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“A POSIÇÃO DOS VALORES EM UM MUNDO DE FATOS” “The Place of Values in a World of Facts” Julio Cesar R. Pereira Resumo: Esse texto pretende, sem entrar em discussões sobre conteúdos éticos específicos da filosofia de Popper, explorar a relação entre Ética e Cosmologia na Filosofia de Karl Popper. Seu objetivo é argumentar que na obra de Popper os valores pressupõem uma moldura de sustentação de ordem cosmológica. Palavras-Chave: Ética. Cosmologia. Indeterminismo. Abstract: This text intend to, without entering into discussions on specific ethical content of Popper‟s philosophy, explores the relationship between ethics and cosmology in the philosophy of Karl Popper. The goal is to discuss, on the Popper‟s work the values assume a mold of sustaining cosmological order. Key-Words: Ethics. Cosmology. Indeterminism. Este texto pretende, sem entrar em discussões sobre conteúdos éticos específicos, demonstrar como na obra de Popper os valores pressupõe uma moldura de ordem cosmológica. É organizado em três partes. Em primeiro lugar mostramos como a Ética pressupõe desde o seu início a liberdade. Em seguida argumentamos como, partindo de Hume e Kant, o determinismo parece conduzir à cisão do ser humano e, finalmente, apontamos a solução popperiana. 1. Prolegômenos à construção de uma Ética Sem grandes pretensões históricas, parece ser lícito afirmar que os homens desde sempre se preocuparam com questões relativas ao certo e ao errado; já em Homero podemos ler, no primeiro canto da Odisséia, afirmada a liberdade dos homens por Zeus: “Ah!, de que maneira os mortais censuram os deuses! A dar-lhes ouvidos, de nós provêm todos os males, quando afinal, por sua insensatez, e contra a vontade do destino, são eles os autores de suas desgraças.” (HOMERO, 1979, p. 10). Isso nada mais é do que postular que tanto o mal quanto o bem são de atribuição primordial dos homens, Doutorando em Filosofia pela PUCRS. Contato: virtujulio@hotmail.com “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 2 tendo os deuses tão-somente o papel de interferir no que se refere à distribuição de castigos e recompensas. Tal distribuição, pelo menos no que se refere aos deuses, parece ser equilibrada e retributiva 1 ; todavia, se assim o é, como pode o nobre e piedoso Ulisses padecer dos males que o afligem? “Acaso não te comprazias nos sacrifícios que Ulisses te oferecia, junto às naus dos Argivos, na vasta planície de Tróade? Por que motivo, pois, ó Zeus, te mostras tão irritado contra ele?” (HOMERO, 1979, p. 11). O que Atena cobra de Zeus é a manutenção do equilíbrio, da justa retribuição das ações, sem a qual a distinção entre certo e errado fenece. Cabe reconhecer que os sofistas, baseados na impossibilidade da razão humana descobrir a verdade, terminaram por advogar a relatividade de todas as regras gerais de comportamento; é célebre o aforismo de Protágoras a esse respeito: "O Homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são.". Protágoras, e os Sofistas em geral, inferem a partir daí o relativismo moral: todas as regras seriam nomos, convenções criadas pelos indivíduos com base nos seus objetivos e interesses. Temos, pois, nos Sofistas, o "ceticismo ético" estribado num ceticismo epistemológico que terminou por construir uma democracia que não reconheceu limite em sua legislação. Vejamos como isso se dá a partir do julgamento de Sócrates. Sócrates foi acusado de dois crimes: “Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades novas. Essa a natureza da queixa (...).” (PLATÃO, 1981 a, 24 b-c). Examinemos um pouco mais detidamente essas acusações. Como “corrompia” Sócrates a juventude? A resposta é: “corrompia” conversando com a juventude. Esse diálogo era formal? Dava-se numa Escola? Não! Sócrates “corrompia” a juventude conversando com os jovens que o procuravam para ouvi-lo, o que nos leva a concluir que a democracia ateniense julga lícito legislar não só sobre aquilo que conversavam as pessoas, como também sobre as crenças que os indivíduos têm. E o mais interessante disso tudo é que, em momento algum, Sócrates se insurge contra esse poder sem limites levantando como objeção ser inaceitável um poder que legisle sobre tais temas, o que fica claro no Críton (PLATÃO, 1981 b, 50a - 54e). O tema do diálogo é bem conhecido: tendo sido julgado e 1 O mesmo não parece ocorrer sempre com os homens; cf., por exemplo, os atos de Telêmaco com relação ás escravas que o traíram: HOMERO, 1979, p. 205. