Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Indaial – 2020 Literatura Portuguesa Prof.a Carla Cristiane Mello 2a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof.a Carla Cristiane Mello Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: M527l Mello, Carla Cristiane Literatura portuguesa. / Carla Cristiane Mello. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 193 p.; il. ISBN 978-65-5663-004-5 ISBN Digital 978-65-5663-005-2 1. Literatura portuguesa - História e crítica. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 869.09 III aPresentação Olá, acadêmico do Curso de Letras! Apresentamos a você o livro didático da disciplina de Literatura Portuguesa e com isso queremos estudar o vasto conhecimento e acervo disponível a respeito desses campos literários, formados ao longo de séculos de histórias e memórias do povo português e suas colonizações. É importante frisar que neste material temos apenas algumas nuances de determinadas épocas, pois, dado o pouco espaço, precisamos elaborar uma espécie de fio condutor a partir do qual selecionamos alguns dos principais representantes. Mas isso deve servir para que você, acadêmico, siga na busca e nas leituras, faça seus próprios roteiros de aprendizagem e seja o maior interessado nesta troca de saberes que ora compartilhamos. Na primeira unidade, vamos focar nos primórdios da formação literária de Portugal, associando o contexto histórico em que o país vivia que, por sua vez, foi influenciado pela Idade Média em toda a Europa num período em que a escrita era restrita. Desse modo, a oralidade exercia um papel extremamente relevante no que diz respeito à propagação das memórias do povo, assim, as cantigas de amor e de amigo, além das cantigas de escárnio e de maldizer compõem o chamado Trovadorismo galaico-português como representação da lírica desse período. Além disso, (re)conhecemos o gênero em prosa denominado novelas de cavalaria; podemos compreender como o teatro de Gil Vicente se valia do cotidiano social para reproduzir diversos estereótipos e encontramos o grande épico e lírico Camões com uma pequena parte de sua imensa produção literária, que deve ser lida por toda e qualquer pessoa que ame literatura! Na segunda unidade, iremos conhecer, em parte, como se deu o processo de formação identitária portuguesa a partir do período chamado Romantismo. Para compreender isso, faz-se mister analisarmos os contextos históricos pelos quais tanto Portugal quanto a Europa passavam também. Trazemos dois principais representantes do romantismo português, a saber, Almeida Garret e Alexandre Herculano. Em seguida, a escola realista e a conhecida Geração de 70, além da figura ilustre de Eça de Queirós. Ainda, daremos uma breve observada no Simbolismo e no Decadentismo trazendo alguns poetas, como Césario Verde, Antônio Nobre e Camilo Pessanha. Na terceira unidade, tratamos sobre a Literatura Portuguesa a partir do século XX e suas transformações, que despontam a partir do Modernismo e trazem representantes como Fernando Pessoa, Florbela Espanca, além do período pré e pós-1974, momento histórico de extrema importância para o IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA país. É nessa unidade, também, que você poderá apreciar um pouco das literaturas africanas de língua portuguesa, embora já na primeira unidade tenhamos inserido uma Leitura Complementar para que você possa se familiarizar com esse rico campo literário. Em meio a tudo isso, sempre procuramos trazer reflexões e sugestões de exercícios para se pensar a docência em sala de aula, pois o objetivo de sua formação é tornar-se ou aprimorar-se como professor de Língua e Literatura Portuguesa. Desse modo, também trazemos sugestões de documentários, filmes e instigamos você a ler os textos na íntegra, pois a maioria deles, pelo menos os mais antigos, já se encontram disponíveis para serem acessados através do domínio público. Dê asas à sua imaginação e crie um caminho de aprendizado que possa trazer satisfação. Quanto a nós, esperamos sinceramente que possamos ser um pequeno farol a iluminar esse caminho! Deleite-se! Prof.a Carla Mello V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE VIII IX UNIDADE 1 – A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO ..... 1 TÓPICO 1 – O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS .................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3 2 NO PRINCÍPIO ERA MÚSICA E POESIA ........................................................................................3 3 CANTIGAS DE AMOR E CANTIGAS DE AMIGO .......................................................................7 4 CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE MALDIZER .....................................................11 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................16 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................17 TÓPICO 2 – DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES .............19 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................19 2 ENTRE REINOS E CASTELOS, O AMOR .....................................................................................193 AS NOVELAS DE CAVALARIA ........................................................................................................21 4 O TEATRO DE GIL VICENTE ...........................................................................................................28 5 CAMÕES – O CLÁSSICO ÉPICO E LÍRICO ..................................................................................33 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................41 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................43 TÓPICO 3 – NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS ...........................45 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................45 2 ENTRE SERMÕES E POEMAS LITERÁRIOS................................................................................45 3 OS SERMÕES DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA ............................................................................46 4 BOCAGE, O POETA ÁRCADE ..........................................................................................................51 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................56 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................61 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................62 UNIDADE 2 – A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NO ROMANCE PORTUGUÊS ..................63 TÓPICO 1 – O ROMANTISMO EM PORTUGAL ............................................................................65 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................65 2 UM POUCO DE HISTÓRIA E ROMANCES HISTÓRICOS.......................................................66 3 ALMEIDA GARRET ............................................................................................................................72 4 ALEXANDRE HERCULANO .............................................................................................................75 5 O ULTRARROMANTISMO PORTUGUÊS ....................................................................................77 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................83 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................88 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................89 TÓPICO 2 – O REALISMO EM PORTUGAL ....................................................................................91 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................91 2 O REAL OU REALISTA NOS ROMANCES ...................................................................................91 sumário X 3 A GERAÇÃO DE 1870 ..........................................................................................................................93 4 EÇA DE QUEIRÓS ...............................................................................................................................97 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................106 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................107 TÓPICO 3 – O SIMBOLISMO EM PORTUGAL .............................................................................109 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................109 2 A SIMBÓLICA DECADÊNCIA DOS SENTIMENTOS..............................................................109 3 O FIM DO SÉCULO – DECADENTISMO ....................................................................................111 4 ANTÓNIO NOBRE, CESÁRIO VERDE E CAMILO PESSANHA ...........................................112 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................122 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................123 UNIDADE 3 – A LITERATURA PORTUGUESA A PARTIR DO SÉCULO XX E SUAS TRANSFORMAÇÕES ................................................................................................125 TÓPICO 1 – MODERNISMO EM PORTUGAL ..............................................................................127 