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A república romana Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Apresentar os antecedentes históricos da república romana. Apontar as características da república romana. Identi� car a estrutura política da república romana. Introdução O Direito é um fenômeno histórico e tem como característica basilar a historicidade dos seus fundamentos e institutos. Isso significa dizer que o Direito que se usa atualmente é o resultado de um processo histórico que ele próprio construiu. Por isso, para compreender o Direito em todas as suas perspectivas, é muito importante observar as suas raízes históricas. Neste capítulo, você vai ler sobre uma das mais importantes etapas históricas do Direito Ocidental — o período em que Roma foi uma Repú- blica e criou um modelo para diversos institutos utilizados atualmente. Antecedentes históricos da república romana Roma nasceu como uma cidade-Estado denominada civitas, resultado de uma integração de povos primitivos (etruscos e latinos) que se agruparam em um território (as sete colinas) e uniram esforços para defendê-lo. Juntos, esses povos formavam aldeias ou tribos compostas por famílias patriarcais, constituindo uma gens, uma espécie de parentela, que, segundo José Carlos Moreira Alves, unia os descendentes de um antepassado comum, lendário e imemorável, do qual recebiam o nome gentilício e que os vinculava como parentes (2007, p. 10). De acordo com as fontes históricas, a data da fundação de Roma é atribuída ao período de 753–754 a.C., quando os patres (chefes de família) escolhiam um chefe comum (o rex) e então surgia a civitas quiritaria, depois de um longo processo de integração, com a monarquia como forma inicial de governo, sustentada em três órgãos: o rei, o Senado e o comício. O rei era o sumo pontífice, chefe máximo da religião, chefe do exército e juiz supremo. Era soberano vitalício, mas o seu cargo não era hereditário: quando morto o rei, os patres exerciam o poder durante cinco dias cada até que o povo aclamava e prestava obediência ao novo monarca (lex curiata de imperio), escolhido pelo predecessor ou por interrex de turno caso não tenha havido indicação. O Senado (senex, senectus) era uma espécie de conselho de anciãos, com- posto unicamente por homens da classe rica de Roma. A função primordial era assistir e aconselhar o rei nas tarefas de governo, mas, além disso, o Senado usava um poder próprio denominado autctoritas patrum para decidir sobre a validade das leis produzidas nas assembleias populares (comitia). Também era função do Senado governar na ausência do rei (interregnum). Esse órgão de poder simbolizava a sabedoria dos mais velhos porque se pressupunha que eles tinham uma experiência de vida mais longa. O comício era inicialmente uma assembleia popular, mas, ao contrário do que pode parecer, o sentido popular não tem semelhança com a ideia atual. Sabe-se que o antigo povo romano tinha se distribuído em três tribos, denominadas Ramnes, Tities, Luceres, sendo que cada uma se dividia em 10 cúrias, e as 30 cúrias formavam a assembleia geral dos patrícios, isto é, dos homens ricos. Por isso, apesar de ser chamada de assembleia popular, não representava toda a população, mas os integrantes da classe alta de Roma. Nas assembleias populares, eram tratados assuntos de caráter religioso, assim como atos que afetavam a vida dos grupos familiares ou gentilícios, como testamento e adoção. Assim, esse órgão tinha finalidade política e religiosa, além de contribuir para a defesa da civitas, porque era dela que se fornecia o contingente das tropas militares. Assim, havia duas classes sociais em Roma: os patrícios, que eram os ricos proprietários das terras (originariamente, era a única classe a tomar parte no poder de Roma), e os plebeus, que não tinham terras nem propriedades e, por isso, inicialmente eram excluídos do poder. Além disso, havia também a clientela, uma espécie de vassalagem que mantinha uma relação de depen- A república romana56 dência com famílias ricas, gerando uma relação baseada na confiança e que se dava entre pessoas livres com baixo status social, os clientes, e pessoas de alto prestígio social, os patronos. Todos estavam ligados à mesma religião, mas fundamentalmente à mesma “romanidade” (romanitas), que pode bem ser entendida como costumes e instituições romanas. Esses costumes baseiam o Direito pelo menos até o advento da Lei das XII Tábuas, sendo então a transmissão dos costumes, de geração em geração, que perpetua a forma de viver na Roma primitiva. Segundo contam as fontes, porém, um descontentamento dos patrícios colocou fim ao período monárquico por volta de 510–509 a.C., quando desti- tuíram o último rei, Tarquínio Soberbo, e inauguraram uma nova fase política: a república romana. A fundação de Roma é uma lenda descrita na obra Eneida do poeta Virgílio. Nela, o autor conta a história de dois irmãos gêmeos amamentados por uma loba (a lupa capitolina) e que, conhecendo a sua origem heroica, fundam uma cidade às margens do Rio Tibre. Essa imagem até hoje é símbolo de Roma. A Figura 1 ilustra a lupa capitolina. Figura 1. Lupa capitolina. Fonte: Lupa Capitolina (2013). 57A república romana Características da república romana A república romana é tradicionalmente colocada em um período que vai do século VI a.C. até 27 a.C., quando Otaviano vence a Batalha de Accio e inaugura o principado. Nesse período, que bem abarca seis séculos, dos 13 séculos que existirá história de Roma, é impossível traçar uma uniformidade, mas é certo que as características mais marcantes são a superioridade romana na espetacular expansão territorial, com habilidade no domínio militar e a criação de um sistema jurídico próprio. No campo militar, as três guerras contra Cartago, cidade de origem fenícia no norte da África (hoje Tunísia), foram o elemento histórico mais importante porque representaram o principal obstáculo da expansão romana no Mediter- râneo. Com a destruição de Cartago na terceira guerra em 202 a.C., deu-se o início do apogeu romano, com domínio do Mediterrâneo, expansão rumo ao norte da Europa e norte da África. Também é característica muito importante a luta de classes dos clientes e plebeus contra os patrícios e o resultado dessa luta tanto no aspecto político como jurídico. Politicamente, depois de organizados, os plebeus passam a ter espaço de atuação equiparado aos patrícios. No campo jurídico, a Lei das XII Tábuas, marco da primeira lei do Ocidente, é resultado das reivindicações da classe pode de Roma. A passagem da monarquia para a república representa o aparecimento de uma plu- ralidade política, desde os cargos de magistrados até as assembleias populares, mas o que mais se destaca nessa fase é a pluralidade das fontes do Direito. Se na monarquia a fonte primordial era o costume, na república, são fontes do Direito o costume, a lei, os editos dos magistrados e a jurisprudência (ALVES, 2007, p. 28). A estrutura política da república romana Mesmo inspirada no modelo grego, a república romana é essencialmente diferente, porque preserva a existência das assembleias aristocráticas e au- menta o número de tipos diferentes de assembleias. Além disso, ao contrário do modelo da república de Atenas, em que o voto de cada cidadão livre era A república romana58 igual, em Roma, o voto e a escolha dos integrantes da classe política se davam por indicação dos pertencentes à elite da sociedade. Apesar de a tradição afirmar uma revolução na retirada do Tarquínio do poder, é certo que a instauração da ordem republicana não se deu com uma ruptura violenta com a constituição real. Passou longo tempo até que o rei foi convertido em um simples chefe dos assuntos religiosos e somente em meados do século IV a.C. ficou mais clara a estrutura política republicana. Por volta de 367 a.C., foram promulgadas as Leis de Licínio, e então dois cônsules passaram definitivamentea comandar a nova estrutura política, baseada nas pluralidades de magistraturas e assembleias, mas sustentada também no poder do Senado (GILISSEN, 1986). S.P.Q.R. é uma expressão inscrita nos estandartes e em todos os documentos oficiais romanos significando literalmente como o poder político estava estruturado no período: “O Senado e o povo romano”, nessa ordem. Assim, o Estado patrício-plebeu se caracteriza pela harmonia existente entre os três órgãos: o Senado, o comício e as magistraturas, sendo que, nesse período, um dos grandes feitos da história de Roma foi a essencial integração da plebe nos assuntos políticos, participando e compondo os órgãos de poder. Para José Carlos Moreira Alves (2007), nesse período, o Senado se torna o verdadeiro centro do governo, porque, como órgão permanente, determina a direção da política externa de Roma e interfere em diversos setores da Administração Pública, como guerra, fazenda, culto, direção do exército, designação de governadores das províncias, distribuição das funções dos magistrados, entre outros. Além disso, continuava determinando a validade das leis produzidas nas assembleias e fortaleceu o surgimento de uma fonte do Direito muito importante, o Senatus consultum, que, apesar de não ser uma lei no sentido formal, tem força de lei e cria o Direito Civil. Nesse período, ainda existiam as assembleias anteriores (comícios por cúrias), mas foram acrescentados o comício de centúrias, uma grande as- sembleia popular que integra 193 centúrias, e o comício das tribos, que eram assembleias representantes dos distritos urbanos (quatro tribos urbanas) e rurais (31 tribos rústicas), em um total de 35 tribos no século III a.C. É interessante que, nesse tipo de assembleia, a organização não era por origem familiar, como nos comícios por cúrias, ou por renda e cargo militar, como nos comícios por centúrias, por isso ficava mais fácil a participação ativa dos plebeus. 