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pensamentos crirninológicos. Rusche, Foucault, Melossi e Pavarini são escolas: estão dentro disso tudo que falei, dando direção, atua- lizando a obra de Marx na questão criminal. Aliás, é em Marx que tudo começa. Só os tolos podem achar que a obra marxista está superada; ela só será superada quando derrotarmos o capitalismo. E, modestamente, gostaria de contribuir para isso ao desconstruir as relações entre a pena e o capital. Por falar em desconstruçâo, venho também, ao longo do tem- po, desconstruindo a metodologia sociológica e o mal que ela tem imposto aos saberes/poderes ao longo do tempo: positivismo, fun- cionalismo, teorias dos sistemas etc., todas essas tentativas de clas- sificar e hierarquizar, desistoricizar, despolitizar as lutas dos pobres no mundo: são eles, sempre, o alvo dos sistemas penais capitalistas. Tenho chamado a atenção, também, sobre a sociologia colabora- cionista que empresta sua energia ao eficientisrno acrítico dos mer- cados contemporâneos de "segurança pública" e "direitos huma- nos". Como disse Darcy Ribeiro, na luta ideológica contra a antro- pologia americanófila, querem discutir o barroco alemão durante o bombardeio de Dresden, Darcy tentou, com Getúlio,Jango eBrizola, salvar os índios, os pobres brasileiros e seus meninos. Não se ilu- dam: este livrinho tolo está"dedicado a essas mesmas querelas, à o mesma paixão pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Esta introdução é só o começo de um mergulho na questão criminal na História do Brasil. Peço ao leitor, assim, perdão e paciência. 14 CAPÍTULO I PENSANDO A QUESTÃO CRIMINAL Comecemos por situar o marco em que vamos trabalhar; esse território de fronteiras confusas, transdisciplinar por excelência, mo- vendo-se do direito penal para a história, a sociologia, a psicanálise, a economia política, a literatura, a comunicação, a geografia. Areias movediças. Nosso objeto não é ontológico, não está dado pela natu- reza como o mar e os peixes, é uma construção histórico-social por- tadora de medos e perigos concretos, o principal delesnaquele dile- ma que o urbanista Carlos Nelson dos Santos! enunciava ao analisar o a metodologia do trabalho de campo: o problema consiste em inven- tar um instrumento de observação que não seja uma parafernália tão complexa que afaste o objeto em vez de aproximá-lo, A criminologia aparece como tal, historicamente, na conflu- ência de um discurso médico-jurídico na virada do século XIX na Europa Ocidental. Vamos trabalhar com um conjunto de defini- ções. Para Lola Aniyar de Castro, é a "atividade intelectual que estu- da os processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante dessas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infra- ções ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e os seus efeitos'V Essa definição abrangente e crítica já se contrapõe à definição positivista dos manuais jurídicos: exame causal-explicativo do cri- me e dos criminosos. 1Cf. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.; __ 0_. A cidadecomo umjogo de cartas. Niterói: Universitária, 1988; .; SEGAWA, Hugo, Arquiteturas do Brasil 1900-1990. São Paulo: Editora da USP, 2" ed. 1999.; o et al.Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto Arquitetos Associados, 1985. 2 CASTRO, Lola Aniyar de. Ctiminololia da reação sodal: Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 52. 15 pensamentos crirninológicos. Rusche, Foucault, Melossi e Pavarini são escolas: estão dentro disso tudo que falei, dando direção, atua- lizando a obra de Marx na questão criminal. Aliás, é em Marx que tudo começa. Só os tolos podem achar que a obra marxista está superada; ela só será superada quando derrotarmos o capitalismo. E, modestamente, gostaria de contribuir para isso ao desconstruir as relações entre a pena e o capital. Por falar em desconstruçâo, venho também, ao longo do tem- po, desconstruindo a metodologia sociológica e o mal que ela tem imposto aos saberes/poderes ao longo do tempo: positivismo, fun- cionalismo, teorias dos sistemas etc., todas essas tentativas de clas- sificar e hierarquizar, desistoricizar, despolitizar as lutas dos pobres no mundo: são eles, sempre, o alvo dos sistemas penais capitalistas. Tenho chamado a atenção, também, sobre a sociologia colabora- cionista que empresta sua energia ao eficientisrno acrítico dos mer- cados contemporâneos de "segurança pública" e "direitos huma- nos". Como disse Darcy Ribeiro, na luta ideológica contra a antro- pologia americanófila, querem discutir o barroco alemão durante o bombardeio de Dresden, Darcy tentou, com Getúlio,Jango eBrizola, salvar os índios, os pobres brasileiros e seus meninos. Não se ilu- dam: este livrinho tolo está"dedicado a essas mesmas querelas, à o mesma paixão pelo Brasil e pelo povo brasileiro. Esta introdução é só o começo de um mergulho na questão criminal na História do Brasil. Peço ao leitor, assim, perdão e paciência. 14 CAPÍTULO I PENSANDO A QUESTÃO CRIMINAL Comecemos por situar o marco em que vamos trabalhar; esse território de fronteiras confusas, transdisciplinar por excelência, mo- vendo-se do direito penal para a história, a sociologia, a psicanálise, a economia política, a literatura, a comunicação, a geografia. Areias movediças. Nosso objeto não é ontológico, não está dado pela natu- reza como o mar e os peixes, é uma construção histórico-social por- tadora de medos e perigos concretos, o principal delesnaquele dile- ma que o urbanista Carlos Nelson dos Santos! enunciava ao analisar o a metodologia do trabalho de campo: o problema consiste em inven- tar um instrumento de observação que não seja uma parafernália tão complexa que afaste o objeto em vez de aproximá-lo, A criminologia aparece como tal, historicamente, na conflu- ência de um discurso médico-jurídico na virada do século XIX na Europa Ocidental. Vamos trabalhar com um conjunto de defini- ções. Para Lola Aniyar de Castro, é a "atividade intelectual que estu- da os processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante dessas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infra- ções ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e os seus efeitos'V Essa definição abrangente e crítica já se contrapõe à definição positivista dos manuais jurídicos: exame causal-explicativo do cri- me e dos criminosos. 1Cf. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.; __ 0_. A cidadecomo umjogo de cartas. Niterói: Universitária, 1988; .; SEGAWA, Hugo, Arquiteturas do Brasil 1900-1990. São Paulo: Editora da USP, 2" ed. 1999.; o et al.Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto Arquitetos Associados, 1985. 2 CASTRO, Lola Aniyar de. Ctiminololia da reação sodal: Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 52. 15 Arrima apresenta a tradução simples e cabal do grande criminólógo estadunidense Edwin Sutherland: a criminologia seria o corpo de conhecimentos que observa o delito como fenômeno social. Sua singela locução em inglês é mais expressiva ainda. O objeto da criminologia seria "making lhe las; breaking tbe law and tbe social reaction to it':3 Alessandro Baratta trabalha com o enfoque macrossociológico, que historiciza a realidade comportarnental, ilu- minando as relações com a estrutura." Para Baratta, a tarefa funda- mental dacriminologia é realizar a teoria critica da realidade social do direito, na perspectiva de um modelo integrado de ciência penal. Para ele, o jurista seda um cientista social que domina uma técnica jurídica. 'Ele convida seus leitores a levantar os olhos de sua mesa de trabalho, na torre de marfim, e Olharpela janela. Na forma- ção jurídica acadêmica do Brasil, os alunos são privados dessa mira- da de longo alcance: são convencidos de que essa tecnia: é dênda e são privados de conhecer história, filosofia ou sociologia. Conhe- cem, no máximo, a história do direito, a filosofia do direito ea sociologia do direito, A proximidade e o acesso ao poder resolvem, na prática, as limitações decorrentes desse saber compartimentado. Criminólogos crítico's fundamentais como Dario Melossi, Massimo Pavarini e Roberto Bergalli afastaram-se dos desvãos criminológicos positivistas para trabalhar o objeto na perspectiva do controle social. O grande jurista brasileiro Heleno Fragoso trabalhou o direi- to perial como parte da política social: a crirninologia seria a interlocução entre a parte e o todo. Enfim, não faltarão definições simples ou complexas da criminologia. Mas duas aproximações de 3Pr~tendo fugir das citações sistemáticas e dos enormes pés de páginas dos manuais e, com toda a honestidade acadêmica, peço que consultem e mergulhem, como eu fiz, no livro de Gabriel Ignádo Anitua, História dos Pensamentos Criminológicos. Tradução de Sérgio Larnarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminoIogia/Revan, 2008. 4 Cf., sempre, BARA TIA,' Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal Tradução.de Juarez Cirino dos Santos, 3' ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de crirninologia/Revan, 2002. . . 16' Raúl Zaffaroni me encantam: a criminologia seria "saber e arte de despejar discursos petigosistas" e nada mais do que o "curso dos discursos sobre a questão criminal"." Todos esses marcos teóricos e definições nos conduzem a tra- balhar a criminologia na perspectiva da história social das ideias, através daquilo que Zaffaroni chamou de aproximações marginais. No curso dos discursos, falamos damargem brasileira. O caudaloso rio criminológico segue seu curso. A nossa história não é linear, nem evolutiva; ela é feita de rupturas e permanências. Se a história da criminologia é uma acumulação de discursos," podemos ver o positivismo como urna grande permanência: transfigurado em fun- 'cionalismos, estruturalismos e outros ismos, mas sempre lá, como um corpo teórico, uma maneira de pensar e pesquisar que sempre nos afastou do nosso povo. Aliás, a pergunta de Zaffaroni (como pôde Lombroso florescer na Bahia?) é atual: que dispositivos fo- ram necessários para inculcar tão profundamente um corpo teórico que é contra nós mesmos? . A nossa perspectiva é oswaldianamente antropofágica: como recebemos e digerimos as teorias do centro hegemônico. É esse o dilema da reconstrução das crirninologias críticas, suas traduções trai- doras, seus objetos transplantados, suas metodologias reinventadas." De que maneira a criminologia faz parte da grande incorporação colonial no pmcesso civilizatório? Quantas rupturas criminológicas serão necessárias para reconstruir nosso obj eto, nossa metodologia, a nosso favor? Na genealogia dos saberes/poderes, MichelFoucault foi um divisor de águas. Trabalhamos as histórias dos pensamentos criminológicos 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Cril11inología: aproximación desd~ IIn margen. Bogotá: Ternis, 1988. 6 Cf. a interessante dissertação de mestrado de André Magalhães Barros (A acumulafão dopoder punitivo no Brasil: [Mestrado em Direito Penal, Processo Penal e criminologia] - Programa de Mestrado em Direito da UCAM-Centro, 2006). 7 SOZZO, Máximo. "Reconstruyendo Ias criminologias criticas". In: Cuadernos de Doutrina y Jurisprudência Penal, ano VII, n° 13. Buenos Aires: Ad Hoc/Villela Editor, 2006. 17 Arrima apresenta a tradução simples e cabal do grande criminólógo estadunidense Edwin Sutherland: a criminologia seria o corpo de conhecimentos que observa o delito como fenômeno social. Sua singela locução em inglês é mais expressiva ainda. O objeto da criminologia seria "making lhe las; breaking tbe law and tbe social reaction to it':3 Alessandro Baratta trabalha com o enfoque macrossociológico, que historiciza a realidade comportarnental, ilu- minando as relações com a estrutura." Para Baratta, a tarefa funda- mental dacriminologia é realizar a teoria critica da realidade social do direito, na perspectiva de um modelo integrado de ciência penal. Para ele, o jurista seda um cientista social que domina uma técnica jurídica. 'Ele convida seus leitores a levantar os olhos de sua mesa de trabalho, na torre de marfim, e Olharpela janela. Na forma- ção jurídica acadêmica do Brasil, os alunos são privados dessa mira- da de longo alcance: são convencidos de que essa tecnia: é dênda e são privados de conhecer história, filosofia ou sociologia. Conhe- cem, no máximo, a história do direito, a filosofia do direito e a sociologia do direito, A proximidade e o acesso ao poder resolvem, na prática, as limitações decorrentes desse saber compartimentado. Criminólogos crítico's fundamentais como Dario Melossi, Massimo Pavarini e Roberto Bergalli afastaram-se dos desvãos criminológicos positivistas para trabalhar o objeto na perspectiva do controle social. O grande jurista brasileiro Heleno Fragoso trabalhou o direi- to perial como parte da política social: a crirninologia seria a interlocução entre a parte e o todo. Enfim, não faltarão definições simples ou complexas da criminologia. Mas duas aproximações de 3Pr~tendo fugir das citações sistemáticas e dos enormes pés de páginas dos manuais e, com toda a honestidade acadêmica, peço que consultem e mergulhem, como eu fiz, no livro de Gabriel Ignádo Anitua, História dos Pensamentos Criminológicos. Tradução de Sérgio Larnarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminoIogia/Revan, 2008. 4 Cf., sempre, BARA TIA,' Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal Tradução.de Juarez Cirino dos Santos, 3' ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de crirninologia/Revan, 2002. . . 16' Raúl Zaffaroni me encantam: a criminologia seria "saber e arte de despejar discursos petigosistas" e nada mais do que o "curso dos discursos sobre a questão criminal"." Todos esses marcos teóricos e definições nos conduzem a tra- balhar a criminologia na perspectiva da história social das ideias, através daquilo que Zaffaroni chamou de aproximações marginais. No curso dos discursos, falamos damargem brasileira. O caudaloso rio criminológico segue seu curso. A nossa história não é linear, nem evolutiva; ela é feita de rupturas e permanências. Se a história da criminologia é uma acumulação de discursos," podemos ver o positivismo como urna grande permanência: transfigurado em fun- 'cionalismos, estruturalismos e outros ismos, mas sempre lá, como um corpo teórico, uma maneira de pensar e pesquisar que sempre nos afastou do nosso povo. Aliás, a pergunta de Zaffaroni (como pôde Lombroso florescer na Bahia?) é atual: que dispositivos fo- ram necessários para inculcar tão profundamente um corpo teórico que é contra nós mesmos? . A nossa perspectiva é oswaldianamente antropofágica: como recebemos e digerimos as teorias do centro hegemônico. É esse o dilema da reconstrução das crirninologias críticas, suas traduções trai- doras, seus objetos transplantados, suas metodologias reinventadas." De que maneira a criminologia faz parte da grande incorporação colonial no pmcesso civilizatório? Quantas rupturas criminológicas serão necessárias para reconstruir nosso obj eto, nossa metodologia, a nosso favor? Na genealogia dos saberes/poderes, MichelFoucault foi um divisor de águas. Trabalhamos as histórias dos pensamentos criminológicos 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Cril11inología: aproximación desd~ IIn margen. Bogotá: Ternis, 1988. 6 Cf. a interessante dissertação de mestrado de André Magalhães Barros (A acumulafão dopoder punitivo no Brasil: [Mestrado em Direito Penal, Processo Penal e criminologia] - Programa de Mestrado em Direito da UCAM-Centro, 2006). 7 SOZZO, Máximo. "Reconstruyendo Ias criminologias criticas". In: Cuadernos de Doutrina y Jurisprudência Penal, ano VII, n° 13. Buenos Aires: Ad Hoc/Villela Editor, 2006. 17 como ideologias, teorias, discursos sob intenso e constante risco de se constituírem em racionalizações justificadoras da repressão ili- mitada e da morte, como nos ensinou Zaffaroni Para Marc Bloch, o demônio dó-historiador é a angústia pela origem."