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................127 2 FERNANDO PESSOA E A MULTIPLICIDADE DE EUS ...........................................................136 3 FLORBELA ESPANCA .......................................................................................................................143 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................146 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................147 TÓPICO 2 – LITERATURA CONTEMPORÂNEA ..........................................................................149 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................149 2 LITERATURA PRÉ-1974 ....................................................................................................................150 3 LITERATURA PÓS-1974....................................................................................................................153 4 JOSÉ SARAMAGO ............................................................................................................................156 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................161 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................162 TÓPICO 3 – LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA ........................165 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................165 2 O CONTEXTO HISTÓRICO ............................................................................................................167 3 LITERATURAS DE ANGOLA E MOÇAMBIQUE.......................................................................169 4 LITERATURAS DE CABO VERDE, GUINÉ BISSAU E SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE ..............175 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................181 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................186 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................187 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................191 1 UNIDADE 1 A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudodesta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender o processo de formação da literatura portuguesa e suas influências nos países colonizados; • relacionar os períodos sociohistóricos com os momentos mais marcantes das artes literárias em Portugal; • estudar e conhecer a prosa e a poesia dos Períodos Medieval e Clássico em Portugal; • identificar semelhanças com a atualidade nos tópicos estudados para trabalhar em sala de aula. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará algumas autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS TÓPICO 2 – DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES TÓPICO 3 – NUANCES DO BARROCO E DO ARCADISMO PORTUGUÊS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 1 INTRODUÇÃO Iremos agora fazer uma regressão até meados do século XII e conhecer o Período Medieval na Europa, mais especificamente em Portugal, onde iremos conhecer algumas cantigas do momento que oficializa o início da história da literatura portuguesa, ou seja, o Trovadorismo. Assim, caro acadêmico, permita- se adentrar num universo com cavaleiros e damas em castelos medievais para dar um cenário estético condizente ao período em questão. Aproveite esta viagem ao tempo passado! 2 NO PRINCÍPIO ERA MÚSICA E POESIA As literaturas de língua portuguesa são compostas atualmente por uma gama de autores e obras distribuídos em diferentes países que foram colonizados por Portugal. Além do Brasil, os países africanos: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que têm oficialmente a língua portuguesa como marca expressiva desse processo colonial, são influenciados pelas transformações e trazem heranças socioculturais daquele. Portanto, para compreendermos tais literaturas, devemos ter em vista esses detalhes e conhecermos seus processos históricos. No que concerne à constituição de um campo literário português, remetemos ao período do século XII, época em que a sociedade europeia vivia a conhecida Idade Média ou Período Medieval, que dura até meados do século XV. Neste tempo, difundiu-se popularmente o chamado Trovadorismo e suas cantigas, conforme veremos neste tópico. Importante lembrar que estamos falando da Europa porque basicamente (embora atualmente novas perspectivas provem o contrário) todo o pensamento ocidental foi calcado a partir desses países, e Portugal faz parte desse continente, logo, o que acontecia num lugar reverberava em todo o resto, assim como ainda ocorre hoje. É importante não perder esse detalhe de vista, pois para compreendermos os processos histórico- culturais de um país, devemos ter foco em todo o contexto do qual ele faz parte. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 4 Usamos a noção de “campo” baseado em Pierre Bordieu (2001), a partir do qual se pensa nas objetividades e subjetividades postas em relação dentro de uma sociedade, ou seja, há um jogo de forças que estipula e movimenta esse campo definindo o que pertence ou não a ele e quais agentes o compõem. NOTA Num determinado período da Idade Média, a estrutura social e política vigente era o chamado Feudalismo, que tinha uma base piramidal em que no topo se encontrava a aristocracia sob o comando do Rei; em seguida, vinha o clero, ou seja, a Igreja, que exercia forte influência sobre toda a sociedade; e, na base, encontravam-se os servos ou vassalos, ou seja, o povo camponês em geral. A mobilidade social era inexistente e o povo deveria servir à nobreza pagando, inclusive, altos impostos sobre as propriedades que ocupavam e que eram, em última instância, de seus senhores, e em troca recebiam proteção deles. Vale salientar que, num primeiro momento, a escrita era restrita aos cléricos e à Igreja, haja vista que a reprodução de manuscritos antes da invenção da imprensa era trabalhosa e tornava-se demasiado expansiva, além do que não havia muito interesse em sua difusão para além dos religiosos e da burguesia, como fica evidente posteriormente. Assim, a oralidade cumpre um papel de propagadora das memórias e histórias dessa época, principalmente através do suporte musical, conforme nos apontam Lopes e Saraiva (1969, p. 36): Mas a escrita constituía então um meio acessório da transmissão da cultura; temos de contar com a transmissão oral, através dos jograis- recitadores, cantores e músicos ambulantes que divulgam nas feiras, castelos e cidades um repertório musical e literário estimulado diretamente pelos ouvintes. […] As duas literaturas – a oral e a escrita – apresentam características muito diferentes. Ao passo que os livros produzidos ou reproduzidos nos conventos, destinando-se sobretudo à preparação dos clérigos e ao serviço religioso, consistiam principalmente em tratados e obras de devoção escritos em latim, o repertório dos jograis, pelo contrário, dirigido a um público iletrado de vilões, burgueses ou nobres, servia-se das línguas locais, inspirava- se na vida e interesses desse público e consistia sobretudo em poemas e narrativas versificadas. Sabemos que a matéria bruta que constitui a arte literária é a linguagem, portanto, vale a pena observarmos alguns pontos, também cruciais na hora de compreender como se dão as transformações estéticas dessas formas artísticas. Por exemplo, na citação supracitada percebe-se que há divisão entre a língua oficial da época, o latim, e as línguas locais ou ditas vulgares, a depender do público ouvinte/leitor. Nesse sentido, percebe-se que ainda hoje alguns estudos TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 5 linguísticos apontam o campo literário dito formal como de referência para exemplificar uma língua com norma padrão de escrita, isso tudo é fruto de imensas discussões, principalmente no que concerne ao ensino da língua portuguesa em sala de aula. Todavia, cabe a você, futuro docente dessa área, explorar tais diferenciações para que seu público-alvo possa ter maiores probabilidades de compreensão acerca das oralidades e escritas de nossa(s) língua(s), buscando direcionar para novas concepções que ultrapassem as noções de “certo” e “errado” sem deixar de considerar, também, as diferenças entre oralidade e escrita e os contextos das interações sociolinguísticas. Por exemplo, se tomarmos os conteúdos das cantigas daquele período, veremos que sua escrita está em galego-português, uma linguagem corrente da época, a exemplo da “Cantiga da Ribeirinha”, uma das mais antigas que se tem registro em nossa língua. Perceba que para reconhecermos tal “língua” é preciso fazer uma livre tradução, conforme vemos a seguir. CANTIGA DA RIBEIRINHA Paio Soares de Taveirós No mundo non me sei parelha, mentre me for' como me vai, ca ja moiro por vós - e ai! mia senhor branca e vermelha, Queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia! Mao dia me levantei, que vos enton non vi fea! E, mia senhor, des aquel di', ai! me foi a mi muin mal, e vós, filha de don Paai Moniz, e ben vos semelha d'haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d'alfaia Nunca de vós ouve nem ei valía d'ũa correa. Tradução No mundo ninguém se assemelha a mim enquanto a vida continuar como