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Paula Cruz* CULTURA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: EMERGÊNCIA E PERSPECTIVAS TEÓRICO-CONCEITUAIS POLÍTICA, CULTURA E INSTITUIÇÕES Rio de Janeiro 2011 * Paula Cruz é Bacharel em Comunicação, com habilitação em Produção em Comunicação e Cultura, pela Universidade Federal da Bahia, e cursa Especialização em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes. Contato: paulacruz.cultura@gmail.com. 2 Resumo No contexto da globalização, o internacional não pode mais ser pensado ao largo de suas interações com a cultura. Esta deve ser compreendida como uma dimensão constitutiva das relações internacionais, uma vez que suas inter-relações com a política, a economia e a sociedade configuram-se como forças motrizes das transformações em curso no sistema mundial. A recente emergência dos temas culturais no mainstream de RI foi favorecida por dois fenômenos principais: i) as mudanças no sistema internacional pós-Guerra Fria e ii) o advento do debate pós- positivista no ambiente teórico da disciplina. No Brasil, a temática cultural ainda é objeto de raros esforços de pesquisa. Dentre as razões desse silêncio teórico, destacamos a dificuldade de se denifir e operacionalizar o conceito de cultura, em si. Entre as noções que mais influenciaram as abordagens culturais das relações internacionais destacam-se a visão universalista e a concepção antropológica pluralista, que informa a tese do relativismo cultural. Diante da necessidade de pensar em uma perspectiva que contemple os aspectos dinâmicos da cultura, tal como esta se apresenta no contexto global contemporâneo, duas premissas parecem pertinentes: i) a cultura como processo permite abarcar a diversidade cultural existente no interior de cada grupo social e reforçar o papel do “outro” na construção de identidades, combatendo a tradicional associação outro/ameaça; e ii) a cultura como recurso revela como, na contemporaneidade, o paradigma da utilidade tem conduzido à sua instrumentalização para a consecução de objetivos não apenas simbólicos, mas políticos, econômicos e sociais. Palavras-chave: Cultura; Relações Internacionais; Contemporaneidade. 3 Introdução Se pudéssemos olhar para o campo científico das Relações Internacionais (RI) como se este fosse um espelho, no tocante aos estudos sobre a cultura, a imagem que veríamos certamente seria à semelhança daquela refletida por um espelho convexo, que diminui consideravelmente o tamanho dos objetos refletidos em sua superfície. Ao longo da história das RI enquanto área específica do conhecimento, as análises focadas nos fatores e dimensões culturais foram ínfimas se comparadas aos trabalhos dedicados a temas tradicionalmente considerados prioritários, como a guerra e a segurança. Este silêncio pode ser explicado, por um lado, pela consagração na disciplina do entendimento de que questões relativas a valores, à ética e, por extensão, à cultura deveriam ser excluídas do domínio amoral da realpolitk (WALKER, 1990). De acordo com a perspectiva realista – que dominou a teoria das Relações Internacionais até o final dos anos 1980 –, estes temas pertenceriam ao domínio “interno” dos Estados, não exercendo qualquer tipo de impacto sobre o sistema internacional. A caracterização deste sistema como espaço anárquico definitivo (tal qual o estado de natureza hobbesiano) e da política como “uma atividade na qual o choque de interesses envolve, por natureza, a possibilidade do uso da violência” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 11), sedimentou a ideia de um sistema internacional a-histórico, não-normativo e pré-social, o que excluía a cultura de suas dimensões constitutivas. “Cultura” e “relações internacionais” eram tidos, assim, como termos mutualmente contraditórios (WALKER, 1990). A partir do final da década de 1980, contudo, questões relativas às interações das esferas doméstica e internacional, ao meio ambiente, aos direitos humanos e aos processos identitários começaram a integrar a agenda de discussões dos estudiosos das relações internacionais. As transformações na agenda internacional pós-Guerra Fria e o advento do debate pós-positivista1 no âmbito teórico de RI podem ser destacados como os principais fatores que 1 Referimo-nos aqui ao debate entre as duas grandes correntes denominadas por Robert O. Keohane, em 1988, de “racionalistas” e “reflexivistas”. Os primeiros seriam representados pelos realistas e liberais, enquanto que os segundos incluiriam “as feministas, a teoria crítica, os pós- modernos e pós-estruturalistas” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 7). Um ano mais tarde, Yossef Lapid renomeou essas duas “grandes correntes”, chamando-as, respectivamente, de “positivistas” e “pós-positivistas”. Segundo Nogueira e Messari, a diferença nos nomes intencionava ressaltar, sobretudo, as contrastantes visões de mundo entre os dois grupos, o que tornou este debate, mais do que uma questão de metodologia, um embate ontológico. 4 contribuíram para a incorporação desses “novos” temas ao mainstream2 da disciplina (SØRENSEN, 1998). Contudo, outros problemas continuam dificultando a consagração da cultura entre os temas mais caros à análise das Relações Internacionais; entre eles, a dificuldade de se definir o conceito de cultura, em si. Este esforço tem sido empreendido por teóricos de diferentes tradições disciplinares, o que resultou numa ampla variedade de definições ao longo da história, estando longe de oferecer um referencial unívoco do termo para os estudos da cultura. Diante disto, além de oferecer um breve panorama da emergência dos temas culturais em RI, o objetivo deste artigo consiste em apresentar algumas perspectivas teórico-conceituais de maior impacto na disciplina, destacando a problemática em torno da construção destes conceitos e sua operacionalização para o estudo das relações internacionais. A emergência dos temas culturais em RI Ao final dos anos 1980, as teorias tradicionais das Relações Internacionais se mostravam insuficientes para explicar as mudanças que ocorriam no mundo pós-Guerra Fria. A deflagração de novos conflitos armados e, mais tarde, dos ataques terroristas pós-11 de setembro, passaram a desafiar a lógica realista de maximização do poder. As guerras travadas por chefes de Estado davam lugar a conflitos de natureza identitária, religiosa, linguística e/ou tribal. Com efeito, a concepção clausewitziana de guerra e os conceitos de “ameaça” e “segurança” precisavam ser repensados, de forma a incluir as tensões culturais em sua problematização (SAINT-PIERRE, 2010) – seja para considerar a cultura causa dos conflitos seja para reivindicar seu papel no processo de construção e manutenção da paz, como veremos. Esse contexto foi propício à emergência das abordagens construtivistas3, que contestavam premissas positivistas, como crenças na: i) unidade científica (que 2 Referimo-nos à produção acadêmica norte-americana, onde, segundo Santos e Fonseca (2009, p. 354), “a disciplina se expande e onde se estabelece o paradigma hegemônico”. 