É também Zaffaroni quem afirma que a criminologia não "começa" na virada do século XIX para o XX, mas no saber/poder médico-jurídico introduzido pela Inquisição. Para ele, O martelo das feitic'eiras seria o primeiro livro de criminologia, os demonólogos seriam os primeiros teóricos e os exorcistas, os primeiros clínicos, O cenário erguido naquele então, com seus dispositivos, não dei- xou mais de se instaurar ao longo dos séculos: estabeleceu-se um tipo de procedimento que iria criar uma demanda por uma cena judiciária que necessitava de um saber complementar: o saber mé- dico, Era o cirurgião que comprovaria o punctum diabolicum, evidên- cia pioneira e necessária para legitimar e comprovar a existência e a etiologia do mal." A criminologia não se esboçaria, então, no ilurninismo, mas já naquele século XIII, nos primórdios da Inquisição, no estabelecimento da confissão, com a implantação dos procedimentos do poder punitivo. Enfim, uma questão política ligada ao movimento de centralização do poder da Igreja Católica, às estruturas nascentes do Estado e à gestação lenta e constante do capital. Quando escolhemos percorrer a questão criminal através da história das ideias, nos alinhamos à grande ruptura epistemológica realizada por Karl Marx. Tanto em O Capital, como na Ideologia ale- mã ou na Critica ao Programa de Cotha, Marx acusava o caráter formal da igualdade proposta histórica e materialmente pelo processo de acumulação do capital. Na prática, a questão sempre foi simbiótica à conflitividade social presente no que ele definiu como "luta de 8 BLOCI-I, Marc, Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.; . Apologia da História: 011 o ofído de historiador, 1" ed. Rio dejaneiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 9 ZAFFARONI, Eugenio R:aúL EI curso de lacriminologia. Aula proferida no Programa de Mestrado em Direito/UCAM-Centro. Rio de Janeiro: mimeo,2000. I 18 Classes". O capital precisou sempre de um grande projeto de assujeitamento coletivo, de corpo e alma. A culpa e a culpabilidade, propostas pela Igreja Católica e pelo Estado, constituíram-se nos alicerces fundamentais da subjetividade e das práticas da pena. É por isso que todas as definições da criminologia são atos discursivos, atos de poder com efeitos concretos, não são neutros: dos objetivos aos métodos, dos paradigmas às políticas criminais. Aqui :reside o enigma central da questão criminal. Talvez seja essa a lição principal do inspirador livro de Pavarini'"; para entender o objeto da crirninologia, temos de entender a demanda por ordem de nossa formação econômica e social. A criminologia se relaciona com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem, A marcha do capital e a construção do grande Ocidente colonizador do mundo e empreendedor da barbárie precisaram da operacionalização do po- der punitivo para assegurar uma densa necessidade de ordem. Es- peramos tentar aprofundar essa reflexão daqui do lado selvagem. 10 PAVARINI, Massimo. Controly Dominadõ«: teorias mminológicas burgu8sasy proyeao hegemonico. México: Siglo Veinteuno Editores, 1983. 19 como ideologias, teorias, discursos sob intenso e constante risco de se constituírem em racionalizações justificadoras da repressão ili- mitada e da morte, como nos ensinou Zaffaroni Para Marc Bloch, o demônio dó-historiador é a angústia pela origem." É também Zaffaroni quem afirma que a criminologia não "começa" na virada do século XIX para o XX, mas no saber/poder médico-jurídico introduzido pela Inquisição. Para ele, O martelo das feitic'eiras seria o primeiro livro de criminologia, os demonólogos seriam os primeiros teóricos e os exorcistas, os primeiros clínicos, O cenário erguido naquele então, com seus dispositivos, não dei- xou mais de se instaurar ao longo dos séculos: estabeleceu-se um tipo de procedimento que iria criar uma demanda por uma cena judiciária que necessitava de um saber complementar: o saber mé- dico, Era o cirurgião que comprovaria o punctum diabolicum, evidên- cia pioneira e necessária para legitimar e comprovar a existência e a etiologia do mal." A criminologia não se esboçaria, então, no ilurninismo, mas já naquele século XIII, nos primórdios da Inquisição, no estabelecimento da confissão, com a implantação dos procedimentos do poder punitivo. Enfim, uma questão política ligada ao movimento de centralização do poder da Igreja Católica, às estruturas nascentes do Estado e à gestação lenta e constante do capital. Quando escolhemos percorrer a questão criminal através da história das ideias, nos alinhamos à grande ruptura epistemológica realizada por Karl Marx. Tanto em O Capital, como na Ideologia ale- mã ou na Critica ao Programa de Cotha, Marx acusava o caráter formal da igualdade proposta histórica e materialmente pelo processo de acumulação do capital. Na prática, a questão sempre foi simbiótica à conflitividade social presente no que ele definiu como "luta de 8 BLOCI-I, Marc, Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.; . Apologia da História: 011 o ofído de historiador, 1" ed. Rio dejaneiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 9 ZAFFARONI, Eugenio R:aúL EI curso de lacriminologia. Aula proferida no Programa de Mestrado em Direito/UCAM-Centro. Rio de Janeiro: mimeo,2000. I 18 Classes". O capital precisou sempre de um grande projeto de assujeitamento coletivo, de corpo e alma. A culpa e a culpabilidade, propostas pela Igreja Católica e pelo Estado, constituíram-se nos alicerces fundamentais da subjetividade e das práticas da pena. É por isso que todas as definições da criminologia são atos discursivos, atos de poder com efeitos concretos, não são neutros: dos objetivos aos métodos, dos paradigmas às políticas criminais. Aqui :reside o enigma central da questão criminal. Talvez seja essa a lição principal do inspirador livro de Pavarini'"; para entender o objeto da crirninologia, temos de entender a demanda por ordem de nossa formação econômica e social. A criminologia se relaciona com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem, A marcha do capital e a construção do grande Ocidente colonizador do mundo e empreendedor da barbárie precisaram da operacionalização do po- der punitivo para assegurar uma densa necessidade de ordem. Es- peramos tentar aprofundar essa reflexão daqui do lado selvagem. 10 PAVARINI, Massimo. Controly Dominadõ«: teorias mminológicas burgu8sasy proyeao hegemonico. México: Siglo Veinteuno Editores, 1983. 19 CAPÍTULO 11 CRlMINOLOGIA E POLÍTICA CRlMINAL Sempre começo meus cursos de criminologia tentando desconstruir o conceito de crime como algo ontológico, que teria aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas. Entender o crime como um constructo social, um dispositivo, é o primeiro passo para adentrarrnos mais além da-superfície da ques- tão criminal. Nilo Batista, ao falar sobre "a grande criminalidade econôrni-' co-financeira",propõe um giro axial no .objeto de reflexão: Promoverei, intencionalmente, uma alteração no objeto da re- flexão, proposto como "a grande criminalidade econômico-fi- nanceira". Há diversos motivos para efetuar tal alteração. Em primeiro lugar, há muito tempo - sob o influxo das tendências criminológicas críticas' de algum modo enraizadas no rotulacionismo .: desconfio das pretensões de objetividade da expressão "criminalidade". E, de fato, se considerarmos a seletividade operativa dos sistemas penais e seu reflexo na cha- mada cifra oculta, a "crirninalidade" - entendida como o so- rnatório das condutas infracionais que se manifestam na reali- dade social - é sempre um incognoscível, do qual não temos como nos aproximar segundo critérios metodologicamente confiáveis. Nossa possibilidade de conhecer a "criminalidade" econômico-financeira, nesse sentido, é a mesma de conhecer- mos a "criminalidade" do's abortamentos ilicitos ou talvez, não fora a abolido mminisde um ano e meio atrás, a dos adtiltérios. Se alguém,' desprezando os arquivamentos e. as absolvições que tornam a incorporação dos dados dos inquéritos um contrassenso em colisão direta com a presunçãode inocência, argumentasse que poderíamos nos satisfazer com os indicado- res das estatísticas policiais, eu lhe responderia desde logo que 21 CAPÍTULO 11 CRlMINOLOGIA E POLÍTICA CRlMINAL Sempre começo meus cursos de criminologia tentando desconstruir o conceito de crime como algo ontológico, que teria aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas. Entender o crime como um constructo social, um dispositivo, é o primeiro passo para adentrarrnos mais além da-superfície da ques- tão criminal. Nilo Batista, ao falar sobre "a grande criminalidade econôrni-' co-financeira",propõe um giro axial no .objeto de reflexão: Promoverei, intencionalmente, uma alteração no objeto da re- flexão, proposto como "a grande criminalidade econômico-fi- nanceira". Há diversos motivos para efetuar tal alteração. Em primeiro lugar, há muito tempo - sob o influxo das tendências criminológicas críticas' de algum modo enraizadas no rotulacionismo .: desconfio das pretensões de objetividade da expressão "criminalidade". E, de fato, se considerarmos a seletividade operativa dos sistemas penais e seu reflexo na cha- mada cifra oculta, a "crirninalidade" - entendida como o so- rnatório das condutas infracionais que se manifestam na reali- dade social - é sempre um incognoscível, do qual não temos como nos aproximar segundo critérios metodologicamente confiáveis. Nossa possibilidade de conhecer a "criminalidade" econômico-financeira, nesse sentido, é a mesma de conhecer- mos a "criminalidade" do's abortamentos ilicitos ou talvez, não fora a abolido mminisde um ano e meio atrás, a dos adtiltérios. Se alguém,' desprezando os arquivamentos e. as absolvições que tornam a incorporação dos dados dos inquéritos um contrassenso em colisão direta com a presunção de inocência, argumentasse que poderíamos nos satisfazer com os indicado- res das estatísticas policiais, eu lhe responderia desde logo que 21 então já estaríamos tratando da "crirninalidade registrada", e não da "criminalidade" simplesmente, esse conceito sugestivo de uma falsa totalidade que, não obstante, cumpre no discurso poHtico-criminal tarefas ideologicamente importantes. Mas, sobretudo, eu tentaria convencê-lo de que émuito mais verda- deiro chamarmos a "criminalidade registrada" de criminalização, porque a seletividade operativa do sistema penal, modelando qualitativa e quantitativamente o resultado final da criminaliza- ção secundária - isto é, quem e quantos ingressarão nos regis- tros -, faz dele um procedimento configurador da realidade social. Podemos acreditar ou não que o número de carros que ultrapassaram a velocidade permitida ("criminalidade") é idên- tico ao número de multas impostas, sob esse motivo, pelas au- toridades do trânsito (cnininalização); mas é apenas neste segun- do número, em verdade um construto humano (na dependên- cia de fatores tão distintos quanto os humores do guarda, a localização da câmera de vigilância etc.) que poderemos estu- dar a incidência das transgressões. Por que afastá-Io das condi- ções sociais concretas nas quais é produzido (criminalização), para atribuir-lhe urna pretensão de objetividade tão falsa quanto a totalidade que tenta representar?" Comecemos, então, pela observação fundamental de Massimo Pavarini: neguemos que o nosso objeto, a criminologia, tenha senti- do por si mesmo.F O problema comum da criminologia está na necessidade de ordem numa perspectiva de luta de classes. Embora tenha a União Europeia proscrito o conceito de luta de Classes, a verdade é que nunca ela foi tão visível e palpável como na dura conflitividade social do dia a dia do capitalismo de barbárie: garotos morrendo ou matando por um boné de marca. A criminologia como racionalidade positiva é uma resposta política às necessidades de l1BATISTA, Nilo. Intervenção no XIII Congresso Internacional de Direito Comparado. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2006'. rnimco, p. 1. 12 PAVARINI, Massimo, Controly Dominación, cito 22 ordem que vão mudando no processo de acumulação de capital. Para compreender o seu léxico, seu vocabulário, sua linguagem, te- mos de ter a compreensão da demanda por ordem. ' A política criminal também está historicamente subordinada a essa demanda. Nilo Batista trabalha a política criminal como o con- junto de princípios e recomendações para a reforma ou transfor- mação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua apli- cação.P O conceito de política criminal abrangeria a política de se- gurança pública, a política judiciária e a política penitenciária, mas estaria intrinsecamente conectado à ciência política. A partir da crítica das exposições globais articuladas entre crimi- nologia, direito penal epolítica criminal em von Liszt, a criminologia já não estaria em busca das causas da delinquência e dos meios para pre-, vem-Ia, e a política criminal não se reduziria à função de "conselheira da sanção legal" lastreada na aceitação legitimante da ordem legal. A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como uma questão política que provém do século XIII, da conjuntura do início do processo de centralização do poder da Igreja Católica e do Estado, do processo de acumulação de capital e de poder punitivo que começa operar a tradução da conflitividade e da violência no sentido "do criminal"." ' A questão criminal se relaciona então com a posição de poder e as necessidades de ordem de uma determinada classe social. As- sim, a criminologia e a política criminal surgem como um eixo es- pecífico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumula- ção de capital. A história da criminologia está, assim, intimamente ligada à história do desenvolvimento do capitalismo. É nessa cadência, nesse baião 'de Marx com Foucault, que a criminologia critica, em especial a de Zaffaroni, trabalha o século XIII como um marco na mudança das relações de poder." A irrven- 13BATISTA, Nilo, Introdução criticaao direitopenal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. 14 FOUCAULT, Michel, História da suxNa/idade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: GraaI,1977. 15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo etal: Direito Penal Brasileiro I: Teoria geral do direito penal, I" ed. Rio deJaneiro: Revan, 2003. 23 então já estaríamos tratando da "crirninalidade registrada", e não da "criminalidade" simplesmente, esse conceito sugestivo de uma falsa totalidade que, não obstante, cumpre no discurso poHtico-criminal tarefas ideologicamente importantes. Mas, sobretudo, eu tentaria convencê-lo de que émuito mais verda- deiro chamarmos a "criminalidade registrada" de criminalização, porque a seletividade operativa do sistema penal, modelando qualitativa e quantitativamente o resultado final da criminaliza- ção secundária - isto é, quem e quantos ingressarão nos regis- tros -, faz dele um procedimento configurador da realidade social. Podemos acreditar ou não que o número de carros que ultrapassaram a velocidade permitida ("criminalidade") é idên- tico ao número de multas impostas, sob esse motivo, pelas au- toridades do trânsito (cnininalização); mas é apenas neste segun- do número, em verdade um construto humano (na dependên- cia de fatores tão distintos quanto os humores do guarda, a localização da câmera de vigilância etc.) que poderemos estu- dar a incidência das transgressões. Por que afastá-Io das condi- ções sociais concretas nas quais é produzido (criminalização), para atribuir-lhe urna pretensão de objetividade tão falsa quanto a totalidade que tenta representar?" Comecemos, então, pela observação fundamental de Massimo Pavarini: neguemos que o nosso objeto, a criminologia, tenha senti- do por si mesmo.F O problema comum da criminologia está na necessidade de ordem numa perspectiva de luta de classes. Embora tenha a União Europeia proscrito o conceito de luta de Classes, a verdade é que nunca ela foi tão visível e palpável como na dura conflitividade social do dia a dia do capitalismo de barbárie: garotos morrendo ou matando por um boné de marca. A criminologia como racionalidade positiva é uma respostapolítica às necessidades de l1BATISTA, Nilo. Intervenção no XIII Congresso Internacional de Direito Comparado. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2006'. rnimco, p. 1. 12 PAVARINI, Massimo, Controly Dominación, cito 22 ordem que vão mudando no processo de acumulação de capital. Para compreender o seu léxico, seu vocabulário, sua linguagem, te- mos de ter a compreensão da demanda por ordem. ' A política criminal também está historicamente subordinada a essa demanda. Nilo Batista trabalha a política criminal como o con- junto de princípios e recomendações para a reforma ou transfor- mação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua apli- cação.P O conceito de política criminal abrangeria a política de se- gurança pública, a política judiciária e a política penitenciária, mas estaria intrinsecamente conectado à ciência política. A partir da crítica das exposições globais articuladas entre crimi- nologia, direito penal epolítica criminal em von Liszt, a criminologia já não estaria em busca das causas da delinquência e dos meios para pre-, vem-Ia, e a política criminal não se reduziria à função de "conselheira da sanção legal" lastreada na aceitação legitimante da ordem legal. A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como uma questão política que provém do século XIII, da conjuntura do início do processo de centralização do poder da Igreja Católica e do Estado, do processo de acumulação de capital e de poder punitivo que começa operar a tradução da conflitividade e da violência no sentido "do criminal"." ' A questão criminal se relaciona então com a posição de poder e as necessidades de ordem de uma determinada classe social. As- sim, a criminologia e a política criminal surgem como um eixo es- pecífico de racionalização, um saber/poder a serviço da acumula- ção de capital. A história da criminologia está, assim, intimamente ligada à história do desenvolvimento do capitalismo. É nessa cadência, nesse baião 'de Marx com Foucault, que a criminologia critica, em especial a de Zaffaroni, trabalha o século XIII como um marco na mudança das relações de poder." A irrven- 13BATISTA, Nilo, Introdução criticaao direitopenal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. 