vai, porque morro por vós, e ai! minha senhora alva de pele rosadas, UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 6 quereis que vos retrate quando eu vos vi sem manto. Maldito dia que me levantei E não vos vi feia E minha senhora, desde aquele dia, ai! tudo me foi muito mal e vós, filha de Don Paio Moniz, e bem vos parece de ter eu por vós guarvaia pois eu, minha senhora, como presente Nunca de vós recebera algo Mesmo que de ínfimo valor. Obs.: a guarvaia era um manto luxuoso, provavelmente de cor vermelha, usado pela nobreza. FONTE: <http://belalinguaportuguesa.blogspot.com/2011/11/cantiga-da-ribeirinha.html>.Acesso em: 14 ago. 2019. Para compreendermos um campo literário, então, precisamos ver que a história influencia direta e indiretamente nas escolhas daquilo que pode ou não fazer parte da literatura, uma das formas de arte que parece, ainda, ser reservada a poucos. Entretanto, se expandirmos nossa noção de literatura para além da escrita, podemos aprender e depreender muitos conhecimentos através dos tempos. Além disso, as noções de estética podem variar de perspectiva a depender do contexto e dos artistas, também podendo ser fruto de inúmeras discussões nas mais diferentes áreas. É, todavia, por proximidades de características estéticas que acabamos por dividir os períodos literários, por exemplo. No que concerne aos estudos literários de língua portuguesa, foco de nosso olhar aqui, devemos também ter em vista a própria história constitutiva de Portugal como um país que, através das guerras recorrentes na Antiguidade, teve contato com outros povos e, consequentemente, assimilou outras línguas além do fato de derivar do latim. Devemos considerar, de igual modo, seu posicionamento geográfico e suas funções históricas dentro de determinados contextos, pois tudo isso refletirá inclusive nas literaturas brasileiras e africanas de língua portuguesa. Estas últimas que ainda são um universo a se descobrir, já que somente a partir da obrigatoriedade dos estudos das culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula (Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008) é que veio à tona a riqueza cultural desses países. TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 7 Embora as literaturas africanas de língua portuguesa sejam abordadas na Unidade 3, trazemos ao final desta unidade uma Leitura Complementar para que você possa se familiarizar com esse campo, que é um universo para além do eurocentrismo tradicional. ESTUDOS FU TUROS Voltando aos primórdios da formação literária portuguesa, então, conforme pontuam Lopes e Saraiva (1969), os mais antigos textos literários ficaram conhecidos como os versos dos Cancioneiros, a partir do século XII, no entanto, é pressuposto que tais obras escritas sejam apenas registros tardios das memórias orais que foram propagadas durante aquele período. São conhecidas três principais coletâneas de Cancioneiros: o mais antigo, Cancioneiro da Ajuda; de fins do século XIII; os outros dois, Cancioneiro da Biblioteca e Cancioneiro da Vaticana, são provavelmente do século XIV (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 42). A seguir, veremos os gêneros encontrados neste material, ou seja, as Cantigas de Amor e as Cantigas de Amigo, além das Cantigas de Escárnio e as Cantigas de Maldizer. 3 CANTIGAS DE AMOR E CANTIGAS DE AMIGO As Cantigas de Amor se diferenciam das Cantigas de Amigo pela identificação do “eu lírico” do poeta, que pode aparecer explicitada ou subentendida. Nas Cantigas de Amor, percebe-se o masculino manifestando seus sentimentos, enquanto que nas Cantigas de Amigo é o feminino – embora fosse escrito por homens – que expressa suas emoções e sentimentos através da lírica trovadoresca. A palavra lírica provém de lira, ou seja, um instrumento musical, portanto, uma poesia lírica geralmente era cantada, mas podemos pensar que também pode se relacionar com a musicalidade das palavras, além de expressar, obviamente, as emoções e sentimentos do autor em questão. Leia a seguir uma Cantiga de Amigo escrita pelo rei D. Dinis, que ficou conhecido como Rei-Trovador, já que tem um vasto número de cantigas por ele elaboradas, além de que durante seu reinado esse gênero se propagou fortemente: UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 8 Ai flores, ai flores do verde pino Dom Dinis Cancioneiro da Biblioteca Nacional 568, Cancioneiro da Vaticana 171 Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai, flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pos comigo! Ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado aquel que mentiu do que mi ha jurado! Ai Deus, e u é? -Vós me preguntades polo voss'amigo, e eu ben vos digo que é san'e vivo. Ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss'amado, e eu ben vos digo que é viv'e sano. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é san'e vivo e seerá vosc'ant'o prazo saído. Ai Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv'e sano e seerá vosc'ant'o prazo passado. Ai Deus, e u é? FONTE: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_ action=&co_obra=86555&co_midia=2>. Acesso em: 14 ago. 2019. Além do eu lírico feminino, observa-se que as Cantigas de Amigo possuem uma estrutura “paralelística” simples, o que designa que “A unidade rítmica não é a estrofe, mas o par de estrofes, ou mais, precisamente, o par de dísticos, dentro do qual ambos os dísticos querem dizer o mesmo, diferindo só, ou quase só, nas palavras da rima” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 45), como vimos anteriormente em “verde pino/verde ramo” e “meu amigo/meu amado”. Também há um verso que se repete, “Ai Deus, e u é”, conhecido como refrão, que você provavelmente conhece das suas músicas favoritas, pois este é constituído por versos de fácil memorização e repetição. TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 9 O “amigo” na cantiga é o namorado ou amante que geralmente se encontra longe, desse modo, a voz feminina reclama às suas ouvintes a ausência do ser amado, essas últimas podem ser as mães ou as amigas da protagonista. Os ambientes deste gênero poético-musical, ainda segundo os autores, estão na população rural, onde se veem paisagens da natureza; no lar doméstico, em que a protagonista aparece cumprindo afazeres “femininos” da casa; ou o ambiente da corte, onde vemos o “amor cortês” do ponto de vista da mulher. Já as Cantigas de Amor expressavam, segundo presumiam seus produtores, um modelo a ser seguido, pois eram de origem provençal ambientadas nos palácios, festas e cortes citadinas. Nesse tipo de canção, o homem expressa o “amor cortês” através da vassalagem amorosa à uma mulher idealizada, sem defeitos e santificada. Há semelhanças dessa vassalagem ao papel do cavaleiro referente ao seu senhor feudal, desse modo “O trovador imaginava a dama como um susserano a quem ‘servia’ numa atitude submissa de vassalo, confiando o seu destino ao ‘bon sen’ [bom senso] da ‘senhor’ [senhora] ” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 57). O termo “provençal” surgiu para se referir à região de Provença, localizada no sul da França. NOTA Acompanhe, a seguir, uma famosa Cantiga de Amor escrita por D. Afonso Sanches, em que podemos observar o português arcaico, mas já mais fácil de “tradução” para a contemporaneidade. Afonso Sanches Tam grave dia que vos conhoci, por quanto mal me vem per vós, senhor! Ca me vem coita, nunca vi maior, sem outro bem, por vós, senhor, des i; por este mal que mi a mim por vós vem, come se fosse bem, quer-me por en gram mal, a quem[-no] nunca mereci. Ca tem, senhor, porque vos eu serv'i [e] sempre digo que sôde'la milhor do mund'e trobo polo voss'amor, que me fazedes gram bem; e assi UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 10 veed'ora, mia senhor do bom sem, este bem [a]tal, se compr'[a] mim rem, senom se valedes vós mais per i. Mais eu, senhor, em mal dia naci: del, que nom tem, nem é conhecedor do vosso bem, a que nom fez valor, Deus de lho dar, que lhi fezo bem i; pero, senhor, assi me venha bem, deste gram bem, que el por bem nom tem, mui pouco del seria grand'a mi. Pois, mia senhor, razom é, quand'alguém serv'e nom pede, [que] já-quê lhi dem - eu servi sempr'e nunca vos pedi. FONTE: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=386&pv=sim>. Acesso em: 14 ago. 2019. No tocante à estrutura, as cantigas de amigo e de amor são relativamente semelhantes, embora estas últimas fossem consideradas mais “bem produzidas” por pontuar maiores complexidades nas rimas, isso se expressa, certamente, pelas diferenças sociolinguísticasde seus produtores/consumidores, ou seja, enquanto as cantigas de amigo traziam uma linguagem mais simples, as cantigas de amor, desenvolvidas nos espaços da realeza, procuravam trazer uma linguagem mais “elaborada”. O eu lírico destas era masculino, obviamente porque os homens eram os que tinham esse poder de escrever e partilhar das artes; os espaços que circulavam eram os palácios e as cortes; e seu principal incentivo ao “amor cortês”, que era o ideal de amor influenciado pela religião, mas também contraditório, segundo bem pontua Ferraz (2008, p. 25): O amor cortesão apresenta um paradoxo: mantém certa aproximação