3 Com as publicações do livro World of Our Making – Rules and Rule in Social Theory and International Relations, de Nicholas Onuf, em 1989, e do artigo “Anarchy is What States Make of It”, de Alexander Wendt, em 1992, propõe-se uma abordagem construtivista das relações internacionais pautada na teoria sociológica de Anthony Giddens, que “nega precedência ontológica tanto aos agentes quanto à estrutura” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 8). Nesse sentido, tanto o feminismo quanto a teoria crítica e o pós-modernismo seriam considerados abordagens construtivistas, uma vez que compartilham certas premissas básicas (BORJA, 2011).A abordagem construtivista mencionada aqui não se restringiria, portanto, à teoria social da política internacional formulada por Wendt e publicada em 1999, mas a este conjunto de teorias que provocaram a ocorrência do debate pós- positivista em RI. 5 justificava a aplicação de métodos trazidos das ciências naturais); ii) neutralidade dos fatos (e sua distinção com relação aos valores do pesquisador/observador); e iii) necessidade de validação empírica ou falsificação das hipóteses a partir de uma realidade dada e a priorística. Se, por um lado, as correntes realistas e liberais “possuíam um claro programa de pesquisa, com hipóteses, metodologia e critérios de inclusão e exclusão precisos e transparentes”, por outro, “esses instrumentos de análise não permitiam a eles lidar com assuntos empolgantes, tais como os conceitos de identidade e cultura” (NOGUEIRA E MESSARI, 2005, p. 7). Para lidar com as “novas” questões, em emergência no bojo do debate pós-positivista, tornou-se imperativo relativizar no tempo e no espaço certas noções estabelecidas historicamente no campo de RI como absolutas e imutáveis; entre elas, os conceitos de “Estado”, “território”, “soberania”, “anarquia” e, até mesmo, de “poder”. Naeem Inayatulla e David L. Blaney (2004), por exemplo, notam que é preciso reimaginar o conceito de soberania para além de sua definição convencional de “império da uniformidade” (p. 187). Segundo os autores, não é possível pensar em uma noção de território ou soberania, já que esses conceitos são múltiplos e socialmente construídos: “territorial spaces are historically constructed, entailing a set of social relationships and processes, and not a universal and fixed category within a Euclidean geometry or a Newtonian cosmology” (p. 191). Nesse sentido, os pós-positivistas buscaram oferecer uma visão alternativa aos estudos internacionais, alicerçando-se na premissa fundamental de que o mundo é socialmente construído e de que não se pode, portanto, querer explicá-lo, como um dado objetivo e material, dissociado do observador e das teorias, em si. Ao contrário, segundo esta abordagem, o mundo é passível de interpretação, na medida em que as teorias, elas próprias, ajudam a construí-lo. Mais do que teorias explanatórias, o estudo das relações internacionais deve valer- se, portanto, de uma teoria constitutiva (SØRENSEN, 1998). Os novos temas demandavam, portanto, novos olhares e, também, novas metodologias. Para tanto, o debate logrou trazer para o mainstream do campo de RI contribuições de outras áreas e de correntes de pensamento interdisciplinares, sobretudo das Ciências Sociais e Humanas. Muitas dessas contribuições, por sua vez, já destacavam a dimensão cultural como constitutiva das práticas e relações humanas, o que contribuiu para a emergência da cultura nos estudos de relações internacionais. 6 O caráter interdisciplinar dos estudos de relações internacionais ganha legitimidade concomitantemente ao desenvolvimento de teorias que buscam superar os limites dos estudos clássicos [...]. Neste contexto, o estudo das relações culturais adquire novo sentido, afastando-se de sua posição subordinada aos estudos sobre os recursos de poder e interesses nacionais. (HERZ, 1987, p.61). Ao mesmo tempo em que os “internacionalistas” buscavam integrar novas perspectivas à teorização e às análises das relações entre os Estados – e para além deles –, a ocorrência de fenômenos culturais contemporâneos e suas inter-relações com outras esferas sociais se evidenciava no âmbito global. Segundo Rubim (2007), desde a modernidade, observa-se um processo de politização da cultura. A política, outrora legitimada no campo da religiosidade, passa a ter a cultura como fonte significativa de legitimidade social. Tal dispositivo secular, inicialmente associado às elites e aos interesses dominantes, paulatinamente, através da luta de diferentes segmentos oprimidos, passa a ser conformado por expedientes democráticos, que implicam na construção de hegemonia e o colocam na cena política como condição vital para a direção da sociedade. Ou seja, o consenso toma o lugar de mera coerção [...]. Ao incorporar a lógica da construção e competição de hegemonias, a política necessariamente se articula com a cultura, posto que trata da elaboração de direções intelectuais e morais, como diria Antonio Gramsci, e da disputa de visões de mundo, nas quais política e cultura sempre estão imbricadas (RUBIM, 2007, p. 142). As ideias de “consenso” e de “lógica da construção e competição de hegemonias” são centrais no conceito de soft power, cunhado por Joseph Nye, em 1988. A partir da ampliação da noção de poder para além do equilíbrio de forças entre as capacidades militares, econômicas e políticas, o autor notou a importância dos componentes difusos, intangíveis e não-materiais nesta equação – sobretudo num sistema internacional caracterizado pela interdependência, democracia e instituições liberais (SØRENSEN, 1998). Nye sugere o emprego dos termos hard power e soft power para designar os recursos de que um Estado lança mão para obter aquilo que deseja na política mundial. Enquanto o hard power estaria baseado na força da ameaça militar e das sanções econômicas, o soft power estaria calcado no princípio da cooptação das pessoas, em detrimento da coersão: “A country may obtain the outcomes it wants in world politics because other countries – admiring its values, emulating its example, aspiring to its level of prosperity and openness – want to follow it”. Soft power, seria, portanto, a “habilidade de formatar as preferências dos outros” (p.5). A ideia de soft power é particularmente cara à diplomacia cultural, que, por sua vez, trata da instrumentalização da cultura para fins de política externa. Segundo o