14 FOUCAULT, Michel, História da suxNa/idade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: GraaI,1977. 15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo etal: Direito Penal Brasileiro I: Teoria geral do direito penal, I" ed. Rio deJaneiro: Revan, 2003. 23 ção da pena pública supõe o confisco do conflito da vítima, que se torna apenas uma figura secundária na teconfiguração do poder punitivo. Esse processo político institui um método para a busca da verdade, que se constituirá numa permanência subjetiva do Oci- dente. Este método pressupõe uma averiguação, numa relação de força entre quem exerce o poder e o objeto estudado. Esse eixo racionalizante é composto pela articulação entre um discurso médi- co e um discurso jurídico desenvolvidos através de técnicas de do- mínio sobre o objeto "averiguado". Os manuais dos inquisidores são testemunhos dessas técnicas de apuração da "verdade". Estamos pensando, historicamente, na categoria da longa du- ração da escola francesa dos Anna/es. 'Quando pensamos, dos séculos XIII ao XV1II, até chegar ao XIX, queremos entender as projeções para o futuro, .a permanência histórica desse método de busca da verdade. A objetificação do "herege" ou da "bruxa" pressupunha uma possibilidade técnica de domínio: técnicas de interrogatório, di- agnóstico, construções da identidade "criminal" e incorporação de identidades "criminosas". Foi o historiador italiano Carlo Ginzburg quem propôs o método indiciário para desvelar entre os discursos dos vencidos, dos perseguidos pelos processos inquisitoriais, os frag- mentos de uma outra verdade: a.dos ritos pagãos dernonizados pelos movimentos de centralização do poder da Igreja Católica." Também na categoria da longa duração, do século XIV ao XVIII Jean Delumeau vai trabalhar a utilização do medo pata a construção de uma mentalidade obsidional na Europa cristã, cerca- da pelas pestes, na conjuntura da expulsão dos mouros .e judeus e nos movimentos do cisma e das reformas na Igreja Católica." Se a criminologia corte o risco de ser "saber e arte de despejar discursos perigosistas", conhecer o eixo dos medos é traçar o caminho das criminalizações e identificar os criminalizáveis. i I I I 16 GINZBURG, Carlo, História noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 17DELUMEAU,]ean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1983. 24 Então, entre os séculos XIII e XVIII, articulam-se as técnicas da Inquisição com o surgimento das cidades, a aparição da ideia de contrato, o fortalecimento da burguesia e o absolutismo, configuran- do o Estado moderno e suas estruturas penais. Mais especificamente entre o século XIV e o XVIII, a acumulação de capital que impulsio- nará o mercantilisrno, a manufatura e, logo, a Revolução Industrial forjará uma sociedade de classesatravés daluta para o disciplinamento . de contingentes de mão de obra para o trabalho," O disciplinamento dos pobres para a extração de mais-valia, energia viva do capital,vai precisar da ideologia, da racionalidade utilitarista a legitimar as rela- ções e as técnicas de domínio dos homens e da natureza. A violência e a barbárie fazem parte desse cenário, produzidas pelo excesso de civilização, e não pela sua antítese.'? A partir-do século XVIII, o processo histórico de fortalecimen- to do contrato social determina outras necessidades de ordem. As execuções públicas vão se tornando perigosas com o protagonisrno da multidão que vai produzir a critica do absolutismo. A revolução bate às portas da Europa, com suas multidões de pobres a produzir o Grande Medo: cabeças cortadas, diria Glauber Rocha." O poder punitivo vai precisar de novas propostas e novas técnicas pata dar conta da concentração de pobres que o processo de acumulação do capital provocou. E pobres, agora, com uma pets- pectiva revolucionária. É nessa conjuntura que na crítica do absolutismo surge o discurso jurídico de princípios. Ressalta Nilo Batista que, histórica- mente, o direito penal surge pata limitar o poder punitivo do Anti- go Regime. Aparecem as ideias de legalidade e de outras garantias, e 18 Sugiro aos criminólogos que se interessam pelo tema que aprofundem as leituras de Karl Marx sobre a produção de mais-valia e de Edward Thompson sobre o surgimento das classes sociais a partir da luta de classes. 19Cf. l\1ENEGAT, Marildo, Depois do Fim do Mundo: a crise da modernidade e a barbârie. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Durnará, 2003. .. 20 Cf. FOUCAULT, Michel. V~iar epunir. Petrópolis: Vozes, 1977; RUDÉ, Georges, A multidão na história: estudos dos movimentos populares na França e na Inglaterra (1730- 1848).Rio dejaneiro: Campus, 1991. 25 ção da pena pública supõe o confisco do conflito da vítima, que se torna apenas uma figura secundária na teconfiguração do poder punitivo. Esse processo político institui um método para a busca da verdade, que se constituirá numa permanência subjetiva do Oci- dente. Este método pressupõe uma averiguação, numa relação de força entre quem exerce o poder e o objeto estudado. Esse eixo racionalizante é composto pela articulação entre um discurso médi- co e um discurso jurídico desenvolvidos através de técnicas de do- mínio sobre o objeto "averiguado". Os manuais dos inquisidores são testemunhos dessas técnicas de apuração da "verdade". Estamos pensando, historicamente, na categoria da longa du- ração da escola francesa dos Anna/es. 'Quando pensamos, dos séculos XIII ao XV1II, até chegar ao XIX, queremos entender as projeções para o futuro, .a permanência histórica desse método de busca da verdade. A objetificação do "herege" ou da "bruxa" pressupunha uma possibilidade técnica de domínio: técnicas de interrogatório, di- agnóstico, construções da identidade "criminal" e incorporação de identidades "criminosas". Foi o historiador italiano Carlo Ginzburg quem propôs ométodo indiciário para desvelar entre os discursos dos vencidos, dos perseguidos pelos processos inquisitoriais, os frag- mentos de uma outra verdade: a.dos ritos pagãos dernonizados pelos movimentos de centralização do poder da Igreja Católica." Também na categoria da longa duração, do século XIV ao XVIII Jean Delumeau vai trabalhar a utilização do medo pata a construção de uma mentalidade obsidional na Europa cristã, cerca- da pelas pestes, na conjuntura da expulsão dos mouros .e judeus e nos movimentos do cisma e das reformas na Igreja Católica." Se a criminologia corte o risco de ser "saber e arte de despejar discursos perigosistas", conhecer o eixo dos medos é traçar o caminho das criminalizações e identificar os criminalizáveis. i I I I 16 GINZBURG, Carlo, História noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 17DELUMEAU,]ean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1983. 24 Então, entre os séculos XIII e XVIII, articulam-se as técnicas da Inquisição com o surgimento das cidades, a aparição da ideia de contrato, o fortalecimento da burguesia e o absolutismo, configuran- do o Estado moderno e suas estruturas penais. Mais especificamente entre o século XIV e o XVIII, a acumulação de capital que impulsio- nará o mercantilisrno, a manufatura e, logo, a Revolução Industrial forjará uma sociedade de classesatravés daluta para o disciplinamento . de contingentes de mão de obra para o trabalho," O disciplinamento dos pobres para a extração de mais-valia, energia viva do capital,vai precisar da ideologia, da racionalidade utilitarista a legitimar as rela- ções e as técnicas de domínio dos homens e da natureza. A violência e a barbárie fazem parte desse cenário, produzidas pelo excesso de civilização, e não pela sua antítese.'? A partir-do século XVIII, o processo histórico de fortalecimen- to do contrato social determina outras necessidades de ordem. As execuções públicas vão se tornando perigosas com o protagonisrno da multidão que vai produzir a critica do absolutismo. A revolução bate às portas da Europa, com suas multidões de pobres a produzir o Grande Medo: cabeças cortadas, diria Glauber Rocha." O poder punitivo vai precisar de novas propostas e novas técnicas pata dar conta da concentração de pobres que o processo de acumulação do capital provocou. E pobres, agora, com uma pets- pectiva revolucionária. É nessa conjuntura que na crítica do absolutismo surge o discurso jurídico de princípios. Ressalta Nilo Batista que, histórica- mente, o direito penal surge pata limitar o poder punitivo do Anti- go Regime. Aparecem as ideias de legalidade e de outras garantias, e 18 Sugiro aos criminólogos que se interessam pelo tema que aprofundem as leituras de Karl Marx sobre a produção de mais-valia e de Edward Thompson sobre o surgimento das classes sociais a partir da luta de classes. 19Cf. l\1ENEGAT, Marildo, Depois do Fim do Mundo: a crise da modernidade e a barbârie. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Durnará, 2003. .. 20 Cf. FOUCAULT, Michel. V~iar epunir. Petrópolis: Vozes, 1977; RUDÉ, Georges, A multidão na história: estudos dos movimentos populares na França e na Inglaterra (1730- 1848).Rio dejaneiro: Campus, 1991. 25 os conceitos chave de delito e pena. São estabelecidos limites para o método moderno de organização da verdade: punir em vez de vin- gar e estabelecer uma gestão seletiva das ilegalidades populares. A ascensão da burguesia contra a figura do monarca absoluto vai ensejar novos discursos criminológicos, novas instituições, novas políticas, a partir do enquadrarnento cartesiano e iluminista do mundo. A prisão, subordinada à fábrica, se converte na principal pena do mundo ocidental. O delito passa a ser definido juridica- mente. A Revolução industrial precisa de novos dispositivos de con- trole social para o disciplinarnento e o assujeitarnento dos contin- gentes miseráveis que produziu. Não é por acaso que Kad Marx cita Charles Dickens em O capital: sua literatura narra as histórias de fome e exploração sem limites da mão de obra na velha Londres. É nesse sentido que as luzes produzem um aprofundamento da racionalidade das técnicas de domínio do capital: como diria Marildo Menegat, o olho da barbárie espreita a Europa. N o século XIX, a Europa já pôde produzir teoria acerca do grande internamento iniciado no XVIII sobre os indesejáveis des- troços do exército industrial de reserva. A sociedade disciplinar cria a sua rede de prisões, manicômios, internatos e asilos.É nesse mo- mento' que o pensamento criminológico dá o seu grande salto à frente, com uma reflexão "científica", autônoma, do discurso jurí- dico e, por isso, sem o embaraço das garantias e dos limites. Esse pensamento tenebroso e tautológico se alimenta da clien- tela seletivamente estocada nas instituições totais.Éum discurso que surge das próprias agências do poder sobre o "objeto" estudado. Se a maioria dos presos é pobre, o paradigma etiológico irá concluir, atra- vés da legitimação do discurso médico, que a causalidade criminal está reduzida à figura do autor do delito. A própria descrição / classi- ficação biológica do sujeito criminalizável será a explicação do seu crime e de sua "tendência" à "criminalidade". Passa a reinar uma racionalidade falsamente autonomizada do político que produzirá um recuo do iluminismo, que se imaginava haver superado o absolutis- mo punitivo. Na criminologia, o positivismo transfere o objeto do delito demarcado juridicamente para a pessoa do delinquente. Contra I kr li :~i 26 os perigos revolucionários da ideia de igualdade, nada melhor do que uma legitimação "científica" da desigualdade. O criminoso, agora bi- ologicamente ontológico, vai demandar mais pena, mais poder puni- tivo indeterminado: corrigir a natureza demanda tempo. Enquanto isso, o capital vai intensificando o domínio utilitário da natureza, produzindo novas tecnologias e novos dispositivos. No século xx, as guerras vão incrernentar as crises dclicas com aspzáti- cas de destruição do outro. Enquanto o nazifascismo vai ocupando a Europa ocidental de corpo e alma, os Estados Unidos produzem, junto com a critica ao laúsevaire, uma nova ruptura na criminologia. A luta contra a depressão econômica, a aliança de Roosevelt com. os comunistas e a construção do We!fàre System vai repolitizar a "questão criminal". A sociologia e as ciências humanas vão avançar do positivismo segregador para um funcionalismo integrador. A crimi- nologia estadunidense vai se apoderar do conceito de anomia de Durkheirn, reciclado na perspectiva de Merton. O comportamento desviante passa a fazer parte da estrutura social, cumpre funções integradoras, O limite do desvio é a anemia, a ruptura da coesão "pactuada". Os intelectuais estadunidenses da sociologia e da crirni- nologia estão buscando saídas para a profunda conflitividade social decorrente da concentração urbana heterogênea, composta de gru- pos de migrantes e imigrantes culturalmente diferenciados. O delito, ou desvio, não é mais um fenômeno natural, é uma definição, uma construção do sistema de controle. A criminologia levanta os olhos da prisão e consegue enxergar as relações entre o gueto e a "crirnina- lidade". As instituições de controle social passam a ser objeto de es- tudo, bem como as áreas segregadas com concentração de imigrantes pobres, e as formas de controle social. Surge uma criminologia fundonalista, funcional às novas demandas do capital, mas que se distingue do correcionalismo positivista europeu. Foi essa criminologia estadunidense, revigorada pela constru- ção do We(fare System, que conduziu à ruptura do rotulacionismo (Iabeling approac'h), que no cruzamento com a teoria psicanalítica e o marxismo pôde produzir, junto com a ebulição política dos anos 60 e 70, a criminologia crítica como teoria de longo alcance. Embora 27 os conceitos chave de delito e pena. São estabelecidos limites para o método moderno de organização da verdade: punir em vez de vin- gar e estabelecer uma gestão seletiva das ilegalidades populares. A ascensãoda burguesia contra a figura do monarca absoluto vai ensejar novos discursos criminológicos, novas instituições, novas políticas, a partir do enquadrarnento cartesiano e iluminista do mundo. A prisão, subordinada à fábrica, se converte na principal pena do mundo ocidental. O delito passa a ser definido juridica- mente. A Revolução industrial precisa de novos dispositivos de con- trole social para o disciplinarnento e o assujeitarnento dos contin- gentes miseráveis que produziu. Não é por acaso que Kad Marx cita Charles Dickens em O capital: sua literatura narra as histórias de fome e exploração sem limites da mão de obra na velha Londres. É nesse sentido que as luzes produzem um aprofundamento da racionalidade das técnicas de domínio do capital: como diria Marildo Menegat, o olho da barbárie espreita a Europa. N o século XIX, a Europa já pôde produzir teoria acerca do grande internamento iniciado no XVIII sobre os indesejáveis des- troços do exército industrial de reserva. A sociedade disciplinar cria a sua rede de prisões, manicômios, internatos e asilos.É nesse mo- mento' que o pensamento criminológico dá o seu grande salto à frente, com uma reflexão "científica", autônoma, do discurso jurí- dico e, por isso, sem o embaraço das garantias e dos limites. Esse pensamento tenebroso e tautológico se alimenta da clien- tela seletivamente estocada nas instituições totais.