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 3 condenado à morte de maneira injusta, deve Sócrates aceitar a sugestão de Críton e fugir do cárcere? O Estado nos diz Sócrates, é virtualmente nosso “pai”. Nele nascemos e nele nos formamos. A polis ateniense, mais do que qualquer outro Estado, é uma democracia direta, isto é, as leis que nela vigoram são fruto da vontade de seus cidadãos. “Sempre julguei boas as leis de Atenas” nos diz Sócrates. “Nunca deixei a cidade, salvo para servi-la como soldado. Nunca tentei alterar as suas leis, apesar de sempre ter sido livre para tanto. Caso tivesse tentado alterá-las e não tivesse obtido êxito e julgasse intolerável viver sob o seu jugo, poderia ter recolhido meus poucos bens e deixado Atenas. Ninguém me impediria disso. Portanto, aprovei essas leis. Como então justificar uma fuga?”. Não pode Sócrates alegar o medo da morte, pois isso é uma sensação subjetiva. Da mesma maneira não pode alegar ter sido condenado de maneira injusta, já que sua condenação resulta de uma lei por ele aprovada e, portanto, negar-se a obedecê- la seria cair em contradição consigo mesmo. Como isso é racionalmente inescapável, negar-se a cumprir seu destino seria proceder de maneira moralmente errada, coisa que nunca devemos fazer. É claro que estamos de acordo que as promessas devem sempre ser cumpridas; o problema é que tal tese decorre, em Sócrates, da idéia de que não existe nenhum limite para o que pode a democracia convencionar como norma, e isso se dá, a nosso juízo, porque a ética é compreendida pelos gregos como um capítulo da política 2 , política essa que tem por objetivo tornar os homens melhores 3 . Donde é pertinente a conclusão de Benjamin Constant: "(...) entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados." (CONSTANT, 1985, p. 11). Como podemos observar, Sócrates ainda não dispõe de uma clara distinção entre o público e o privado, já que reconhece a legitimidade da norma que o condena, porém, Sócrates já dispõe e advoga, ao contrário de Platão, de um dado fundamental: a clara noção da falibilidade de todo o saber. Cabe frisar, entretanto, que a constatação da falibilidade do saber não implica um relativismo no que se refere à verdade, mas tão-somente na posse humana da verdade. Portanto, a discussão não é inviabilizada, já que, se a posse da verdade não 2 Cf. ARISTÓTELES, 1973, 1094 b. 3 Platão, na Alegoria da Caverna, é paradigmático a este respeito. Conferir, PLATÃO, 1981 c, Livro VII, 514a - 517c. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 4 pode ser postulada, é possível refutar a falsidade. Uma segunda observação, igualmente interessante, é que, se ninguém pode postular a posse da verdade, são todos iguais em sua ignorância 4 , o que implica que a discussão entre os homens tem por princípio reconhecer no outro um igual, já que pode ele ser fonte potencial de argumentação e conhecimento; logo, seu argumento deve ser considerado, desde que veiculado partindo da noção de falibilidade dosaber, isto é, todas as posições devem ser toleradas, desde que admitam a convivência no domínio da argumentação racional, sem que se exerça qualquer tipo de violência. A grande questão é que se a liberdade foi reconhecida entre os gregos como o pressuposto básico de qualquer ética, tal reconhecimento os conduziu a elaborar um sistema político que, mesmo quando democrático, não reconhece limites, já que admite a possibilidade de os homens alterarem todas as regras, bem como estendê-las para onde quisessem; ou seja, uma liberdade sem tutela e, portanto, incontrolável. A nosso juízo é justamente por essa razão que Platão se contrapõe à democracia ateniense, e advoga em seu lugar a construção de uma polis que seria o simulacro mundano do macrocosmos das Formas Perfeitas, tendo essas por função não só impor limites, mas, principalmente, fundamentar a ação política enquanto legitimidade ética. Platão detectou um problema grave. Uma liberdade