo do 
trabalho estava obviamente circunscrito à esfera mais ampla 
do mundo da ordem, que consagrava o princípio da pro­
priedade.7
O processo que culminou no 13 de maio, no entanto, 
rea lizou finalmente a separação entre o trabalhador e sua for­
ça de trabalho. Com a libertação dos escravos, as classes pos­
suidoras não mais poderiam garantir o suprimento de for ça 
de trabalho aos seus empreendimentos econômicos por meio 
da propriedade de trabalhadores escravos. O pro ble ma que 
se coloca, então, é de que o liberto, dono de sua força de 
trabalho, torne­se um trabalhador, isto é, disponha­se vender 
sua capacidade de trabalho ao capitalista empreen dedor. Por 
um lado, esse problema tinha seu aspecto prático que se 
traduzia na tentativa de propor medidas que obrigassem o 
indivíduo ao trabalho. Por outro lado, era preciso tam bém 
um esforço de revisão de conceitos, de constru ção de valo­
res que iriam constituir uma nova ética do traba lho. Como 
já foi sugerido na introdução, o conceito de traba lho pre­
cisava se despir de seu caráter aviltante e degradador carac­
terístico de uma sociedade escravista, assumindo uma rou­
pagem nova que lhe desse um valor positivo, tornando­se 
então o elemento fundamental para a implantação de uma 
ordem burguesa no Brasil.
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Nas páginas seguintes, abordaremos alguns aspectos 
das transformações no universo mental das classes dominan­
tes como contrapartida à transição do trabalho escravo para 
o trabalho livre, a partir da análise dos debates sobre a re­
pressão da ociosidade na Câmara dos Deputados em 1888. 
Neste debate, o liberto, o “trabalhador nacional”, parece ser 
a preocupação exclusiva dos parlamentares, mas podemos 
clara­ mente acompanhar o esforço mais amplo de elabora­
ção, de construção de uma nova ética do trabalho. O imi­
grante é a grande presença ausente nesses debates: raramen­
te os debatedores irão se referir a ele explicitamente, mas só 
este fato, num momento em que a ociosidade está em foco, 
já é elucidativo do papel que os nossos deputados reservavam 
para os imigrantes neste processo de construção de uma 
nova ética do trabalho.
O projeto de repressão à ociosidade de 1888 — elabo­
rado pelo ministro Ferreira Vianna — começou a ser apre­
ciado na Câmara dos Deputados em julho, e sua discussão 
foi bastante marcada pelos ânimos ainda exaltados pelas 
repercussões da lei de 13 de maio. A utilidade do projeto 
foi votada quase que unanimemente pela Câmara, sendo que 
muitos deputados o viam como “de salvação pública para o 
Império do Brasil”.
Havia um claro consenso entre os deputados de que a 
Abolição trazia consigo os contornos do fantasma da desor­
dem. Na mesma época em que o projeto sobre a ocio sidade 
tramitava na Câmara, um grupo de deputados, liderado por 
Lacerda Werneck e se identificando claramente com os inte­
resses das “classes dos lavradores”, dirigia uma interpelação 
ao ministro da Justiça que visava exigir medidas do governo 
para garantir a defesa da propriedade e da segurança indi­
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vidual dos cidadãos, já que estas, de acordo com os inter­
pelan tes, estavam seriamente ameaçadas pelas “ordas” de 
libertos que supostamente vagavam pelas estradas “a furtar 
e rapinar”.8
Dramatizando ao máximo a situação, os deputados falam 
da solidão e do deserto a que ficaram reduzidas as fazendas 
de Vassouras, onde as “pacíficas e laboriosas populações lo­
cais” — isto é, os proprietários e suas famílias — eram agora 
obri gadas a trabalhar dia e noite para “salvarem alguns caro­
ços de feijão” que garantissem sua alimentação. Mais do que 
isto, a lei de 13 de maio era percebida como uma amea ça à 
ordem porque nivelava todas as classes de um dia para o 
outro, pro vocando um deslocamento de profissões e de há­
bitos de conseqüências imprevisíveis. Para concluir, os inter­
pelantes citavam diversos casos de crimes que teriam sido 
cometidos por libertos nos dias anteriores, provando assim 
o caos social que reinava especialmente nas províncias do Rio 
de Janeiro e de Minas Gerais. Como paliativo imediato para 
o problema, su geria­se que os libertos fossem recrutados em 
massa para o exército.