Éum discurso que surge das próprias agências do poder sobre o "objeto" estudado. Se a maioria dos presos é pobre, o paradigma etiológico irá concluir, atra- vés da legitimação do discurso médico, que a causalidade criminal está reduzida à figura do autor do delito. A própria descrição / classi- ficação biológica do sujeito criminalizável será a explicação do seu crime e de sua "tendência" à "criminalidade". Passa a reinar uma racionalidade falsamente autonomizada do político que produzirá um recuo do iluminismo, que se imaginava haver superado o absolutis- mo punitivo. Na criminologia, o positivismo transfere o objeto do delito demarcado juridicamente para a pessoa do delinquente. Contra I kr li :~i 26 os perigos revolucionários da ideia de igualdade, nada melhor do que uma legitimação "científica" da desigualdade. O criminoso, agora bi- ologicamente ontológico, vai demandar mais pena, mais poder puni- tivo indeterminado: corrigir a natureza demanda tempo. Enquanto isso, o capital vai intensificando o domínio utilitário da natureza, produzindo novas tecnologias e novos dispositivos. No século xx, as guerras vão incrernentar as crises dclicas com aspzáti- cas de destruição do outro. Enquanto o nazifascismo vai ocupando a Europa ocidental de corpo e alma, os Estados Unidos produzem, junto com a critica ao laúsevaire, uma nova ruptura na criminologia. A luta contra a depressão econômica, a aliança de Roosevelt com. os comunistas e a construção do We!fàre System vai repolitizar a "questão criminal". A sociologia e as ciências humanas vão avançar do positivismo segregador para um funcionalismo integrador. A crimi- nologia estadunidense vai se apoderar do conceito de anomia de Durkheirn, reciclado na perspectiva de Merton. O comportamento desviante passa a fazer parte da estrutura social, cumpre funções integradoras, O limite do desvio é a anemia, a ruptura da coesão "pactuada". Os intelectuais estadunidenses da sociologia e da crirni- nologia estão buscando saídas para a profunda conflitividade social decorrente da concentração urbana heterogênea, composta de gru- pos de migrantes e imigrantes culturalmente diferenciados. O delito, ou desvio, não é mais um fenômeno natural, é uma definição, uma construção do sistema de controle. A criminologia levanta os olhos da prisão e consegue enxergar as relações entre o gueto e a "crirnina- lidade". As instituições de controle social passam a ser objeto de es- tudo, bem como as áreas segregadas com concentração de imigrantes pobres, e as formas de controle social. Surge uma criminologia fundonalista, funcional às novas demandas do capital, mas que se distingue do correcionalismo positivista europeu. Foi essa criminologia estadunidense, revigorada pela constru- ção do We(fare System, que conduziu à ruptura do rotulacionismo (Iabeling approac'h), que no cruzamento com a teoria psicanalítica e o marxismo pôde produzir, junto com a ebulição política dos anos 60 e 70, a criminologia crítica como teoria de longo alcance. Embora 27 não tenha sido um pensamento hegemônieo no século XX, produ- ziu avanços generosos não só na produção acadêmica, como tam- bém na busca de paradigmas e práticas de política criminal que não apostavam na dor, na repressão e no dogma da pena. . O fim do século XX e os albores do XXI constituem cenário de barbárie aprofundada. O tão festejado fim do soaalismo (talvez estejamos apenas começando) abriu espaço para uma hegemonia do capital-e do mercado que ampliou a pobreza, a desigualdade e a violência no mundo. O domínio estadunidense parece não ter limi- tes, nem aqueles impostos pela natureza. Na esteira da queda do socialismo, foram-se também o estado previdenciário e as redes coletivas de segurança. Incêndio na floresta, diria Leonel Brizola. Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho e jogadas à pró- pria sorte, o neoliberalisrno precisa de estratégias globais de crimi- nalização e de políticas cada vez mais duras de controle social: mais tortura, rnenos garantias, penas mais longas, emparedamento em vida ... A mídia, no seu processo de inculcação e utilização do medo, produz cada vez mais subjetividades punitivas. A pena torna-se eixo discursivo da direita e de grande parte da esquerda, para dar conta da conflitividade social que o modelo gera. Loíc Wacquant demons- trou como o estado previdenciário nos Estados Unidos foi substi- tuído pelo estado penal. O vento punitivo que sopra dos EUA se difunde junto com a verdade única do rnercado.ê' O capital precisa cada vez mais da prisão, conjugada às estratégias de criminalização de condutas cotidianas Guizados especiais, penas alternativas, justi- ça terapêutica etc.) e mais a transformação das favelas e periferias do mundo em "campos de concentração". O criminal e o bélico se amalgamam no que Raúl Zaffaroni analisa como direito penal do ini- migo.22 Os territórios não controlados são classificados como Eixo do Mal, territórios a serem ocupados a partir da legitimação produ- zida por duas categorias fantasrnáticás: o traficante e o terrorista. 21 WACQUANT,Loíc, Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Traduçãode SérgioLamarão.Rio deJaneiro:InstitutoCariocade criminologia/' Revan,2003. . . 22 ZAFFARONI,E. Raúl.O Inimigo 110 Direito Penal RiodeJaneiro:Revan, 2007. I 28 Os novos tempos produzem níveis de encarceramerito nunca vistos na história da humanidade. O disciplinamento do tempo li- vre, da concorrência desumana e da corifli tividade social despolitizada vai requerer novos argumentos "científicos": surge o neolombrosianismo deterrninista com as neurociências e as desco- bertas de novos "criminosos natos". É importante ressaltar que os negócios do crime e da triminalidade vão fazer parte da "nova ecorio- .mia" e as ações das empresas que os exploram integram o índice Nasdaq. A indústria do controle do crime, a que se referiu Nils Ch:ristie, é um dos setores mais dinâmicos do capitalismo de barbárie, São essas questões que se colocam para nós, ctiminólogos, no século XXI. A que ordem servir? Na periferia do capitalismo, e no Brasil em particular, tudo isso vai se agregar ao genoddio coloniza- dor, às marcas da escravidão, à república nunca consolidada, ao es- tado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania. Devemos ser os criminólogos que formularemos a poli- tica criminal da ordem necessária à reprodução do capital video- financeiro, ou estaremos na trincheira da resistência à barbárie? Para os que estão na nossa trincheira, lembremo-nos das indi- cações estratégicas de política criminal do imprescindível Alessand:to Baratta23: 1) não reduzirapolíticade transformaçãosocialàpolíticapenal; 2) entender que o sistemapenal é ontologicamente desigual, a seletividadefaz parte da -sua natureza; 3) lutar pela aboliçãoda pena.privativade liberdade; 4) travar abatalha cultural e subjetivacontra a legitimação do direito desigualatravésdas campanhas de lei e ordem. Para terminar, não abandonar a defesa e a luta contra a prisão à espera da revolução messiânica que vai resolver tudo: no dia a dia, como estamos vendo, as coisas podem sempre piorar. 23 BARA'ITA;Alessandro."Defesadosdireitoshumanosepolíticacriminal".In: Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, ano2, n° 3. RiodeJaneiro:Instituto Cariocade criminologia,1997. 29 não tenha sido um pensamento hegemônieo no século XX, produ- ziu avanços generosos não só na produção acadêmica, como tam- bém na busca de paradigmas e práticas de política criminal que não apostavam na dor, na repressão e no dogma da pena. . O fim do século XX e os albores do XXI constituem cenário de barbárie aprofundada. O tão festejado fim do soaalismo (talvez estejamos apenas começando) abriu espaço para uma hegemonia do capital-e do mercado que ampliou a pobreza, a desigualdade e a violência no mundo. O domínio estadunidense parece não ter limi- tes, nem aqueles impostos pela natureza. Na esteira da queda do socialismo, foram-se também o estado previdenciário e as redes coletivas de segurança. Incêndio na floresta, diria Leonel Brizola. Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho e jogadas à pró- pria sorte, o neoliberalisrno precisa de estratégias globais de crimi- nalização e de políticas cada vez mais duras de controle social: mais tortura, rnenos garantias, penas mais longas, emparedamento em vida ... A mídia, no seu processo de inculcação e utilização do medo, produz cada vez mais subjetividades punitivas. A pena torna-se eixo discursivo da direita e de grande parte da esquerda, para dar conta da conflitividade social que o modelo gera. Loíc Wacquant demons- trou como o estado previdenciário nos Estados Unidos foi substi- tuído pelo estado penal. O vento punitivo que sopra dos EUA se difunde junto com a verdade única do rnercado.ê' O capital precisa cada vez mais da prisão, conjugada às estratégias de criminalização de condutas cotidianas Guizados especiais, penas alternativas, justi- ça terapêutica etc.) e mais a transformação das favelas e periferias do mundo em "campos de concentração". O criminal e o bélico se amalgamam no que Raúl Zaffaroni analisa como direito penal do ini- migo.22 Os territórios não controlados são classificados como Eixo do Mal, territórios a serem ocupados a partir da legitimação produ- zida por duas categorias fantasrnáticás: o traficante e o terrorista. 21 WACQUANT,Loíc, Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Traduçãode SérgioLamarão.Rio deJaneiro:InstitutoCariocade criminologia/' Revan,2003. . . 22 ZAFFARONI,E. Raúl.O Inimigo 110 Direito Penal RiodeJaneiro:Revan, 2007. I 28 Os novos tempos produzem níveis de encarceramerito nunca vistos na história da humanidade. O disciplinamento do tempo li- vre, da concorrência desumana e da corifli tividade social despolitizada vai requerer novos argumentos "científicos": surge o neolombrosianismo deterrninista com as neurociências e as desco- bertas de novos "criminosos natos". É importante ressaltar que os negócios do crime e da triminalidade vão fazer parte da "nova ecorio- .mia" e as ações das empresas que os exploram integram o índice Nasdaq. A indústria do controle do crime, a que se referiu Nils Ch:ristie, é um dos setores mais dinâmicos do capitalismo de barbárie, São essas questões que se colocam para nós, ctiminólogos, no século XXI. A que ordem servir? Na periferia do capitalismo, e no Brasil em particular, tudo isso vai se agregar ao genoddio coloniza- dor, às marcas da escravidão, à república nunca consolidada, ao es- tado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania. Devemos ser os criminólogos que formularemos a poli- tica criminal da ordem necessária à reprodução do capital video- financeiro, ou estaremos na trincheira da resistência à barbárie? Para os que estão na nossa trincheira, lembremo-nos das indi- cações estratégicas de política criminal do imprescindível Alessand:to Baratta23: 1) não reduzirapolíticade transformaçãosocialà políticapenal; 2) entender que o sistemapenal é ontologicamente desigual, a seletividadefaz parte da -sua natureza; 3) lutar pela aboliçãoda pena.privativade liberdade; 4) travar abatalha cultural e subjetivacontra a legitimação do direito desigualatravésdas campanhas de lei e ordem. Para terminar, não abandonar a defesa e a luta contra a prisão à espera da revolução messiânica que vai resolver tudo: no dia a dia, como estamos vendo, as coisas podem sempre piorar. 23 BARA'ITA;Alessandro."Defesadosdireitoshumanosepolíticacriminal".In: Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, ano2, n° 3. RiodeJaneiro:Instituto Cariocade criminologia,1997. 29 CAPÍTULO III GENEALOGIA DA CRIMINOLOGLA Retomemos, na companhia de Foucault, Zaffaroni e .Anitua, a importância do século XIII, com suas mudanças políticas e, princi- palmente, nos seus efeitos para a manufatura de uma "política cri- .minal", de um novo desenho de poder punitivo estabelecido atra- vés de uma relação entre as noções de delito e de castigo queins- taurará os conceitos de infraf'ão e de pena públúa. Aquele método de investigação da verdade, a que já nos referi- mos, se depreende do acontecimento político da Inquisição. Teríamos aí o primeiro modelo integrado de criminologia, política criminal,direi- to penal e processo penal. A confissão individual, tão estudada por Foucault na História da sexualidade, instituída no 4° Concilio de Latrão, produziu um eficiente dispositivo de controle social e assujeitamento coletivo. O ano da sua instituição, 1215, era também o da perseguição dos cátaros em Languedoc e da Carta Magna na Inglaterra." O novo modelo punitivo, inquisitorial, centralizado e burocrati- zado, articulando os saberes/poderes médico-jurídicos, produziu o fenômeno (tão discutido na criminologia depois de Foucault) de ex- propriação do conflito em favor do Estado embrionário. A gestão comunitária é banida e a "vítima" (que só recobrará importância no século XX2S) passa a ser figurante de um poder que se alimenta do seu próprio método: não resolve o conflito, mas põe em funciona- mento o mecanismo que vai unir simbolicamente a culpa com o .cas- tigo. Esse mecanismo irrefreável vai constituir, vai demandar um cor- po "profissional" permanente, formado na interseção do jurídico com o religioso. Ninguém comenta melhor essa gestão do que Louk Huslman ao afirmar que não há nada mais parecido com a escolástica 24 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I, cit, 25 Cf. ELIACHEFF, Caroline; LARIVIERE, Daniel Soulez. L» Temps des Victimes, Paris: Albin Michel,2007. 31 CAPÍTULO III GENEALOGIA DA CRIMINOLOGLA Retomemos, na companhia de Foucault, Zaffaroni e .Anitua, a importância do século XIII, com suas mudanças políticas e, princi- palmente, nos seus efeitos para a manufatura de uma "política cri- .minal", de um novo desenho de poder punitivo estabelecido atra- vés de uma relação entre as noções de delito e de castigo queins- taurará os conceitos de infraf'ão e de pena públúa. Aquele método de investigação da verdade, a que já nos referi- mos, se depreende do acontecimento político da Inquisição. Teríamos aí o primeiro modelo integrado de criminologia, política criminal,direi- to penal e processo penal. A confissão individual, tão estudada por Foucault na História da sexualidade, instituída no 4° Concilio de Latrão, produziu um eficiente dispositivo de controle social e assujeitamento coletivo. O ano da sua instituição, 1215, era também o da perseguição dos cátaros em Languedoc e da Carta Magna na Inglaterra." O novo modelo punitivo, inquisitorial, centralizado e burocrati- zado, articulando os saberes/poderes médico-jurídicos, produziu o fenômeno (tão discutido na criminologia depois de Foucault)de ex- propriação do conflito em favor do Estado embrionário. A gestão comunitária é banida e a "vítima" (que só recobrará importância no século XX2S) passa a ser figurante de um poder que se alimenta do seu próprio método: não resolve o conflito, mas põe em funciona- mento o mecanismo que vai unir simbolicamente a culpa com o .cas- tigo. Esse mecanismo irrefreável vai constituir, vai demandar um cor- po "profissional" permanente, formado na interseção do jurídico com o religioso. Ninguém comenta melhor essa gestão do que Louk Huslman ao afirmar que não há nada mais parecido com a escolástica 24 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I, cit, 25 Cf. ELIACHEFF, Caroline; LARIVIERE, Daniel Soulez. L» Temps des Victimes, Paris: Albin Michel,2007. 31 do que o direito penal. A diferença perversa estaria no fato de não haver possibilidade de paraíso no discursopunitivo. É natural também que esse poder, agora exercido por expertos, necessite de criar o seu "outro", o objetificável, o corpo humano, para o qual convergirá o método. As bruxas, representando as ten- tativas de controle dos ritos de fertilidade, os partos, enfim, o poder feminino, estará no processo de objetificação, como estiveram as ccideiaserradas" dos hereges. As pugnas pela hegemonia e centrali- zação da Igreja Católica vão tratar de primeiro desumanizar os he- reges e as bruxas, para depois demonizá-los, Épor isso que Zaffaroni trabalha a Inquisição como o primeiro discurso criminológico mo- derno: serão estudadas as causas do mal, as formas em que se apre- senta e também o método para cornbatê-lo. O importante é seguir o curso dos discursos para observar as permanências dessa manei- ra de pensar e agir até a criminologia dos dias de hoje. Nada mais ,parecido com a figura do herege do 'lue o trqfic-ante que quer dispor da alma das nossas crianças, como disse Nilo Batista." Mas o poder punitivo em formação não é etéreo, nem ontológico. Ele se relaciona intimamente com o processo de acu- mulação de capital em curso: a crise do sistema de exploração feu- dal; a expulsão dos camponeses, o crescimento das cidades e mer- cados, novas e crescentes necessidades de renda, de produtos espe- ciais, de armamentos e mercadorias para a empresa guerreira, buro- cracias nascentes, manufaturas, comércio. A ideia de controle dos indesejáveis vai oscilar entre dois modelos, descritos por Foucault: o do leprosário, segregativo e excludente; e o da peste, disciplinar e inclusivo. Ao longo da história, iremos observar as oscilações em torno desses dois modelos, bem como suas sincronias fortuitas. Todo esse movimento material, magistralmente estudado por Braudel.F vai fazer emergir uma nova classe social, a burguesia, com- 26 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - I. Rio deJaneiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2000. 