política sem limites cria um “Leviatã Irracional” ao qual nenhum poder humano pode opor-se. Se é inegável, e aí concordamos com Popper, que a solução platônica apenas racionaliza o poder absoluto, também nos parece ser correto afirmar que tal racionalização, ao dotar de previsibilidade e de limites os comportamentos políticos, gera a possibilidade da institucionalização do social sobre bases mais sólidas, porque não sujeitas às vicissitudes e humores de maiorias eventuais. Platão foi o primeiro a se dar conta da necessidade de colocarmos uma “coleira” no Leviatã. Se a coleira por ele proposta não é a mais adequada, já que modernamente configuraria o Totalitarismo, nem por isso podemos deixar de reconhecer que a questão platônica perpassou toda a Filosofia Política da Idade Moderna. Kant, Hobbes, Locke, Rousseau, entre outros, apontam na direção da necessidade da delimitação do poder estatal enquanto legitimidade. Será em Kant que Popper irá buscar essa temática de modo a viabilizar uma ética. 4 Esta é a base da noção moderna de „Tolerância‟ :"O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza." VOLTAIRE, 1978, p. 362-363. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 5 2. Hume e Kant segundo Popper Para Popper, Kant foi, de todos os filósofos, quem melhor percebeu a complexidade que envolve a elaboração do discurso científico moderno. Cabe aqui frisar que, para Popper, quando Kant emprega a expressão „ciência natural‟, ele tem em mente a mecânica de Newton e, “Como quase todos os seus contemporâneos (...), Kant acreditava na verdade da mecânica celestial de Newton. A crença quase universal de que a teoria de Newton tinha que ser verdadeira não só era compreensível como também parecia ser muito bem fundamentada.” 5 . O problema era que Newton julgava ter chegado às suas conclusões a partir de inferências indutivas fundadas na observação e na experiência 6 e, se essas conclusões forem tomadas em conjunção com os resultados de Hume, teremos um enorme problema nas mãos. Com efeito, na Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume distingue entre relações de idéias e questões de fato (HUME, 1973, p. 137); funda a verdade das primeiras no princípio da não-contradição e pergunta-se sobre o fundamento de verdade dos juízos fáticos, uma vez que sua negação não implica contradição ou mesmo ininteligibilidade. Parece, pois, pertinente perguntarmos o que, além da memória (passado) ou sentidos (presente), pode fundar um raciocínio sobre questões de fato: “Todos os raciocínios sobre questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação podemos ultrapassar a evidência de nossa memória e de nossos sentidos.” (HUME, 1973, p. 138). O que pressupõe, como Hume a seguir admite explicitamente, a uniformidade da natureza: “E aqui supomos constantemente que existe uma conexão entre o fato presente e o que dele inferimos. Se não houvesse nada para ligá-los, a inferência seria completamente precária. (...) Porque esses são efeitos da natureza e constituição humana, estreitamente ligados a ela.” (HUME, 1973, p. 138). Portanto, a causalidade é real e o ser humano a ela está ligado. Cabe, portanto, perguntar como chegamos ao conhecimento de tal relação. A resposta de Hume é categórica: 5 POPPER, 1965, p. 185. Albert Einstein é bem categórico quanto a isso: “Antes de Newton não existe nenhum sistema completo de causalidade física capaz de perceber, mesmo de maneira comum, os fatos mais evidentes e mais repetidos do mundo da experiência.” EINSTEIN, 1981, p. 182. 6 No que tange a Filosofia Natural, Newton é categórico: “Nessa filosofia as proposições particulares são inferidas dos fenômenos e, posteriormente, generalizadas por indução.” NEWTON, 2002, p. 155. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 6 Aventurar-me-ei a afirmar, como uma proposição geral que não admite exceção, que o conhecimento dessa relação não é, em caso algum, alcançado por meio de raciocínios a priori, mas origina-se inteiramente na experiência, quando verificamos que certos objetos particulares estão constantemente ligados uns aos outros. (HUME, 1973, p. 138) Para fundamentar a proposição de que somente a experiência pode conectar causa e efeito, Hume argumenta que isso se dá porque o efeito é radicalmente distinto da causa (HUME, 1973, p. 139); se não podemos buscar essa fundamentação nas relações de idéias, só nos resta às questões de fato, o problema é que aí caímos no círculo vicioso: Dissemos que todos os argumentos relativos à existência baseiam-se na relação de causa e efeito; que o nosso conhecimento dessa relação deriva inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais partem da suposição de que o futuro será conforme ao passado. Por conseguinte, tentar provar esta última suposição por meio de argumentos prováveis, ou seja, argumentos relativos à existência é evidentemente girar num círculo vicioso e tomar como assente o próprio ponto que está em debate. (HUME, 1973, p. 142) Não nega Hume que na, vida prática, façamos tais inferências,; porém, se o intelecto não está autorizado a fazê-las, como e por que o faz? “Se o intelecto não é obrigado pelo argumento a dar esse passo, deve ser induzido por algum princípio de igual peso e autoridade: e esse princípio conservará sua influência enquanto a natureza humana permanecer a mesma.” (HUME, 1973, p. 145). Para Hume: ”Esse princípio é o costume ou hábito.” (HUME, 1973, p. 145), um princípio da natureza humana universalmente admitido e, sem dúvida, eficaz. Se não nos basearmos no hábito: (...) a cadeia de toda a inferência não teria nada que a sustentasse, nem poderíamos nós, por meio dela, chegar ao conhecimento de qualquer existência real. (...) como não podeis proceder desse modo até o infinito, deveis terminar em algum fato que esteja presente à vossa memória ou aos vossos sentidos: ou então admitir que vossa crença não tem nenhum fundamento. (HUME, 1973, p. 147) Para Hume, como podemos depreender, a ausência de fundamentação equivaleria à arbitrariedade, o que torna pertinente que venhamos a concluir que a não- arbitrariedade do hábito radicaria em sua eficácia 7 . De acordo com Popper, o problema kantiano começa a se formar exatamente aqui: se a teoria newtoniana difere completamente dos dados de observação, sempre inexatos, imprecisos e específicos, como afirmar a racionalidade científica da mecânica clássica? Como demonstrar que 7 Cf. MONTEIRO, 1984, principalmente p. 96-97. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 7 comNewton havíamos, finalmente, conquistado a episteme? Esse é o problema básico da Crítica da Razão Pura. De acordo com Kant, apenas o sucesso nos permite julgar se um determinado ramo do conhecimento adquiriu a estatura de uma ciência. Para Kant, a Lógica, a Matemática e, de há muito encetaram o correto caminho. Mais recentemente a Física passou a trilhar um caminho adequado, quando finalmente compreendemos que "(...) a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos (...)” (KANT, 1989 b, p. 18, B XIII), ou seja, que devemos determinar a priori as condições a partir das quais os objetos naturais devem ser dados enquanto objetos de experiência. Já a metafísica, a mais antiga de todas as disciplinas, sendo mesmo aquela que nunca deixará de existir, até hoje não pode ser dita uma ciência. Isso se deve ao fato de nunca termos antes tentado proceder a uma inversão à moda de Copérnico, e buscar trabalhar as questões metafísicas a partir da postulação de que não somos nós que devemos nos regular pelos objetos, mas que os objetos é que devem se regular pelas condições que a priori a eles impomos. Quando fazemos isso, chegamos a um resultado um tanto paradoxal, pois teremos de concluir não ser factível ao homem ultrapassar os limites da experiência possível, o que é justamente o objetivo da metafísica, já que todos os objetos que nos são dados pela experiência são contingentes e a razão busca, com todo o direito, para todas as coisas o incondicionado. Este, no entanto, quando buscado na experiência enquanto concebida como coisa em si, nos conduz inevitavelmente a uma contradição, como nos foi demonstrado por David Hume; todavia, tal resultado não se manifestará quando tomarmos a experiência como fenômeno, e transferirmos o incondicionado dos domínios da razão pura para o campo da razão prática. Todavia Kant ressalta que para tanto devemos distinguir entre pensar e conhecer. Os objetos da razão prática podem ser