59A república romana Além dessas assembleias, existia ainda o conselho da plebe, que reunia os plebeus em interesses contrários aos patrícios. A partir da publicação da Lex Hortênsia em 287 a.C., o conselho da plebe passou a ser uma assembleia geral, com competência para votar leis para toda a população. Nessa estrutura, desenvolve-se o cargo de tribuno da plebe. Os mais famosos foram os irmãos Tibério e Caio Graco. A magistratura se estrutura em um sistema de repartição de competências de governo. Não constituem propriamente uma hierarquia, e suas funções não são exatamente bem delineadas, porque essa organização se justifica pela própria mentalidade elementar e prática que caracteriza o espírito romano. As principais características das magistraturas são: temporalidade — duração de 1 ano, prorrogável por mais 1; colegialidade — integram o cargo dois ou mais indivíduos; carreira honorífica (cursus honorum) — nela, o magistrado não recebe remuneração nenhuma pelo desempenho da função, por esta se tratar de uma honra. Aos atos de poder dos magistrados, podem se opor os tribunos das plebes com a intercessio (ius intercessionis), que nada mais é do que a forma de atacar as decisões dos magistrados, que, afetando o governo da cidade, consideram prejudiciais para os direitos ou interesses da plebe. Além disso, todo e qualquer cidadão pode recorrer aos comícios com um ato denominado provocatio ad populum, que serve para se opor contra a pena ou castigo imposto pelo magistrado. Os principais cargos de magistrados são: cônsules — chefes do Estado e do exército; pretores — chefes militares com o encargo de administrar a justiça, por isso, seu papel foi muito importante no campo jurídico; censores — magistrados extraordinários, porque a sua temporalidade é de 18 meses, e eleitos de 5 em 5 anos, têm dupla função: contagem dos cida- dãos para fins de sufrágio, tributo e serviço militar e tutela dos costumes; edis — cuidam da cidade quase como uma polícia cidadã; questores — magistrados auxiliares dos cônsules e dos censores que atuam em sede criminal; ditador — magistrado único supremo e extraordinário que destitui o poder dos cônsules em caso de grave perigo para Roma. A república romana60 Assim, todo magistrado tem potestas, que é um poder de mando. Quando se trata de cônsules, ditadores e pretor, essa potestas é suprema e se chama imperium: poder máximo do qual nenhum cidadão pode subtrair-se. São atributos do imperium de um magistrado: o supremo comando militar; o ius edicendi (direito de dirigir-se ao povo e ditar ordens); a iurisdictio (faculdade de administrar a justiça); o ius agendi cum patribus e cum populo (direito de convocar e presidir respectivamente o Senado e os comícios); a coercitio (poder disciplinatório); o ius auspiciorum (direito de consultar a vontade dos deuses). Para a história do Direito, o cargo mais importante é o do pretor, que poderia ser de dois tipos: o pretor urbano (urbs significa cidade) e o pretor peregrino, que cuidava de assuntos que envolvessem estrangeiros. Para fazer uma comparação dos termos república no período romano e república nos dias atuais, veja este exemplo: “a res publica, a coisa pública, não é nem a República, nem o Estado no sentido moderno; designa a organização política e jurídica do populus na qual o cidadão subordina o seu próprio interesse (res privata) ao da comunidade” (GILISSEN, 1986, p. 83). ALVES, J. C. M. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2007. GILISSEN, J. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian Foundation, 1986. LUPA CAPITOLINA. In: Wikipédia. 2013. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/ wiki/R%C3%B4mulo_e_Remo#/media/File:0_Lupa_Capitolina_(2).JPG>. Acesso em: 30 nov. 2017. Leitura recomendada MEIRA, S. História e fontes do Direito romano. São Paulo: Saraiva, 1966. 61A república romana O Direito e as estruturas políticas no Império Romano Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identi� car a estrutura política no Império Romano. Classi� car os instrumentos jurídicos criados no Império Romano. Explicar o apogeu e a queda do Império Romano. Introdução O Império Romano foi a terceira e última fase da história política da Roma Antiga, período em que ocorreram o esplendor e a decadência da civilização romana. Neste capítulo, você vai ler sobre os principais fatos que determinaram o apogeu e a queda do Império Romano, identificando as suas estruturas políticas e classificando os instrumentos jurídicos criados nesse período. A estrutura política no Império Romano Podemos identifi car muitos motivos como responsáveis pela crise da república. O mais importante é a formidável expansão dos seus limites territoriais, que já na época de Júlio César ia desde o oeste da Europa (Hispânia e Gália) até o Oriente próximo, dominando todo o Mar Mediterrâneo, ou mare nostrum. Essa expansão territorial foi muito efi caz para a dominação e globalização implementada no período do Império Romano, mas foi também causa da crise das instituições republicanas, que não encontraram outra solução senão a utilização da ditadura como expediente recorrente. Sebastião Cruz (1969) delimita que, além da expansão territorial, a crise da república também se justificou pela grave desmoralização da gente de Roma, pelo aparecimento de novas classes sociais e pelo próprio antagonismo da velha nobreza e da nova aristocracia (armadores de navios, banqueiros, industriais). Devido a isso, ocorreram lutas de classe de todas as sortes, culminando com a revolta dos escravos que pretendiam liberdade. A divisão da história de Roma pode ser assim delimitada: período da realeza ou monarquia, que começou em 753 a.C. com a fundação de Roma e foi até 510 a.C., com o início da república romana; fase republicana, que foi até 27 a.C., quando Otaviano inaugurou o principado; dominato, que começou em 285 d.C., iniciado por Diocleciano,fase absolutista do Império que, apesar de acabar em 476 d.C. no Ocidente, tem marco final no Oriente em 565 d.C., data da morte de Justiniano, responsável pela compilação de todo o Direito romano. A estrutura política que se instaurou na nova fase da história de Roma foi o principado, primeira etapa do que na historiografia se chama de Império Romano, que, nesse primeiro período, é conhecido como alto império. Pelo menos três séculos englobam esse período e o próximo, chamado de baixo império ou dominato. Este se diferencia politicamente do primeiro porque são instaurados uma monarquia absoluta e um regime de tetrarquia, governo de quatro indivíduos a partir da divisão do território em pars ocidens e pars oriens. Além disso, nessa primeira fase, podemos identificar as seguintes insti- tuições político-administrativas: Príncipe — usa-se a palavra princeps para designar a fi gura mais importante da nova constituição política, que é o imperador. Senado — no início do Império, o Senado ainda tem muita importância na estrutura política, principalmente porque produz uma fonte de Direito Civil, com força de lei, denominada senatus consultum. No setor político propriamente, vai perdendo força, e a sua autoridade vai sendo substituída pela vontade do imperador. Assembleias populares — as assembleias não foram formalmente abolidas por Otaviano, mas foram, aos poucos, esvaziadas e chegam ao fi m por inatividade. O Direito e as estruturas políticas no Império Romano64 Governadores das províncias — província signifi ca originariamente cargo confi ado a um magistrado (CRUZ, 1969), mas secundariamente signifi ca o próprio território sobre o qual o magistrado exerce seu poder. Na prática, todos os territórios fi cavam fora da península