27 Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização materia~ econdmica e capitalismo - sécUlos Xv. XVIII. São Paulo:MartinsFontes,1996. . El Mediterreneo y el Mundo .Mediterraneo en Ia Época de Felipe IL México: Fondo Cultura Econômica, 1987. ' I 32 posta por todos aqueles setores nos interstícios entre o clero, a no- breza e os pobres. Esse setor emergente vai produzir saberes de- correntes de sL;lasnovas funções econômicas, um saber monetário, burocrático, a favor das racionalizações necessárias ao processo de centralização do poder. A civilização e o progresso serão coautores, causa e consequência de um novo método científico que vai empre- ender o domínio do homem pelo homem, e também da natureza. Como diria Marildo Menegat, é aí que se vai espraiar o olho da barbárie, no uso instrumental do saber científico, na expansão béli- ca das cruzadas, viagens, descobrimentos." Nós, na nossa margem, conhecemos essa empreitada, o imen- 50 genoddio iniciado na colonização, aprofundado no escravisrno e eternizado pelo capital. São as nossas veias abertas, homens ani- mais, mercadorias ou mercadorias animais. Está lá, em Galeano e em Darcy Ribeiro: a cada ciclo econômico da colonização corres- ponde um moinho de gastar gente. O capitalprecisa de corpos para extrair mais-valia, que se realiza na expropriação da energia vital que emana do trabalho do homem. Tzvetan Todorov descreveu como, na conquista da Améri- ca, o encontro da civilizaçãoeuropeia com o "outro" exteri- or se dá no momento em que a Espanha repudia seu "ou- tro" interior, na vitóri~ sobre os mouros e na expulsão dos judeus. O genocídio da população nativa americana e a libe- ração total da crueldade obedecem a um duplo movimento -de desqualificação do "outro" e da subordinação de todos os valores ao desejo de enriquecer, símbolo da modernidade, o fetiche do ouro. Na Europa Ocidental, o alvo das ca:m.pa- nhas e políticas de exclusão e controle são os grupos minoritários, e na América o processo de exclusãoé genera- lizado à população nativa. Com a descoberta daAmérica, a Europa expulsa a heterogeneidade e aintroduz irremedia- 28 MENEGA1: Marildo, Depois doFim doMundo, cito 33 do que o direito penal. A diferença perversa estaria no fato de não haver possibilidade de paraíso no discursopunitivo. É natural também que esse poder, agora exercido por expertos, necessite de criar o seu "outro", o objetificável, o corpo humano, para o qual convergirá o método. As bruxas, representando as ten- tativas de controle dos ritos de fertilidade, os partos, enfim, o poder feminino, estará no processo de objetificação, como estiveram as ccideiaserradas" dos hereges. As pugnas pela hegemonia e centrali- zação da Igreja Católica vão tratar de primeiro desumanizar os he- reges e as bruxas, para depois demonizá-los, Épor isso que Zaffaroni trabalha a Inquisição como o primeiro discurso criminológico mo- derno: serão estudadas as causas do mal, as formas em que se apre- senta e também o método para cornbatê-lo. O importante é seguir o curso dos discursos para observar as permanências dessa manei- ra de pensar e agir até a criminologia dos dias de hoje. Nada mais ,parecido com a figura do herege do 'lue o trqfic-ante que quer dispor da alma das nossas crianças, como disse Nilo Batista." Mas o poder punitivo em formação não é etéreo, nem ontológico. Ele se relaciona intimamente com o processo de acu- mulação de capital em curso: a crise do sistema de exploração feu- dal; a expulsão dos camponeses, o crescimento das cidades e mer- cados, novas e crescentes necessidades de renda, de produtos espe- ciais, de armamentos e mercadorias para a empresa guerreira, buro- cracias nascentes, manufaturas, comércio. A ideia de controle dos indesejáveis vai oscilar entre dois modelos, descritos por Foucault: o do leprosário, segregativo e excludente; e o da peste, disciplinar e inclusivo. Ao longo da história, iremos observar as oscilações em torno desses dois modelos, bem como suas sincronias fortuitas. Todo esse movimento material, magistralmente estudado por Braudel.F vai fazer emergir uma nova classe social, a burguesia, com- 26 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - I. Rio deJaneiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2000. 27 Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização materia~ econdmica e capitalismo - sécUlos Xv. XVIII. São Paulo:MartinsFontes,1996. . El Mediterreneo y el Mundo .Mediterraneo en Ia Época de Felipe IL México: Fondo Cultura Econômica, 1987. ' I 32 posta por todos aqueles setores nos interstícios entre o clero, a no- breza e os pobres. Esse setor emergente vai produzir saberes de- correntes de sL;lasnovas funções econômicas, um saber monetário, burocrático, a favor das racionalizações necessárias ao processo de centralização do poder. A civilização e o progresso serão coautores, causa e consequência de um novo método científico que vai empre- ender o domínio do homem pelo homem, e também da natureza. Como diria Marildo Menegat, é aí que se vai espraiar o olho da barbárie, no uso instrumental do saber científico, na expansão béli- ca das cruzadas, viagens, descobrimentos." Nós, na nossa margem, conhecemos essa empreitada, o imen- 50 genoddioiniciado na colonização, aprofundado no escravisrno e eternizado pelo capital. São as nossas veias abertas, homens ani- mais, mercadorias ou mercadorias animais. Está lá, em Galeano e em Darcy Ribeiro: a cada ciclo econômico da colonização corres- ponde um moinho de gastar gente. O capitalprecisa de corpos para extrair mais-valia, que se realiza na expropriação da energia vital que emana do trabalho do homem. Tzvetan Todorov descreveu como, na conquista da Améri- ca, o encontro da civilizaçãoeuropeia com o "outro" exteri- or se dá no momento em que a Espanha repudia seu "ou- tro" interior, na vitóri~ sobre os mouros e na expulsão dos judeus. O genocídio da população nativa americana e a libe- ração total da crueldade obedecem a um duplo movimento -de desqualificação do "outro" e da subordinação de todos os valores ao desejo de enriquecer, símbolo da modernidade, o fetiche do ouro. Na Europa Ocidental, o alvo das ca:m.pa- nhas e políticas de exclusão e controle são os grupos minoritários, e na América o processo de exclusãoé genera- lizado à população nativa. Com a descoberta daAmérica, a Europa expulsa a heterogeneidade e aintroduz irremedia- 28 MENEGA1: Marildo, Depois doFim doMundo, cito 33 velmente. .A pulsão do domínio e o sentimento de superiori- dade produzem doutrinas de desigualdade." Ou seja,o capital precisa do "lugar político do outro" para exer- cer a sua unidade política. O próprio Delurneau analisacomo o medo recaia sobre os mouros, judeus, os hereges, as bruxas, os leprosos, os loucos, as mulheres em geral. O poder punitivo ia nessas pegadas construindo dispositivos formais e informais de controle social, te- cendo discursos e práticas, diagnósticos e políticas criminais. Anitua aponta corno nesse percurso histórico veremos cami- nhos distintos, da ciência política do conflito em Maquiavel ao con- senso lupino de Hobbes. Mas as utopias estiveram sempre presen- tes em Campanella, Morus, Rabelais, Bacon e Descartes. O mundo das ideias, depois do grande cisma, se dividiu entre os pensadores da Reforma (Lutero, Calvino, Swingli)e os da Contrarreforma, como Inácio de Loyola." O grande eixo ordenador será em torno da propriedade. Em torno do pensamento liberal surgirá a noção moderna de lei e de direitos individuais. O contrato transforma-se na grande metáfora das relações sociais, como diria Pashukanis. É natural que os pobres.xlespossuídos até do próprio corpo, de sua força de trabalho, aparecessem como solução e como pro- blema. Solução por serem a fonte de geração de riquezas materiais, e problema porque não podem fugir ou sair do controle, precisam ser sujeitados de mil formas visíveis e invisíveis. Os Estados absolutistas que aparecem nessa conjuntura raci- onalizaram o sistema de castigo e adestraram intelectuais e funcio- nários para esses misteres; aprimoraram o controle da população, as técnicas de governo, o utilitarismo social e econômico. No cam- po da criminologia, Anitua situa ai o começo da ideia de prevenção, associada a uma averiguação da motivação culpável, que pode ser 29 BATISTA, Vem Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2003, p. 31. 30 Cf. ANITUA, Gabriel 19nácio. História dos Pensamentos Criminológicos, cit., p. 96. .. I 34 conseguida através da tortura, com o objetivo final da confissão. Anitua cita uma passagem do diário de um dos componentes da família dos verdugos da França. Em 1688, o verdugo dizia-se feliz e estável, na única profissão certa: a de cortar cabeças. Muitos que haviam condenado acabaram perdendo a própria cabeça: o impor- tante é que o mecanismo estivesse sempre funcionando. A propriedade tornou-se o eixo central da teoria e da práxis política na crise do estado absolutista. O pensamento liberal de Locke, Hobbes, Rousseau e Spinoza vai engendrar o [usnaturalisrrío moder- no, que buscava produzir uma distinção entre moral e direito. Ao engendrar novas relações sociais, novos conflitos e novas necessidades de ordem, a acumulação de capital vai produzir, entre os séculos XIV eXVII, a repressão à vadiagem, as leis de expropri- ação de terras comuns, as primeiras leis depobres (como a de 1601, na Inglaterra: Anitua trabalha com a assustadora cifra de 72.000 la- drões executados pela forca de Henrique VIII). É nesse momento que Foucault situa a união das técnicas contra a lepra com as técni- cas contra a peste que constituirão a medicina social mais adiante: expulsar internando e incluir disciplinando. Começa a surgir a figu- ra do "sequestro institucional", que permitirá separar o pobre ino- cente do pobre culpado. É Anitua também que nos apresenta a ideologia da Rasphuis holandesa que, em 1612, instituía o trabalho obrigatório "para jo- vens que tenham escolhido o caminho equivocado, pelo que mar- cham até a forca, e para que possam ser salvos desse patíbulo e tenham um ofício e trabalho honesto realizado em temor a Deus".31 Nada mais parecido com a ideologia profissionalizante dos dias de hoje, ou com a afirmação de um prefeito do Rio, em conjuntura eleitoral, ao propor "cadeia ou vala" para a juventude em disputa pelo mercado de drogas. 31 Cf. ANlTUA, op. cit., p. 66 - "as novas casas de trabalho rnanufatureiro recebiam o nome comum de Rosphuis - ou 'casa de raspagem' - posto que a atividade que desenvolviam era a de raspar madeira importada do Brasil ..." 35 velmente. .A pulsão do domínio e o sentimento de superiori- dade produzem doutrinas de desigualdade." Ou seja,o capital precisa do "lugar político do outro" para exer- cer a sua unidade política. O próprio Delurneau analisacomo o medo recaia sobre os mouros, judeus, os hereges, as bruxas, os leprosos, os loucos, as mulheres em geral. O poder punitivo ia nessas pegadas construindo dispositivos formais e informais de controle social, te- cendo discursos e práticas, diagnósticos e políticas criminais. Anitua aponta corno nesse percurso histórico veremos cami- nhos distintos, da ciência política do conflito em Maquiavel ao con- senso lupino de Hobbes. Mas as utopias estiveram sempre presen- tes em Campanella, Morus, Rabelais, Bacon e Descartes. O mundo das ideias, depois do grande cisma, se dividiu entre os pensadores da Reforma (Lutero, Calvino, Swingli)e os da Contrarreforma, como Inácio de Loyola." O grande eixo ordenador será em torno da propriedade. Em torno do pensamento liberal surgirá a noção moderna de lei e de direitos individuais. O contrato transforma-se na grande metáfora das relações sociais, como diria Pashukanis. É natural que os pobres.xlespossuídos até do próprio corpo, de sua força de trabalho, aparecessem como solução e como pro- blema. Solução por serem a fonte de geração de riquezas materiais, e problema porque não podem fugir ou sair do controle, precisam ser sujeitados de mil formas visíveis e invisíveis. Os Estados absolutistas que aparecem nessa conjuntura raci- onalizaram o sistema de castigo e adestraram intelectuais e funcio- nários para esses misteres; aprimoraram o controle da população, as técnicas de governo, o utilitarismo social e econômico. No cam- po da criminologia, Anitua situa ai o começo da ideia de prevenção, associada a uma averiguação da motivação culpável, que pode ser 29 BATISTA, Vem Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2003, p. 31. 30 Cf. ANITUA, Gabriel 19nácio. História dos Pensamentos Criminológicos, cit., p. 96. .. I 34 conseguida através da tortura, com o objetivo final da confissão. Anitua cita uma passagem do diário de um dos componentes da família dos verdugos da França. Em 1688, o verdugo dizia-se feliz e estável, na única profissão certa: a de cortar cabeças. Muitos que haviam condenado acabaram perdendo a própria cabeça: o impor- tante é que o mecanismo estivesse sempre funcionando. A propriedade tornou-se o eixo central da teoria e da práxis política na crise do estado absolutista. O pensamento liberal de Locke, Hobbes,Rousseau e Spinoza vai engendrar o [usnaturalisrrío moder- no, que buscava produzir uma distinção entre moral e direito. Ao engendrar novas relações sociais, novos conflitos e novas necessidades de ordem, a acumulação de capital vai produzir, entre os séculos XIV eXVII, a repressão à vadiagem, as leis de expropri- ação de terras comuns, as primeiras leis depobres (como a de 1601, na Inglaterra: Anitua trabalha com a assustadora cifra de 72.000 la- drões executados pela forca de Henrique VIII). É nesse momento que Foucault situa a união das técnicas contra a lepra com as técni- cas contra a peste que constituirão a medicina social mais adiante: expulsar internando e incluir disciplinando. Começa a surgir a figu- ra do "sequestro institucional", que permitirá separar o pobre ino- cente do pobre culpado. É Anitua também que nos apresenta a ideologia da Rasphuis holandesa que, em 1612, instituía o trabalho obrigatório "para jo- vens que tenham escolhido o caminho equivocado, pelo que mar- cham até a forca, e para que possam ser salvos desse patíbulo e tenham um ofício e trabalho honesto realizado em temor a Deus".31 Nada mais parecido com a ideologia profissionalizante dos dias de hoje, ou com a afirmação de um prefeito do Rio, em conjuntura eleitoral, ao propor "cadeia ou vala" para a juventude em disputa pelo mercado de drogas. 31 Cf. ANlTUA, op. cit., p. 66 - "as novas casas de trabalho rnanufatureiro recebiam o nome comum de Rosphuis - ou 'casa de raspagem' - posto que a atividade que desenvolviam era a de raspar madeira importada do Brasil ..." 35 o certo é que até então o encerramento ou internamento não constituía pena. É a partir do século XVI que isso começa a aconte- cer em larga escala. Junto com a sua expansão, as primeiras críticas, como o longo relatório Howard.F Este documento vai demonstrar que, historicamente, a prisão foi e sempre será depósito infecto de pobres e indesejáveis. A conjuntura revolucionária entre os séculos XVII e XVIII pressupunha críticas e ações contra os rigores punitivos do absolu- tismo. Para pensarmos nas rupturas apresentadas no período, para compreender o iluminismo e o liberalismo jurídico, é fundamental , compreender a nova estratégia epistemológica fundada pela Enrydopedie, aquela tempestade do século XVIlJ.33 A Enrydopedie como máquina de guerra estabeleceu uma racionalidade baseada na necessidade da classificação como exercício de poder. Os esquemas de classificação seriam ações sociais que fluiriam através de frontei- ras: "estabelecer categorias e policiá-Ias é, portanto, assunto sério".34 Darnton afirma que foi no século XVI que o debate sobre o método e a disposição correta na organização do conhecimen- to começa a acontecer, impondo uma tendência a mapear, de- linear e especializar segmentos do conhecimento. Diderot e D'Alembert, a partir da árvore do conhecimento de Bacon e Charnbers, aprimoram a versão iluminista da enciclopédia ou "relato sistemático da ordem e concatenação do conhecimen- to humano". D'Alembert descreveria a enciclopédia como uma espécie de mapa do mundo. Os autores da,enciclopédia sub- meteram a religião à filosofia, foi um processo de descristianização. "As premissas soavam devotas, mas a con- clusão tinha um sabor de heresia, porque parecia subordinar a teologia à razão, o que eles descreviam de maneira lockeana, como se alguém pudesse chegar ao conhecimento de Deus 32 HOWARD, John. Tbe State of lhe Prisons. Londres:J. M. Dent & Sons, 1929. 33DARNTON, Robert. Ogrande mas.racre de gato.r. Rio deJaneiro:Graal, 1988. 