com a moral cristã, no sentido de que transforma a mulher amada em um ser angelical, inacessível, e o amor é transformado em uma religião. No entanto, trata-se de um amor adúltero, o que de certa forma anula a moral cristã nesse aspecto. A chamada erótica cortesã é vista como uma técnica sutil de não amar, uma maneira de não realizar o amor, uma vez que o homem tem medo da mulher diante do qual ele teme sua própria sexualidade. O amor cortês revela uma mulher completamente superior e inacessível e mostra as relações entre o feminino e o masculino, mas o homem é na verdade o dono desse jogo. O ideal é uma coisa, o real é outra. O público a quem se dirigiam poetas e romancistas era constituído de machos celibatários dos quais a cavalaria estava cheia. Alimentando-lhes o ardor, a literatura cortesã torna-se instrumento pedagógico. TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 11 Esse tipo de amor era conhecido como o “fino amor” ou “um extremo refinamento da cortesia”, diz ainda a autora. Baseado no platonismo, ou seja, um ideal de amor que ama mais o sentimento do que a sua concretização, ou seja, através do sofrimento o cavalheiro cultua a mulher amada, que tem poder de decidir se esse vive ou morre. Esse tipo de amor pode ser visto também em alguns romances ultrarromânticos, como nas primeiras fases do Romantismo português em autores como Camilo Castelo Branco, conforme você verá quando estudar esse período, e também não é exagero afirmar que ainda hoje permeia um vasto imaginário sociocultural que reproduz sua lógica de amor romântico e sofredor, principalmente através de algumas músicas. Vale lembrar, ainda, que as mulheres cumpriam papel de coadjuvantes nesse período, pois sequer podiam escolher seus maridos, quiçá opinar em quaisquer circunstâncias, mesmo que no âmbito familiar restrito, por isso pode-se perceber porque esse tipo de amor poderia ser fatalmente adúltero. No próximo tópico, apresentamos as cantigas de escárnio e de maldizer, que complementam as poéticas musicadas durante o período Medieval, cujas “trovas” podem mesmo trazer semelhanças de alguns gêneros poético-musicais contemporâneos. 4 CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE MALDIZER Diferentemente das Cantigas de Amor e de Amigo, as Cantigas de Escárnio e as Cantigas de Maldizer são sátiras indiretas, no caso da primeira, e diretas, no caso da segunda, e expressam críticas a alguém, usando-se da ironia, de xingamentos etc. com intenção difamatória, entretanto, tanto num quanto noutro tipo de canção podemos encontrar tais características. Porém, é nas cantigas de maldizer que as pessoas são nomeadas, passando a receber uma maledicência ou praga em seu nome. Tais canções se tornam importantes na medida em que expressam críticas de cunho político-social relacionadas à vida na corte, e mesmo diretamente a pessoas, inclusive membros políticos desses espaços, o que pode configurar-se como importante material para se perceber aquele período a partir de um viés mais etnográfico, por assim dizer, já que os poetas circulavam em diferentes espaços sociais e tinham o aval da arte para expressar seus pontos de vista, conforme pontuam Lopes e Saraiva (1969, p. 65): “Como repertório pícaro ou pitoresco de costumes, testemunho voluntário ou involuntário de uma mentalidade, a sátira trovadoresca completa os livros das linhagens”, estes que eram os livros da nobreza da época, mas sem deixar de expressar as críticas referente aos costumes. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 12 Etnográfico se relaciona à etnografia, ou seja, a ciência que descreve os costumes dos povos relativos à língua, raça, religião etc. FONTE: <https://dicionario.priberam.org/etnografia>. Acesso em: 10 ago. 2019. NOTA Vejamos uma cantiga de escárnio a seguir, de autoria de João Garcia de Guilhade, em que a protagonista não é nomeada, entretanto, satirizada indiretamente por ser “feia”. João Garcia de Guilhade Ai dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louv'en[o] meu cantar; mais ora quero fazer um cantar em que vos loarei todavia; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia! Dona fea, se Deus mi perdom, pois havedes [a]tam gram coraçom que vos eu loe, em esta razom vos quero já loar todavia; e vedes qual será a loaçom: dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei em meu trobar, pero muito trobei; mais ora já um bom cantar farei em que vos loarei todavia; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! FONTE: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=386&pv=sim>. Acesso em: 14 ago. 2019. Já as Cantigas de Maldizer, como dito, expressam diretamente nomes de pessoas envolvidas. Geralmente, a temática é o adultério ou o amor por interesse. Há emprego direto de palavrões e as críticas não são poupadas ao se referir a tal pessoa. Vejamos um exemplo típico desse tipo de canção a seguir, escrito por Afonso Eanes de Coton, onde apresenta os desejos sexuais da protagonista. TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 13 CANTIGA DE MALDIZER Maria Mateu, daqui vou desertar. De cona não achar o mal me vem. Aquela que a tem não ma quer dar e alguém que ma daria não a tem. Maria Mateu, Maria Mateu, tão desejosa sois de cona como eu! Quantas conas foi Deus desperdiçar quando aqui abundou quem as não quer! E a outros, fê-las muito desejar: a mim e a ti, ainda que mulher. Maria Mateu, Maria Mateu tão desejosa sois de cona como eu! FONTE: <https://www.escritas.org/pt/t/3999/cantiga-de-maldizer>. Acesso em: 14 ago. 2019. As cantigas de escárnio e maldizer trazem frutíferas reflexões a respeito da sociedade portuguesa da época, em que se buscava manter as convenções sociais e cristãs a todo custo, mesmo que à base de uma vida dupla, ou seja, aquela encenada socialmente, e a outra, vivida secretamente onde se podia expressar os reais desejos dos sujeitos sem serem julgados. Devemos perceber que a história de uma sociedade é sempre uma multiplicidade de histórias individuais que se mesclam com a coletividade para, então, comporem um mosaico de memórias. Entretanto, uma das desvantagens de se buscar a homogeneização é trazer apenas um ponto de vista para a luz excetuando-se todos os outros que diferem daquela história que se quer contar, ou seja, sempre há histórias por detrás dessa história. Não nos esqueçamos disso para lembrarmos que, embora as cantigas registradas pela via escrita sejam material histórico importantíssimo, haja o fato de estarmos estudando-as, muitas outras histórias e contextos passaram despercebidos a fim de manter uma coerência que é, ao fim e ao cabo, ditada pelos detentores do poder. Por isso mesmo, diversos reis, entre eles D. Dinis, foram os maiores trovadores dessa época portuguesa. O Trovadorismo entra em declínio, tanto em Portugal quanto na Europa, principalmente com a ascensão da burguesia e as transformações histórico-sociais decorrentes da época que influenciaram nas artes, pois como já se dissemos anteriormente, a arte faz parte da história e vice-versa. Na verdade, a estrutura social sofrendo modificações reflete-se nas formas de se fazer arte, isso é fato até os dias de hoje, basta pararmos para analisar como se dão tais fazeres em nosso cotidiano. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 14 O documentário Palavra Encantada, de HelenaSolberg (2014) traz um rico material de reflexão de artistas e especialistas das áreas da literatura e da música para pensarmos a relação entre as duas artes, que ocorre desde os primórdios. É interessante, principalmente, para trabalharmos em sala de aula. Vale a pena adquirir o material ou assistir online, disponibilizado em: https://www. youtube.com/watch?v=gqoW5iDNAZw. DICAS FONTE: <http://twixar.me/GvRT>. Acesso em: 24 jan. 2020. A fim de exemplificarmos um gênero poético-musical contemporâneo que dialoga com as cantigas, trazemos um exemplo de nosso aclamado cantor Chico Buarque. “Olho nos olhos” traz um eu lírico feminino lamentando a separação do amado. Olhos nos olhos Quando você me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci Quando você me quiser rever Já vai me encontrar refeita, pode crer Olhos nos olhos quero ver o que você faz Ao sentir que sem você eu passo bem demais E que venho até remoçando Me pego cantando Sem mais nem por que E tantas águas rolaram Quantos homens me amaram Bem mais e melhor que você Quando talvez precisar de mim Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim Olhos nos olhos quero ver o que você diz Quero ver como suporta me ver tão feliz. FONTE: <https://www.letras.mus.br/chico-buarque/65962/>. Acesso em: 10 ago. 2019. TÓPICO 1 | O TROVADORISMO E SUAS CANTIGAS 15 A seguir, vemos uma cantiga contemporânea da extinta banda “Legião Urbana”, que pode ser comparada às cantigas de escárnio, por tratar de críticas ao cenário político da época. QUE PAÍS É ESSE (LEGIÃO URBANA) Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação [REFRÃO] Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia-ia-ia Na baixada fluminense Mato Grosso, Minas Gerais E no nordeste tudo em paz Na morte eu descanso Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão Terceiro mundo se for piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão FONTE: <https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/46973/>. Acesso em: 10 ago. 2019. Trouxemos essas músicas para que possam lhe instigar a procurar mais! Certamente entre os gêneros poéticos-musicais contemporâneos que você ouve é possível encontrar outras semelhanças com as cantigas de amor e de amigo, ou ainda as cantigas de escárnio e maldizer. Esse tipo de exercício é muito profícuo em sala de aula com estudantes de todas as idades, pois a música é uma grande catalisadora de gerações, podendo facilitar a compreensão dos interlocutores para as tipologias “de antigamente”, como as aqui apresentadas. 