diplomata Edgar Telles Ribeiro (1989, p. 23), a diplomacia cultural 7 consiste na “utilização específica da relação cultural para a consecução de objetivos nacionais de natureza não somente cultural, mas também política, comercial ou econômica”. A mesma visão é difundida pelo Parlamento Britânico, um dos primeiros a notar a importância desta atividade: “We conclude, therefore, that cultural diplomacy, as we understand it, is not pursued by the Foreign Office for its own sake, but only as an instrument by which the pursuit of other diplomatic activities may be assisted” (HOUSE OF COMMONS apud RIBEIRO, 1989, p.23) Além de reforçar as relações entre cultura e política, o capitalismo tardio vem impondo uma lógica cultural pautada em processos mútuos de economização da cultura e culturalização da economia. Por um lado, a cultura passa a ser vista como produto passível de comercialização. Mais do que “capturados e transformados em mercadorias na esfera da circulação”, os bens e serviços culturais passam a ser concebidos na contemporaneidade dentro de uma lógica comercial desde o momento de sua produção (RUBIM, 2007, p. 143). A economização ou mercantilização da cultura estaria, portanto, “associada ao desenvolvimento do capitalismo e da chamada „indústria cultural‟” (p. 142). Não se trata de atribuir, aqui, maior ou menor valor artístico ou estético às produções culturais que integram esta lógica de produção, mas de reconhecer as profundas transformações sociais decorrentes deste fenômeno. Ao mesmo tempo, os bens e serviços culturais passam a desempenhar um papel importante também na produção de riqueza do mundo contemporâneo, fazendo com que, em muitos setores, a atribuição de valor simbólico a produtos e serviços de naturezas diversas (“valor agregado”) venha suplantando o critério da utilidade pelo da diferenciação. Os altos investimentos em marketing e propaganda pelo segmento empresarial ilustram o caráter estratégico da circulação de ideias e conceitos na comercialização de mercadorias. Da mesma forma, as disputas em torno de temas comopropriedade intelectual confirmam a centralidade do tema nos assuntos comerciais contemporâneos, sobertudo no âmbito internacional. A economia criativa4 tem se tornado frequentemente um tema de destaque em fóruns e encontros internacionais, haja vista o grande crescimento deste setor nas últimas décadas. Dados da Conferência das Nações Unidas para o 4 Segundo Miguez (2007, p. 96-97), “a economia criativa trata dos bens e serviços baseados em textos, símbolos, e imagens e refere-se ao conjunto distinto de atividades assentadas na criatividade, no talento ou na habilidade individual, cujos produtos incorporam propriedade intelectual e abarcam do artesanato tradicional às complexas cadeias produtivas das indústrias culturais”. 8 Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) indicam que as taxas anuais de crescimento das indústrias culturais na década de 1990 foram o dobro da indústria de serviços e o quádruplo da indústria de manufaturados nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Já em 2005, a movimentação financeira proveniente da presença dos bens e serviços culturais no comércio internacional atingiu a ordem de 1,3 trilhão de dólares, tendo respondido por 7% do PIB mundial (UNESCO, 2010). Com efeito, as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais, em curso no contexto da globalização, têm capturado o interesse de estudiosos de diversas disciplinas para o tema da cultura. Em RI, especificamente, este interesse têm se mostrado mais recente e ainda carece de estudos aprofundados5. É somente após o fim da Guerra Fria que a temática cultural começa a se popularizar entre os teóricos deste campo. No Brasil, a consolidação das Relações Internacionais como campo científico autônomo coincidiu com o período de abertura para outras áreas do conhecimento6. No entanto, as contribuições resultantes do diálogo com essas áreas tardaram a se traduzir em linhas de pesquisa e trabalhos acadêmicos comprometidos com as abordagens teóricas introduzidas no debate pós-positivista (HERZ, 2002) e, em particular, voltados aos temas culturais. Segundo Mônica Herz (2002, p. 8), a bibliografia produzida no Brasil nos anos de 1980 limitava-se à “recuperação histórica” e à “prescrição quanto à política externa no país”. Já nos anos 90, começaram a surgir pesquisas voltadas para “a interação das esferas doméstica e internacional” e para “as revisões do pensamento realista”, incluindo a temática da governabilidade e de novos atores no cenário internacional. Contudo, ao contrário de outros “novos” temas, como o meio ambiente e os direitos humanos, a cultura, em específico, sequer aparece incluída na relação 5 Para além do mainstream da disciplina, Suppo e Lessa (2007) oferecem um panorama de autores norte-americanos e europeus (sobretudo suiços e franceses) que se dedicaram à dimensão cultural das relações internacionais desde o final da década de 1940. A realização, em 1980, do I Colóquio de Relações Culturais Internacionais, por iniciativa do Instituto de História das Relações Internacionais Pierre Renouvin (Paris) e do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais (Genebra), pode ser vista como um marco na história do tratamento da cultura em RI. Segundo os autores, “até então, os historiadores das relações internacionais haviam manifestado interesse pelas mentalidades, opinião e ideologias, mas ignoravam as questões culturais propriamente ditas” (p.236). 6 Até o início da década de 1980, existiam apenas dois cursos de graduação em RI, no Brasil: o da UnB, criado em 1974, e o da PUC-Rio, de 1979. Segundo Santos e Fonseca (2009), a partir da metade dos anos 90 houve uma expansão na oferta. Em 2003, esse número passou para 60. Atualmente, de acordo com dados disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC), existem 119 cursos de graduação autorizados, entre os quais 118 são bacharelados e apenas um é lato-sensu (Disponível em: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 22 ago. 2011). Isso representa um aumento de quase 100% na quantidade de cursos de graduação, em apenas oito anos. 9 de dissertações e teses defendidas no país de 1982 a 1999. O mesmo se repete com relação aos trabalhos apresentados nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS, de 1981 a 1999 (HERZ, 2002). O resultado observado no mapeamento da autora vai ao encontro da análise de Amado Cervo, segundo o qual, no Brasil, nunca se conferiu ao “elemento psicossocial ou cultural” a importância necessária; privilegiaram-se os estudos mais típicos de um país do “Terceiro Mundo”: “as relações existentes entre política internacional e dominação ou dependência internacional, entre política