340p. cit., p. 251. ' " 36 construindo com sensações ideias cada vez mais complexas e abstratas". Para Darnron, numa mistura, de ética com utilitarismo, do homem hobbesiano em seu estado natural, "D' Alembert tomara uma rota lockeana para um Deus cartes1ano". Numa época de embates filosóficos entre as lin- , guagens escolásticas, cartesianas e lockeanas, seu discurso des- lizava de uma linguagem para outra. Os filósofos, para D'Alembert, analisariam a: natureza, reduzi- riam seus fenômenos aos seus princípios, reconstruindo-os sis- tematicamente. Trabalhava assim as ciências cronologicamente passando pela história, gramática, geografia etc., até construir a árvore enciclopédica: uma visão geral, totalizante. O empre- endimento enciclopédico, "a moderna Sumrna, modelava o conhecimento de tal maneira que o tirava do clero e colocava- o nas mãos de intelectuais comprometidos com o iluminismo". Para Darnton, é no século XIX que essa estratégia triunfa, com o surgimento das modernas disciplinas escolares e a seculariza- ção da educação. Mas, para o autor, o grande embate deu-se na década de 1750, "quando os enciclopedistas reconheceram que conhecimento era poder e, mapeando o universo. do saber, par- tiram para sua conquista". 35 É importante compreender a ideologia da razão que o absolu- tismo ilustrado e racionalista aplicaria às leis. A visão da lei transfor- ma-se em algo racional e equitativo, estabelecendo limites do Esta- do ao poder punitivo ilimitado da soberania despótica. No bojo das revoluções liberais da Europa e da América, surge a ideia da legali- dade, da proteção dos direitos, enfim, de uma teoria limitadora do poder punitivo, emborajustificadora dele, como é até hoje o libera- lismo garan tis ta. Por trás de tantas racionalizações estava o medo das massas revolucionárias, da multidão, desse novo protagonista. Os princípi- os revolucionários iluministas -liberdade, igualdade e fraternidade 35 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio deJaneiro, cit., p. 148. 37 o certo é que até então o encerramento ou internamento não constituía pena. É a partir do século XVI que isso começa a aconte- cer em larga escala. Junto com a sua expansão, as primeiras críticas, como o longo relatório Howard.F Este documento vai demonstrar que, historicamente, a prisão foi e sempre será depósito infecto de pobres e indesejáveis. A conjuntura revolucionária entre os séculos XVII e XVIII pressupunha críticas e ações contra os rigores punitivos do absolu- tismo. Para pensarmos nas rupturas apresentadas no período, para compreender o iluminismo e o liberalismo jurídico, é fundamental , compreender a nova estratégia epistemológica fundada pela Enrydopedie, aquela tempestade do século XVIlJ.33 A Enrydopedie como máquina de guerra estabeleceu uma racionalidade baseada na necessidade da classificação como exercício de poder. Os esquemas de classificação seriam ações sociais que fluiriam através de frontei- ras: "estabelecer categorias e policiá-Ias é, portanto, assunto sério".34 Darnton afirma que foi no século XVI que o debate sobre o método e a disposição correta na organização do conhecimen- to começa a acontecer, impondo uma tendência a mapear, de- linear e especializar segmentos do conhecimento. Diderot e D'Alembert, a partir da árvore do conhecimento de Bacon e Charnbers, aprimoram a versão iluminista da enciclopédia ou "relato sistemático da ordem e concatenação do conhecimen- to humano". D'Alembert descreveria a enciclopédia como uma espécie de mapa do mundo. Os autores da,enciclopédia sub- meteram a religião à filosofia, foi um processo de descristianização. "As premissas soavam devotas, mas a con- clusão tinha um sabor de heresia, porque parecia subordinar a teologia à razão, o que eles descreviam de maneira lockeana, como se alguém pudesse chegar ao conhecimento de Deus 32 HOWARD, John. Tbe State of lhe Prisons. Londres:J. M. Dent & Sons, 1929. 33DARNTON, Robert. Ogrande mas.racre de gato.r. Rio deJaneiro:Graal, 1988. 340p. cit., p. 251. ' " 36 construindo com sensações ideias cada vez mais complexas e abstratas". Para Darnron, numa mistura, de ética com utilitarismo, do homem hobbesiano em seu estado natural, "D' Alembert tomara uma rota lockeana para um Deus cartes1ano". Numa época de embates filosóficos entre as lin- , guagens escolásticas, cartesianas e lockeanas, seu discurso des- lizava de uma linguagem para outra. Os filósofos, para D'Alembert, analisariam a: natureza, reduzi- riam seusfenômenos aos seus princípios, reconstruindo-os sis- tematicamente. Trabalhava assim as ciências cronologicamente passando pela história, gramática, geografia etc., até construir a árvore enciclopédica: uma visão geral, totalizante. O empre- endimento enciclopédico, "a moderna Sumrna, modelava o conhecimento de tal maneira que o tirava do clero e colocava- o nas mãos de intelectuais comprometidos com o iluminismo". Para Darnton, é no século XIX que essa estratégia triunfa, com o surgimento das modernas disciplinas escolares e a seculariza- ção da educação. Mas, para o autor, o grande embate deu-se na década de 1750, "quando os enciclopedistas reconheceram que conhecimento era poder e, mapeando o universo. do saber, par- tiram para sua conquista". 35 É importante compreender a ideologia da razão que o absolu- tismo ilustrado e racionalista aplicaria às leis. A visão da lei transfor- ma-se em algo racional e equitativo, estabelecendo limites do Esta- do ao poder punitivo ilimitado da soberania despótica. No bojo das revoluções liberais da Europa e da América, surge a ideia da legali- dade, da proteção dos direitos, enfim, de uma teoria limitadora do poder punitivo, emborajustificadora dele, como é até hoje o libera- lismo garan tis ta. Por trás de tantas racionalizações estava o medo das massas revolucionárias, da multidão, desse novo protagonista. Os princípi- os revolucionários iluministas -liberdade, igualdade e fraternidade 35 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio deJaneiro, cit., p. 148. 37 I I I; - seriam transportados, além dos seus limites, nas revoluções peri- féricas e mágicas, como a do Haiti, que tanto medo propagou entre os senhores brancos das Américas. Para Foucault, os séculos XVII e XVIII, a partir da estratégia epistemológica da Enrydopedie e das demandas do capital, vão pro- duzir a tecnologia disciplinar: técnicas e dispositivos de poder, centrados no corpo do homem, para enquadrá-lo e hierarquizá-lo. No século XVIII, Foucault aponta a emergência de uma outra técnologia de poder dirigida ao homem espécie, a biopolítica. Esse controle, agora demográfico, dirige-se às populações, às multidões que deverão ser vigiadas, treinadas e punidas. Não podemos deixar de imaginar, na nossa margem, que, entre os séculos XVI e XIX, o processo civilizatório empreendeu o grande genocidio colonizador. O capital começava a classificar povos inteiros, de acordo com. a sua incorporação periférica. Esse liberalismo "disciplinador" na "nossa margem convivia com a truculência escravocrata e o extermí- nio das civilizações indígenas. Fica a questão: seria o liberalismo uma atualização requintada da Inquisição em confortável convivência com o absolutismo? A objetificação do corpo do herege reaparece- ria na incapacidade das raças, classificadas na base inferior da ordem mercantil? A literatura de Alejo Carpentier empreende essa discus- " são para a periferia do capitalismo em pelo menos três romances: No reino desse mundo, O Sét'u/o das LuzeS' e Passos perdidos. Voltando às marcas do liberalismo no mundo do direito, pen- semos naquilo que Alessandro Baratta denominou de Escola Clás- sica. Seus principais expoentes seriam Bentham, na Inglaterra, Feuerbach, na Alemanha, e Beccaria, na Itália. O direito penal seria um instrumento de defesa da sociedade, seu limite, sua necessidade e utilidade, já que nesse momento não se trabalhava com a ideia de que a pena fosse corretiva. O principio da legalidade vai ser a linha de força do iluminismo contra os excessos punitivos do .Anaen Re- gime. Afinal, a Revolução Francesa começa com a queda da Bastilha, a masmorra absolutista. Foi o Marquês de Beccaria que em 1764 - nessa primeira edi- ção, sem subscrever sua obra - produziu a primeira exposição glo- 38 bal e articulada entre política criminal, direito penal e processo pe- nal, em seu livro Dos delitos e daspenas. Tendo o contratualismo como base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como pressu- postos, Beccaria faz uma defesa da coexistência, do Estado sem conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e Rousseau, com todas as suas nuances. A pena, aqui, se contrapõe ao sacrifício da liberdade. O juiz deverá subordinar-se à lei, e não ao soberano. A ideia de dano social e de defesa social (incólumes até os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria. É Foucault quem aponta a crítica das Luzes ao modelo inquisitorial através dos conceitos de oficialidade, imparcialidade, presteza e publicidade. O utilitarisrno vai propor utilidade e eficiên- cia. As codificações deverão ser limitadoras e fundamentadoras, o castigo vai ser racionalizado e o objetivo não é vingar, nem punir menos, mas punir melhor. Bentham será o grande intelectual orgâ- nico do poder punitivo burguês, militante em várias áreas do co- nhecimento, aplicando o industrialismo à prisão e ao castigo. O Panopticurn, analisado por Foucault, seria uma espécie de sím.bolo máximo dessa maneira de pensar. " Mais adiante, em 1859, Carrara vai trabalhar com a ideia de que o delito não é um ente de fato, mas um ente jurídico, caracteri- zado pela "infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente dano- so". Talvez a ideia mais importante, que viria a ser desconstruída pelo positivismo, fosse aquela em que a definição do delito seria o limite e o fundamento para o legislador. 36 Nessa visão da questão criminal, então, o objeto seria o cri- me, e não o criminoso. A questão criminal seria atravessada pela ideia de livre-arbítrio e pelo consenso artificiosamente conduzido pelo contrato social. A delimitação do crime pela definição do deli- to seria enfim uma desnaturalização e uma politização só possível 36 CAIU~RA, Francesco. Programma dei Corso di Diritto Crimina/e. §§ 33, 36, 53 e passim. 39 I I I; - seriam transportados, além dos seus limites, nas revoluções peri- féricas e mágicas, como a do Haiti, que tanto medo propagou entre os senhores brancos das Américas. Para Foucault, os séculos XVII e XVIII, a partir da estratégia epistemológica da Enrydopedie e das demandas do capital, vão pro- duzir a tecnologia disciplinar: técnicas e dispositivos de poder, centrados no corpo do homem, para enquadrá-lo e hierarquizá-lo. No século XVIII, Foucault aponta a emergência de uma outra técnologia de poder dirigida ao homem espécie, a biopolítica. Esse controle, agora demográfico, dirige-se às populações, às multidões que deverão ser vigiadas, treinadas e punidas. Não podemos deixar de imaginar, na nossa margem, que, entre os séculos XVI e XIX, o processo civilizatório empreendeu o grande genocidio colonizador. O capital começava a classificar povos inteiros, de acordo com. a sua incorporação periférica. Esse liberalismo "disciplinador" na "nossa margem convivia com a truculência escravocrata e o extermí- nio das civilizações indígenas. Fica a questão: seria o liberalismo uma atualização requintada da Inquisição em confortável convivência com o absolutismo? A objetificação do corpo do herege reaparece- ria na incapacidade das raças, classificadas na base inferior da ordem mercantil? A literatura de Alejo Carpentier empreende essa discus- " são para a periferia do capitalismo em pelo menos três romances: No reino desse mundo, O Sét'u/o das LuzeS' e Passos perdidos. Voltando às marcas do liberalismo no mundo do direito, pen- semos naquilo que Alessandro Baratta denominou de Escola Clás- sica. Seus principais expoentes seriam Bentham, na Inglaterra, Feuerbach, na Alemanha, e Beccaria, na Itália. O direito penal seria um instrumento de defesa da sociedade, seu limite, sua necessidade e utilidade, já que nesse momento não se trabalhava com a ideia de que a pena fosse corretiva. O principio da legalidade vai ser a linha de força do iluminismo contra os excessos punitivos do .Anaen Re- gime. Afinal, a Revolução Francesa começa com a queda da Bastilha, a masmorra absolutista. Foi o Marquês deBeccaria que em 1764 - nessa primeira edi- ção, sem subscrever sua obra - produziu a primeira exposição glo- 38 bal e articulada entre política criminal, direito penal e processo pe- nal, em seu livro Dos delitos e daspenas. Tendo o contratualismo como base ideológica, e o contrato social e o utilitarismo como pressu- postos, Beccaria faz uma defesa da coexistência, do Estado sem conflito, presente na maneira de pensar de Hobbes, Locke e Rousseau, com todas as suas nuances. A pena, aqui, se contrapõe ao sacrifício da liberdade. O juiz deverá subordinar-se à lei, e não ao soberano. A ideia de dano social e de defesa social (incólumes até os dias de hoje) são elementos fundamentais dessa teoria. É Foucault quem aponta a crítica das Luzes ao modelo inquisitorial através dos conceitos de oficialidade, imparcialidade, presteza e publicidade. O utilitarisrno vai propor utilidade e eficiên- cia. As codificações deverão ser limitadoras e fundamentadoras, o castigo vai ser racionalizado e o objetivo não é vingar, nem punir menos, mas punir melhor. Bentham será o grande intelectual orgâ- nico do poder punitivo burguês, militante em várias áreas do co- nhecimento, aplicando o industrialismo à prisão e ao castigo. O Panopticurn, analisado por Foucault, seria uma espécie de sím.bolo máximo dessa maneira de pensar. " Mais adiante, em 1859, Carrara vai trabalhar com a ideia de que o delito não é um ente de fato, mas um ente jurídico, caracteri- zado pela "infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente dano- so". Talvez a ideia mais importante, que viria a ser desconstruída pelo positivismo, fosse aquela em que a definição do delito seria o limite e o fundamento para o legislador. 36 Nessa visão da questão criminal, então, o objeto seria o cri- me, e não o criminoso. A questão criminal seria atravessada pela ideia de livre-arbítrio e pelo consenso artificiosamente conduzido pelo contrato social. A delimitação do crime pela definição do deli- to seria enfim uma desnaturalização e uma politização só possível 36 CAIU~RA, Francesco. Programma dei Corso di Diritto Crimina/e. §§ 33, 36, 53 e passim. 39 pela compreensão das necessidades de ordem da passagem do mercantilismo absolutista para os engenhos urbanos da Revolução Industrial. A atitude critica, de toda maneira, seria para relegitimar o poder punitivo. E, em se tratando da história das ideias na ques- tão criminal, aí está o grande eixo: teorias legitimantes ou deslegitimantes da pena. Afinal de contas, essa racionalização, esse eficientisrno utilitarista, acabou por produzir o que Foucault deno- .minou de "o grande internamento" .. 40 CAPÍTULO IV POSITIVrSMOS o positivismo é uma grande permanência no pensamento social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia ou no direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, cons- titui-se numa cultura. Como veremos mais adiante, ele representa algumas rupturas na questão criminal pensada pelos liberais iluministas, No entanto, também representa uma atualização, um mntinuum e até uma sofisticação dos esquemas classificató ri os, hierarquizantes, produzidos pela colonização do mundo pelo capi- tal. Na República brasileira, elerepresentou uma vanguarda laicizante naquilo que Gizlene N eder denominou de liberalismo radical, na contramão das oligarquias associadas ao poder da Igreja Católica." À esquerda e à direita encontram-se positivismos. Uma das principais liçõesdeAnitua foi compreender o positivismo como uma ideologia surgida do medo das revoluções populares, dirigidas à desqualificação da ideia de igualdade.As classificações hierarquizan tes serviam para ordenar os problemas locais (pobres e indesejáveis) e os problemas gerais (nações e culturas periféricas). Pensamento do século XIX, só poderia surgir do grande internamente, Todo o movimento que descrevemos brevemente no capítulo anterior fez com que o siste- ma penal aparecesse como sistema.É nesse momento histórico que a prisão converteu-se na pena mais importante do mundo ocidental. A revolução industrial, a todo vapor, demandava a exploração intensa da mão de obra. A prisão, a partir do modelo das casas de correção, é o dispositivo disciplinador subalterno à fábrica, como diriam Melossi e Pavarini." A prisão e a policia se instituem, se 37 NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico eOrdem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995. 38 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as ~rigens do sistema penjtenciário (séculos Xv7-XIX).Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologiajRevan, 2006. 41 pela compreensão das necessidades de ordem da passagem do mercantilismo absolutista para os engenhos urbanos da Revolução Industrial. A atitude critica, de toda maneira, seria para relegitimar o poder punitivo. E, em se tratando da história das ideias na ques- tão criminal, aí está o grande eixo: teorias legitimantes ou deslegitimantes da pena. Afinal de contas, essa racionalização, esse eficientisrno utilitarista, acabou por produzir o que Foucault deno- .minou de "o grande internamento" .. 