16 Neste tópico, você aprendeu que: • A noção de campo literário está relacionada diretamente às linguagens e estéticas, portanto, o campo literário português pode ser amplamente compreendido até a atualidade. • Durante o Período Medieval, as artes trovadorescas eram propagadas oralmente principalmente através da música. • As cantigas de amigo e de amor expressavam os sentimentos e as emoções do eu lírico feminino e masculino, respectivamente. • As cantigas de escárnio e maldizer traziam sátiras diretas ou indiretas acerca de personalidades e dos costumes da época medieval. • Portugal colonizou diferentes países cujas influências podem ser observadas para além da língua, mas também nos modos de fazer literários de tais lugares, inclusive no Brasil. • A literatura traz riquíssimo material para compreendermos os processos sócio- históricos de uma sociedade em determinados contextos. • As características das cantigas desse período podem ser comparadas às músicas contemporâneas. RESUMO DO TÓPICO 1 17 1 A respeito do Trovadorismo em Portugal, podemos dizer que: I- Foi a primeira escola literária do país, e a relação com a oralidade e a música são explicitadas em suas cantigas. II- Tem quatro gêneros poéticos-musicais: as Cantigas de Amigo e as Cantigas de Amor, para expressar os sentimentos do eu lírico feminino e masculino, respectivamente; e as Cantigas de Escárnio e Cantigas de Maldizer, para expressar críticas satíricas indiretas ou diretamente. III- A linguagem poética é semelhante ao português moderno. IV- Apresentam a noção de amor baseada nos princípios cristãos da Igreja Católica. Estão CORRETAS as seguintes afirmativas: a) ( ) I, apenas. b) ( ) II, apenas. c) ( ) I e II. d) ( ) II e III. e) ( ) II, III e IV. 2 Leia atentamente a cantiga a seguir: Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo! e ai Deus, se verrá cedo! Ondas do mar levado, se vistes meu amado! e ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro! e ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amado, por que ei gram cuidado! e ai Deus, se verrá cedo! (Martim Codax) (In: NUNES, José Joaquim. Cantigas […]. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973. v. 2, p. 441). Aponte em que tipo de cantiga ela se classifica e justifique sua resposta. AUTOATIVIDADE 18 3 (Ufam - adaptada) Leia o poema a seguir, de autoria de D. Dinis, rei de Portugal, antes de responder à questão: “En gran coita, senhor, que pior que mort’é, vivo, per boa fé, e polo voss’amor esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu Vi polo meu gran mal, e melhor me será de morrer por vós já e, pois me Deus non val, esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu Polo meu gran mal vi, e mais me val morrer ca tal coita sofrer, pois por meu mal assi esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu Vi por gran mal de mi, pois tam coitad’and’eu.” A respeito do poema acima fazem-se as seguintes afirmativas: I- É uma cantiga de escárnio, pois o poeta ridiculariza a mulher amada. II- É uma cantiga de amigo, pois o eu lírico é feminino. III- Possui versos paralelísticos, como em “Vi polo meu gran mal” e “Polo meu gran mal vi”. IV- É uma cantiga de amor, pois o eu lírico, além de ser masculino, sofre intensamente um amor impossível. V- É uma cantiga de maldizer, pois o poeta não se conforma com o fato de não conquistar a mulher que ama. Estão CORRETAS: FONTE: <http://idaam.com.br/downloads/nave/provas_ufam/prova_psc2004_etapa1.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2020. a) ( ) Apenas III e IV. b) ( ) Apenas II e III. c) ( ) Apenas II e V. d) ( ) Apenas I e V. e) ( ) Todas as alternativas estão corretas. 19 TÓPICO 2 DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, vamos conhecer um pouco da prosa medieval, que também circulava oralmente originada das “canções de gesta” (poemas cantados que apresentavam as aventuras de guerreiros) até que, assim como a poesia trovadoresca, tardiamente foram coletadas e escritas. Importa observarmos que tanto a poesia quanto a prosa, e nesse sentido não somente de períodos remotos mas as de nossos dias, trazem importantes registros de suas épocas que podem nos auxiliar na compreensão daquelas. Em seguida, conheceremos um pouco do período pós-medieval e a importância do teatro de costumes português. Aqui o movimento Humanista assumirá um viés significativo para o período de transição sociohistórica tanto desse país quanto da Europa de um modo geral. Por último, e de suma importância, daremos nesse tópico especial destaque ao poeta clássico Luiz de Camões e sua obra lírica e prosa poética, essenciais a todo e qualquer estudante que seja amante das Letras e obras mundialmente reconhecidas como de especial relevância para a compreensão de determinados períodos. 2 ENTRE REINOS E CASTELOS, O AMOR Conhecer o momento histórico e suas implicâncias na sociedade são cruciais para que possamos apreender certos detalhes que reverberam até os dias atuais. Por exemplo, nesta unidade estamos falando inicialmente sobre o Período Medieval, certo? Logo, isso nos remete às épocas em que os cenários eram mais rurais que urbanos, ou ao menos não tão urbanoscomo no sentido que conhecemos as cidades de agora. Estamos entre os períodos feudais, transitando para o período renascentista e isso já nos faz lembrar que, embora as cronologias históricas sejam divididas em datas, elas não são estanques, ou seja, há resquícios de características de uma e outra em diferentes estágios, como assinala Moisés (2008): UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 20 Assim sendo, compreende-se que este panorama histórico da atividade literária de Portugal esteja dividido nos seus fundamentais momentos evolutivos. No tocante às datas empregadas para os delimitar, constituem somente pontos de referência, pois nunca se sabe com precisão quando começa ou termina um processo histórico: funcionam, na verdade, como indício de que alguma coisa de novo está acontecendo, sem caracterizar a morte definitiva do padrão velho até aí em voga (MOISÉS, 2008, p. 21). Com tudo isso, queremos já adentrar ao universo das novelas de cavalaria que, certamente, você estudante já conhece: quem nunca assistiu a algum filme que mostrasse tais cenários épicos com os lendários cavaleiros e suas armaduras, além das belas donzelas sempre aguardando serem salvas, ou dos reis e rainhas e do povo como coadjuvante da história? Mas antes de olharmos para isso, foquemos no gênero literário que trataremos aqui: a novela. Você certamente já assistiu a uma ou ouviu falar de alguma telenovela brasileira.? Pois antes da televisão, nas artes literárias encontramos o gênero literário “novela” que, embora não seja muito comentado, situa-se entre o conto – que é um gênero narrativo menor – e o romance – que é um gênero narrativo maior. Ora, a novela consegue trazer um pouco mais de desenvolvimento ao enredo da história que um conto, mas certamente não deve se estender tanto na narrativa quanto um romance. Como classificar os gêneros literários, então? Vai depender do bom senso e da observação da estrutura narrativa, embora possamos encontrar estudiosos que classifiquem uma mesma obra de formas diferentes. O importante a perceber aqui é que a novela é o principal exemplo em prosa desse período justamente porque o romance, como você irá estudar adiante, é um gênero literário que nasce com a ascensão da burguesia na Europa e se difunde com a consolidação da imprensa. Veremos a seguir, então, como as novelas de cavalaria se difundiram em Portugal, que é nosso ponto central nestes estudos, mas lembrando que tais histórias não se limitam somente a esse país, haja vista que podem ser divididas em três grandes ciclos que abarcam toda a Europa Ocidental: o ciclo carolíngio; o ciclo clássico; e o ciclo bretão, que é onde se encontram as novelas aqui tratadas. Ressalte-se ainda que as novelas de cavalaria trazem as biografias dos guerreiros lendários que lutavam por um ideal, seja por Deus; por uma causa, geralmente religiosa ou de honra (ética e moral); ou por sua amada, uma mulher também divinizada. TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 21 3 AS NOVELAS DE CAVALARIA As novelas de cavalaria são os registros em prosa do Período Medieval, isso quer dizer que, diferentemente da poesia lírica estudada no Tópico 1, o enredo é maior e há mais personagens envolvidos na história. As mais conhecidas histórias de cavalaria, e que você já deve ter ouvido falar, são as lendas do Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda. Essas narrativas traziam um ideal