internacional e estágios diferenciados de desenvolvimento” (SUPPO; LESSA, 2007, p. 223) 7 . Na última década, esse desanimador panorama vem apresentando mudanças, porém lentas. Até os dias atuais, há um número bastante reduzido de dissertações e teses defendidas e de artigos publicados em revistas especializadas que versam sobre a dimensão e os fatores culturais nas relações internacionais. Entre os poucos, há um predomínio das identitárias, sendo raros os esforços voltados para a análise das relações entre cultura e comércio internacional, propriedade intelectual, política externa ou teoria das RI, para citar apenas alguns grandes temas. Esta negligência pode ser explicada, em parte, pela ausência de linhas de pesquisa ofertadas nos programas de pós-graduação brasileiros que contemplem problemáticas específicas do campo das políticas culturais8. Por outro lado, a dificuldade em definir e operacionalizar o conceito de cultura também parece frear o desenvolvimento de um enfoque culturalista das relações internacionais. Em 1952, Kroeber e Kluckhohn identificaram pelo menos 167 definições distintas para o termo cultura. Na década de 1960, Raymond Williams, um dos maiores estudiosos da temática cultural, afirmou que “a cultura é uma das duas ou três palavras mais complicadas na língua inglesa”9 (apud WALKER, 1990, p. 4). Em RI, Robert Walker está entre os teóricos que se depararam com a complexidade histórica em torno da definição do conceito de cultura. Segundo o autor, a variedade de significados a que o termo foi associado ao longo da história está entre os fatores que explicam a negligência dos teóricos de RI sobre tema cultural, que, para alguns, pode parecer “frustantemente vago e 7 Suppo e Lessa (Op. cit, p. 224), por outro lado, identificam alguns trabalhos que, de fato, “integraram a dimensão cultural como campo de estudo das relações internacionais brasileiras”. São citados pesquisadores como Gerson Moura, Mônica Herz e José Flávio Sombra Saraiva. 8 Podemos citar a linha de pesquisa “Política, cultura e instituições”, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como uma exceção neste sentido. 9 Tradução nossa de “one of the two or three most complicated words in the English language” (WILLIAMS apud WALKER, 1990, p. 4). 10 tendencioso” (WALKER, 1990, p. 7). Ora, para uma área do conhecimento que, durante boa parte de sua história, buscou simplificar as relações internacionais com base em conceitos operacionalmente defindos e que pretendia utilizar instrumentos de análise tão precisos quanto os das ciências naturais, não surpreende que, mesmo com a recente incorporação de novas perspectivas e metodologias, a problemática cultural tenha se mantido à margem das investigações. Por outro lado, alguns teóricos e estudiosos, de fato, incubiram-se de tal tarefa. Algumas dessas perspectivas serão abordadas na seção seguinte, quando buscaremos pontuar algumas tendências na definição do conceito de culturae sua operacionalização para o estudo das relações internacionais. O conceito de cultura e sua operacionalização para o estudo das relações internacionais Uma das dificuldades de se trabalhar com a noção de cultura advém de sua amplitude conceitual. Além disso, há uma grande variedade de significados (muitas vezes distintos e incompatíveis) para o termo, conforme lhe foram atribuídos por diferentes tradições disciplinares e intelectuais, ao longo do tempo. Isto se explica, em grande medida, pelo fato de a cultura ter sido espaço de sérias disputas filosóficas e políticas em diferentes momentos históricos (WALKER, 1990). Segundo Walker, duas grandes questões são centrais para entender a maneira como o conceito de cultura emerge nos debates contemporâneos sobre os processos sociais e políticos e, mais especificamente, na análise das relações internacionais. A primeira, de natureza ontológica, refere-se ao confronto entre duas perspectivas radicalmente opostas, cujas raízes remetem às abordagens filosóficas de Platão e Aristóteles. Trata-se do dualismo entre ideia e matéria; espírito e corpo; linguagem e mundo. De acordo com a perspectiva idealista, assim como o mundo, a cultura seria uma construção social, uma dimensão constitutiva de todas as práticas humanas. Em RI, esta perspectiva orienta as abordagens construtivistas, que tendem a associar “cultura” às noções de “hegemonia” e “discurso”, buscando analisar o caráter intertextual das práticas internacionais e as formas discursivas por meio das quais estas práticas foram socialmente legitimadas. Para os “materialistas”, por sua vez, a cultura seria uma espécie de epifenômeno da natureza, uma consequência de necessidades naturais do homem. Esta perspectiva pode ser identificada na teoria realista das relações internacionais, que entende o 11 mundo como dado concreto e objetivo. Tratamos desta questão na primeira seção deste artigo. A segunda grande questão refere-se ao embate entre as perspectivas universalista e pluralista da cultura, à qual nos ateremos mais aprofundadamente. Originalmente empregado para referir-se ao cultivo da terra (daí o surgimento do termo “agricultura”), a partir do século XIII, a cultura passou a ser entendida de diferentes maneiras na Europa. Os franceses foram responsáveis por introduzir um novo significado ao conceito, ampliando-o à noção de cultivo do espírito humano. Com um sentido muito próximo ao de Civilização (que estava ligado ao progresso coletivo), para os franceses do final do século XVIII, a cultura designava o aprimoramento e o rebuscamento intelectual de cada indivíduo. Entendida desta forma, estava intimamente relacionada às artes, à literatura, à música e à educação. Esta visão foi influenciada pelos ideais iluministas de evolução, progresso e uso da razão, culminando numa noção de cultura como algo externo e universal, passível de ser adquirido e ensinado. Opondo-se à concepção humanista francesa, foi criado o termo alemão Kultur, que simbolizava todos os aspectos espirituais de uma comunidade, seus valores morais e costumes tradicionais (LARAIA, 1987). Esta abordagem, que ressaltava a existência de uma pluralidade de culturas, se tornou um dos temas centrais do Romantismo e desempenhou um papel importante na articulação dos sentimentos nacionais durante os séculos XIX e XX (WALKER, 1990; CANCLINI, 2010). Conceitos caros a esta perspectiva, como diversidade, fragmentação e relativismo, seriam mais tarde retomados com a emergência da Antropologia Cultural. Contudo, a concepção francesa (logo adotada pelos ingleses) foi a que mais repercutiu no restante da Europa, tornando-se hegemônica durante os séculos XVIII e XIX. Não coincidentemente, a perspectiva universalista era particularmente oportuna à prática colonial empreendida naquele