Em sua resposta, Ferreira Vianna mostra claramente os 
exageros das afirmações dos interpelantes e diz que uma das 
respostas do governo aos temores gerais de comprometi­
mento da ordem era o projeto de repressão à ociosidade que 
estava em discussão na Câmara. O problema, portanto, é de 
ênfase e de decidir que medidas práticas tomar; contudo, 
havia, sem dúvida, o consenso de que a ordem estava amea­
çada. Na ver dade, um dos pontos principais de toda essa 
discussão por ocasião da interpelação, assim como do pro­
jeto sobre a ocio sidade propriamente, é o consenso que se 
estabelece quanto ao suposto caráter do liberto. Em primei­
ro lugar, os libertos eram em geral pensados como indiví­
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duos que estavam despreparados para a vida em sociedade. 
A escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção 
de justiça, de respeito à propriedade, de liberdade. A liber­
dade do cativeiro não significava para o liberto a responsa­
bilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar 
ocioso, furtar, roubar etc. Os libertos traziam em si os vícios 
de seu estado anterior, não tinham a ambição de fazer o bem 
e de obter um trabalho honesto e não eram “civilizados” o 
suficiente para se tornarem cida dãos plenos em poucos me­
ses. Era necessário, portanto, evi tar que oslibertos compro­
metessem a ordem, e para isso ha via de se reprimir os seus 
vícios. Esses vícios seriam venci dos através da educação, e 
educar libertos significava criar o hábito do trabalho através 
da repressão, da obriga torie dade. Este era exatamente o 
objetivo do projeto de Ferreira Vianna, como bem resume 
o deputado Mac­Dowell: 
Votei pela utilidade do projeto, convencido, como todos 
estamos, de que hoje, mais do que nunca, é preciso 
reprimir a vadiação, a mendicidade desnecessária, etc. 
[...] Há o dever imperioso por parte do Estado de re­
primir e opor um dique a todos os vícios que o liberto 
trouxe de seu antigo estado, e que não podia o efeito 
miraculoso de uma lei fazer desaparecer, porque a lei 
não pode de um momento para outro transformar o que 
está na natureza.
[...] a lei produzirá os desejados efeitos com pelin do­se 
a população ociosa ao trabalho honesto, mino rando­se 
o efeito desastroso que fatalmente se prevê como con­
seqüência da libertação de uma massa enorme de escra­
vos, atirada no meio da sociedade civilizada, escravos 
sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sen­
timentos nobres que só pode adquirir uma população 
livre e finalmente será regulada a educação dos menores, 
que se tornarão instrumentos do trabalho inteligente, 
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cidadãos morigerados, [...] servindo de exemplo e edi­
ficação aos outros da mesma classe social.9
O problema com que se defrontavam os parlamentares 
era, em síntese, o de transformar o liberto em trabalhador. 
Tomava­se como ponto de partida, então, o suposto de que 
todos os libertos eram ociosos, o que visava garantir, de 
início, o direito da sociedade civilizada em emen dá­los. 
Mas a trans formação do liberto em trabalhador não podia 
se dar apenas através da repressão, da violência explícita. 
Afinal, não se desejava um retorno a alguma forma disfar­
çada da hedionda instituição da escravidão. Que fazer, 
então? Bem, era necessário educar os libertos. Educar sig­
nifica incutir no indivíduo “essas grandes qualidades que 
tornam um cidadão útil e o fazem compreender os seus 
deveres e os seus direitos”.10 Ora, que grandes qualidades 
são essas que fazem de um indivíduo um cidadão “útil”, de 
“caráter”? O amor e o respeito reli gioso à propriedade são, 
sem dúvida, qualidades fundamentais do bom cidadão. Mas 
esse não é o ponto essencial a enfa tizar neste contexto. 