de cavaleiro que a Igreja pretendia reproduzir, ou seja, o herói fiel, dedicado, cortês e, obviamente, cristão. Por isso, também, muitas novelas de cavalaria giravam em torno da Demanda do Graal, relacionado-se diretamente aos mistérios a respeito da vida de Jesus Cristo. Além disso, essas narrativas são classificadas dentro do que ficou conhecido como o ciclo Bretão supracitado, onde percebe-se que: O ciclo Bretão, já denominado anteriormente matéria da Bretanha, é repleto de imaginação mística, devoção amorosa, ardente lirismo, sonhos, imaginação, sentimentalismo e exaltação religiosa. A temática central é o amor, a prostração e a fascinação passional, a divinização da mulher, tudo isso misturado ao espírito bélico. Tem origem nas populações célticas da Grã Bretanha que se fixaram no norte da França (FERRAZ, 2008, p. 37-38). Há algumas semelhanças entre o protagonista rei Arthur e Jesus Cristo, pois ambos possuíam 12 seguidores, os discípulos deste e os cavaleiros daquele. O rei Arthur reunia-se com os seus numa távola redonda, onde não havia hierarquia de lugares, ou seja, representava a igualdade entre todos. Essa mesma távola poderia aludir à mesa na qual Jesus reuniu os discípulos e fez a Santa Ceia. O rei Arthur foi traído pelo seu primeiro cavaleiro, Lancelot, que teve um caso de amor com Guinevere, a esposa daquele. Jesus foi traído por seu discípulo Judas. Ambos os personagens trazem os ideais de bondade e santidade, denotando assim a relação religiosa desse ideal de cavaleiro propagado nesse período (FERRAZ, 2008, p. 38). Ora, as novelas de cavalaria trazem o ideal do “amor cortesão” de forma mais elaborada do que apontado na lírica trovadoresca, pois através da prosa se consegue criar cenários e façanhas dignos das buscas heroicas as quais tais guerreiros pretendiam. Todavia, devemos ver que durante essa época as grandes conquistas eram travadas, e por consequência, idealizadas e romantizadas, refletindo-se nas literaturas visto que essas, a partir do momento em que a escrita passa a ser o registro “da verdade”, irão figurar entre as memórias desses povos. Além disso, as conhecidas Cruzadas, ocorridas entre os século XI e XIII, foram pontos marcantes nesse processo de expansão da religião católica. Por isso é tão importante criar um imaginário em que o cavaleiro herói é aquele de determinadas formas, detentor de grandes qualidades que, no caso à época, transitava pelo ideal cristão, embora também já se insinuando para o Humanismo, que vem a seguir e que veremos no próximo tópico. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 22 Em Portugal, por volta do século XIV, surge a mais antiga e conhecida novela de cavalaria chamada “Amadis de Gaula”, cercada de mistérios acerca de sua autoria, se seria portuguesa ou espanhola, por isso alguns estudiosos afirmam se tratar de um material da Península Ibérica a fim de resolver a questão. O breve resumo dessa história quem nos dá é Lopes e Saraiva: Amadis é o fruto dos amores clandestinos de Elisena e do rei Perion, que o abandonam às águas do mar. Salvo por uma família que lhe não sabe a origem, vem a ser escolhido para pajem da infanta Oriana, a quem a rainha apresenta com estas palavras: ‘– Amiga, este é o donzel que vos servirá’. O donzel guarda tais palavras no seu coração, e desde então a sua vida desdobra-se num longo serviço inteiramente cansagrado à amada. Durante muito tempo, a timidez inibiu-o de se declarar. Depois, o amor entre os dois foi um segredo cuidadosamente guardado. Ninguém sabia que era por Oriana que Amadis se arriscava a combates nunca vistos com gigantes ou monstros. O cavaleiro invencível quase deixa cair a espada das mãos ao ver, da arena de combate, a senhora na assistência, e quando, por um mal-entendido, ela o acusa injustamente de infidelidade, resolve deixar o mundo e fazer-se ermitão. O longo serviço de Amadis teve no entanto um merecido prêmio porque, quando uma aventura propícia deixa os dois namorados a sós na floresta, escreve o autor, ‘naquela erva e em cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que por desenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa donzela do mundo’ (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 95). DICASA - Essa região geográfica, embora seja fruto de disputas sociopolíticas, encontra-se abarcada, principalmente, pelos países da Espanha e Portugal. NOTA Todavia, diferentemente do que ocorre em outras novelas de cavalaria, a exemplo das sagas do rei Arthur e seus cavaleiros,em que ocorrem amores adúlteros, Amadis e Oriana, personagens da novela portuguesa, consumam um amor entre duas pessoas solteiras que eram. Outra diferença é que também ocorre a consumação carnal ou sexual dos personagens, diferente do que se exigia das outras novelas de cavalaria, em que o personagem principal deveria ser casto e sofreria todo tipo de provação para manter sua virgindade, pois conforme se dizia daquelas: A obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à moral cortês que inspira os cantares de amor, uma completa inversão de valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance cortês anterior a esta fase, se exalta o amor como caminho para a felicidade e a perfeição moral, na Demanda todo o amor é considerado pecaminoso, e a virgindade recomendada como o estado mais perfeito (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 93). TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 23 Para se familiarizer com as características da história de Amadis e Oriana, acompanhe, a seguir, um capítulo dessa novela e, se possível, leia a história completa disponível no endereço da fonte citada, já que se trata de uma obra pública, assim como todas as obras tratadas nesta unidade. Essa foi considerada a novela de cavalaria mais importante de toda a Península Ibérica e seu protagonista, Amadis, é frequentemente citado por Dom Quixote, protagonista do romance espanhol de Miguel Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, que se trata de uma novela de cavalaria que faz uma sátira do próprio gênero. Contudo, leia agora o “Amadis” português: CAPÍTULO XX [Capítulo traduzido por Augusto Cézar Filho] Como Arcalaus levou novas à corte do rei Lisuarte como Amadis era morto e os grandes prantos que em toda a corte por ele se fizeram, em especial Oriana. Tanto andou Arcalaus, depois que se partiu de Amadis, onde o deixou encantado, em seu cavalo e armado com suas armas, que aos dez dias chegou a casa do rei Lisuarte, uma manhã quando o sol saía; e nesta sazão o rei Lisuarte cavalgava com mui grande companhia; e andava entre o seu palácio e a floresta, e viu como vinha Arcalaus contra ele; e quando conheceram o cavalo e as armas, todos cuidaram que Amadis era. E o rei foi-se a ele mui alegre, mas sendo mais perto, viram que não era o que pensavam, que ele trazia o rosto e as mãos desarmadas, e foram maravilhados. Arcalaus foi ante el rei e disse-lhe: – Senhor, eu venho a vós porque fiz tal preito de aparecer aqui a contar como matei numa batalha um cavaleiro; e por certo, eu venho com vergonha, porque antes dos outros que de mim queria ser louvado; mas não posso al fazer, que tal foi o acordo entre ele e mim: que o vencedor cortasse a cabeça ao outro e se apresentasse ante vós hoje neste dia; e muito me pesou, que me disse que era cavaleiro da Rainha. E eu lhe disse que, se me matasse, que matava Arcalaus, que assim é o meu nome. E ele disse que se chamava Amadis de Gaula; assim ele desta guisa recebeu a morte, e eu fiquei com a honra e prez da batalha. – Ai Santa Maria val! – disse o Rei – morto é o melhor cavaleiro e mais esforçado do mundo. Ai Deus, senhor! E por que vos prougue de fazer tão bom começo e em tal cavaleiro? E começou a chorar mui esquivo [horrível] pranto, e todos os outros que ali estavam. Arcalaus voltou por donde viera, e maldiziam-no os que o viam, rogando e fazendo petição a Deus que lhe desse cedo má morte; e eles mesmos lha dariam, se não fosse porque, segundo a sua razão [segundo as suas palavras], não havia causa nenhuma para isso. O Rei foi-se para o seu palácio mui pensativo e triste à maravilha. E as novas soaram por todas as partes, até chegarem a casa da Rainha; e as donas que ouviram ser Amadis morto, começaram a chorar, que de todas era mui amado e querido. Oriana, que na sua câmara estava, pediu à Donzela de Dinamarca que fosse saber que cousa era aquele pranto que se fazia. A donzela saiu e, quando o soube, voltou, ferindo com as suas mãos o rosto e, chorando mui feramente, olhava para UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 24 Oriana; e disse-lhe: – Ai, senhora, que coita e que grande dor! Oriana estremeceu toda e disse: – Ai, Santa Maria, é morto Amadis? A donzela disse: – Ai, cativa, que morto é! E fraquejando a Oriana o coração, caiu em terra como morta. A donzela, que assim a viu, deixou de chorar e foi-se a Mabília, que fazia grande dó, arrancando os seus cabelos, e disse-lhe: – Senhora Mabília, acorrei a minha senhora, que morre. Ela voltou a cabeça e viu Oriana jazer no estrado como se morta fosse; e ainda que a sua coita fosse mui grande, que mais não podia ser, quis remediar o que convinha e mandou a donzela fechar a porta da câmara, para que