40 CAPÍTULO IV POSITIVrSMOS o positivismo é uma grande permanência no pensamento social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia ou no direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, cons- titui-se numa cultura. Como veremos mais adiante, ele representa algumas rupturas na questão criminal pensada pelos liberais iluministas, No entanto, também representa uma atualização, um mntinuum e até uma sofisticação dos esquemas classificató ri os, hierarquizantes, produzidos pela colonização do mundo pelo capi- tal. Na República brasileira, elerepresentou uma vanguarda laicizante naquilo que Gizlene N eder denominou de liberalismo radical, na contramão das oligarquias associadas ao poder da Igreja Católica." À esquerda e à direita encontram-se positivismos. Uma das principais liçõesdeAnitua foi compreender o positivismo como uma ideologia surgida do medo das revoluções populares, dirigidas à desqualificação da ideia de igualdade.As classificações hierarquizan tes serviam para ordenar os problemas locais (pobres e indesejáveis) e os problemas gerais (nações e culturas periféricas). Pensamento do século XIX, só poderia surgir do grande internamente, Todo o movimento que descrevemos brevemente no capítulo anterior fez com que o siste- ma penal aparecesse como sistema.É nesse momento histórico que a prisão converteu-se na pena mais importante do mundo ocidental. A revolução industrial, a todo vapor, demandava a exploração intensa da mão de obra. A prisão, a partir do modelo das casas de correção, é o dispositivo disciplinador subalterno à fábrica, como diriam Melossi e Pavarini." A prisão e a policia se instituem, se 37 NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico eOrdem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995. 38 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as ~rigens do sistema penjtenciário (séculos Xv7-XIX).Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologiajRevan, 2006. 41 constituem para o controle punitivo da mão de obra, contra as movimentações, sedições e revoltas populares. A própria ideia de policia surge como policia médica, na perspectiva biopolitica de uma governabilidade das populações, que vai engendrar o higienismo. A concentração de pobres na cidade vai ser lida por sua patologização, pelas pretensões corretivas e curativas. O controle punitivo vai se estender da prevenção às reabilitações. O ideal reabilitador vai se utilizar do trabalho como medidaressocializadora. Os tratamentos vão dar conta dos seres humanos recuperáveis e tratar de neutrali- zar os irrecuperáveis, A humanidade divide-se agora entre os nor- mais e os anormais, a loucura e o crime serão alvo de terapêuticas sociais. Se pensarmos que, hoje, a justiça terapêutica constitui-se em "novidade" para a questãodas drogas, perceberemos quão pro- fundas são as permanências históricas do positivismo. Da caligrafia à criminologia, o controle social das populações se dará através das estratégias disciplinares. Se o racismo foi uma invenção da colonização, segundo Foucault," a partir do século XIX ele vira discurso científico. As teorias de Darwin, que em 1830 buscavam o elo perdido em nosso continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua trans- posição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o evolucionismo social. O conceito de degenerescência é furidarnen- tal para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar "natural- mente" os andares inferiores na evolução humana. Entre 1812 e 1819, a frenologia de Gall e Spurtzheim já tinha como objeto de estudo o "espírito" localizado no cérebro. Em seu afã de observar, medir e comparar crânios, eles buscavam localizar as funções físicas no cérebro, bem no paradigma metodológico ins- taurado pela Enrydopedie. Glauber Rocha nos mostrou as cabeças cortadas que Tunga exporia na pirâmide do Louvre para retratar as Luzes. Gall pesquisou a "anatomia" do centro da razão durante 20 anos, usando muitas cabeças, buscando a comprovação da superio- ridade da raça branca caucásica. Anitua expõe as 27 faóuldadeJ' en- 39 FOUCAUL1: Michel. Em Difesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, '1999. 42 contradas por Gall em suas pesquisas: amor físico, amizade, defesa, astúcia etc. As deficiências cerebrais povoavam o sul da Europa, os animais e o resto do mundo. Determinadas áreas das neurociências retomam hoje, nesses tempos difíceis, a tarefa fundamental para o capital de naturalizar o crime e o criminoso. Na frenologia (como em certa medida nas neurociências) a delinquêmia seria determinada biologicamente. Nesse ponto ela foi precursora para a passagem do objeto da criminologia. Se o delito era o centro das atenções no pensamento liberal, o objeto q1,lese impõe agora é o delinquente. As ciências naturais ajudariam a de- tectar e corrigir os anormais. Esse grande discurso contra o igualitarismo se baseava na demonstração científica das desigualda- des. E é óbvio que os incorrigíveis, os de natureza irrecuperável, iriam provocar aumentos na demanda por pena, que se transforma- rão em penas indeterminadas pelas políticas criminais de inspiração positivista. Em 1823, surge a sociedade frenológica na Inglaterra, em 1832, na França. Spurtzheim vai para os Estados Unidos prestar seus ser- viços para a construção do apartheid estadunidense, abrindo espa- ço para novos trabalhos como os de Sarnuel Morton (CraniaAmeri- cana, 1839, e Breves comentários sobre as diferenf'Clsdas raf"Clshumanas, em 1842)-10ou os de J osiah Clark Nolt, que em seu Dar lif'Õerde Histõria Natural sobre as raf"ClSnegraJ' e caucásicas legitimava a ambiência racista -de que o escravisrno e o pós-escravisrno necessitavam na América do Norte. A ideia do criminoso nato desenvolvida mais tarde por Lombroso se nutre dessa ambiência científica e politica. A fisiognomia do suíço Johann Kaspar Lavater buscava na análise dos rostos a identificação da alma. É óbvio que o impressionismo da superfície e da aparência vai aguçar e solidificar os preconceitos. No nosso admirável mundo novo, essa técnica tem sido explicitamente utilizada na segurança dos aeroportos. Em 1855, foi instalada a primeira cátedra de antropologia física de Paris. N es- se mesmo período,Joseph de Gobineau assessorava o Império bra- 40 Cf. ANlTUi\, op. cit., pp. 270 ss, 43 constituem para o controle punitivo da mão de obra, contra as movimentações, sedições e revoltas populares. A própria ideia de policia surge como policia médica, na perspectiva biopolitica de uma governabilidade das populações, que vai engendrar o higienismo. A concentração de pobres na cidade vai ser lida por sua patologização, pelas pretensões corretivas e curativas. O controle punitivo vai se estender da prevenção às reabilitações. O ideal reabilitador vai se utilizar do trabalho como medidaressocializadora. Os tratamentos vão dar conta dos seres humanos recuperáveis e tratar de neutrali- zar os irrecuperáveis, A humanidade divide-se agora entre os nor- mais e os anormais, a loucura e o crime serão alvo de terapêuticas sociais. Se pensarmos que, hoje, a justiça terapêutica constitui-se em "novidade" para a questão das drogas, perceberemos quão pro- fundas são as permanências históricas do positivismo. Da caligrafia à criminologia, o controle social das populações se dará através das estratégias disciplinares. Se o racismo foi uma invenção da colonização, segundo Foucault," a partir do século XIX ele vira discurso científico. As teorias de Darwin, que em 1830 buscavam o elo perdido em nosso continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua trans- posição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o evolucionismo social. O conceito de degenerescência é furidarnen- tal para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar "natural- mente" os andares inferiores na evolução humana. Entre 1812 e 1819, a frenologia de Gall e Spurtzheim já tinha como objeto de estudo o "espírito" localizado no cérebro. Em seu afã de observar, medir e comparar crânios, eles buscavam localizar as funções físicas no cérebro, bem no paradigma metodológico ins- taurado pela Enrydopedie. Glauber Rocha nos mostrou as cabeças cortadas que Tunga exporia na pirâmide do Louvre para retratar as Luzes. Gall pesquisou a "anatomia" do centro da razão durante 20 anos, usando muitas cabeças, buscando a comprovação da superio- ridade da raça branca caucásica. Anitua expõe as 27 faóuldadeJ' en- 39 FOUCAUL1: Michel. Em Difesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, '1999. 42 contradas por Gall em suas pesquisas: amor físico, amizade, defesa, astúcia etc. As deficiências cerebrais povoavam o sul da Europa, os animais e o resto do mundo. Determinadas áreas das neurociências retomam hoje, nesses tempos difíceis, a tarefa fundamental para o capital de naturalizar o crime e o criminoso. Na frenologia (como em certa medida nas neurociências) a delinquêmia seria determinada biologicamente. Nesse ponto ela foi precursora para a passagem do objeto da criminologia. Se o delito era o centro das atenções no pensamento liberal, o objeto q1,lese impõe agora é o delinquente. As ciências naturais ajudariam a de- tectar e corrigir os anormais. Esse grande discurso contra o igualitarismo se baseava na demonstração científica das desigualda- des. E é óbvio que os incorrigíveis, os de natureza irrecuperável, iriam provocar aumentos na demanda por pena, que se transforma- rão em penas indeterminadas pelas políticas criminais de inspiração positivista. Em 1823, surge a sociedade frenológica na Inglaterra, em 1832, na França. Spurtzheim vai para os Estados Unidos prestar seus ser- viços para a construção do apartheid estadunidense, abrindo espa- ço para novos trabalhos como os de Sarnuel Morton (CraniaAmeri- cana, 1839, e Breves comentários sobre as diferenf'Clsdas raf"Clshumanas, em 1842)-10ou os de J osiah Clark Nolt, que em seu Dar lif'Õerde Histõria Natural sobre as raf"ClSnegraJ' e caucásicas legitimava a ambiência racista -de que o escravisrno e o pós-escravisrno necessitavam na América do Norte. A ideia do criminoso nato desenvolvida mais tarde por Lombroso se nutre dessa ambiência científica e politica. A fisiognomia do suíço Johann Kaspar Lavater buscava na análise dos rostos a identificação da alma. É óbvio que o impressionismo da superfície e da aparência vai aguçar e solidificar os preconceitos. No nosso admirável mundo novo, essa técnica tem sido explicitamente utilizada na segurança dos aeroportos. Em 1855, foi instalada a primeira cátedra de antropologia física de Paris. N es- se mesmo período,Joseph de Gobineau assessorava o Império bra- 40 Cf. ANlTUi\, op. cit., pp. 270 ss, 43 sileiropat"auma concepção eugenista da população brasileira. Efi- caZparao medo branco, "esse discurso do século XIX permitiria que,naviradapara o XX, o ex-escravo brasileiro fosse transforma-do deobjeto de trabalho em objeto de ciência'L?' Enfim, esse saber constituiu-se a serviço da colonização, do escravismoe da incorporação periférica ao processo de acumula- ção docapital.Ao contrário do liberalismo das revoluções burgue- sas,a ciênciabuscava a expansão e a legitimação do poder punitivo contra os perigos do proletariado e do lumpen. Desses discursos científicossurgiram. as propostas de eliminação de Laponge e do arianismo de Charnberlain. Os conceitos de degenerescência, atavismoe eugenia justificavam os genoddios. Zaffaronl sempre nos lembraq';le o genoddio é com frequência precedido de um discursolegitimante da eliminação. É aíque se funda a criminologia como disciplina, como "ciên- cia".Essesaber se fundou na observação e medição dos encarcera- dos pelogrande internamento. O século dos manicômios eratarn- bémo séculodas prisões e dos asilos.A criminologia transforma-se num discursoautonomizado do jurídico, despolitizado e agora ge- ridopelosaber/poder médico. Como na Inquisição, o "criminoso" . será objetificado,agora, com o deslocamento do religioso para o científico,no combate ao' mal que ameaça. A criminologia seguirá seu percursoacumulando e atualizando métodos. ' AlessandroBaratta entende a escola positivista como aquela que produza explicação patológica da criminalidade.P Essas teori- as patologizantestrabalham as características biopsicológicas dos "criminosos";a humanidade passa a sofrer um grande corte entre normaise anormais. Afinal, as elassificações são operações poli ti- cas, ''mat'hineJCleguerre': instrumentos de conquista geopolitica para o processodeacumulação do capital>~~se deterrninisrno biológico 41 BATISTA,Vera Malaguti, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história" cit., p. 158. 42 Cf. BARAITA, Alessandro, Criminologia critica e crítim do direito penal, cit.,pp. 38 SS. 44 nega e se contrapõe a um dos pilares do iluminismo jurídico, o conceito de livre-arbítrio. A novidade metodológica seria o caráter científico; a individualização dos sinais àntropológicos a partir da observação dos indivíduos nas instituições totais produzidas pelo grande internamento. O objeto desloca-se do delito para o delinquente, e a delinquênt"ia tem causas individuais de terminantes, atravessadas pelo conceito de degenerm'fJfUia. Esse deterrninismo pressupõe práti- cas para sua modificação ou correção; surgem as estratégias do correcionalismo, Talvez uma das principais permanências dessa zacionalidade positivista esteja no paradigma etiológico, nessa ma- neira de pensar através das causas, estabelecendo uma mecanicidade organicista e sem saída. Contra o conceito abstrato de indivíduo surge um complexo de causas biopsicológicas. Baratta aponta três vertentes europeias dessa criminologia inaugural: Gabriel Tarde na Escola Sociológica francesa, von Liszt na Escola Social alemã e Lornbroso, Ferri e Garofalo da Escola Positiva na Itália. O livro fundacional dessa corrente seria O homem de/inquente, escrito por Lornbroso em 1876. Através de mensurações e classificações realizadas com a população encarcerada nas rela- ções entre as testas, os narizes, queixos, lidas hoje até anedoticamente, o médico italiano inaugura a tautologia do laboratório prisional: a causalidade do comportamento criminal é atribuída à própria des- crição das características físicas dos pobres e indesejáveis conduzi- dos às instituições totais de seu tempo. _ No positivismo, o delito é um ente natural (paradigma-atuali- zado pelas neurociências e suas publicações apologéticas). O determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabili- dade moral. O importante é «estudar" o autor do delito e classificâ-lo, já que o delito aparece aqui como sintoma da sua personalidade pato- lógica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência. Se o liberalismo revolucionário tratava de limitar o poder punitivo absolutista, aqui a pena encontrará um caudal de razões para expan- dir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de características curativas, reeducativas, ressocializadoras, as famigeradas ideologias "re", A natureza tTÍmina/ fará com que elas também se expandam tem- 45 sileiropat"auma concepção eugenista da população brasileira. Efi- caZparao medo branco, "esse discurso do século XIX permitiria que,naviradapara o XX, o ex-escravo brasileiro fosse transforma- do deobjeto de trabalho em objeto de ciência'L?' Enfim, esse saber constituiu-se a serviço da colonização, do escravismoe da incorporação periférica ao processo de acumula- ção docapital.Ao contrário do liberalismo das revoluções burgue- sas,a ciênciabuscava a expansão e a legitimação do poder punitivo contra os perigos do proletariado e do lumpen. Desses discursos científicossurgiram. as propostas de eliminação de Laponge e do arianismo de Charnberlain. Os conceitos de degenerescência, atavismoe eugenia justificavam os genoddios. Zaffaronl sempre nos lembraq';le o genoddio é com frequência precedido de um discursolegitimante da eliminação. É aíque se funda a criminologia como disciplina, como "ciên- cia".Essesaber se fundou na observação e medição dos encarcera- dos pelogrande internamento. O século dos manicômios eratarn- bémo séculodas prisões e dos asilos.A criminologia transforma-se num discursoautonomizado do jurídico, despolitizado e agora ge- ridopelosaber/poder médico. Como na Inquisição, o "criminoso" . será objetificado,agora, com o deslocamento do religioso para o científico,no combate ao' mal que ameaça. A criminologia seguirá seu percursoacumulando e atualizando métodos. ' AlessandroBaratta entende a escola positivista como aquela que produza explicação patológica da criminalidade.P Essas teori- as patologizantestrabalham as características biopsicológicas dos "criminosos";a humanidade passa a sofrer um grande corte entre normaise anormais. Afinal, as elassificações são operações poli ti- cas, ''mat'hineJCleguerre': instrumentos de conquista geopolitica para o processodeacumulação do capital>~~se deterrninisrno biológico 41 BATISTA,Vera Malaguti, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história" cit., p. 158. 