Estamos pensando nos libertos, e convém acenar apenas 
muito remotamente a esses indivíduos com a possibilidade 
de se tornarem proprietários. Para o liberto, tornar­se bom 
cidadão deve significar, acima de tudo, amar o trabalho em 
si, independentemente das vantagens materiais que possam 
daí advir. Educar o liberto significa transmitir ­lhe a noção 
de que o trabalho é o valor supremo da vida em sociedade; 
o trabalho é o elemento característico da vida “civi lizada”. 
Mas como pensar no trabalho como algo positivo, nobili­
tador, em uma sociedade que foi escravista durante mais 
de três séculos? Como “convencer” o liberto a ser trabalha­
dor, logo ele, recém­advindo da escravidão? Mais do que 
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isso, como justificar as medidas repressivas visando garan­
tir a organização do trabalho? 
Os debates sobre o projeto de repressão à ociosidade 
mostram claramente a tentativa dos parlamentares de pre­
cisar o conceito de trabalho e seu significado no mundo em 
que viviam. Procurava­se uma justificativa ideológica para 
o trabalho, isto é, razões que pudessem justificar a sua obri­
gatoriedade para as classes populares. A construção do con­
ceito de trabalho passa por diversas etapas. A noção pri­
meira e funda mental é a de que o trabalho é o elemento 
orde nador da sociedade, a sua “lei suprema”.11 O cidadão 
recebe tudo da sociedade, pois esta lhe garante a segurança, 
os di reitos individuais, a liberdade, a honra etc. O cidadão, 
portanto, está permanentemente endividado com a socieda­
de e deve retribuir o que dela recebe com o seu trabalho. O 
trecho abaixo, de um discurso do deputado Ro drigues Pei­
xoto, ilustra bem esse ponto:
Em todos os tempos, o trabalho foi considerado o pri­
meiro elemento de uma sociedade bem organi zada. Cada 
membro da comunidade deve a esta uma parte do seu 
tempo e do seu esforço no interesse geral, cuja inobser­
vância apresenta gravidade, o que autoriza de certo modo 
a intervenção do Estado.
[...] é preciso que tenham todos uma ocupação porque 
V. Exa. sabe que, desde que o indivíduo respira, como 
que contrai uma dívida com a sociedade, a qual só paga­
rá com o trabalho.12 
Outro ponto fundamental é a relação que se estabelece 
entre trabalho e moralidade: quanto mais dedicação e abne­
gação o indivíduo tiver em seu trabalho, maiores serão os 
seus atributos morais. Uma das justificativas ideológicas 
fundamentais para o projeto era a intenção de moralizar o 
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indivíduo pelo trabalho. Era preciso incutir nos cidadãos o 
hábito do trabalho, pois essa era a única forma de regenerar 
a sociedade, protegendo­a dos efeitos nocivos trazidos por 
centenas de milhares de libertos — indiví duos sem nenhum 
senso de moralidade. Dentro deste espírito, o projeto prevê 
que os ociosos serão conduzidos a colô nias de trabalho, com 
preferência para atividades agrícolas, onde serão internados 
com o objetivo de adquirir o hábito do trabalho. Essa retó­
rica moralista mal acoberta o obje tivo dos legisladores: a 
pena para o ocioso devia ser bastante longa (de um a três 
anos para o reincidente), pois o que se desejava não era a 
punição pura e simples do indivíduo, mas sim sua reforma 
moral — e este objetivo não podia ser alcançado em curto 
prazo. A severidade das penas, portanto, explica­se pelo seu 
caráter educativo, de regeneração moral do condenado, 
como expressa o relator da comissão parlamentar encarre­
gada de dar um parecer inicial sobre o projeto:
Desde que o objetivo é a correção moral, evidentemen­
te eram insuficientes, para se alcançar esse objetivo, as 