ninguém assim a visse, e foi tomar Oriana nos braços e fez-lhe deitar água fria pelo rosto, com que logo acordou um pouco; e como falar não pôde, disse chorando: – Ai, amigas! Por Deus, não estorveis a minha morte, se o meu Descanso desejais, e não me façais tão desleal que só uma hora viva sem aquele que, não com a minha morte, mas com a minha má vontade, não poderia viver sequer uma hora. Outrossim disse: – Ai, flor e espelho de toda a cavalaria, que tão grave e estranha é para mim a vossa morte! Que por ela não somente eu padecerei, mas todo o mundo, ao perder aquele grande chefe e capitão, assim nas armas como em todas as outras virtudes, e em quem os que vivem exemplo podiam tomar! Mas se algum consolo ao meu triste coração consolo dá, não é senão que, não podendo ele sofrer tão cruel ferida, despedindo-se de mim vá para o vosso; que, ainda que na terra fria seja a sua morada, onde desfeitos e consumidos serão aquele grande acendimento de amor que, sendo nesta vida separados, com tanto alento sustinham, muito maior na outra, sendo juntos, se possível fosse ser- lhes outorgado, sustentarão. Então esmoreceu de tal guisa que de todo em todo cuidaram que morta fosse; e aqueles seus mui formosos cabelos tinha revoltos e estendidos por terra, e as mãos tinha sobre o coração, onde a raivosa morte lhe sobrevinha, padecendo em maior grau aquela cruel tristeza do que os prazeres e deleites até ali em seus amores havido haviam, assim como em semelhantes cousas desta qualidade continuamente acontece. Mabília, que verdadeiramente cuidou que morta era, disse: – Ai, Deus Senhor! Não te praza de eu mais viver, pois as duas cousas que neste mundo mais amava estão mortas. A donzela disse-lhe: – Por Deus, senhora, não falte em tal hora vossa discrição, e acorrei ao que remédio tem. TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 25 Mabilia, ganhando esforço, levantou-se e, tomando Oriana, puseram-na no seu leito. Oriana suspirou então, e mexia os braços por uma e outra parte, como se a alma se lhe arrancasse. Quando isto viu Mabília, tomou um pouco de água e tornou a deitar-lha pelo rosto e pelos peitos; e fez-lhe abrir os olhos e acordar um pouco mais, e disse-lhe: – Ai, senhora! Que que pouco siso esse, que assim vos deixais morrer com novas tão levianas como aquele cavaleiro trouxe, não sabendo ser verdade; o qual, ou por ter pedido aquelas armas e cavalo a vosso amigo, ou quiçá por lhos haver roubado, os poderia alcançar, que não por aquela via que ele disse; que não o fez Deus tão sem ventura a vosso amigo para assim tão cedo do mundo o tirar; o que vós fareis, se de vossa coita tão grande algo se sabe, será perder-vos para sempre. Oriana se esforçou um pouco mais, e tinha os olhos postos na janela onde falara com Amadis, no tempo que ali primeiro chegou, e disse com voz mui fraca, como aquela que as forças havia perdidas: – Ai, janela, que coita é para mim aquela formosa fala que em ti foi feita; eu sei bem que não durarás tanto que em ti outros dois falem tão verdadeira e desenganada fala! Outrossim disse: – Ai, meu amigo, flor de todos os cavaleiros, quantos perderam socorro e defesa com a vossa morte, e que coita e dor a todos eles será, mas a mim muito maior e mais amarga, comoaquela que, muito mais que sua, vossa era! Que assim como em vós era todo meu gozo e minha alegria, assim vós faltando, é tornado no contrário de graves e incomportáveis tormentos; o meu ânimo assaz será fatigado, até que a morte, que eu tanto desejo, me venha, a qual, sendo causa que a minha alma com a vossa se junte, de mui maior descanso que a atribulada vida me será ocasião. Mabília, com semblante sanhudo, disse: – Como, senhora! Pensais vós que, se eu estas novas acreditasse, que teria esforço para consolar alguém? Não é assim pequeno nem leviano o amor que a meu primo tenho; antes, assim Deus me salve, se com razão o pudesse crer, nem a vós nem a quantos neste mundo bem o querem daria vantagem naquilo que por sua morte se devia mostrar e fazer; assim que o fazeis não vos tem prol, e poderia muito dano trazer, pois que com isso mui asinha se poderia descobrir o que tão encoberto temos. Oriana, ouvindo isto, disse-lhe: – Disso já pouco cuidado tenho, que agora, tarde ou cedo, não pode tardar de ser a todos manifesto, ainda que eu pugne por o encobrir; que quem viver não deseja, nenhum perigo pode temer, mesmo se viesse. Nisto que ouvis estiveram todo aquele dia, dizendo a Donzela de Dinamarca a todos como Oriana não se ousava afastar de Mabília, para que se não matasse, tão grande coita era a sua; mas vinda a noite, com mais fadiga a passaram, que Oriana esmorecia muitas vezes, tanto que nunca à alva pensaram que chegasse, tanto era o pensamento e a coita que no coração tinha. Pois no outro dia, na hora em que iam pôr os mantéis ao Rei [Pôr a mesa para o almoço da manhã], entrou UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 26 Brandoívas pela porta do palácio, levando Grindalaia pela mão, como aquela a quem afeição tinha, que muito prazer aos que o conheciam deu, porque grande espaço de tempo havia passado que dele nenhumas novas soubessem; e ambos ajoelharam ante el Rei. El Rei, que o muito prezava, disse assim: – Brandoívas, sede mui bem vindo; como tardastes tanto, que muito vos temos desejado? A esta razão que el Rei lhe dizia, respondeu e disse: – Senhor, fui metido em tão grande prisão que dela não poderia sair de nenhuma guisa, senão pelo mui bom cavaleiro Amadis de Gaula, que, pela sua cortesia, me tirou a mim e a esta dona e a outros muitos, fazendo tanto em armas qual nenhum outro fazer pudera; e tê-lo-ia morto pelo maior engano que se nunca viu o traidor Arcalaus; mas foi socorrido por duas donzelas que não o deveriam amar pouco. El Rei, quando isto ouviu, levantou-se logo da mesa e disse: – Amigo, pela fé que a Deus deveis e a mim, dizei-me se é vivo Amadis. – Por essa fé, senhor, que dizeis, digo que é verdade, que o deixei vivo e são ainda não há dez dias; mas porque o perguntais? – Porque nos veio dizer ontem à noite Arcalaus que o matara – disse el Rei. E contou-lho em qual guisa ele lho havia contado. – Ai, Santa Maria! – disse Brandoívas –, que traidor malvado! Pois pior se lhe fez o preito do que ele cuidava. Então contou a el Rei quanto lhes acontecera com Arcalaus, que nada faltou, como já o ouvistes antes disto. El Rei e todos os de sua casa quando o ouviram, ficaram tão alegres que mais não podiam ficar. E mandou que levassem Grindalaia à Rainha e que lhe contasse as novas do seu cavaleiro, a qual, tanto por ela como por todas as outras, foi com muito amor e grande alegria recebida, pelas boas novas que lhes disse. A Donzela de Dinamarca, que as ouviu, foi o mais asinha que pôde dizê-las à sua senhora, que de morta a viva a tornaram; e mandou-lhe que fosse à Rainha e que lhes enviasse a dona, porque Mabília lhe queria falar; e logo o fez, que Grindalaia foi à câmara de Oriana e disse-lhes todas as boas novas que trazia. Elas lhe fizeram muita honra, e não quiseram que em outra parte comesse senão à sua mesa, para poder saber mais por extenso aquilo que tão grande alegria aos seus corações, que tão tristes haviam estado, lhes dava; mas quando Grindalaia lhes contava por onde Amadis havia entrado na prisão, e como matara os carcereiros e a tirara a ela donde tão coitada estava, e a batalha que com Arcalaus tivera, e tudo o resto que se tinha passado, grande piedade fazia ter as suas amigos. Assim como ouvis estavam no seu comer, tornada a sua grande tristeza em muita alegria. Grindalaia despediu-se delas e voltou para onde a Rainha estava, e encontrou ali o rei Arbão de Norgales, que a muito amava, e que a andava buscando, sabendo que ali era vinda. O prazer que ambos tiveram não se vos poderia contar. Ali foi acordado entre eles que ela ficasse com a Rainha, pois que não encontraria em nenhuma parte outra casa que tão honrada fosse. E Arbão de Norgales disse à Rainha como aquela TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 27 dona era filha do rei Adroid de Serelois, e que, como todo o mal que recebera havia sido ele a causa dele, que lhe pedia por mercê que a tomasse consigo, pois ela queria ser sua. Quando a Rainha isto ouviu, muito lhe prougue de em sua companhia a receber, assim pelas boas novas que de Amadis de Gaula trouxera, como por ser pessoa de tão alto lugar. E tomando-a pela mão, como a filha de quem era, fê-la sentar ante si, pedindo-lhe perdão se a não tinha honrado devidamente, que a causa disso fora não a conhecer. Também soube a Rainha como esta Grindalaia tinha uma irmã mui formosa donzela, que Aldeva se chamava, que em casa do duque de Bristoia se havia criado, e mandou a Rainha que logo lha trouxessem, para que em sua casa vivesse, porque a desejava muito ver. Esta Aldeva foi a amiga de D. Galaor, aquela por quem ele recebeu muitos nojos do anão de quem já ouvistes falar. Assim como ouvis estava el Rei Lisuarte e toda a sua corte muito alegres e com desejo de ver Amadis, que tão grande sobressalto lhes tinham dado aquelas más novas que lhes dele haviam dito; dos quais deixará a história de falar, e contará de D. Galaor, que há muito que dele não se contou nem se fez