42 Cf. BARAITA, Alessandro, Criminologia critica e crítim do direito penal, cit.,pp. 38 SS. 44 nega e se contrapõe a um dos pilares do iluminismo jurídico, o conceito de livre-arbítrio. A novidade metodológica seria o caráter científico; a individualização dos sinais àntropológicos a partir da observação dos indivíduos nas instituições totais produzidas pelo grande internamento. O objeto desloca-se do delito para o delinquente, e a delinquênt"ia tem causas individuais de terminantes, atravessadas pelo conceito de degenerm'fJfUia. Esse deterrninismo pressupõe práti- cas para sua modificação ou correção; surgem as estratégias do correcionalismo, Talvez uma das principais permanências dessa zacionalidade positivista esteja no paradigma etiológico, nessa ma- neira de pensar através das causas, estabelecendo uma mecanicidade organicista e sem saída. Contra o conceito abstrato de indivíduo surge um complexo de causas biopsicológicas. Baratta aponta três vertentes europeias dessa criminologia inaugural: Gabriel Tarde na Escola Sociológica francesa, von Liszt na Escola Social alemã e Lornbroso, Ferri e Garofalo da Escola Positiva na Itália. O livro fundacional dessa corrente seria O homem de/inquente, escrito por Lornbroso em 1876. Através de mensurações e classificações realizadas com a população encarcerada nas rela- ções entre as testas, os narizes, queixos, lidas hoje até anedoticamente, o médico italiano inaugura a tautologia do laboratório prisional: a causalidade do comportamento criminal é atribuída à própria des- crição das características físicas dos pobres e indesejáveis conduzi- dos às instituições totais de seu tempo. _ No positivismo, o delito é um ente natural (paradigma-atuali- zado pelas neurociências e suas publicações apologéticas). O determinismo biológico se contrapõe à ideia liberal de responsabili- dade moral. O importante é «estudar" o autor do delitoe classificâ-lo, já que o delito aparece aqui como sintoma da sua personalidade pato- lógica, causada pelos mesmos fatores que produzem a degenerescência. Se o liberalismo revolucionário tratava de limitar o poder punitivo absolutista, aqui a pena encontrará um caudal de razões para expan- dir-se; as estratégias correcionalistas se revestirão de características curativas, reeducativas, ressocializadoras, as famigeradas ideologias "re", A natureza tTÍmina/ fará com que elas também se expandam tem- 45 poralmente, voltem a ser indeterrninadas. Afinal, o fenômeno crimi- nal seria um dado ontológico pré-constituido, Apesar das rupturas apresentadas com relação ao pensamento liberal que o antecedeu, o positivisrno também aposta na noção da pena como defesa social, numa visão totalizante da sociedade, abstrata e a-histórica. Raúl Zaffaroni nos fala da projeção da criminologia positivista: "com fundamentos ou discursos parcialmente diversos, generalizou-se um estereótipo que se estendeu pelo mundo central a partir de uma perspectiva puramente etiológica, que teve um grande sentido racista e que foi incorporando matizes plurifatoriais, sem nunca questionar a legi- timidade mais ou menos natural da seletividade do sistema penal".43 A recepção dessas ideias na nossa margem latino-americana foi um "assombroso transplante't.t" como diria Roberto Bergalli. Ele analisa histórica e politicamente a conjuntura dessa recepção e nos remete a uma pergunta básica: por que interiorizarnos tão pro- fundamente uma ideologia tão destruidora de nossos povos, de nossa cultura? Como nos deixamos aprisionar tão intensamente por um quadro teórico que nos conduziu a nos constituirmos em território degredo, campos de concentração, zonas detruculência e extermí- nio sem limite? O positivismo atualizou a configuração da América Latina em gigantest'Cl t"nstituifiio'de seque.ftro;45 concentração de povos "degenerados" e indesejáveis: africanos, índios, judeus, mouros e criminosos natos da Europa. Máximo Sozzo analisa o nascimento da criminologia na Amé- rica Latina como uma colossal tradução do positivismo, uma im- portação cultural que configuraria racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal." 43 ZAFFARONI,EugenioRaúLCrimin%gia: aproximación desde un margen. Bogotá: Ternis,1988, p. 169. 44 BERGALLI,Robertoet a!. EI Pensamiento Critico y Ia Criminólogía: si pensamiento triminolólico. Bogotá:Temis, 1983. 45 ZAFFARONI,EugenioRaúLEm Busca das Penas Perdidas.RiodeJaneiro:Revan,1991. 46 CESOZZO,Máximo."Tradutoretraditore",Tradicción,importanciónculturale históriadeipresentedeIacriminología enAméricaLatina.In: Cuadernos deDoctfi.nay JusrisprudenciaPenal. AnoVII, n°13. BuenosAires: Ad.Hoc.VilelaEditor,2006. I 46 Rosa Dei Olmo trabalhou como ninguém a ideia de controle social dos "resistentes à disciplina do sistema" na criminologia lati- no-americana. O positivismo aparece na esteira da difusão ideoló- gica dos países hegemônicos. Ela relaciona o positivismo italiano e os primeiros esforços latino-americanos surgidos simultaneamente na Argentina, no Brasil e no México." LoIa Aniyar de Castro denuncia ametodologia positivista como fundamental contribuição às presunções de "neutralidade científi- ca" na criminologia, pretendendo descobrir "leis gerais, que defini- riam a realidade do mundo físico e social'";" produzindo um parcelamento da realidade, já que o seu objeto de estudo é apenas a realidade oficial. O importante é compreender como essa grande tradução, denunciada por Sozzo, produziu uma matriz discursiva comum, uma identidade, que gerou não só um determinado olhar sobre a ques- tão criminal, mas também uma determinada polícia e um determi- nado projeto penitenciário." Ou seja, o positivisrno configurou" modelou o poder punitivo e suas racionalidades, programas e tecnologias governamentais na América Latina. Nina Rodrigues funda não só a criminologia, como amedici- na-legal e a antropologia no Brasil num processo profundamen te analisado por .Mariza Correa." Raúl Zaffaroni sempre se pergunta como a tradução de Lombroso pode florescer tão intensamente na Bahia africana de Nina Rodrigues. Nina Rodrigues escreveu um artigo intitulado "Os negros maometanos no Brasil",no Jornal do Commercio do Rio deJanei- ro de 2 de novembro de 19.00, em que se refere à rebelião es- 47 OLMO,RosaDeI.A América Latina e sua criminología. Rio deJaneiro:Revan/ InstitutoCariocade criminologia,2004. 48 CASTRO,LoIaAniyarde.Crimin%lia da Reação Social RiodeJaneiro:Forense, 1983, p. 3. 49 CE Projeto do Código Penitenciário da fupúb/ica, elaboradoem 1933 por Candido Mendes,LemosdeBritoeHeitorCarrilho. 50 CORREA,Mariza.As Ilusões da Liberdade. BragançaPaulista:Edusf,1998. 47 poralmente, voltem a ser indeterrninadas. Afinal, o fenômeno crimi- nal seria um dado ontológico pré-constituido, Apesar das rupturas apresentadas com relação ao pensamento liberal que o antecedeu, o positivisrno também aposta na noção da pena como defesa social, numa visão totalizante da sociedade, abstrata e a-histórica. Raúl Zaffaroni nos fala da projeção da criminologia positivista: "com fundamentos ou discursos parcialmente diversos, generalizou-se um estereótipo que se estendeu pelo mundo central a partir de uma perspectiva puramente etiológica, que teve um grande sentido racista e que foi incorporando matizes plurifatoriais, sem nunca questionar a legi- timidade mais ou menos natural da seletividade do sistema penal".43 A recepção dessas ideias na nossa margem latino-americana foi um "assombroso transplante't.t" como diria Roberto Bergalli. Ele analisa histórica e politicamente a conjuntura dessa recepção e nos remete a uma pergunta básica: por que interiorizarnos tão pro- fundamente uma ideologia tão destruidora de nossos povos, de nossa cultura? Como nos deixamos aprisionar tão intensamente por um quadro teórico que nos conduziu a nos constituirmos em território degredo, campos de concentração, zonas detruculência e extermí- nio sem limite? O positivismo atualizou a configuração da América Latina em gigantest'Cl t"nstituifiio'de seque.ftro;45 concentração de povos "degenerados" e indesejáveis: africanos, índios, judeus, mouros e criminosos natos da Europa. Máximo Sozzo analisa o nascimento da criminologia na Amé- rica Latina como uma colossal tradução do positivismo, uma im- portação cultural que configuraria racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal." 43 ZAFFARONI,EugenioRaúLCrimin%gia: aproximación desde un margen. Bogotá: Ternis,1988, p. 169. 44 BERGALLI,Robertoet a!. EI Pensamiento Critico y Ia Criminólogía: si pensamiento triminolólico. Bogotá:Temis, 1983. 45 ZAFFARONI,EugenioRaúLEm Busca das Penas Perdidas.RiodeJaneiro:Revan,1991. 46 CESOZZO,Máximo."Tradutoretraditore",Tradicción,importanciónculturale históriadeipresentedeIacriminología enAméricaLatina.In: Cuadernos deDoctfi.nay JusrisprudenciaPenal. AnoVII, n°13. BuenosAires: Ad.Hoc.VilelaEditor,2006. I 46 Rosa Dei Olmo trabalhou como ninguém a ideia de controle social dos "resistentes à disciplina do sistema" na criminologia lati- no-americana. O positivismo aparece na esteira da difusão ideoló- gica dos países hegemônicos. Ela relaciona o positivismo italiano e os primeiros esforços latino-americanos surgidos simultaneamente na Argentina, no Brasil e no México." LoIa Aniyar de Castro denuncia ametodologia positivista como fundamental contribuição às presunções de "neutralidade científi- ca" na criminologia, pretendendo descobrir "leis gerais, que defini- riam a realidade do mundo físico e social'";" produzindo um parcelamento da realidade, já que o seu objeto de estudo é apenas a realidade oficial. O importante é compreender como essa grande tradução, denunciada por Sozzo, produziu uma matriz discursiva comum, uma identidade, que gerou não só um determinado olhar sobre a ques- tão criminal, mas também uma determinada polícia e um determi- nado projeto penitenciário." Ou seja, o positivisrno configurou" modelou o poder punitivoe suas racionalidades, programas e tecnologias governamentais na América Latina. Nina Rodrigues funda não só a criminologia, como amedici- na-legal e a antropologia no Brasil num processo profundamen te analisado por .Mariza Correa." Raúl Zaffaroni sempre se pergunta como a tradução de Lombroso pode florescer tão intensamente na Bahia africana de Nina Rodrigues. Nina Rodrigues escreveu um artigo intitulado "Os negros maometanos no Brasil",no Jornal do Commercio do Rio deJanei- ro de 2 de novembro de 19.00, em que se refere à rebelião es- 47 OLMO,RosaDeI.A América Latina e sua criminología. Rio deJaneiro:Revan/ InstitutoCariocade criminologia,2004. 48 CASTRO,LoIaAniyarde.Crimin%lia da Reação Social RiodeJaneiro:Forense, 1983, p. 3. 49 CE Projeto do Código Penitenciário da fupúb/ica, elaboradoem 1933 por Candido Mendes,LemosdeBritoeHeitorCarrilho. 50 CORREA,Mariza.As Ilusões da Liberdade. BragançaPaulista:Edusf,1998. 47 crava na Bahia de 1835. O seu surpreendente trabalho revela a profunda ambiguidade da sua produção intelectual: foi ele quem fundou, ao lado da Medicina-Legal e da Antropologia brasilei- ra, a escola positivista, com suas traduções e incorporações do lombrosianismo e do social-darwinisrno. No entanto, tinha uma espécie de curiosidade apaixonada pela vida africana no Brasil. Sua trajetória reflete um pouco essa grande contradição brasi- leira com relação a sua africanidade: perceber intensamente a sua presença e sua força, tratando sempre de dominá-Ia. No seu caso, trabalhando a teoria da hierarquização das raças, es- tigmatizando a "raça negra" para que o :fim da escravidão em si não representasse uma ruptura social. O controle social e a opressão se justificariam então pelo discurso científico." Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentsia e nas práticas sociais e po- líticas brasileiras; ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, disc.riminado e, por fim, criminalizado, Funcionou, e funciona, como um grande catalisador da violência e da desigualdade características do pwcesso de incor- poração da nossa margem ao capitalismo central. Todo brasileiro tem de ler Os sertões, de Euclides da Cunha (e se puder, assistir aos Sertões de Zé Celso Martinez Corrêa). Euclides começa sua viagem pelo Brasil profundo trabalhando com os ins- trumentos racistas do positivismo. Seu 'encontro com a chacina fundacional da República não deixa pedra sobre pedra das etiologias determinantes: . .Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram ~s "seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas; um velho, dois homens 51 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de [aseira: dois tempos de.uma bistâria., cit., pp. 225-226. 48 feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.P Sobre a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro: Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no' relevo de circunvoluções expressivas, as linhas es- senciais do crime e da loucura ...53 Concluamos este capitulo, essa «página infeliz da nossa histó- ria", com Zé Celso Martinez Corrêa: O livro Os sertões foi oprimeiro ataque ao escândalo de dois Brasis desiguais, com a repressão do próprio Estado brasileiro, massa- crando, degolando seupróprio povo. Euclides foi inspirado por todas as línguas de fogo do Espírito Santo. Escrito em todas as línguas, linguagens, ciências,poesias, começou a interpretar atra- vés do crime praticado pela nacionalidade, o próprio Brasil, para nós mesmos brasileiros e para todo mundo.f 52 CUNHA, Euclides da. Os Sertões.São Paulo: Cultrix, 1973, p. 392. 53 CUNHA, ibidem, P: 393. . 54 Cf. CORRÊA, José Celso Martinez, ln: Os Sertões irrigandó gotdando Canudos, programa do espetáculo da Associação Teatro Oficina, Uzyna Uzona, patrocinado pela Petrobras e encenado em Canudos, na Bahia, de 28 de novembro a 2 de dezembro de 2007. 49 crava na Bahia de 1835. O seu surpreendente trabalho revela a profunda ambiguidade da sua produção intelectual: foi ele quem fundou, ao lado da Medicina-Legal e da Antropologia brasilei- ra, a escola positivista, com suas traduções e incorporações do lombrosianismo e do social-darwinisrno. No entanto, tinha uma espécie de curiosidade apaixonada pela vida africana no Brasil. Sua trajetória reflete um pouco essa grande contradição brasi- leira com relação a sua africanidade: perceber intensamente a sua presença e sua força, tratando sempre de dominá-Ia. No seu caso, trabalhando a teoria da hierarquização das raças, es- tigmatizando a "raça negra" para que o :fim da escravidão em si não representasse uma ruptura social. O controle social e a opressão se justificariam então pelo discurso científico." Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentsia e nas práticas sociais e po- líticas brasileiras; ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, disc.riminado e, por fim, criminalizado, Funcionou, e funciona, como um grande catalisador da violência e da desigualdade características do pwcesso de incor- poração da nossa margem ao capitalismo central. Todo brasileiro tem de ler Os sertões, de Euclides da Cunha (e se puder, assistir aos Sertões de Zé Celso Martinez Corrêa). Euclides começa sua viagem pelo Brasil profundo trabalhando com os ins- trumentos racistas do positivismo. Seu 'encontro com a chacina fundacional da República não deixa pedra sobre pedra das etiologias determinantes: . .Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram ~s "seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas; um velho, dois homens 51 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de [aseira: dois tempos de.uma bistâria., cit., pp. 225-226. 48 feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.P Sobre a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro: Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no' relevo de circunvoluções expressivas, as linhas es- senciais do crime e da loucura ...53 Concluamos este capitulo, essa «página infeliz da nossa histó- ria", com Zé Celso Martinez Corrêa: O livro Os sertões foi oprimeiro ataque ao escândalo de dois Brasis desiguais, com a repressão do próprio Estado brasileiro, massa- crando, degolando seupróprio povo. Euclides foi inspirado por todas as línguas de fogo do Espírito Santo. Escrito em todas as línguas, linguagens, ciências,poesias, começou a interpretar atra- vés do crime praticado pela nacionalidade, o próprio Brasil, para nós mesmos brasileiros e para todo mundo.f 52 CUNHA, Euclides da. Os Sertões.São Paulo: Cultrix, 1973, p. 392. 53 CUNHA, ibidem, P: 393. . 54 Cf. CORRÊA, José Celso Martinez, ln: Os Sertões irrigandó gotdando Canudos, programa do espetáculo da Associação Teatro Oficina, Uzyna Uzona, patrocinado pela Petrobras e encenado em Canudos, na Bahia, de 28 de novembro a 2 de dezembro de 2007. 49