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A VILA contracampo __ revista de cinema

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02/08/2021 contracampo :: revista de cinema
www.contracampo.com.br/63/avila.htm 1/5
 A VILA
M. Night Shyamalan, The Village, EUA, 2004
O que ninguém esperava do novo filme de M. Night
Shyamalan é que ele fosse o que é: uma obra-prima das
mais perturbadoras e esquisitas dos últimos anos. Não se
trata de uma fábula política sobre a América da era Bush –
até porque, muito por força da circunstância, o filme
literalmente pós-11/9 de Shyamalan já tinha sido o
maravilhoso Sinais, cuja produção começou dia 12 de
setembro de 2001. Tampouco se trata de um ensaio
sociológico sobre o medo. Sem dúvida alguma, A Vila traz
um dos maiores estudos sobre visibilidade que o cinema
contemporâneo tem para oferecer. E é também (no que
podemos pensar em Dez e Elefante) um elogio do
dispositivo. Como vem fazendo de filme em filme,
Shyamalan se lança à reinvenção de formas. Num certo
sentido, A Vila ocupa uma posição semelhante àquela que
Através das Oliveiras ocupou na obra de Abbas Kiarostami:
um filme auto-reflexivo (não por acaso Shyamalan faz uma
ponta, quase no final, de costas para a câmera, aparecendo
refletido no vidro da portinha do armário de remédios), mas
que, enquanto olha no retrovisor, anda para frente. A
comparação vai além, pois o diretor de O Sexto Sentido é
alguém que, assim como Kiarostami, explora a capacidade
do cinema de nos revelar o indizível no visível – e nos
arrebatar.
Shyamalan já havia chegado a um grau de consistência
admirável nos trabalhos anteriores, mas A Vila é um filme
que transborda o seu cinema. Desenvolvendo-se justamente
na encruzilhada em que as instâncias narrativas, as marcas
autorais e a natureza complexa do material humano em jogo
se interceptam e se despistam, A Vila pode ser o filme
definidor com relação ao futuro da carreira de Shyamalan,
conceitualmente e comercialmente. A própria campanha
publicitária parece ter resultado da detecção de um
problema: o filme, no fundo, não tem característica de
grande público. Os distribuidores encontraram talvez a única
forma de vender o filme, anunciando um desfecho
surpreendente e garantindo ao menos sua primeira semana.
Mas, na verdade, não existe surpresa final, e sim um todo
narrativo/temático que é liberado aos poucos. É um filme de
montagem bastante original, praticamente sem unidades
narrativas que possam se definir como seqüências. Salvo
uma ou outra parte que realmente compõe uma seqüência,
o filme é todo construído segundo um tempo narrativo
particular, pouco convencional, como se procurasse o regime
de temporalidade inerente à vila. A substância nuclear do
filme corre subterraneamente, mas fazendo aflorar, aqui e
ali, poços que se somam na construção de uma obra muito
superior ao que um olhar desatento pode pressupor. Em A
Vila tudo é questão, necessária e primordialmente, de mise
en scène. O filme começa a se mostrar claro desde o
primeiro plano, durante o enterro de uma criança, em que
um discurso em off do Prof. Walker (Willian Hurt) questiona
a vida na vila (e no mundo de uma forma geral) enquanto o
zoom dilui a questão da distância na tomada de vista
reinscrevendo-a na não-distância de uma operação manual
(o movimento ótico feito na câmera). Existe não só uma
relação com o espaço e com o tempo, mas também uma
relação entre os sujeitos (que olham e que são olhados) que
Bryce Dallas Howard em A Vila de M. Night Shyamalan
http://www.contracampo.com.br/index.htm
http://www.contracampo.com.br/artigos.htm
http://www.contracampo.com.br/criticas.htm
http://www.contracampo.com.br/tv.htm
http://www.contracampo.com.br/dvdvhs.htm
http://www.contracampo.com.br/planogeral.php
02/08/2021 contracampo :: revista de cinema
www.contracampo.com.br/63/avila.htm 2/5
o filme buscará problematizar de modo denso e criativo. 