memória. (continua) FONTE: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:yBbjw-z63F4J:https:// rl.art.br/arquivos/6615680.pdf+&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 10 ago. 2019. Vale destacar que a linguagem encontrada nessa obra se assemelha muito ao português moderno. Entre os principais temas dessa novela vemos a fidelidade de Amadis à Oriana, o conflito entre o platonismo (o amor idealizado) e o desejo físico, pois ambos mantém relações sexuais, explicitando esse desejo carnal tão condenado pela Igreja, inclusive o enredo aponta tal desejo por parte da mulher, como se vê em Oriana, haja vista que é ela quem toma a iniciativa de ir até Amadis, ou seja, aqui o papel da mulher se torna ativo, diferentemente do que era retratado nas cantigas estudadas no tópico anterior. Mas o sentimentalismo e lirismo continuam marcantes, assim como nas cantigas. Os protagonistas sofrem e adoecem de amor, e querem morrer quando estão longe um do outro, como se vê no capítulo citado anteriormente em que Oriana, ao saber da possível morte do amado, perde as forças de viver e quer se deixar morrer. Para finalizar esse tópico, salienta-se o fato de que as novelas de cavalaria influenciaram e ainda influenciam diferentes artistas, inclusive encontramos seus traços nos romances românticos português e brasileiro (FERRAZ, 2008, p. 52). Além disso, as literaturas infantis são recheadas de histórias com castelos, reis, rainhas, príncipes e princesas que trazem os motes dessas novelas para expressar a honra do protagonista cavaleiro, salvador da donzela, e aventureiro que desbrava mundos. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 28 Embora certamente você já tenha assistido a algum filme sobre esse período medieval, em que os cavaleiros honrados realizam suas sagas, deixamos aqui algumas sugestões para ver ou rever, como As brumas de Avalon; Lancelot, o primeiro cavaleiro; Excalibur; Tristão e Isolda, e ainda o filme sobre as Cruzadasde nome homônimo em português, dirigido por Ridley Scott (2005). Além dos filmes, a maioria dessas obras estão escritas em livros, e vale a pena conferir a leitura. DICAS FONTE: <http://twixar.me/m4RT>. Acesso em: 1 fev. 2020. 4 O TEATRO DE GIL VICENTE A partir de agora, estamos entre o final do século XIII e início do XIV, período em que surge o Humanismo, um movimento intelectual, filosófico e artístico que representava a transição do pensamento e da cultura medieval europeia que vai culminar no Renascimento. O Humanismo tinha como fonte a volta às origens do cristianismo, haja vista a corrupção que se alastrava na Igreja, e uma revalorização do clássico, remetendo-se às fontes greco-romanas de artes e concepções em geral. Como resultado dessas releituras, surgem conceitos racionalistas, e os humanistas trazem para o centro de tudo a figura humana, diferente da concepção adotada por toda Idade Média que era Deus como o centro de tudo. Desse modo, passa-se de uma visão teocêntrica para uma visão antropocêntrica da história. Os italianos Francesco Petrarca e Dante Aliguieri foram os principais expoentes da escola humanista. Em Portugal, o grande representante desse movimento foi Gil Vicente, fundador do teatro diferente dos teatros litúrgicos-religiosos que existiam até então. Foi nesse período também que Portugal experimentou sua expansão marítima tornando-se um grande e rico império, a universidade de Coimbra ganhou prestígio e a cidade de Lisboa passou a figurar como de grande importância. Façamos um parêntesis antes de falarmos do teatro português, pois temos nessa mesma época as crônicas historiográficas como importante material histórico e literário que ajudaram a organizar e preservar a história do país. Dentre os principais cronistas, destaca-se Fernão Lopes, que é considerado o primeiro historiador oficial de Portugal (LOPES; SARAIVA, 1969). Além de observar os TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 29 costumes da corte, o cronista também tinha contato com o povo fazendo questão de registrar a história deste, pois “O seu interesse vai antes para a gente que se move e faz mover as coisas” (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 126). Voltando à figura selecionada para tratar desse período humanista, vemos nas obras de Gil Vicente personagens da mitologia greco-romana e, embora fosse cristão, tinha fortes críticas ao teocentrismo dogmático, além de combater a intolerância religiosa, defendendo os judeus. Quanto à estrutura de suas peças, encontram-se as peças de enredo, que apresentam início, meio e fim, com clímax e desfecho; e as peças de ação fragmentada, onde não se vê o enredo, mas sim quadros fragmentados de ações, ou seja, as cenas não possuem necessariamente uma ordem. É interessante notar que o teatro vicentino abarca “personagens típicas”, donde caracteriza tanto a nobreza e o clero quanto personagens populares; além de trazer também, “personagens alegóricas”, que representam ideias ou instituições. Ressalta-se a importância de conhecer as obras desse autor pelo fato de que a crítica a respeito das artes cênicas em Portugal a coloquem como de pouca fecundidade, no entanto, segundo Lopes e Saraiva: Graças a certos elementos ideológicos e estéticos, o teatro vicentino também ajuda a criar, entre nós, uma inovadora atmosfera humanista e renascentista, que as condições históricas já referidas mal deixaram sobreviver à carreira do dramaturgo. Por outro lado, a despreconceituosa diversidade das suas fontes, estruturas e tonalidades comunica esse tão saboroso teatro uma vivacidade que, por vezes, o torna extraordinariamente moderno (LOPES; SARAIVA, 1969, p. 183). Os principais estilos de suas obras são os Autos, nos quais ocorrem diálogos simples e a vida de igual modo; e as Farsas, aquelas encenações satíricas de gosto popular. Suas principais obras são “O auto da barca do inferno” e a “Farsa de Inês Pereira”, embora sua vasta produção concentre mais de 44 peças de teatro. Recomendamos que você leia essas duas obras na íntegra para melhor compreender as características trabalhadas pelo autor, mas trazemos aqui um breve resumo dessas. O Auto da Barca do Inferno é uma obra alegórica, ou seja, representa uma ideia moralizante. As personagens entram na barca com os objetos de suas culpas, materializando seus apegos às coisas terrenas. Essas personagens refletem estereótipos da sociedade portuguesa medieval e já estão com seus destinos traçados, ou seja, os bons irão para o céu e os maus irão para o inferno. Há aqui forte influência da religiosidade do autor, embora ele também fosse um ácido crítico da corrupção na Igreja e a favor da reforma desta. Já em A farsa de Inês Pereira, encontramos a história de uma moça provinciana rica que se casa por capricho com um escudeiro. Porém, essa união é de insucesso, logo, após sua viuvez ela escolhe novo marido, um rico e tolo que a deixa fazer o que bem quiser. UNIDADE 1 | A LITERATURA PORTUGUESA DO PERÍODO MEDIEVAL AO CLÁSSICO 30 Como as peças citadas são demasiado longas, trazemos aqui a leitura na íntegra da peça, também alegórica, chamada Todo Mundo e Ninguém, cuja finalidade é refletir sobre a moral das pessoas não somente da época, mas quem sabe de momentos atuais, por que não? Todo o Mundo e Ninguém Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. Representada pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), a obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente. Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz: Ninguém: Que andas tu aí buscando? Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando porfiando por quão bom é porfiar. [Porfiando: insistindo, teimando.] Ninguém: Como hás nome, cavaleiro? [O verbo haver nestes versos tem o sentido de ter]. Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo. [E sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia]. Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência. Belzebu: Esta é boa experiência: Dinato, escreve isto bem. Dinato: Que escreverei, companheiro? Belzebu: Que ninguém busca consciência e todo o mundo dinheiro. Ninguém: E agora que buscas lá? Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ela já. Belzebu: Outra adição nos acude: escreve logo aí, a fundo, que busca honra todo o mundo e ninguém busca virtude. [Adição: acrescentamento]. Acude: ocorre. Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse? [A palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada de maior. Poderíamos dizer, pois: buscas outro maior bem...] Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse. Belzebu: Escreve mais. TÓPICO 2 | DA POESIA À PROSA MEDIEVAL RUMANDO PARA NOVOS ARES 31 Dinato: Que tens sabido? Belzebu: Que quer em extremo grado todo o mundo ser louvado, e ninguém ser repreendido. Ninguém: Buscas mais, amigo meu? Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê. [Ma: me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto, respectivamente]. Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu. Belzebu: Escreve lá outra sorte. Dinato: Que sorte? Belzebu: Muito garrida: Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a morte. [Garrida: engraçada]. Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar. [Mo: me+o. Contração do pronome
Compartilhar