itálica. Durante a república, um magistrado governava esses territórios; no principado, Otaviano divide em dois tipos de províncias (senatoriais e imperiais) e decide quem as governa. Burocracia funcional ou funcionários administrativos — já desde Otaviano surge uma nova estrutura administrativa composta dos seguintes cargos: legados, prefeitos, procuradores e auxiliares. A Figura 1 apresenta um dos símbolos do Império Romano: o Coliseu. Figura 1. Coliseu romano, um dos mais famosos símbolos do Império Romano. Fonte: Belenos/Shutterstock.com. O princeps e a constituição política no principado Em 23 a.C., Otaviano renunciou ao cargo de cônsul que exercia desde 27 a.C., mas foi aclamado Augusto pelo Senado e recebeu a tribunicia potestas em caráter vitalício. A tribunicia potestas era o direito e o poder de um tribuno sobre a plebe, contendo nele tanto o direito de veto das demais deliberações como o direito de administrar a justiça. Ele não era magistrado, mas era o primeiro cidadão, que reunia em si muitos outros títulos, como Augustus, 65O Direito e as estruturas políticas no Império Romano Imperator e Pater Patriae. Assim, além de inaugurar com a sua habilidade política a Pax Augusta, fez uma série de reformas. Entre elas, criou o consilium principis, que, segundo Sebastião Cruz (1969), no surgimento, era composto por algumas pessoas escolhidas pelo imperador por serem amigos próximos e integrantes da família, mas logo depois se transforma em um órgão permanente constituído principalmente por juristas com duas atribuições primordiais: (adsessores) assistir como técnicos os juízes no tribunal do imperador e (consiliarii) assistir como técnicos o próprio imperador na elaboração dos documentos legislativos. De qualquer forma, Otaviano foi um hábil político, porque, de uma forma muito estratégica, conseguiu criar uma estrutura política sui generis. José Carlos Moreira Alves (2007, p. 32) descreve: [...] O principado apresenta dupla faceta: em Roma, é ele monarquia mitigada, pois o príncipe é apenas o primeiro cidadão, que respeita as instituições polí- ticas da república; nas províncias imperiais, é verdadeira monarquia absoluta, porque o princeps tem aí poderes discricionários. Com isso, o primeiro imperador consegue agradar tanto aqueles que pre- tendiam ver restaurada a monarquia como os republicanos, já que não acaba imediatamente com as magistraturas, mas começa a reunir em suas mãos todos os poderes antes repartidos na estrutura democrática e republicana do período anterior. Como o cargo não é propriamente de magistrado, mas uma inovadora forma de governar, Otaviano vai esvaziando o poder das magistraturas sem acabar com elas imediatamente. Um dos poderes mais importantes que concentrou nas suas mãos foi o imperium proconsulare maius, pelo qual, além de comandar todos os exérci- tos, poderia fiscalizar pessoalmente a administração de todas as províncias (tanto as imperiais, submetidas diretamente ao princeps, como as senatoriais, submetidas ao Senado), o que, na prática, dava a ele poder pleno de comando de toda a estrutura política inaugurada com ele. E então uma surpreendente evolução: as antigas magistraturas, responsáveis pelo esplendor da democracia em Roma, agora submetidas ao poder e controle do imperador, transformaram- -se em um corpo burocrático de funcionários estatais. O Direito e as estruturas políticas no Império Romano66 A classificação da estrutura funcional e burocrática é a seguinte (CRUZ, 1969, p. 75): Legati Augusti pro praetore — encarregado do governo das províncias. Legatus legionis — encarregado do comando das legiões. Praefecti praetorio — chefe da guarda imperial, superintendente em assuntos cíveis e criminais. Praefectus urbi — encarregado de substituir o imperador e policiar a cidade. Praefectus vigilum — encarregado do policiamento noturno. Praefectus annonae — encarregado de abastecer a cidade e regular os preços, além de jurisdição sobre delitos. Praefectus aerarii — encarregado da administração do tesouro público, além da jurisdição em negócios fiscais. Praefectus Aegypti — encarregado de governar o Egito. Procuratores — encarregados de administrar a fazenda pública. Os instrumentos jurídicos criados no Império Romano O Direito nunca está dissociado do poder. Mudando a estrutura constitucional e o deslocamento do poder, as fontes de Direito sofrem as mesmas variações de um reboque que segue o automóvel. Mais do que isso, algumas fontes jurídicas são criadas para legitimar e assegurar a efetividade do exercício do poder do imperador. Essa nova estrutura política iniciada no Império Romano determina as seguintes fontes do Direito: o costume; as leis comiciais; o edito dos magistrados; os senatus consultum; as Constituições Imperiais; a jurisprudência. 67O Direito e as estruturas políticas no Império Romano As fontes do Direito Costume Chamado de mos maiorum, foi fonte primária no período da realeza e fonte material para a positivação da Lei das XII Tábuas, mas chegou ao período clássico sofrendo diversos ataques, desde a própria expansão territorial até a crise da república. Como fonte de Direito, pode ser compreendido como “Direito baseado no costume o que o tempo consagrou, sem a intervenção da lei, com a aprovação geral” (Cícero. De inventione, II, 22, 67). No principado, passou a ter colocação secundária em face da concentração do poder nas mãos do princeps. Leis comiciais O mais importante sobre as leis comiciais no tempo do Império refere-se à chamada reforma de Augusto ou Leis Júlias: Leges Juliae Judiciariae e Lex Julia de maritandis ordinibus. Depois dessas leis, os comícios entraram em franca decadência e chegaram ao fi m pela falta de conteúdo legislativo a votar, principalmente porque, pela tribunicia potestas, a proposta era do imperador, e este, com o intuito de concentrar o poder (e o Direito) nas suas mãos, não utiliza mais esse expediente legislativo. Segundo José Carlos Moreira Alves (2007, p. 37), “é certo, todavia, que o poder legislativo dos comícios não foi abolido, expressamente, mas desapareceu por ter, de fato, deixado de ser exercido pelos comícios”. Editodos magistrados O edito era uma fonte do Direito provinda do atributo da magistratura de ditar regras. No início da república, essa fonte se dava com uma proclamação oral do programa de governo do magistrado, sendo que, mais tarde, passou a ser escrito em uma tábua pintada de branco (álbum). Essa fonte foi uma das mais poderosas na história de Roma, porque, por meio dela, os magistrados tinham função judiciária (o pretor) e faziam o planejamento do seu trabalho, que se desdobrava na concessão das ações judiciais e, por isso, do direito de processar. Cada pretor tinha o seu edito, mas poderia repetir o anterior. Assim, consolidaram-se as produções edilícias e formaram um conjunto jurídico espetacular, cujo nome pode ser dado de ius honorarium ou direito O Direito e as estruturas políticas no Império Romano68 decorrente da atuação do pretor. Essa fonte formidável de Direito também sofreu a tendência de concentração do poder nas mãos do imperador, o que se deu pela elaboração do edito perpétuo. O imperador Adriano designou o jurisconsulto Sálvio Juliano (130 d.C.) para elaborar um texto único que reunisse o conteúdo de todos os anteriores, dando, assim, imutabilidade ao texto. Depois de confeccionado esse documento, toda produção por meio de editos só poderia se dar por solicitação do princeps ou do Senado. Senatus consultum Essa fonte inicialmente signifi cava uma consulta feita ao Senado (senatus + consultum), já que, desde os tempos mais remotos, alguns magistrados consultavam o Senado para acessar a sua experiência (senex) a fi m de resolver determinadas questões, mesmo que não fossem ainda obrigados a segui-las. Assim, era uma espécie de parecer emanado do Senado sobre assuntos impor- tantes na vida dos cidadãos. Inicialmente não tinham força vinculativa, sendo que, a partir do primeiro século a.C., tornaram-se fonte mediata de Direito, mormente por meio do edito do pretor, e chegam ao principado como fonte direta e imediata de Direito, criando o Direito Civil. Foi uma fonte importante no campo do Direito Privado, tratando de di- versas matérias, desde Direito Sucessório (senatus consultum Tertuliano e senatus consultum Orficiano, que determinam a vocação hereditária entre mães e filhos, cumpridos diversos requisitos) até Direito Obrigacional (senatus consultum macedonianum, que proibiu o empréstimo de dinheiro a quem não fosse plenamente capaz para todos os atos da vida civil). Constituições imperiais São decisões de caráter jurídico proferidas diretamente pelo imperador. Sebastião Cruz é bem incisivo em ensinar: “diretamente quer dizer, no sentido de que o princeps não necessita de cooperação nem mesmo mediata ou indireta quer do senado quer do povo, são decisões que procedem do imperador unilateralmente” (CRUZ, 1969, p. 269). Essa fonte de Direito foi muito poderosa. O jurisconsulto Gaius, descrevendo o seu alcance, afi rmou que a Constituição Imperial é tudo aquilo que o imperador constitui por decreto, por edito ou por epístola, o que nunca se duvidou que tivesse força de lei, já que o próprio imperador recebe o poder em virtude de uma lei (lex curiata de império). 