A Vila não exclui a religiosidade da obra de Shyamalan,
muito pelo contrário: não bastasse o nome de Deus,
acompanhado de toda uma iconografia religiosa, perpassar
os dilemas éticos do filme, a cidade-dispositivo de Covington
ainda evoca um clima de parábola bíblica à Gênese. Só que
o filme não adere a um discurso teologizante, o que é bem
diferente. A metodologia está expressa nas aulas dadas por
Walker no início, quando ele reforça para as crianças as
doutrinas que regem a cidade. Ali o filme se assume
iniciático, telúrico, primário. Covington se sustenta num
mito: o das criaturas com as quais existe um pacto de não-
agressão e respeito ao espaço alheio – pacto que parece
estar sendo quebrado. Mas a farsa, tornada explícita na
metade do filme, vai sendo sugerida desde os primeiros
minutos, seja através da dramaturgia propositalmente
carregada (criando um distanciamento), seja através de
falas e atitudes que apontam para a existência de um
segredo. É em H.P. Lovecraft, o "mestre do indizível", autor
de clássicos da literatura de horror, que pensamos
imediatamente na primeira parte do filme, quando se fala
nas inenarráveis criaturas da floresta ("Those-we-don’t-
speak-of"). O filme evolui então como uma avalanche de
sentidos, abrindo-se para a beleza das cenas de amor
(Lucius pegando a mão de Ivy e pondo o filme em câmera
lenta, transformando subitamente o que era suspense em
romance, é peça de antologia), mas mantendo-se soturno na
maior parte do tempo. A Vila termina com uma tela preta e
o som de batida seca que acompanhara suas cenas de susto,
depois de um plano-seqüência praticamente fixo (salvo um
re-enquadramento no final, a câmera permanece imóvel e
usa a profundidade de campo). Um final tão aterrador
quanto o de A Salvo, de Todd Haynes, em que uma espécie
de spa new age faz as vezes da cidadela de A Vila. Se há
uma paranóia social perpassando esses dois filmes, ela é
menos conseqüência política do que agorafobia, ou algo
simplesmente indefinível. A Vila não esgota seu objeto em
patologia social. Os dirigentes do vilarejo se isolaram da
sociedade (leia-se a cidade grande contemporânea), mas
não sabemos disso quando o filme começa, pois ele nos
arremessa no interior dessa vivência e nos faz compartilhar
dela sem conhecer as suas bordas. 
Embora lembremos de Dogville vez ou outra durante o filme,
o que surge como constatação é a postura diametralmente
oposta adotada por Shyamalan. A Vila não faz um mergulho
numa pretensa América profunda, com uma estética bem
particular e evocando aspectos de mito de fundação, para
mostrar uma experiência grotesca e manipular nosso
sentimento em relação às pessoas que a protagonizam.
Interessa a Shyamalan uma monstruosidade de gestos, e
não de intenções. Não interessa a ele queimar ratinhos
dentro de uma estufa de laboratório. O que preocupa o
diretor, mais do que as conseqüências políticas das atitudes
tomadas, é uma ação interior que se manifesta em cada um
dos personagens não como psicologia ou tipologia
folhetinesca, mas como uma gestão seletiva dos afetos. O
tom over da declaração de amor feita a Lucius (Joaquin
Phoenix) no início do filme – o que rende uma piada de
montagem, quando corta para a menina chorando, nos
dando a entender a recusa – é menos um artifício
dramatúrgico do que uma entrega, literalmente, do que está
em jogo naquela micro-sociedade. Os habitantes de
Covington, conscientemente ou não, ficcionalizam suas vidas
como fuga de um espaço-fora, que no passado se mostrou
hostil aos "dirigentes" (os fundadores da cidade). Mas é esse
espaço-fora (da vila, da tela, do campo de visão) que, uma
vez furada a membrana, oferece os meios que garantem a
sobrevivência da ficção, ameaçada por elementos que não
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são senão endógenos. Essa contaminação benéfica, que
contradiz as premissas dos moradores da vila, é a
contrapartida que expõe a complexidade da relação entre o
conceito de vida posto em prática naquele lugar e todo o
entorno. Daquele modo de vida pacato e ingênuo, brota a
flor vermelha, a de cor proibida, sem que ninguém possa
impedir – restando enterrá-la, escondê-la. O mesmo
ocorrerá a Noah (Adrien Brody), o desviante. Ele terá o
mesmo destino da flor que aparece no início.Cairá num
buraco, vestido com a fantasia vermelha, e ao final Walker
anunciará um enterro com todas as honrarias, pois Noah
justamente possibilitou a manutenção do mito, e, por
conseguinte, a continuidade de Covington (o sacrifício
humano novamente povoa a tela de Shyamalan). O que os
"dirigentes" de Convington não conseguem admitir é o
compromisso, existente desde que o mundo é mundo (e
desde que o mundo é cinema e vice-versa), entre a
inocência e a violência. É impossível manter a humanidade
dentro de uma célula mínima e garantir seu crescimento
pacífico. Afinal de contas, em que tipo de inocência repousa
a violência desse gesto fundador e sustentador da vila?