pensados, mas não podem ser conhecidos, pois não podemos determinar sua possibilidade pela experiência. Se não operássemos esta distinção seria forçoso reconhecer que não existe qualquer ética, já que esta pressupõe a liberdade, e a liberdade não existe no domínio dos fenômenos, regido pela causalidade absoluta. Portanto, o problema resultante para a Ética da monumental construção kantiana é enorme: se toda a realidade fenomênica obedece a um rígido mecanicismo, como falar em ética num mundo sem indeterminação? “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 8 A solução apresentada por Kant, como sempre, é genial. A razão pura parte de um fato: a ciência não só existe como apresenta um indiscutível sucesso; mas não só a ciência existe, também a moral existe 8 . Se na razão pura perguntamos sobre as condições de possibilidade de um fato, na razão prática faremos a mesma coisa: quais são as condições de possibilidade do fato moral? Para tanto será necessário que reconheçamos que o homem é simultaneamente fenômeno e coisa em si. A Ética assim deverá poder ser pensada, mas não conhecida; seu domínio não é o do „ser‟, mas sim o do „dever-ser‟. Kant não apenas está aqui sendo coerente com a Crítica da Razão Pura, como também evitando a falácia naturalista. Se na razão teórica o que se discutia eram as pretensões da razão de ir além da experiência possível, agora, na razão prática, o que se buscará é limitar a ambição da razão em ficar no âmbito da experiência como critério de validade das normas morais. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes o Imperativo Categórico é o imperativo da moralidade, parte da Liberdade entendida como a faculdade da razão de dar leis a si mesma (KANT, 1983 c, p. 149). O homem livre, no sentido moral, é aquele que escolhe as leis sob as quais pretende viver, e nesta escolha responde, em primeiro lugar, a sua consciência, que não está sob o domínio dos imperativos hipotéticos, mas, sim, submetida ao imperativo categórico, que em sua segunda formulação enuncia o princípio básico do individualismo liberal: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio." (KANT, 1983 c, p. 135). A autonomia individual é assim o princípio a partir do qual pode ser constituída, enquanto legitimidade, qualquer lei moral, o que tem por conseqüência que não pode nenhuma lei jurídica violar a integridade da liberdade individual, sob pena de se tornar imoral. É este resgate do "Absoluto Humano", compreendido enquanto coisa em si, que vai limitar a arbitrariedade do nomos jurídico-político. O problema é que em Kant a possibilidade da moralidade somente se dá quando distinguimos fenômeno e coisa em si. Nos domínios do fenômeno vige a necessidade 8 Kant, ao rebater algumas críticas dirigidas à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é bem claro quanto a este ponto: “Um crítico, que queria censurar em parte esta obra, conseguiu o seu objetivo melhor do que ele próprio pensava, ao dizer: que ali não se estabeleceu nenhum novo princípio da moralidade, mas apenas uma nova fórmula. Mas, quem é que quereria introduzir um novo princípio de toda a moralidade e, por assim dizer, descobrir esta como se, antes dele, o mundo estivesse totalmente na ignorância ou no erro acerca da natureza do dever?” KANT, 1986 a, citado, nota 1, p. 16, A 14/15. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 9 natural, o que significa que no mundo dos fenômenos não faz qualquer sentido falarmos em „imperativos‟, já que não existe a possibilidade de um comportamento distinto daquele que imediatamente se apresenta. Newton é particularmente contundente nesse ponto: “Não devemos admitir outras causas das coisas naturais senão as que são verdadeiras e suficientes para explicar seu aparecimento. (...) a natureza satisfaz-se com a simplicidade e não exibe a pompa das causas supérfluas.” .Em seguida acrescenta: “(...) a um mesmo efeito natural devemos atribuir, tanto quanto possível, as mesmas causas. Assim é no que concerne à respiração no Homem e nos animais; à queda das pedras na Europa e na América (...).” (NEWTON, 2002, p. 152). Raciocinando dessa forma parece forçoso a Kant concluir que somente pelo fato de o homem também ser uma coisa em si é que a