disposições penais do nosso Código Cri minal, que es­
tabelecem a prisão de 9 a 24 dias; era necessário corri­
gir um ato inveterado, por conseguinte, fazê­lo substi­
tuir por outro, regenerando, fazendo adquirir o amor 
ao trabalho, pela prática do trabalho. Ora, um hábito 
desses não se adquire em pouco tempo...13 
O projeto previa ainda que uma parte do dinheiro obti­
do por meio do trabalho dos condenados nos estabeleci­
mentos correcionais seria depositado em um fundo e cada 
condenado receberia um certo pecúlio por ocasião de sua 
saída da prisão. O objetivo aqui era também educacional, pois 
vi sava formar no indivíduo a ambição de possuir alguma 
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coisa através de uma atividade honrada. Tome­se o cuidado 
de não dar a este “possuir” a ênfase na esperança de ad quirir 
propriedade — o que se pensa antes é incutir no indivíduo 
o hábito de ser econômico e de viver mais confor tavelmente, 
pois esses hábitos o estimulariam para o trabalho.14
De qualquer forma, o respeito religioso à propriedade 
é consagrado no projeto no item das circunstâncias agravan­
tes na prática da vadiagem: um dos agravantes da pena era 
quando o indivíduo possuidor de certa fortuna acaba por 
esbanjá­la, ficando na miséria e sem condições de sustentar 
a família. O debate deste item mostra o paroxismo a que 
pode chegar esse respeito devido à propriedade, como, por 
exemplo, quando um dos deputados não concorda com o 
fato de um indivíduo que esbanja sua fortuna ter a pena 
agravada, já que o tal indivíduo precisaria era de tratamen­
to médico, pois só poderia estar louco! Diz o deputado:
Ora, S. Exa. sabe que quase sempre a prodigalidade é 
inerente a uma enfermidade,porque ninguém, na inte­
gridade das suas faculdades, porá fora aquilo que possui.
Sabe ainda V. Exa. que todos nós temos amor aos nos­
sos bens, ao fruto do nosso trabalho ou ao que de ou­
trem herdamos. Por conseqüência, um indivíduo que 
esbanja aquilo que possui, que perde o amor à proprie­
dade, não é simplesmente um viúvo: é principalmente 
um enfermo e a circunstância do esbanjamento não deve 
ser para ele um agravante.15 
Vejamos agora como os deputados percebiam a relação 
patrão–empregado neste mundo do trabalho em processo 
de construção ideológica. O paternalismo é o elemento 
fundamental neste contexto: a autoridade do patrão é enfa­
tizada e considerada essencial para que o trabalhador se veja 
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obrigado a desempenhar suas tarefas com a eficiência exigi­
da, mas os possíveis excessos na autoridade patronal são 
dissimulados sob a forma de proteção, da orientação que o 
bom patrão devia a seus trabalhadores passivos e abnegados. 
Diz o deputado Rodrigues Peixoto:
O patrão, depois de celebrado o contrato, se constitui 
uma espécie de juiz doméstico e tem ação incontestável 
sobre o trabalhador, para guiá­lo e acon selhá­lo. Se al­
guma vez esse indivíduo sai das órbitas legais e pratica 
alguma falta ou delito ligeiro, que não precisa ser puni­
do pela lei, o próprio patrão, em virtude do regulamen­
to que ali existe, e que estabelece direitos e deveres 
entre locatário e locador, lhe inflige castigos moderados 
como aqueles que infligem os pais aos filhos.16 
Outro momento importante neste processo de constru­
ção da ideologia do trabalho é a elaboração do conceito de 
vadiagem: com todo o alarmismo e os exageros caracterís­
ticos destes homens quando discutem assuntos que supos­
tamente ameaçam o seu mundo, o esforço agora é pela 
afirmação do ainda hoje poderoso mito da preguiça inata 
do “trabalhador nacional”.