69O Direito e as estruturas políticas no Império Romano Jurisprudência A palavra jurisprudência (iurisprudentia) signifi ca ciência do Direito, sabedoria. Primitivamente, eram os sacerdotes máximos (pontífi ces) que realizaram esse saber. Depois, foi criado um corpo de jurisconsultos, chamados de jurisprudentes, cuja tarefa era dedicar-se a esse saber. Foi conceituada pelos próprios romanos como conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto. O exercício da jurisprudência se dava com três principais atividades: cavere — auxiliar na elaboração de negócios jurídicos, agere — auxiliar no desen- volvimento do processo e respondere — apresentar uma resposta ou opinião a questões jurídicas controvertidas. Esta última atividade, no período do Império, passou a se chamar responsa prudentium, ou resposta dos jurisconsultos, que era então uma fonte do Direto porque o imperador concedeu-lhe uma autoridade (ius respondendi). Gaio afirmou que as respostas dos prudentes são as sentenças e as opiniões daqueles a quem é permitido constituir o Direito (Gaio, 2004). A partir do imperador Adriano, essas respostas têm força de lei. As Constituições Imperiais se apresentam, principalmente, sob um dos quatro tipos (ALVES, 2007, p. 38): Edicta (editos) — normas gerais que, em virtude do ius edicendi do príncipe, dele emanavam e se assemelhavam, na forma, às oriundas dos magistrados republicanos. Mandata (mandatos) — instruções que o príncipe transmitia aos funcionários imperiais, principalmente aos governadores e funcionários das províncias. Rescripta (rescritos) — respostas sobre questões jurídicas que o imperador dava a particulares, ou a magistrados e a juízes; no primeiro caso, diziam-se subscriptio- nes, porque eram escritas abaixo da pergunta, para que a resposta desta não se separasse; no segundo, epistulae, pois eram redigidas em carta. Decreta (decretos) — eram sentenças prolatadas pelo príncipe em litígios a ele submetidos em primeira instância ou em grau de recurso. O apogeu e a queda do Império Romano A partir de determinado momento, a estrutura político-administrativa estabe- lecida no início do Império (principado) começa a apresentar falhas e incon- sistências, sendo inefi caz diante das novas realidades sociais, econômicas e religiosas que se apresentavam. Segundo os ensinamentos de Sebastião Cruz O Direito e as estruturas políticas no Império Romano70 (1969), podem ser identifi cados como circunstâncias motivadoras da crise do principado e determinantes para o estabelecimento do poder absoluto do im- perador no dominato: as lutas políticas internas em matéria de sucessão dinástica; o fato de muitas províncias pretenderem se equiparar politicamente a Roma; a falta de prestígio da autoridade romana; os violentos conflitos entre o Império Romano e o cristianismo; a crise econômica que assolava a população, submetida a altíssimos impostos; a extraordinária extensão territorial do Império; a permanente migração dos povos, chamada de invasão dos bárbaros. O início do dominato se deu com Diocleciano, que se intitulava Dominus et Deus (senhor e Deus), isso porque o seu poder não provinha mais de uma lex curiata de Império, mas de uma investidura divina (CRUZ, 1969), tendo cabimento até mesmo uma adoratio, justo quando, em sede social, a população começava a se identificar com o cristianismo, abrindo ainda mais o abismo entre a autoridade romana e o súdito por ela governado. As primeiras reações do governo são a perseguição e a violência contra os cristãos, mas um imperador chamado Constantino determinou, em 313 d.C., a tolerância religiosa e fez as bases para o cristianismo se tornar a religião oficial do Império. Mas não é só essa a importância do período do dominato: nele, o Império foi dividido, e a parte ocidental recebeu toda a cultura e religião latina proveniente dessa história magnífica. A queda do Império Romano pode ser resultado das migrações paula- tinas e silenciosas dos povos bárbaros ainda dentro desse período. Essas infiltrações criaram um regionalismo no vastíssimo território romano e principalmente nos exércitos responsáveis por protegê-lo, assim como na população. Mesmo com a atitude de Antonino Caracala, em 212 d.C., de elaborar uma Constituição Imperial, determinando e concedendo a cidadania romana a todos os habitantes do Império, fator positivo para a tributação e contingente bélico, não foi possível impedir o esvaecimento da unidade espiritual da romanidade, aquele fator importante que era motivo de orgulho dos primeiros tempos de Roma. De tudo isso, uma conclusão é necessária: a herança cultural do Império Romano. Essa herança cultural pode ser compreendida em muitos sentidos. Jean Gaudemet (1988, p. 50) escreveu um texto muito inspiradorsobre essa herança, intitulado O milagre romano, no qual descreve: 71O Direito e as estruturas políticas no Império Romano [...] A herança jurídica de Roma, a mais citada e a mais evidente, inscreve-se numa herança ideológica mais ampla. Não nos cabe aqui apreciar seu alcance no campo das letras e das artes. Mas ela é inegável no pensamento político. [...] Em diversos outros pontos, nossos códigos nada mais fizeram do que conservar a herança romana. Sem dúvida, muitas reformas, sobretudo nos últimos trinta anos, levando em conta as transformações da sociedade e das mentalidades, romperam com as tradições romanas. A herança se enfraquece, mas não desaparece. E, para além da linguagem comum e dos sistemas econômicos aparentemente divergentes, talvez continue sendo ela a melhor garantia de eventuais aproximações entre os direitos das várias nações. No link a seguir, você encontra o caminho para um artigo que relaciona as fontes de Direito no período romano e a metáfora das fontes: https://goo.gl/rjtxxq ALVES. J. C. M. Direito romano. Rio de janeiro: Forense, 2007. CRUZ, S. Direito romano. Coimbra: Almedina, 1969. GAIO. Institutas do jurisconsulto Gaius. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. GAUDEMET, J. O milagre romano: os homens e a herança no mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. Leituras recomendadas GILISSEN, J. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste, 2008. ROLIM, L. A. Instituições de Direito romano. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. O Direito e as estruturas políticas no Império Romano72 Institutos de Direito Romano Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir o que são institutos de Direito Romano. � Demonstrar a importância dos institutos de Direito Romano no Direito moderno. � Analisar os principais institutos que ainda existem. Introdução O Direito Romano foi um conjunto de regras jurídicas criadas que tiveram vigência na Antiguidade: outro tempo, outra sociedade, outros costumes. Mas algo de surpreendente há que, de poucas tribos, Roma se transfor- mou em um Império; de poucos homens, fez um exército avassalador; principalmente, de alguns costumes, criou as bases de todo o Direito Privado que usamos. Mas o que há de tão espetacular nesse Direito para ter sobrevivido por mais de 2 mil anos? Neste capítulo, você vai ler sobre os institutos de Direito Privado criados pelos romanos e que estão ainda hoje no cotidiano da aplicação do Direito brasileiro. Principais definições sobre os institutos de Direito Romano O início de tudo são os conceitos. Conceituar o Direito Romano parece útil para quem vai se dedicar a estudá-lo. A maioria dos estudiosos desse tema o identifica como um complexo de normas vigentes em Roma, desde a fundação lendária até a obra de Justiniano (Corpus Iuris Civilis). Mas nesse recorte temporal estão bons 13 séculos (VIII a.C. até VI d.C.). Em 13 séculos, variam não só as características da sociedade, mas principalmente os direitos que dela derivam. O marco final desse percurso, sendo a codificação de Justiniano, representa a cristalização de todo o direito anterior e, por isso, pode ser a base para os estudos de Direito Romano no período medieval e basear também a codificação moderna. Nessa etapa final, as categorias criadas no período de esplendor foram solidificadas. O jurisconsulto Gaio teve papel muito importante no Direito que chegou a essa etapa final. Ele foi um jurista do segundo século d.C. (época do Direito Clássico) e produziu um