período pelos países europeus – sobretudo pela França e pelo Reino Unido – nos continentes africano e asiático. Fortalecido pela teoria evolucionista de Chales Darwin, o pensamento colonial valia- se do entendimento de cultura como uma decorrência de necessidades naturais, estando, portanto, subordinada ao biológico. Desta forma, era possível atribuir supostos “níveis de evolução” para os diferentes povos, classificando-os dentro de uma “escala de civilização”. Essa noção hierárquica e universalista dava aos 12 colonizadores insumos teóricos para legitimar as destruições e imposições culturais que marcaram a expansão do imperialismo colonial. Em 1871, o conceito proposto pelo inglês Edward B. Taylor (considerado até hoje um dos mais caros às Ciências Sociais) buscou sintetizar as noções francesa e alemã, definindo o vocábulo Culture como “aquele todo complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 1987, p. 25). Fortemente pautada na ideia de aquisição da cultura através do aprendizado (em oposição à transmissão biológica), a definição de Tylor influenciou a percepção de uma série de antropólogos no final do século XIX e durante todo o século XX, dando origem ao chamado relativismo cultural. Contrapondo-se às teorias deterministas, o artigo “O superorgânico”, de Franz Boas, é apontado como um divisor de águas nos estudos da cultura, marcando “o afastamento crescente desses dois domínios, o cultural e o natural” (Op. cit., p.28). A grande contribuição da abordagem relativista foi compreender cada cultura como uma totalidade singular, impossível de ser classificada em termos de “estágios civilizatórios”. Ao contrário, de acordo com esta perspectiva, “cada cultura deve ter seus próprios padrões analíticos, já que possuem uma lógica de funcionamento e características singulares” (BORJA, 2011, p. 34). Embora o artigo de Boas tenha sido publicado em 1917, algumas das premissas do relativismo cultural só passariam a compor o repertório conceitual do mainstream das Relações Internacionais cerca de 70 anos mais tarde, com especial impacto após a publicação do artigo “The Clash of Civilizations?”, do economista Samuel Huntington, na revista Foreign Affairs, em 1993. O trabalho de Huntington teve exponencial repercussão no campo de RI tendo em vista, sobretudo, as mudanças na ordem mundial pós-Guerra Fria e seus desdobramentos, a exemplo dos conflitos na ex-Iugoslávia e em países africanos. Até o final dos anos 1980, vale lembrar, os estudos das relações internacionais estavam sob a hegemonia das teorias tradicionais, mais especificamente da tradição realista, para a qual os temas classificados como “domésticos” ou “normativos” eram irrelevantes tanto para a manutenção quanto para o desequilíbrio da ordem internacional. Antes de avançarmos na teoria de Huntington, cabe aqui uma ressalva. Durante o período entreguerras, a visão universalista passou a ser adotada pelos defensores do internacionalismo cultural, que viam a cultura como uma ferramenta 13 em potencial para a promoção da paz e da cooperação entre as nações. Pautado nos ideais liberais - que estavam sendo amplamente difundidos, sobretudo, através do então presidente norte-americano Woodrow Wilson – este pensamento partia do pressuposto de que o conhecimento mútuo e a boa convivência entre os diferentes povos, ao lado da difusão da democracia e do estabelecimento do multilateralismo, poderiam conduzir o mundo para uma situação de paz. Apesar da nobre intencionalidade, a noção hierárquica e civilizatória de cultura continuava subjacente no discurso dos liberais do pós-I Guerra Mundial, para os quais a “Cultura” era algo a ser adquirida, com vistas ao progresso e, consequentemente, à paz. If people became more cultured, then they would become more civilized, then they would change their habits and behavior; which would, if all went to plan, affect the nature of international relations.In the short run, it could prevent war, and in the long run, it could lead to a whole new world order (REEVES apud BORJA, 2011, p. 34). Vale ressaltar que algumas das premissas presentes nessa perspectiva foram resgatadas por organizações internacionais criadas no pós-II Guerra Mundial, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Embora o discurso pluralista e antietnocêntrico seja prevalecente na atualidade e tenha-se avançado na definição de desenvolvimento para além da noção de progresso, a concepção adotada por estas organizações insere-se numa visão de cultura como meio para a consecução de objetivos que extrapolam sua dimensão simbólica. Como veremos adiante, a cultura passa a ser concebida como um recurso (YÚDICE, 2004). Concluída esta ressalva, retomemos o momento de ascensão do discurso relativista nas Relações Internacionais. Contrapondo a visão de futuro otimista proclamada por Francis Fukuyama a partir da teoria do Fim da História, a tese do Choque das Civilizações vislumbrava um futuro não tão pacífico para o mundo pós- Guerra Fria. Huntington acabou radicalizando o argumento relativista e estabelecendo uma versão essencialista da cultura (BORJA, 2011), na medida em que atribuiu quase que exclusivamente aos fatores culturais a responsabilidade pelos conflitos em eclosão no mundo. Para o autor, a fonte de conflito fundamental nesse “novo mundo” pós-Guerra Fria não seria essencialmente ideológica ou econômica, mas cultural, devendo-se atribuir às diferenças culturais a responsabilidade pelas “grandes divisões entre a humanidade e a fonte dominante de conflito” (HUNTINGTON, 1993, p. 22). As “identidades civilizacionais” seriam 14 formatadas a partir da interação entre “sete ou oito civilizações”10 e os conflitos futuros seriam determinados pelos limites culturais que separam essas civilizações. Ao se confrontarem, as diferenças culturais provocariam choques que poderiam levar estas civilizações à guerra. Nation states will remain the most powerful actors in world affairs, but the principal conflicts of global politics will occur between nations and groups of different civilizations. The clash of civilizations will dominate global politics. The fault lines between civilizations will be the battle lines of the future (Op. cit., p. 22). Apesar de ter catapultado a cultura para o centro do debate internacional, a simplificação conceitual oferecida pelo autor (que resultou na sua ampla aceitação para além dos ambientes acadêmicos) foi – e continua sendo – questionada por estudiosos de diversas áreas do conhecimento, incluindo a de RI. Em primeiro lugar, conforme observou Julie Reeves (apud BORJA, 2011), a teoria de Huntington apresenta imprecisões conceituais e metodológicas, não esclarecendo a diferença entre os conceitos de “cultura” e “civilização” e não utilizando critérios coerentes na classificação destas últimas. Enquanto algumas civilizações são claramente definidas pela religião, como a ortodoxa e a islâmica, outras carecem de um princípio organizador como a latino-americana ou a africana; ou mesmo são determinadas por um conjunto de fatores, como a ocidental, que envolve desde a Cristandade Ocidental, fenômenos históricos como o Iluminismo e até valores, como o individualismo. As civilizações são apresentadas como entidades incomensuráveis, e a cultura seria a fonte dessa incomensurabilidade (Op. cit., p. 26). Simon Murden, por sua vez, ressaltou que Huntington falhou “ao contar as histórias de interações e sínteses que sempre ocorreram entre as civilizações” (Op. cit., p. 26)11. No contexto atual da globalização, os efeitos desses processos são ainda mais visíveis, na medida em que estas interações reconfiguram os processos de construção das identidades, borrando os limites entre as diferentes culturas (HALL, 1999). Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama diferente de identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. (Op. cit., p. 75). 10 A saber: a ocidental, a confuciana, a japonesa, a islâmica, a hindu, a ortodoxa-eslava, a latina- americana e a africana. 11 Tradução nossa de “Huntington failed to tell the stories of interaction and synthesis that always have gone between civilizations” (MURDEN apud BORJA, 2001, p. 26). 15 Sørensen (1998), por sua vez, afirma que “a noção popular da chegada de um „choque de civilizações‟ é uma abordagem enganosa”12 (p. 99). Para o autor, a propagação dos valores liberais pelo mundo, facilitada na contemporaneidade pelo fortalecimento da chamada “sociedade internacional”, conduz as diferentes culturas mais para um processo de compartilhamento de valores e de integração do que de choques. There is more agreement about liberal values, including human rights, and there is more preparedness to act in coalition when the basic values of international society are violated […]. At the same time, processes of globalization can lead to confrontation between modern and traditional values, but even if it is a fragile and stepwise process, I would argue that the accent is presently on integration and stronger common values, instead of fragmentation and clashes between different values (Op. cit., p. 100). Outro ponto crítico da teoria de Huntington consiste na negação do processo de “homogeneização cultural”. Segundo ele, a modernização reforçaria as culturas locais e reduziria o poder relativo do Ocidente, principalmente em função de uma crescente “consciência-civilizacional” e do fortalecimento dos blocos regionais. Esta análise vai de encontro a teorias como a de Immanuel Wallerstein, segundo o qual, entre os mecanismos que constituem o sistema-mundo, encontra-se o “imperialismo cultural”. [...] os processos envolvidos na expansão da economia mundial capitalista – a „periferização‟ de economias, a criação de estruturas estatais frágeis que participam do sistema interestatal e são constrangidas por ele – implicaram uma certa quantidade de pressões no plano cultural [...]. A esse conjunto de processos damos o nome de „ocidentalização‟ ou, mais arrogantemente, „modernização‟, legitimada pela desejável vantagem de partilhar tanto os frutos do universalismo quanto a fé na ideologia que o acompanha (WALLERSTEIN apud SUPPO; LESSA, 2007, p. 227). Do ponto de vista pragmático do regionalismo econômico, se, por um lado, os blocos regionais têm se fortalecido nas últimas décadas, por outro, ainda é notável o controle do comércio internacional de bens e serviços culturais por parte dos países desenvolvidos (ocidentais ou ocidentalizados). Dados divulgados pela UNESCO revelam que, apesar desse setor ter crescido, aproximadamente, 50% de 1994 a 2002 (atingindo a marca de U$ 59,2 bilhões), em 2002, 51,8% das exportações eram controladas pela União Europeia, 20,6% pela Ásia e 16,9% pelos Estados Unidos; em contraste com os 3% controlados pela América Latina e Caribe e 1% pela África e Oceania (LESSA, 2010, p. 55). Mais do que mera atividade econômica, o consumo de bens simbólicos é responsável pela construção de uma marca de pertencimento (CANCLINI, 2010), 12 Tradução nossa de “[…] the popular notion of a coming „clash of civilizations‟ is a misleading approach” (SØRENSEN, 1998, p. 99). 16 independentemente do país de origem deste consumidor. Seguindo a mesma linhade análise de Hall, Canclini argumenta que, na contemporaneidade, os consumidores tecem as malhas do tecido social a que pertecem ou desejam pertencer, criando sua própria identidade. Dessa forma, consumo e cidadania passam a ter imbricamentos profundos: “Vamos afastando-nos da época em que as identidades se definiam por essências a-históricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir” (Op. cit., p. 30). No bojo das discussões sobre a tese do Choque de Civilizações, a emergência da temática cultural trouxe para a agenda de RI um debate profícuo a respeito do tema relativismo cultural e universalidade dos direitos humanos. A situação escravagista na Mauritânia pode ser lembrada como um exemplo dentre os diversos casos que encarnam esta tensão. Apesar de ser legalmente proibida desde 1981, a prática de escravatura continua sendo uma realidade naquele país. Segundo Boubacar Messoud, fundador do ONG mauritana SOS Escravos, as origens culturais deste problema dificultam uma resolução definitiva no país: “Esta é a sociedade escravagista ideal, de escravos totalmente submissos, que, da mesma forma como seus senhores, aceitam a escravidão como algo normal”13. Casos como este são ilustrativos de uma problemática complexa, que envolve, por um lado, a salvaguarda das especificidades culturais e, por outro, a proteção de direitos humanos universais. Este, sem dúvida, permanece sendo um tema de estudos promissor, mas que, no entanto, foge aos objetivos deste artigo. O que nos interessa argumentar aqui é que, muito embora os fatores culturais tenham ganhado força no campo das Relações Internacionais a partir da década de 1990, as perspectivas adotadas se apresentam tão vastas quanto complexas, e devem ser compreendidas à luz de suas transformações histórico- contextuais. Embora a ideia de cultura como modo integral de vida tenha logrado desmontar a noção secular e hierárquica de cultura como escala de civilização, suas versões mais essencialistas podem apresentar novos problemas, informando teses como a do Choque das Civilizações ou práticas xenofóbicas e/ou violadoras de direitos humanos. 13 Retirado de entrevista concedida à revista Veja, publicada em 12/11/1997. Disponível em: http://veja.abril.com.br/121197/p_049.html. Acesso em 13 out. 2011. 