O conceito de vadiagem se constrói na mente dos parla­
mentares do fim do Segundo Reinado basicamente a partir 
de um simples processo de inversão: todos os predicados 
as sociados ao mundo do trabalho são negados quando o 
objeto de reflexão é a vadiagem. Assim, enquanto o trabalho 
é a lei suprema da sociedade, a ociosidade é uma amea ça 
cons tante à ordem. O ocioso é aquele indivíduo que, ne­
gando­se a pagar sua dívida para com a comunidade por 
meio do trabalho honesto, coloca­se à margem da sociedade 
e nada produz para promover o bem comum.
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Há, portanto, uma incompatibilidade irredutível entre 
manutenção da ordem e ociosidade. Mas era essencial para 
os nossos deputados compreender melhor as causas da ocio­
sidade do trabalhador brasileiro. A crença nesta ociosidade 
parecia comum a todos, e citava­se, por exemplo, o cai pira 
paulista, “um verdadeiro parasita, que consome ape nas e 
nada produz”.17 Como explicar esta anomalia? Um dos de­
putados nos dá uma explicação didática, elaborando um 
con ceito que ele chama de “lei da necessidade”.18 Segundo 
ele, nos países europeus e asiáticos se acha realizada a teoria 
de Malthus e Ricardo, ou seja, há um excesso de população 
em relação à capacidade de produzir víveres. A vida é bas­
tante dura para essas populações, que se sentem então es­
timuladas para o trabalho pela própria necessidade de lu tar 
pela sobrevivência. No Brasil, ao contrário, o indivíduo 
encontra muitas facilidades para subsistir, pois o nosso solo 
é rico, o nosso clima é ameno e a abundância se nota por 
to da parte. Sendo assim, a nossa população não precisa ter 
hábitos ativos de trabalho, pois tem facilidade em obter a 
carne, o peixe, o fruto, e, além disso, a amenidade do clima 
permite ao brasileiro passar perfeitamente ao relento, sem 
cobrir o corpo com vestes pesadas e caras. Em nosso país, 
portanto, é preciso obrigar o indivíduo ao trabalho, pois a 
tentação da ociosidade é irresistível.
Ociosidade deve ser combatida não só porque negan­
do­se ao trabalho o indivíduo deixa de pagar sua dívida para 
com a sociedade, mas também porque o ocioso é um per­
vertido, um viciado que representa uma ameaça à moral e 
aos bons costumes. Um indivíduo ocioso é um indivíduo 
sem educação moral, pois não tem noção de responsabili­
dade, não tem interesse em produzir o bem comum nem 
possui respeito pela propriedade. Sendo assim, a ociosidade 
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é um estado de depravação de costumes que acaba levando 
o indivíduo a cometer verdadeiros crimes contra a proprie­
dade e a segurança individual. Em outras palavras, a vadia­
gem é um ato preparatório do crime, daí a necessidade de 
sua repressão. Assim se expressa a comissão parlamentar que 
estudou o projeto:
O projeto [...] revela a intenção de orientar espíritos 
transviados, corrigir disposições viciosas, antes que 
punir criminosos.
Se o legislador tem o imprescindível dever de consagrar 
no direito positivo prescrições tendentes à repressão dos 
crimes que atentam à ordem social, não lhe é lícito 
desconhecer que esses atos derivam­se, o mais das vezes, 
do relaxamento ou da depravação dos costumes, tendo 
geralmente como causa geradora a ociosidade.19 
Outro aspecto interessante é a relação estabelecida en­
tre ociosidade e pobreza. O projeto reconhecia que eram 
duas as condições elementares para que ficasse caracterizado 
o delito de vadiagem: o hábito e a indigência, especialmen­
te a última. Se um indivíduo é ocioso, mas tem meios de 
garantir sua sobrevivência, ele não é obviamente perigoso à 
ordem social. Só a união da vadiagem com a indigência 
afeta o senso moral, deturpando o homem e engendrando 
o crime. Fica claro, portanto, que existe uma má ociosidade 
e uma boa ociosidade. A má ociosidade é aquela caracterís­
tica das classes pobres, e deve ser prontamente reprimida. 
