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A memória é um dos mais importantes processos psicológicos, pois é responsável pela nossa identidade pessoal e por guiar em maior ou menor grau o nosso dia a dia. Ainda que sem perceber, estamos fazendo uso desse importante recurso cognitivo a todo momento (IZQUIERDO, 2011). Os Psicólogos usam a palavra memória para se referir aos variados processos e estruturas envolvidos no armazenamento e recuperação de experiências/informações. Se entramos no carro para ir para a faculdade, por exemplo, temos necessariamente que nos lembrar para onde estamos indo. Lembrar envolve diretamente a memória. Se não fosse a memória, sequer saberíamos o nosso nome ou como realizar alguma ação. Neste processo, percebemos que algumas memórias chegam até nós com mais facilidade e outras nem tanto. As pessoas que viveram conosco em um determinado acontecimento podem ser nossas aliadas neste trabalho de diálogo com o passado. Os fatos vão ficando cada vez mais nítidos quando ouvimos os relatos daqueles que compartilharam conosco as mesmas experiências (CARVALHO, 2016). No exercício de relembrar, percebemos que as memórias consideradas particulares também fazem parte da memória de outras pessoas, ainda que elas não tenham vivido a mesma experiência. Pessoas que nem se conhecem podem viver acontecimentos semelhantes. Esse exemplo nos faz compreender que a memória que julgamos ser só nossa, na verdade, habita a história de muitos outros. Por isso, dizemos que as memórias individuais passam a fazer parte de uma composição maior, que são as memórias sociais e/ou coletivas (CARVALHO, 2016). Memória individual x Memória coletiva: • Memória individual: são as impressões particulares sobre os fatos, compostas de detalhes e sequências que organizamos ao recordarmos. • Memória coletiva: são as impressões e registros de memórias significativas para um conjunto de pessoas, porque fazem parte das histórias de vida deste grupo e compõem sua identidade. Para Maurice, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, uma vez que as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos e paixões que atribuímos a nós são, na verdade, sugeridas pelo grupo (HALBWACHS, 1990, p. 25). REFERÊNCIA: OLIVEIRA, Janderson Carneiro de; BERTONI, Luci Mara. Memória coletiva e teoria das representações sociais: confluências teórico-conceituais. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte , v. 12, n. 2, p. 244-262, dez. 2019 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983- 82202019000200005&lng=pt&nrm=iso> Foi por meio da consciência coletiva, condição imprescindível para que esses elementos fossem evocados e problematizados por Maurice, que este pensa a memória a partir dos quadros ou contextos sociais de referências, que denominou de Memória Coletiva (DUVIGNAUD, 2006). • Esses quadros correspondem a todos os ambientes que os indivíduos se relacionam, como escola, igreja, trabalho etc. Desse modo, inserido na corrente sociológica do pensamento de Durkheim, o que chamou atenção de Maurice Halbwachs foi justamente a possibilidade da elaboração de um conceito de memória que potencializasse a condição de fenômeno coletivo. Ao se preocupar com o modo pelo qual a experiência passada se reverbera nos espaços grupais – famílias, instituições, classes sociais, grupos religiosos –, Halbwachs introduz no campo das ciências sociais o conceito de Memória Coletiva. Desse modo, para Maurice, a memória carece do lastro de materialidade, não uma materialidade pura, individual, mas sim uma materialidade relacionada a um determinado contexto social, uma vez que recordar remete sempre a uma relação com algo ou alguém, seja este o outro, o espaço, o tempo etc. (HALBWACHS, 1990, p. 53 e 54). Então, a Memória Coletiva corresponde a um produto social, onde características ou fatores sociais, espaciais e temporais vão sendo compartilhados e assimilados pelo grupo. Esta fornece dados para a constituição de memórias individuais. Dessa forma, a memória está contida na sociedade que a (re) constrói. Nós ressignificamos a Memória Coletiva para formarmos a nossa memória individual, a qual diz respeito aos reflexos e interpretações das memórias coletiva, relacionadas ao contexto em que o indivíduo está vivenciando. A Memória Coletiva fornece fatos que de alguma forma se relacionam com o presente, enquanto outras memórias são literalmente esquecidas (muitas vezes, pela dor que causam). Existem diversas memórias coletivas, seja sobre os ideais de vida, valores familiares, religiosos etc. É ela que garante a integração deste indivíduo em seu grupo social e fornece os dados para que este se integre ao meio, possa agir, e formar a sua memória “individual”. Um grande exemplo é o ressentimento. O rancor/ressentimento é um dado histórico que faz parte da memória coletiva. Em algumas comunidades, por exemplo, podemos perceber o rancor que uma família sente em relação à outra por conta de uma discussão em um passado distante, algo que é passado de geração em geração – isso nos mostra que os ressentimentos em uma memória coletiva em relação REFERÊNCIA: OLIVEIRA, Janderson Carneiro de; BERTONI, Luci Mara. Memória coletiva e teoria das representações sociais: confluências teórico-conceituais. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte , v. 12, n. 2, p. 244-262, dez. 2019 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983- 82202019000200005&lng=pt&nrm=iso> aos acontecimentos pretéritos pode se tornar visível em uma sociedade. Um exemplo maior, que abrange todo o mundo, é o rancor constante entre a igreja protestante e a católica. A memória, para Maurice (1950/2006), necessita de uma materialidade, que por sinal é construída socialmente, ao passo que a recordação, nessa perspectiva, sempre nos leva a uma dimensão racional com um determinado espaço e um determinado tempo (HALBWACHS, 1990, p. 53). O ato de recordar somente se materializa mediante as lembranças de outras pessoas, situadas em um tempo e espaço determinados, ou seja, em determinados contextos ou quadros sociais, a exemplo da família, da igreja etc., perpassando, pois, elementos culturais e sociais, capazes de potencializar os significados das experiências individuais e coletivas (SANTOS, 1998). Maurice (1950/2006) compreende que a memória pode ser desencadeada na relação com outras pessoas, tendo em vista que estas também estão inseridas no meio social, em que os fatos e os acontecimentos ocorrem, à medida que essa relação com o outro e com os fatos potencializa a reconstituição ou a reconstrução da recordação (HALBWACHS, 1990, p. 25). • Exemplo: relação estabelecida entre professor e aluno. Um ex-professor deu aula durante muito tempo, cerca de uma década ou mais, na escola que determinado aluno estudou. Ao se reencontrarem, o professor é imediatamente reconhecido pelo aluno, ao passo que este não é recordado pelo professor. Assim, o aluno o tempo todo descreve as características de sua turma, os fatos marcantes que aconteceram naquele ano e comenta sobre seus amigos, mas o professor não consegue lembrar e nem mesmo reconhecê-lo. Contudo, caso esse encontro tivesse ocorrido entre dois alunos, provavelmente um lembraria do outro, visto que a relação/o contato entre professor e aluno é pontual, mas entre aluno e aluno é mais frequente (maior contato = maior reconstrução da recordação). Assim, a memória do aluno se conservou de uma maneira mais sólida se comparada com a memória do professor. Nota-se que a memória coletiva reporta sempre a um componente afetivo e relacional às vivências, de modo que esquecer um período da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam (HALBWACHS, 1990, p.33). Se a memória coletiva tira sua força e sua duraçãopor ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Assim, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes (HALBWACHS, 1990). Construção social da memória: “esse processo é sempre uma forma de conhecimento: de fatos, de cronologias, de instituições, de costumes, de leis, da linguagem, ou seja, toda uma gama de recursos de contextualização e significação das experiências pessoais e grupais.” (CARVALHO, 2016). REFERÊNCIA: OLIVEIRA, Janderson Carneiro de; BERTONI, Luci Mara. Memória coletiva e teoria das representações sociais: confluências teórico-conceituais. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte , v. 12, n. 2, p. 244-262, dez. 2019 . A investigação da história familiar serve para ajudar o indivíduo a tomar conhecimento da sua história, da história das suas raízes, de acontecimentos que marcaram a vida de seus antepassados (JUSTINO, 2017, p. 29). Por exemplo, as mortes prematuras, os acidentes não comentados, os lutos difíceis, as histórias de amor fracassadas, as características pessoais etc., são fatos e dados que podem ser considerados significativos em uma determinada família. Essas informações devem chegar à consciência do indivíduo para que possamos compreender as projeções, identificações e repetições que passam de forma inconsciente de uma geração para outra, podendo, assim, compreender sua história e entender qual seu papel na família (JUSTINO, 2017, p. 29). Enquanto esses conteúdos continuam no inconsciente, a tendência é a repetição (acting/atuação, na Psicanálise). Ao investigar a história familiar (memória), podemos perceber a origem das dificuldades do indivíduo. É um processo que busca na história da família o que pode estar impedindo a pessoa de avançar naquele momento. Representar socialmente diz respeito ao processo de transformar algo estranho e perturbador em algo comum e familiar. Ocorre quando somos capazes de colocar um objeto estranho em uma determinada categoria e rotulá-lo com um nome conhecido. As representações sociais perpassam pelas relações humanas, haja vista que o processo de criação das representações requer um componente coletivo, sustentando a ideia de que um indivíduo isolado não institui representações, mas carece do lastro da coletividade para que essas representações surjam e circulem em nosso tecido social (MOSCOVICI, 2000/2015). Ancoragem: “diz respeito ao processo pelo qual a ideia é trazida para o contexto do familiar, que inclui a categoria de “imagem comum”. Nesse momento, é dado nome àquilo que não tinha nome, sendo possível imaginá-lo e representá-lo [...]” (MOSCOVICI, 2003). Maurice relacionou esse processo criador das representações sociais com o que denominou quadros sociais da memória. As similaridades entre os quadros de referência da memória e o processo de ancoragem se sustentam na medida em que ambos compartilham a necessidade da interação social para a construção das memórias coletivas e das representações sociais, respectivamente (CARVALHO, 2016). Nesse sentido, evidencia-se a estreita relação do pensamento moscoviciano com a memória, na medida em que Moscovici (2000/2015) deixa claro que “categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele”. REFERÊNCIA: OLIVEIRA, Janderson Carneiro de; BERTONI, Luci Mara. Memória coletiva e teoria das representações sociais: confluências teórico-conceituais. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte , v. 12, n. 2, p. 244-262, dez. 2019 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983- 82202019000200005&lng=pt&nrm=iso>
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