material de valor imprescindível para a formação do Direito Romano: ele elaborou as Institutas, e o seu objetivo era a exposição da matéria jurídica de forma elementar, como uma aula ou iniciação dos alunos no conteúdo jurídico. Nesse intuito de ensinar as principais categorias de Direito vigentes na sua época, Gaio demonstrou ser profundo conhecedor da história e da prática jurídica, sendo os seus ensinamentos o ponto de apoio para estudos poste- riores (como as Institutas Justiniano). Junto com outros, fez parte do rol de jurisconsultos que consolidaram os ensinamentos sobre Direito Romano na Antiguidade. Esse Direito se fundamenta na estrutura do sistema privado (é comum se deparar com a máxima “os romanos foram gigantes no Direito Privado e pigmeus no Direito Público”). São considerados institutos de Direito Romano aquelas categorias jurídicas que sus- tentam todo o sistema, como o direito das pessoas, a família, os bens e a propriedade, as obrigações e a sucessão. Também o Direito Processual está caracterizado como instituição de Direito Privado em face da forma de processar. As Institutas de Gaio são o ponto de apoio para analisar as principais instituições de Direito Romano. Nelas, o autor descreve que todo o Direito usado se refere às pessoas, às coisas e às ações. Nessa descrição, percorre quatro partes, dividindo a primeira (Comentário Primeiro) com o Direito das Pessoas e Direito de Família. A segunda parte (Comentário Segundo) se dedica à descrição dos bens, à aquisição da propriedade e aos demais direitos sobre as coisas alheias, e ensina a sucessão por testamento. No Comentário Terceiro, trata da sucessão sem testamento e do Direito das Obrigações. Dedica todo o Comentário Quarto ao Direito Processual, o que é plenamente justificável porque, no ordenamento jurídico romano (se fosse possível chamá-lo de or- denamento), o Direito nasce do processo. Institutos de Direito Romano74 A Figura 1 ilustra o ensino romano. Figura 1. Professor e alunos durante uma aula. Relevo em Trier. Fonte: Römische Schule (2017). Há ainda as Institutas de Justiniano. Esse material faz parte do Corpus Iuris Civilis, que, sem dúvida, é o maior documento jurídico já compilado do Direito Ocidental. O autor é o imperador Justiniano, que, no proêmio das Institutas, assim afirma (JUSTINIANO, 2005, p.17): [...] depois de reunidos os cinquenta livros do Digesto ou Pandectas, no quais está compilado todo o antigo direito, o que fizemos por meio do referido e excelso varão Triboniano e de outros varões ilustres e eloquentes, mandamos organizar estas Institutas em quatro livros para que constituíssem os primei- ros elementos de toda a ciência legítima do direito. Nestes livros, encontra-se resumidamente exposto o que antes vigorava e o que depois, obscurecido pelo desuso, recebeu nova luz pelo remédio imperial. Estas Institutas, para as quais contribuíram todas as Institutas dos antigos, e principalmente os Comentários de nosso Gaio, não só nas suas Institutas como também nas causas do dia a dia além de muitos comentários de outros citados, ao nos serem apresentadas pelos três jurisconsultos acima mencionados, foram por nós lidas e relidas, e lhes emprestamos a mesma força que às de nossas Constituições. [...] A leitura e o estudo das Institutas, tanto de Gaio como de Justiniano, demonstram a evolução e o grau de desenvolvimento dos institutos de Direito 75Institutos de Direito Romano Privado romano, desde os tempos mais remotos até a compilação concretizada no século VI da nossa era. O professor Sebastião Cruz (1969, p. 394) faz uma advertência muito importante: Gaius é um enigma, a começar pela própria denominação. Não se conhece o seu nome, poderia ser até mesmo um pseudônimo e significar ou uma pessoa ou um grupo de pessoas. Também não se sabe se era romano ou não, qual era a sua procedência, nem mesmo onde se formou. Ao que tudo indica, faleceu por volta do ano 180 d.C, vivendo no século II, mas, pelo seu texto, parece pensar e escrever como um jurista do século IV. Além disso, parece não ter sido conhecido no seu tempo, mas foi tão influente em etapas posteriores que o imperador Justiniano chegou a chamá-lo de Gaius noster (nosso Gaio), e hoje a obra a ele atribuída é, sem dúvida, uma das mais importantes no estudo das instituições de Direito Romano. Como demonstrar importância dos institutos de Direito Romano no Direito“moderno”? Não é só por erudição, não é só por cultura, não é só por prazer que se faz ne- cessário conhecer as origens do Direito Civil atual. Se é muito difícil conseguir colocar em poucas palavras a grandiosidade do contributo de Direito Romano que há na lide atual, mais difícil ainda seria viver sem ela. Em outras ciências, há situações tão peculiares quanto: não é preciso ver o ar para saber que é indis- pensável para a vida humana. Não é preciso saber quando e como foi criado o conceito numérico para que um prédio se estruture numa fundação muito bem calculada. Mas seria impensável um jurista que utilize o Direito como prática diária e desconhecesse a sua origem. Isso porque se trata de uma ciência humana e social. José Carlos Moreira Alves afirmou (2007, p. 2): Nas ciências sociais, ao contrário do que ocorre nas físicas, o estudioso não pode provocar fenômenos para estudar as suas consequências. É óbvio que não se pratica um crime nem se celebra um contrato apenas para se lhe exa- minarem os efeitos. Portanto, quem se dedica às ciências sociais tem o seu campo de observação restrito aos fenômenos espontâneos, e o estudo destes, na atualidade, se completa com o dos ocorridos no passado. É por isso que, se o químico, para bem exercer sua profissão, não necessita de conhecer a história da química, o mesmo não sucede com o jurista. Institutos de Direito Romano76 É com as palavras de Villey (1991, p. 87) que podemos entender bem a importância do Direito Romano ainda hoje. Diz o jurista: Nós devemos aos romanos a existência duma teoria do direito. Antes da época de Cícero não existia senão uma prática jurídica. Hoje, “direito” é, além disso, uma teoria, que se aprende nos manuais ou nos códigos, antes de se lançar na prática. E é uma maneira de conceber o mundo, as suas pessoas, as suas coisas, sob o ângulo jurídico, como as matemáticas e a física são uma maneira de aprender pelo espírito as coisas sob outro ângulo. Foram os romanos os primeiros que, ao que parece, tiveram a ideia de construir o direito sob esta forma, fundamentalmente nova. Acesse a página da livraria do Senado Federal e estude Direito Romano no livro disponibilizado: https://goo.gl/hkD6Hq Análise dos principais institutos ainda existentes Os principais institutos do Direito Privado romano são: � Direito das Pessoas; � Direito de Família; � Direito das Coisas; � Direito das Obrigações; � Direito das Sucessões. O Direito das Pessoas no Direito Romano Este ponto da matéria começa com a identificação do âmbito no qual o Direito das Pessoas está inserido no ordenamento jurídico romano. Para reconhecer a capacidade perante a esfera do Direito Privado, a pessoa era considerada individualmente, mas dentro de categorias ou status, que determinavam a sua 77Institutos de Direito Romano situação jurídica pessoal. Para que a pessoa tivesse capacidade jurídica plena, era preciso preencher três status: � libertatis (liberdade); � civitatis (cidadania); � familiae (independência). O primeiro status, chamado de status libertatis, correspondia à situação segundo a qual os homens (todas as pessoas) ou são livres ou são escravos. Todos os povos antigos conheceram, de uma ou de outra forma, a escravidão. Em Roma, a escravidão sempre foi regulada como regime de propriedade, e o escravo era considerado juridicamente uma res (coisa), que poderia ser libertado por vontade do seu senhor (o dominus). O segundo status, chamado de status civitatis, correspondia à vinculação do in- divíduo a uma comunidade juridicamente organizada, a civitas. Dessa vinculação, derivavam direitos e deveres, e a principal forma de se sujeitar a essa vinculação, entre outros casos, era o nascimento de justas núpcias (casamento legítimo). O terceiro status, chamado de status familiae, apesar de o nome remeter à família, na verdade, diz respeito à condição de independência do sujeito. Tanto é assim que uma mulher em Roma poderia ser independente e ter o status familiae (plenamente capaz). Mas quanto à chefia da família, a mulher jamais poderia ser pater familias e exercer a patria potestas (poder sobre os filhos). Hoje o sistema de status não vige mais, e a condição das pessoas de sujeito de direito está atrelada à capacidade e personalidade jurídicas, consagradas nos arts. 1º e 2º do Código Civil: Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (BRASIL, 2002). O