A boa ociosidade é, com certeza, atributo dos nobres depu­
tados e seus iguais... 
Os parlamentares reconhecem abertamente, portanto, 
que se deseja reprimir os miseráveis. Passam a utilizar, então, 
o conceito de “classes perigosas”, avidamente aprendido nos 
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compêndios europeus da época. Segundo Alberto Passos 
Gui marães, o termo “classes perigosas” apareceu original­
mente na Inglaterra e se referia às pessoas que já houvessem 
passado pela prisão ou às que, mesmo ainda não tendo sido 
presas, haviam optado por obter o seu sustento e o de sua 
família por meio da prática de furtos e não do trabalho.20 
Esta utilização do termo, por conseguinte, é bastante res­
trita, referindo­se apenas aos indivíduos que já haviam aber­
tamente escolhido uma estratégia de sobrevivência que os 
colocava à margem da lei. Os nossos deputados, contudo, 
citam principalmente autores franceses e alargam conside­
ravelmente as proporções do termo.21 Os legisladores bra­
sileiros utilizam o termo “classes perigosas” como sinônimo 
de “classes pobres”, e isto significa dizer que o fato de ser 
pobre torna o indivíduo automaticamente perigoso à socie­
dade. Os pobres apresentam maior tendência à ociosidade, 
são cheios de vícios, menos moralizados e podem facilmen­
te “rolar até o abismo do crime”. Diz um dos deputados:
As classes pobres e viciosas [...] sempre foram e hão de 
ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de 
malfeitores: são elas que se designam mais propriamen­
te sob o título de — classes perigosas —; pois quando 
mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato 
de aliar­se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um 
justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social 
cresce e torna­se de mais a mais ameaçador, à medida que 
o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é 
pior, pela ociosidade.22
Resta situarmos como os nossos deputados percebem 
a inserçãodo imigrante neste mundo do trabalho em pro­
cesso de construção ideológica. O artigo 3o do projeto sobre 
TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 76 25/07/2012 09:43:36
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a repressão da ociosidade prevê que o estrangeiro reinci dente 
no delito de vadiagem poderá ser expulso do país. O rigor 
da pena para o estrangeiro reincidente e o fato de que qua­
se não se menciona o imigrante nestes debates sobre a ocio­
sidade mostram bem que o consenso a respeito do trabalha­
dor imigrante já havia sido atingido anteriormente. Como 
mostra José de Souza Martins, as classes dominantes pen­
savam que o imigrante deveria ser “morigerado, sóbrio e 
laborioso”,23 isto é, ao cultivar as principais virtudes consa­
gradas na ética capitalista, o imigrante deveria servir de 
exemplo ao trabalhador nacional. O imigrante e sua família 
deveriam estar sempre dispostos ao trabalho árduo e às 
condições difíceis de vida, pelo menos nos primeiros tempos, 
sendo que estes sofrimentos seriam mais tarde compensados 
pelo acesso à pequena agricultura familiar. Dentro deste 
contexto, é fácil entender o porquê do rigor da pena do 
estrangeiro que era detido por vadiagem: destinado a servir 
de exemplo, de protótipo do tra ba lha dor ideal na ordem 
capitalista que se anuncia, sua não­adequação a estes parâ­
metros era vista como uma amea ça à ordem social. Ressal­
te­se, porém, que esta visão positiva do imigrante aplicava­se 
principalmente àqueles que se destinavam, nesse período, 
às zonas cafeeiras de São Paulo, especialmente os italianos. 
A situação parecia ser bem mais ambígua e contraditória 
quando estavam em questão, por exemplo, os 106.461 imi­
grantes portugueses, geralmente homens solteiros e empre­
gados no pequeno comércio, que habitavam a cidade do Rio 
de Janeiro em 1890.24 Voltaremos a este último aspecto 
oportunamente.
Seguem­se algumas observações de caráter geral que 
darão não só a tônica das outras partes deste capítulo, mas 
TRABALHO LAR E BOTEQUIM.indb 77 25/07/2012 09:43:36
Daniel
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