17 Dito de outra maneira, se, por um lado, a perspectiva humanista hierarquiza as diferentes culturas, com a crença de que existem estágios civilizatórios universais a serem galgados na direção da aquisição de uma Cultura ideal (no singular); por outro, o relativismo cultural – embora avance no reconhecimento da existência de uma pluralidade de culturas (no plural) – tende a concebê-las como homogêneas e uniformes sob a égide da cultura nacional, ignorando as tensões e diversidades no interior de cada uma delas. Além disto, esta perspectiva tende a desconsiderar os fluxos culturais e o consumismo global característicos da pós-modernidade e que, por sua vez, “criam possiblidades de identidades partilhadas‟ [...] entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo” (HALL, 1999, p. 74). Com efeito, os processos contemporâneos de globalização têm evidenciado a necessidade de superação da noção de identidade como equivalente à identidade nacional (WALKER, 1990; HALL, 1999; CANCLINI, 2010). À medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural. (HALL, 1999, p. 74) De que forma, então, é possível escapar dos excessos das abordagens universalistas e relativistas e propor uma perspectiva alternativa, que contemple os aspectos dinâmicos da cultura, tal como esta se apresenta no contexto global contemporâneo? Podemos destacar duas premissas que parecem apontar uma direção nesse sentido14. A primeira delas refere-se à cultura como processo. 1. Cultura como processo Os teóricos fundadores dos Estudos Culturais, como Stuart Hall, foram grandes responsáveis por enfatizar o caráter processual da cultura no contexto da globalização e disseminá-lo por outras áreas do conhecimento. Estes autores propuseram um alargamento conceitual do termo cultura, de forma a entendê-la tanto como produto quanto como processo. Isto é, além de materializarem-se em produtos (incluindo-se desde a produção artística até as atividades populares e as práticas cotidianas), a cultura – entendida, ainda, como “práticas culturais”, “produção cultural” ou “práticas de significação” (WALKER, 1990) – não são um fim em si mesmo, mas processos que implicam e, ao mesmo tempo, são implicados por 14 Borja (2011) propõe quatro premissas para o estudo da cultura nas relações internacionais: Ao nosso ver, no entanto, é possível sintetizá-las em duas amplas vertentes:1) Cultura como processo e 2) Cultura como recurso. 18 fatores das outras esferas sociais: “cultura abarca o conjunto dos processos sociais de significação ou, de modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto dos processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social” (CANCLINI apud BORJA, p. 38). Pensar a cultura nestes termos viabiliza a noção de identidade como algo em constante criação e movimento (de fora para dentro e de dentro para fora), e que é estabelecida a partir de experiências diversas, e não como algo fixo, imutável ou circunscrito a uma nacionalidade (CANCLINI, 2010; HALL, 1999; WALKER, 1990). Nesse sentido, o eu e o outro são apresentados não como unidades antagônicas, mas como instâncias mutuamente necessárias à existência uma da outra. Trata-se de um processo relacional de construção e afirmação de identidades (BHABHA, 1992; HALL,1999). Este princípio (alteridade) confronta essencialmente o argumento do Choque das Civilizações e da teoria realista das relações internacionais, pois o outro passa a ser visto mais como parte de mim do que como ameaça. Em RI, o caráter processual da cultura é fortemente enfocado pelas abordagens construtivistas, que buscam compreender os jogos de poder subjacentes na política e nas relações internacionais. Assim como Hall, os teóricos pós-coloniais argumentam que o outro é “um recurso em um processo de auto- reflexão crítica”15 (INAYATULLAH; BLANEY, 2004, p. 187). Inayatullah e Blaney argumentam que já não é possível dicotomizar o eu e o outro em relações binárias de dentro/fora, amigo/inimigo, guerra/paz, pois “a presença do outro dentro do eu torna as formas puras ilusórias”16. Bhabha (1992), por sua vez, destaca a dimensão dinâmica da cultura ao descrevê-la como “uma estratégia de sobrevivência tanto transnacional quanto translacional” em um “processo complexo de significação”: The transnational dimension of cultural transformation – migration, diaspora, displacement, relocations – turns the specifying or localizing process of cultural translation into a complex process of signification. […] The great, though unsettling, advantage of this position is that it makes one increasingly aware of the construction of culture, the invention of tradition, the retroactive nature of social affiliation and psychic identification (BHABHA, 1992, p. 47). Com efeito, entender a cultura como processo é oportuno para se repensar a ideia de identidade nacional. A apropriação do discurso relativista da diferença por parte de estadistas do mundo todo foi politicamente estratégica na 15 Tradução nossa de: “[the other as] a resource in a process of critical self-reflection” (INAYATULLAH; BLANEY, 2004, p. 187). 16 Tradução nossa de:“Straight lines fail to work their magic, in part, because the presence of the other within the self makes pure forms illusory” (Op. cit., p. 187). 19 construção dos sentimentos nacionais e na consolidação de princípios como Estados-nação e soberania. No entanto, as limitações desta perspectiva têm se tornado cada vez mais evidentes no contexto da globalização. The conventional categories of international relations theory seem particularly inappropriate in a world in which the claims of sovereignty co- exist with both complex interpenetrations of cultural identity and plausible scenarios about “interdependence” or an emerging “global civilization” (WALKER, 1990, p. 12). Desvinculando o conceito de identidade da noção de território, a cultura vista como processo – transnacional e translacional – aponta, portanto, para uma alternativa conceitual profícua ao estudo das identidades na era global. [...] as identidades pós-modernas são transterritoriais e multilinguísticas. Estruturam-se menos pela lógica dos Estado do que pela dos mercados; em vez de se basearem nas comunicações orais e escritas que cobriam espaços personalizados e se efetuavam mediante interações próximas, operam por meio da produção industrial de cultura, de sua comunicação tecnológica e do consumo diferido e segmentado dos bens. (CANCLINI, 2010, p. 46). 