Direito de Família No Direito Romano, o conceito de família pode ser compreendido como o conjunto de pessoas e de bens submetidos a uma mesma potestas (poder), Institutos de Direito Romano78 exercida única e exclusivamente por um homem, o pater familias. Esse poder incide sobre pessoas e bens e, por isso, dá uma noção patrimonial da família, quase que como uma propriedade. Por isso, a família romana não pode ser compreendida apenas como um grupo de pessoas, muito menos só do mesmo sangue, é muito maior, pois tem caráter patrimonial. Para ligar essas pessoas ao poder do pater, os romanos tinham dois tipos de parentesco. O primeiro era o parentesco por agnação, isto é, o parentesco civil, jurídico, determinado pela lei. Esse parentesco se adquiria pelo nascimento de justas núpcias, pela adoção e pelo casamento com manus. Era um parentesco patrilinear, quer dizer, era transmitido somente pelos homens, ou seja, as mulheres recebiam, mas não transmitiam esse vínculo. O segundo parentesco era aquele estabelecido por cognação, isto é, o parentesco sanguíneo. Não importando o tipo de parentesco, os romanos criaram regras para contagem, definindo linhas e graus. Hoje, essas definições se assemelham muito, chegando à coincidência quando se trata das regras de contagem: Art. 1.591 São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes. Art. 1.592 São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra. Art. 1.593 O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de con- sanguinidade ou outra origem. Art. 1.594 Contam-se, na linha reta, os graus de parentesco pelo número de gerações, e, na colateral, também pelo número delas, subindo de um dos parentes até ao ascendente comum, e descendo até encontrar o outro parente (BRASIL, 2002). Com relação ao poder familiar, a patria potestas era vitalícia, já que não existia o instituto da maioridade (se não for emancipado, o filho fica submetido ao poder do pater até a morte dele). Além disso, esse poder era exercido pelo ascendente homem mais remoto, que não precisava necessariamente ser o pai natural, já que a adoção era instituto frequente no Direito Romano. E também, sobre a pessoa dos filhos, o pater tinha os seguintes poderes: 79Institutos de Direito Romano � Vitae et necis — direito de vida e de morte. � Ius exponendi — poder de abandonar o filho infante. � Ius vendendi — direito de vender as pessoas sujeitas para outro pater familias como escravos in mancipio. � Ius noxae dandi — quando o filho comete um delito privado, o pater pode liberar-se do débito dando o culpado para a parte lesada, operando a noxae deditio (poder abolido por Justiniano). Hoje a patria potestas se denomina poder familiar e está no Código Civil: Art. 1.630 Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores (BRASIL, 2002). É preciso definir a constituição da família pelo casamento: no Direito Romano, o casamento é uma situação de fato apta a produzir efeitos jurídicos importantes, caso reconhecido pelo Direito. O casamento romano difere do casamento atual porque não precisa de um consentimento inicial (formalidade), mas precisa do consentimento continuado, manifestado na affectio maritalis (intenção de ser casado) e na coabitação. � Conceito de Ulpiano — o matrimônioconstitui-se no consenso e não na consumação. � Conceito de Modestino — o matrimônio é a união de um homem e uma mulher e a sociedade de todos os aspectos da vida, a fazer comum (aos cônjuges) o direito humano e divino. Porém essa situação de fato pode vir acompanhada de cerimônia acessória de ingresso da esposa na família do marido, chamada de convenção de manus. Por meio dela, a esposa rompia os laços de parentesco com a família de origem e criava novos laços com a família do marido, participando dela in loco filiae, isto é, no lugar de filha. Institutos de Direito Romano80 Hoje o Direito Civil consagra o casamento no seguinte dispositivo legal: Art. 1.511 O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Art. 1.514 O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados (BRASIL, 2002). O Direito das Coisas A expressão coisa era usada no Direito com a denominação res, isto é, tudo o que existe e se pode aprender pelos sentidos humanos. Juridicamente, além disso, res tinha um sentido patrimonial, que pode apresentar um valor econô- mico. Apesar de não ser da índole romana a classificação, Gaio apresenta uma descrição das coisas que não podem sofrer apropriação privada porque são destinadas à religião. Sabemos que, além dessas, também não podem sofrer apropriação privada as coisas destinadas ao uso geral do povo. As demais são classificadas em mancipi ou nec manicpi, conforme tenham destinação econômica e utilidade para o povo romano, sendo sempre transferidas e ad- quiridas pela maneira mais solene e formal da técnica romana, a cerimônia da emancipação. Hoje, no Direito Civil, os bens são tratados nos arts. 79 a 103 do Código Civil. Além disso, três ramos principais sobre o Direito das Coisas foram objeto das instituições romanas: a posse, a propriedade e o direito sobre as coisas alheias. Em relação à posse, podemos dizer que, para os romanos, a posse não era um direito, mas uma situação de fato protegida pelo ordenamento jurídico. Os elementos da posse foram vividos na prática romana, mas identificados e elaborados pelos alemães do século XIX (Savigny e Ihering), sendo eles o 81Institutos de Direito Romano corpus (a res) e o animus (a intenção). De tudo, é importante notarmos que o instrumento processual que protegia a posse no Direito Romano era chamado de interdito possessório e poderia ser exercido em caso de ameaça ou vio- lação da paz, sendo esses instrumentos jurídicos considerados uma forma de mandado proveniente da autoridade judiciária para estabelecer a paz e acabar com o conflito possessório, sem interferir ou decidir de quem é a propriedade. Hoje, no Direito Civil, a posse é tratada nos arts. 1.196 a 1.224 do Código Civil. Em relação à propriedade, podemos afirmar que não há uma definição no Direito Romano. Alguns chegam a afirmar que a expressão é tardia, já que, na época clássica, outras palavras designavam o que hoje entendemos como propriedade, tais como mancipium, dominium, entre outras. O certo é que, em Roma, existiram muitos tipos diferentes de propriedade, como o dominium quiritarium, que era a propriedade plena, protegida pelo Direito Civil pleno, adquirida de forma tradicional e por cidadão romano, além do dominium peregrino ou propriedade dos estrangeiros que em Roma tivessem o direito de praticar atos patrimoniais provados. Havia uma espécie muito importante de propriedade, chamada de domi- nium in bonis, ou propriedade bonitária. Esse tipo de propriedade surgiu com a atuação do pretor, magistrado romano responsável pelo processo. Assim, mediante ação judicial, ele concedia proteção jurídica para quem não tivesse adquirido um bem de forma plena, dando o nome de propriedade pretoriana ou protegida pelo pretor. Por fim, também se identificava a propriedade provincial sobre os bens situados nas províncias (Gaio 2.7). Os direitos decorrentes eram de usar ( jus utendi), obter vantagens ( jus fruendi) e dispor ( jus disponendi ou jus abutendi), tendo assim, além do direito de propriedade, também o domínio (domínio é o direito de usar, fruir e dispor da própria coisa, até onde permitiam a razão e o direito). A aquisição da propriedade também foi objeto de estudo dos romanos, tanto a título originário (sem relação com o proprietário anterior) como a título derivado (com relação jurídica entre os proprietários), além, claro, das disposições muito vetustas sobre usucapião (prescrição aquisitiva). Institutos de Direito Romano82 Hoje, no Direito Civil, a posse é tratada nos arts. 1.228 a 1.510-E do Código Civil, incluindo até o novíssimo direito de laje! O Direito das Obrigações Obligatio! Essa é a expressão romana para o instituto responsável pelo esplendor do Direito e principalmente pela expansão econômica de Roma. Incialmente, o vínculo era material, ou seja, virava escravo o devedor insolvente (Lei das XII Tábuas), mas, a partir da Lex Poetelia Papiriad de Nexis (326 a.C.), o vínculo passpu a ser patrimonial, e a construção da obra jurídica dos romanos chegou aos seguintes conceitos: � obrigação — é o vínculo jurídico pelo qual somos constrangidos a solver necessariamente alguma coisa a alguém, conforme o direito da nossa cidade; � substância da obrigação — consiste não em fazer nossa alguma coisa corpórea ou uma servidão, mas sim o constrangimento de outrem a nos dar, fazer ou prestar; � obrigações — eram sempre veiculadas por meio de uma ação in per- sonam (que pretende um comportamento — dar fazer ou não fazer, e as fontes dessas obrigações no período clássico, segundo Gaio (3.88), são o contrato e o delito; � contrato — é a vinculação voluntária lícita; nele, estão elencados os contratos reais (com a efetiva entrega da coisa), verbais (com a prolação de palavras solenes), literais (pela escrita de um crédito ou débito) e consensuais (pelo consentimento); � delitos — são a contrariedade ao direito; e os delitos apresentados por Gaio são o furtum (furto), a bona vi rapta (o roubo), o dano (proveniente da Lex Aquilia de dano) e a injúria (efetiva ilicitude que poderia ser uma ofensa verbal ou física). 