Talvez pela sofisticação estética e pelos enredos inteligentes
de seus filmes, acaba que volta e meia esquecemos da
grande primariedade do cinema de Shyamalan. Quando ele
coloca os pingos nos is, tudo se revela muito básico, muito
feijão com arroz. Amor, morte, religião, família, medo: a
mente e o coração se manifestam de forma arcaica em
Shyamalan. O mistério é o simples, e em nenhum momento
os filmes mentem a respeito disso. Simplicidade que não
impede uma ambigüidade latente durante toda a projeção de
A Vila: o filme não induz nenhuma linha de resposta,
aprovadora ou reprovadora, aos seus personagens – a cena
em que os dirigentes discutem o estatuto do vilarejo frente à
situação de saúde crítica de Lucius e a possível ida de Ivy à
cidade é filmada em tom documental.
A primeira aparição da criatura se dá depois de uma cena
em que o personagem de Brody se esconde no armário de
Ivy (Bryce Dallas Howard, em atuação que mereceria um
texto à parte). A cena é filmada da janela, como uma
autêntica cena de suspense, mas ela não leva susto quando
abre o armário, pois não pode vê-lo (numa posição que
parece de ataque). Esse plano é um dos centros nervosos do
filme: nele se coloca o espelhamento entre os inimigos de
fora (as criaturas) e a ameaça de dentro (não exatamente
Noah, mas o sistema de confinamento e terror que em
algum momento afetará a mente, nem que seja a do mais
suscetível), faz-se um questionamento fundamental sobre a
origem do temor local (o que é o medo para alguém que não
consegue ver a face do mal?), fica estabelecido entre quais
personagens se dará o confronto central do filme (a cena da
perseguição na floresta). O mais espetacular do mecanismo
ficcional de A Vila é que seu clímax de suspense se dá depois
de sabermos que as criaturas são uma farsa, uma fantasia.
Entretanto, Shyamalan cria o clima da perseguição na
floresta, quando Ivy foge de uma criatura, como se nada
tivesse sido falado antes. E, o que é mais incrível, a cena
funciona muito bem, em grande medida por conta de um
jogo de tensão e distensão que a montagem realiza
magistralmente (só que o medo no cinema é mais do que a
articulação bem sucedida dos seus elementos plásticos,
donde o suspense de A Vila fica ainda mais inexplicável).
Outra cena crucial é o diálogo de Ivy e Lucius no alpendre da
casa dela. Filmada em quatro belíssimos planos, essa cena
mostra os dois únicos habitantes de Covington que não
sentem medo declarando amor um ao outro e revelando a
força que integra afecção e visibilidade. A cegueira de Ivy, a
cor que ela enxerga em Lucius, a preocupação de Lucius
com ela, o temperamento destemido dos dois, a relação de
intromissão que eles estabelecem – diferentemente dos
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outros – com o espaço e com o imaginário local: tudo isso
tece uma rede de união. A cena termina com a câmera
fazendo um movimento pressagiador do destino trágico,
abandonando o casal que se beija e caminhando para a
esquerda até enquadrar a cadeira de balanço igual àquela
em que Noah sentará com as mãos sujas do sangue de
Lucius. É com essa e outras cenas que alternam imagens
icônicas a imagens bastante inusitadas que Shyamalan
atinge a perfeição plástica de A Vila, tendo como braço
direito o diretor de fotografia Roger Deakins, que possibilitou
noturnas praticamente à luz de tochas, no seu melhor
trabalho em anos. 