2. Cultura como recurso A segunda premissa que destacamos como relevante à análise da cultura nas relações internacionais parte da observação de que a cultura desempenha um papel importante na consecução do desenvolvimento humano, sendo fundamental à coesão e estabilidade sociais, à sustentabilidade ambiental e corroborando para a produção de riquezas e a redução do desemprego (UNESCO, 2010). Atualmente, a relação cultura/desenvolvimento tem sido frequentemente reforçada no sistema internacional. Os investimentos por parte de instituições como a União Europeia, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no campo cultural são significativos de como este campo passou a ser visto como estratégico para as políticas de desenvolvimento. O documento “The Power of Culture for Development”, divulgado pela UNESCO em 2010, por exemplo, refere-se à cultura como um veículo para fins como o desenvolvimento econômico, a coesão e estabilidade sociais e a sustentabilidade ambiental. A conveniência em conceber a cultura como um recurso, ou seja, como um meio para a consecução de objetivos que extrapolam sua dimensão simbólica, foi observada por George Yúdice: [...] a cultura está sendo constantemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania [...], e do surgimento daquilo que Jeremy Rifkin (2000) chamou de “capitalismo cultural”. A desmaterialização característica de várias fontes de crescimento econômico – por exemplo, os direitos de propriedade intelectual segundo a definição do GATT [...] e da OMC [...] – e a maior distribuição de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas de televisão, música, turismo etc) deram à esfera cultural um protagonismo 20 maior do que em qualquer outro momento da história da modernidade (YÚDICE, 2004, p. 25-26). Mais do que nunca, o entendimento de cultura deve considerar, portanto, suas relações com outras esferas sociais. Segundo Yúdice, na noção de cultura como recurso prevalece o paradigma da utilidade: “O conteúdo da cultura diminui em importância à medida que a utilidade da reivindicação da diferença como garantia ganha legitimidade. O resultado é que a política vence o conteúdo da cultura” (Op. cit., p. 43). Como vimos, esta premissa está na base dos conceitos de soft power e de diplomacia cultural, que preveem a utilização da cultura para fins de política externa, como o desenvolvimento econômico, a redução das desigualdades sociais, a inserção internacional, a integração supranacional, a promoção da paz etc. Da mesma forma, esta noção instrumental de cultura orienta as linhas de ação de uma gama de instituições, organizações não-governamentais, fundações, empresas e organizações internacionais. O preâmbulo da Constituição da Unesco ilustra esta perspectiva, na medida em que relaciona a ampla difusão da cultura à justiça, à liberdade e à paz para a dignidade do homem. Na mesma direção, o Artigo 3 da Declaração Universal da Diversidade Cultural define a diversidade cultural como um “fator de desenvolvimento” (UNESCO, 2002b). Além disto, reconhecer que a cultura tem sido tratada como um recurso para a consecução de objetivos políticos, econômicos e sociais permite entendê-la enquanto um campo singular e autônomo, constituído de relações de força e jogos de poder, onde articulam-se e inauguram-se “instituições, profissões, atores, práticas, teorias, linguagens, símbolos, ideários, valores, interesses, tensões e conflitos” (RUBIM, 2007, p. 141), e com um gerenciamento próprio, “coodernado tanto local quanto supranacionalmente, por corporações e pelo setor não- governamental internacional” (YÚDICE, 2004, p. 17). Nesse sentido, a cultura se apresenta como um campo demandante de políticas (policies) específicas. Políticas estas que, para sua efetividade, devem estar comprometidas com a dinâmica cultural contemporânea e seus imbricamentos globais. Sem que isto implique desconsiderá-la em seu viés constitutivo de todas as práticas humanas, é particularmente no campo das políticas culturais que governos, ONGs, organismos internacionais etc. exercem sua atuação sobre a cultura (ORTIZ, 2007). Com efeito, passa a fazer sentido que temas como “diplomacia cultural”, “cultura e desenvolvimento”, “economia criativa e comércio internacional”, “propriedade intelectual e direitos culturais”, entre outros, passem a integrar a 21 agenda internacional e, paralelamente, mereçam uma maior atenção por parte dos teóricos e estudiosos de RI. Conclusão Procuramos argumentar ao longo deste artigo que, embora a emergência dos temas culturais no campo acadêmico de RI seja recente e ainda careça de estudos aprofundados – sobretudo acerca das atividades travadas no campo das políticas culturais –, a “cultura” e o “internacional” mantêm relações profundas e cada vez mais evidentes no contexto da globalização. Duas grandes tensões marcaram a maneira como o conceito de cultura foi definido ao longo da história e influenciaram os teóricos de RI. A primeira coincide com a essência do debate pós-positivista, ou seja, o embate entre duas abordagens ontológicas distintas: o idealismo e o materialismo. Para este, a cultura seria uma espécie de epifenômeno da natureza, dentro de uma concepção de mundo enquanto dado material (perspectiva que orienta a teoria realista de RI); para aquele, a cultura é uma dimensão constitutiva de todas as atividades humanas, entendidas, em última instância, como construções sociais (perspectiva que orienta as abordagens construtivistas de RI). A segunda tensão, refere-se ao embate entre universalismo e pluralismo. Enquanto a perspectiva universalista busca hierarquizar o “grau de evolução” dos diferentes povos, baseando-se na ideia de “estágios civilizatórios” para a aquisição da Cultura (no singular), a visão relativista sedimenta a noção de culturas (no plural) como totalidades singulares, com características e lógicas de funcionamento próprias. Como vimos, ambas estas perspectivas podem apresentar problemas em suas versões mais essencialistas e, sobretudo, considerando-se as transformações globais contemporâneas. Para pensar uma perspectiva que contemple os aspectos dinâmicos da cultura, duas premissas parecem pertinentes: i) entendê-la como processo permite abarcar a diversidade cultural existente no interior de cada grupo social e reforçar o papel do “outro” na construção deidentidades, combatendo a tradicional associação outro/ameaça; e ii) entendê-la como recurso revela como o paradigma da utilidade tem conduzido à instrumentalização da cultura para a consecução de objetivos não apenas simbólicos, mas políticos, econômicos e sociais. Como notou Walker (1990, p. 12): “To understand the concept of culture as the product of specific historical transformations is thus to understand that the attempt to come to terms with culture now is to engage with questions of political practice”. 22 Bibliografia BHABHA, H. K. Freedom‟s Basis in the Indeterminate. October, vol. 61, The Identity in Question, Summer, 1992, p. 46-57. BORJA, J. T. A Retórica do Silêncio: cultura no Mercosul. 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