83Institutos de Direito Romano Hoje o Direito das Obrigações consta no Livro I da Parte Especial do Código Civil e vai do art. 223 ao 853. O Direito das Sucessões Suceder significa substituir a titularidade. No Direito Romano, essa substituição poderia se dar inter vivos (entre vivos) ou causa mortis (por causa da morte do titular). Também poderia ser singular no caso de a transmissão ser de um bem singular ou universal caso se tratasse da transmissão da universalidade do patrimônio de alguém. Mas, caso se tratasse de sucessão causa mortis universal, o instituto se chamaria de hereditas (herança). A herança era deferida por dois tipos de delação: testamentária (ato de disposição de última vontade) ou ab intestato (sem o testamento) e então, neste caso, a lei supre a vontade do de cujus (o falecido), indicando quem ocupa o lugar de herdeiro. No Direito Romano, segundo John Gilissen (2008), houve uma evidente prevalência da sucessão testada sobre a intestada em face da primazia da vontade individual e absoluta do pater familias. As principais regras de Direito Sucessório romano dizem respeito a três fundamentos: � a instituição do herdeiro (Gaio 2.229), que é o fundamento de todo o testamento; � a equivalência da concepção de família para a correspondente de- signação da ordem da vocação hereditária (no Direito Primitivo, a antiga família baseada na agnação exclui da herança legítima os filhos emancipados e as mulheres casadas sem a manus); � o espírito prático romano, atuando na flexibilização do Direito por meio da atuação do pretor ao conceder a chamada bonorum possessio (ação processual que entrega a posse dos bens hereditários a quem não está beneficiado nem na lei nem no testamento,para favorecer laços sanguíneos e matrimoniais). Institutos de Direito Romano84 Hoje o Direito das Sucessões consta no Livro V da Parte Especial do Código Civil e vai do art. 1.784 ao 2.027. ALVES, J. C. M. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2007. CRUZ, S. C. Direito Romano: lições. Coimbra: Almedina, 1969. (v.1). BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 10 dez. 2017. GILISSEN, J. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. JUSTINIANO. Institutas do Imperador Justiniano. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. RÖMISCHE SCHULE. 2017. Disponível em: <http://www.villa-rustica.de/info/schulen. html>. Acesso em: 10 dez. 2017. VILLEY, M. Direito Romano. Porto: Rés, 1991. Leituras recomendadas BRETONE, M. História do Direito Romano. Lisboa: Editorial Estampa, 1990. CORREIA, A.; SCIASCIA, G. Manual de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1961. DIGESTO de Justiniano, liber primus: introdução ao direito romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. GAIO. Institutas do jurisconsulto Gaio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. IHERING, R. V. El espíritu del Derecho Romano. Madrid: Marcial Pons, 2005. JUSTO, A. S. Direito privado romano. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. t. 1. KASER, M. Direito privado romano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1999. MEIRA, S. Curso de Direito romano: história e fontes. São Paulo: LTR, 1996. 85Institutos de Direito Romano Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Analisar a importância da Lei das XII Tábuas na história do Direito. � Demonstrar a evolução do Corpus Iuris Civilis frente à Lei das XII Tábuas. � Identificar os reflexos do Corpus Iuris Civilis na atual legislação. Introdução Neste capítulo, você irá analisar dois grandes marcos normativos do Direito Romano clássico: a Lei das XII Tábuas e o Corpus Iuris Civilis. Analisaremos, primeiro, a importância da Lei das XII Tábuas para a história do Direito e as circunstâncias sociais e políticas que levaram ao surgimento dessa legislação. Após, veremos como surgiu o Corpus Iuris Civilis e como ele representou uma grande inovação em relação a todos os modelos normativos anteriores. Por fim, identificaremos as influências que o Corpus Iuris Civilis exerceu no Direito ocidental (e que permaneceu exercendo, mesmo muitos sé- culos após a derrocada do Império Romano), bem como as formas pelas quais ele ainda se faz influente até os dias atuais. Surgimento e importância da Lei das XII Tábuas para a história do Direito A Lei das XII Tábuas, finalizada em 450 a.C., foi a primeira legislação de maior importância da Roma Antiga e, de certa forma, representa o surgimento efetivo do Direito Romano. A lei não se tratava de um compêndio sistemático de legislação, mas de uma série de definições que regulavam os direitos dos cidadãos e, principalmente, os procedimentos para lidar com questões de disputas entre indivíduos. A Lei das XII Tábuas surgiu como resultado de intensas disputas entre patrícios e plebeus. Os patrícios eram cidadãos possuidores de terra e gado, fazendo parte da aristocracia. Os plebeus, por sua vez, eram uma classe cons- tituída principalmente por povos que passaram para o domínio romano nas suas primeiras conquistas militares. Eram livres, mas não participavam do Senado. Careciam, portanto, de representatividade política adequada. A Roma Clássica era uma civilização marcada por intensos conflitos sociais e choques de interesses diversos, o que levou a diversas épocas de grande instabilidade política. Em certas épocas, foram comuns as intrigas palacianas, os assassinatos políticos e os conflitos violentos. Assim, a Lei das XII Tábuas representou uma forma de lidar com esses conflitos de forma civilizada e institucionalizada. Embora as tábuas originais contendo essas normas tenham se perdido no tempo, a quase totalidade do conteúdo do seu texto foi preservada até a atualidade. As normas previstas na Lei das XII Tábuas abrangiam uma grande quan- tidade de temas distintos, passando por normas de Direito Material (direitos e deveres dos cidadãos e forma de agir em determinadas situações) e de Direito Processual (condução dos ritos em casos de disputas judiciais). Em relação à temática, as Tábuas I e II tratavam de regras de organização e procedimentos judiciais. A Tábua III, de regras para execução de dívidas. A Tábua IV versava sobre os poderes dos pais sobre os seus filhos. A Tábua V abordava questões de sucessão, direito hereditário e tutela de filhos menores. A Tábua VI lidava com questões de propriedade e posse. A Tábua VII, sobre regras para construções e terras. A Tábua VIII, talvez a mais emblemática parte da Lei das XII Tábuas, operava como uma espécie de Código Penal. Ela trazia uma relação das prá- Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis88 ticas e condutas consideradas crime ou ilícitos que deveriam ser reparados pela via pecuniária. A Tábua IX trazia penas severas para crimes de corrupção. O juiz ou árbitro julgado culpado por ter recebido dinheiro para decidir de determinada forma era condenado à morte. A tábua também previa o crime de traição, igualmente punido com a morte, para aquele que prestasse auxílio a um inimigo público ou invasor. A Tábua X, por sua vez, trazia regras sobre a realização de funerais. A Tábua XI vedava o casamento entre patrícios e plebeus. Por fim, a Tábua XII consagrava o instituto da escravidão (que era popular e utilizado em larga escala na época), ao considerar o escravo um ser incapaz para todos os atos da vida civil. O escravo era igualado a um animal ou objeto. A Lei das XII Tábuas pode ser considerada sucinta demais para constituir um efetivo código de leis. Todavia, apesar da sua objetividade, não deixava de ser uma codificação legal. É nesse aspecto que reside o seu ineditismo. Ela pode ser considerada a fundação ou o marco inicial do Direito Romano. Toda a história ocidental das codificações jurídicas remonta, de certa forma, à antiga Lei das XII Tábuas. Ela transformou os hábitos e costumes vigentes (sempre problemáticos e carregados de incertezas e insegurança jurídica) em comandos legais de ordem pública, de conhecimento geral e previamente estabelecidos. Tratou-se, portanto, de um grande avanço em termos de justiça e equidade. Além disso, ao firmar regras claras e previamente estabelecidas para a resolução de conflitos entre pessoas, a Lei das XII Tábuas operou como fator de pacificação dos conflitos de classes (patrícios e plebeus) existentes na época, reduzindo as tensões sociais. 89Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis Figura 1. Ilustração de cidadãos romanos tomando notas sobre o conteúdo da Lei das XII Tábuas. Fonte: Leges... (2005). Se, por um lado, a Lei das XII Tábuas representou um marco na história das codificações legais, por outro, não deve ser ignorado o caráter profundamente antiquado e draco- niano de alguns dos seus conteúdos. As disposições contidas na lei, entre outras coisas, legitimavam a escravidão, sacramentavam a pena de morte, consagravam privilégios da classe dos patrícios e admitiam o desmembramento do corpo de um devedor entre os seus credores. Apesar do seu caráter inovador para a época, tanto em técnica como em conteúdo, a Lei das XII Tábuas se mostra absolutamente cruel e arcaica sob a perspectiva do humanismo característico do Direito democrático contemporâneo. Corpus Juris Civilis O Corpus Juris (ou Iuris) Civilis (Corpo da Lei Civil), ou Código de Justi- niano, é uma compilação legal elaborada entre os anos 529 e 534 por ordem do Imperador Justiniano I, do Império Romano Oriental. Todas as suas partes Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis90 (inclusive as de caráter acadêmico) ganharam força da lei. A ideia era queo Corpus representasse a fonte única do Direito da época. À época da promulgação do Corpus, a preocupação do imperador era sal- vaguardar o legado do Direito Romano clássico. O Império Romano Oriental, ou bizantino, havia sobrevivido ao colapso do império ocidental. Nesse sentido, o Corpus representava, do ponto de vista cultural, um resgate das tradições jurídicas e intelectuais da fase áurea do Império Romano. Sob um ponto de vista prático, a codificação visava colocar ordem na significativa produção legislativa do imperador. Originalmente, o Corpus era composto por três partes distintas. A primeira delas era o Codex, uma compilação das constituições imperiais (atos com força de lei baixados pelos imperadores romanos). Entre outras disposições, o Corpus legislava sobre religião, estabelecendo o cristianismo como a religião oficial do império — unindo, assim, Igreja e Estado. A lei determinava que todas as pessoas sob a jurisdição do império abraçassem a fé cristã. Assim, os cultos a deuses pagãos eram proibidos. Nem mesmo o judaísmo escapou desse absolutismo religioso. O sexo entre cristãos e judeus foi proibido, sendo que judeus estavam impedidos de exercer cargos públicos. O Digesto (ou Pandectas) era uma enciclopédia que compilava, na forma de 50 livros, as obras dos jurisconsultos romanos clássicos. Cerca de 40% do Digesto era constituído unicamente por obras de Ulpiano, um dos mais renomados e influentes juristas romanos de todos os tempos. O Direito Ro- mano dava destacada importância para a doutrina construída por seus juristas mais renomados, mas, no Digesto, os cânones interpretativos criados pelos doutrinadores não apenas se convertiam em referências obrigatórias para a aplicação das leis: elas ganhavam força de lei. Assim, o Digesto era a única fonte do Direito não legislado. Não se admitia nem mesmo comentários sobre tal compilação. Por sua vez, as Institutiones (ou Elementa) formavam um manual para o estudo do Direito da época. Aqui, mais uma vez, podemos observar como o Corpus Juris Civilis foi concebido não apenas para compilar a legislação vigente, mas também as doutrinas voltadas para o estudo, a interpretação e a aplicação do Direito. Posteriormente, o Corpus foi acrescido das Novellae Constitutiones, uma compilação das constituições imperiais expedidas depois da organização do código. Por fim, foram também acrescentadas as Interpolações, que repre- sentavam acréscimos e supressões, realizados no Codex e no Digesto com autorização de Justiniano, a fim de harmonizar e sistematizar os textos. Não se tratava, porém, de uma “nova parte” do Corpus. 91Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis Figura 2. Ilustração de primeira página de uma edição do Corpus Juris Civilis da- tada do ano 1700, hoje no acervo da universidade norte-americana de Yale. Fonte: Yale Law Library (2009). Para saber mais, consulte Programa de direito romano (OLIVEIRA, 2003). Legado do Direito Romano clássico para o Direito contemporâneo Quando falamos em Direito Romano, a terminologia pode ser entendida de diversas formas: como o conjunto das normas vigentes na Roma Clássica (da sua fundação até o declínio do império ocidental) ou, de uma maneira mais sintética, como o conjunto de princípios e regras contidas no Corpus Iuris Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis92 Civilis. Também pode ser entendido como os institutos jurídicos desenvol- vidos pelos romanos, que elevaram imensamente o instrumental do Direito enquanto técnica. Exemplos disso são as distinções entre Direito Público e Direito Privado, Direito escrito e não escrito, posse e propriedade, entre outros. Nenhum sistema jurídico anterior jamais havia trabalhado com a noção de propriedade privada de uma forma tão abrangente e sem restrições como os romanos. Em outras civilizações antigas, como no Egito, na Pérsia ou na Grécia, a propriedade era sempre relativizada e condicionada por direitos de terceiros, superiores ou autoridades. O Direito Romano inovou ao tornar a propriedade um instituto jurídico livre de restrições externas, estabelecendo a dinâmica distinção entre a posse (o controle fático de determinado bem material) e a propriedade (o direito pleno a esse bem). A influência do Corpus Juris Civilis (e do Direito Romano em geral) não foi significativa no mundo ocidental durante a Idade Média. Foi apenas próximo ao período da chamada Baixa Idade Média que se deu a redescoberta do Direito Romano por estudiosos e juristas, o que fez a sua influência, com o passar dos séculos, tornar-se dominante no mundo ocidental. Com exceção da Inglaterra e dos países nórdicos, a maior parte da Europa, a partir do século XVI, passou a se filiar gradativamente a um sistema legal que misturava elementos de Direito Canônico (ou seja, criado por autori- dades religiosas e eclesiásticas), normas e costumes feudais, bem como institutos e postulados de Direito Romano. Essa herança ficou conhecida como romano-germânica e foi a base da tradição hoje denominada civil law, em justaposição à tradição da common law própria do Reino Unido e das suas ex-colônias. O Direito Romano influenciou muito, no modelo da civil law, o grande movimento das codificações legais que ganharam força na Europa a partir do Código Civil francês de 1804, também conhecido como Código de Napoleão. 93Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis Após a era das codificações, o Direito Romano gradativamente se tornou ultrapassado como fonte jurídica de referência. Hoje, naturalmente, as suas disposições normativas não são mais utilizadas e não se encontram mais em vigor em nenhuma parte do globo. No entanto, além do valor histórico, as técnicas e os institutos criados e consagrados pelos romanos permanecem em uso nos sistemas contemporâneos da civil law, como é o caso do Brasil. Várias expressões técnicas e máximas jurídicas em latim, criadas pelos romanos há 2 mil anos, ainda são utilizadas por juristas e operadores do Direito em nossos dias. Princípios jurídicos estabelecidos pelo Direito Romano permanecem fun- damentais até os dias de hoje, como: � a ideia do tratamento igual para todos perante a lei; � a presunção de inocência do réu até prova em contrário; � o ônus da prova que recai sobre o acusador (e não sobre o acusado); � a importância de que a lei seja razoável e justa para ser válida. Não à toa, os antigos romanos são hoje reverenciados como os criadores daquilo que poderíamos chamar de uma ciência do Direito. Figura 3. O imperador bizantino Justiniano I, promulgador do Corpus Juris Civilis. Fonte: Justinian I (2017). Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis94 JUSTINIAN I. In: Encyclopaedia Britannica. 2017. Disponível em: <https://www.britannica. com/biography/Justinian-I>. Acesso em: 24 ago. 2017. LEGES duodecim tabularum twelve tables. 2005. Disponível em: <http://www.cultus. hk/hist5503A/12tables.html>. Acesso em: 14 set. 2017. YALE LAW LIBRARY. Corpus Juris Civilis 1700. 2009. Disponível em: <https://www.flickr. com/photos/yalelawlibrary/3794596507>. Acesso em: 14 set. 2017. Leituras recomendadas ALVES, J. C. M. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 2001. LOPES, J. R. de L. O Direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. SOLIMANO, N. D L. de; FERRO, J. M. C. Derecho e historia en Roma. Buenos Aires: Edi- torial Perrot, 1970. 95Lei das XII Tábuas: Corpus Iuris Civilis
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