O som da sirene do jipe é o sinal que denuncia de vez a
contemporaneidade no filme. Que seja um som a fazê-lo,
parece justo num filme em que a edição sonora é
absolutamente fundamental (o que se nota logo no início,
com o barulho das moscas que sobrevoam o animal morto
sendo trazido para primeiro plano). "Ouço gentileza na sua
voz, não era isso o que eu esperava das cidades", diz Ivy ao
guarda florestal que a encontra na beira da estrada e se
dispõe a ajudá-la. O medo inculcado nas crianças de
Covington através das histórias das criaturas pode até
causar asco, mas a resposta do filme a esse monstro
fabulado é o olhar confuso e enternecido do guarda florestal
– aquele que protege os limites e o conteúdo da floresta –,
um personagem de suma importância, apesar da curta
participação. Ele, que desconhece a existência de Covington
(e sequer imagina o folclore que condena tudo o que
extrapola os limites da vila), estranha o anacronismo da
situação, o modo dela falar, suas roupas, a descrição de sua
missão, o presente que lhe é oferecido (aparentemente um
relógio antigo, que depois estará pendurado no retrovisor do
jipe do guarda). Terá sido por Ivy, somente por ela, que o
guarda se sensibilizou e aceitou pegar os remédios sem falar
nada ao seu chefe? Terá ele se sentido muito pequeno
diante daquela alteridade tão demarcada, tão difícil de ser
compreendida somente no espaço, digamos, de um filme? A
sensibilidade e o estranhamento que aquele olhar revela são
a chave de toda a disposição do filme. O ímpeto do
personagem não foi abusar daquela inocência, daquela
fragilidade indefesa e bela, mas sim prolongá-la. E não
coube a ele decidir o destino do que quer que existisse para
lá da floresta. Não por acaso estamos falando de um cinema
tão diferente do de Lars Von Trier: propositalmente ou não,
A Vila é também a resposta de Shyamalan a Dogville. 
Existe uma relação de proximidade câmera-personagem
muito cuidadosa – do que o close no rosto agonizante de
Noah e, antes, a cena dele esfaqueando Lucius (atitude tão
humana quanto o amor sublime entre os jovens do filme)
são os exemplos mais problemáticos, porém peças
importantes e coerentes no filme. O cineasta aqui não se
elege o juiz das ações, não sobrepõe seus valores ao que
está do outro lado da câmera, ou do outro lado da cerca que
delimita a floresta. Até porque ele pode estar lá, em algum
lugar refletido. O último plano do filme é essa incapacidade
de intervir, essa incapacidade de decupar e seguir uma
composição dramática; a câmera resolve se posicionar na
cama do debilitado Lucius e observar tudo passivamente – a
própria câmera termina o filme se afirmando também ela um
paciente, também ela à espera da volta de Ivy. O cinema
ainda terá de esperar um pouco mais, contudo, até que
surja uma outra cena tão bonita quanto aquela do encontro
entre dois personagens-mundo, Ivy e o guarda florestal. A
decisão dele de preservar o segredo corresponde ao
impulso, por parte do cineasta, de preservar o local do outro
como única condição para se continuar a filmar, ou mesmo
para se ter começado a filmar (por que razão além desta o
período em que o filme se passa, no tempo fictício de
02/08/2021 contracampo :: revista de cinema
www.contracampo.com.br/63/avila.htm 5/5
Covington, corresponde à época da gênese da sétima arte?).
Deixar aquela experiência radical existir sem querer impor
um olhar de cima (sem aviões sobrevoando o local), para
Shyamalan, é a possibilidade de prosseguir fazendo cinema.
Com A Vila, ele nos inicia na difícil pedagogia de um novo
olhar sobre as coisas – ocultadas, indizíveis, desmascaradas,
todas as coisas. De agora em diante, o cinema carregará
esse aprendizado como se nunca tivesse saído da escola
primária.
 Luiz Carlos Oliveira Jr.
 
 
http://www.contracampo.com.br/edicoesantigas.htm
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