moralidade pode (se) instituir-se. A questão é que a lógica da construção kantiana está estribada, de um lado, nos juízos sintéticos a priori como a única forma de superação do ceticismo humeano e, de outro lado, no determinismo mecanicista newtoniano assumido como paradigma da verdade absoluta. Como reposicionar a questão da moralidade, que tem a liberdade por pressuposto, quando reconhecemos o caráter insustentável dos sintéticos a priori 9 e o caráter hipotético-conjectural da cosmologia newtoniana, sem transformá-la numa discussão meramente lingüística ou mesmo retórica, mas, sim, como uma realidade que habita a cosmologia 10 ? Tal é a tarefa da Ética na perspectiva de Popper. 3. Em busca de um espaço para a Liberdade No O Universo Aberto, Popper propõe, como Kant, formular tanto a questão do conhecimento quanto a questão da liberdade, tendo por pano de fundo um modelo cosmológico. Partindo de uma crítica ao determinismo, busca inserir a indeterminação na própria estrutura da realidade, elaborando uma metafísica realista de cunho indeterminista. 9 A esse respeito, cf., por exemplo, AYER, 1971, principalmente Caps. III-IV. 10 “Minha primeira tese é que toda a filosofia e especialmente toda a “escola filosófica” é capaz de se degenerar na direção de tornar-se indistinta de pseudo-problemas (...) isso é uma conseqüência da crença errônea de que é possível filosofar sem ter sido compelido a tanto por problemassurgidos fora do campo da filosofia – na matemática, por exemplo, ou na cosmologia, na política, religião ou na vida social. Em outras palavras, minha primeira tese é a seguinte. Problemas filosóficos genuínos sempre têm suas raízes em problemas urgentes fora do campo da filosofia e morrem se perdem essas raízes.” POPPER, 1965, p. 72. É nesse sentido que, para Popper, qualquer discussão ética que descure da questão cosmológica tenderá de forma irremediável a se embretar num “atoleiro” lingüístico. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 10 Na ótica de Popper, o determinismo parte da idéia intuitiva de que o mundo é como um filme, onde passado, presente e futuro estão pré-fixados, sendo conhecidos por seu produtor, o criador do mundo. O determinismo “científico” substituiria „Deus‟ por „Natureza‟ e a lei divina pela “lei natural“ 11 ; sua idéia subjacente é que a estrutura do mundo é tal que qualquer acontecimento poderia ser racionalmente previsto, desde que nos fossem dadas antecipadamente, e de forma suficientemente precisa, tanto as condições iniciais, quanto as leis da natureza envolvidas no evento em questão. O determinismo científico pressupõe que possamos esclarecer o que são „condições iniciais suficientemente precisas‟, já que sem esse esclarecimento qualquer falha na previsão poderia ser usada a seu favor, atribuindo essa a um déficit de conhecimento no que tange às condições iniciais. Isso implica que, antes da previsão, sejamos capazes de avaliar se a precisão que desejamos está ou não adequada à precisão das condições iniciais. Tal exigência é denominada por Popper de „Princípio de Determinabilidade‟ (POPPER, 1992, p. 12). Para fins de argumentação, Popper propõe que admitamos ser a física clássica, prima facie, determinista. Raciocinando dessa maneira, o estado do sistema de Newton estaria dado se fossem dadas as posições, massas, velocidades e direções de todas as suas partículas. Como tal conhecimento é obviamente sobre-humano, Laplace introduziu a ficção de um "demônio" capaz deste tipo de determinação em qualquer momento do tempo, o que o tornaria capaz de deduzir por toda a eternidade o sistema do mundo. O demônio trabalharia com condições iniciais e teorias prima facie deterministas, definidas da seguinte forma: Uma teoria física é prima facie determinista se e somente se nos permitir deduzir, a partir de uma descrição matematicamente exata do estado inicial de um sistema físico fechado que é descrito em termos da teoria, a descrição, com qualquer grau de precisão finito estipulado, do estado do sistema em qualquer dado instante futuro do tempo. (POPPER, 1992, p. 31). Apesar de reconhecer não ser possível afirmar este caráter de Newton, nem mesmo de qualquer outra teoria, Popper dará por suposto que a mecânica clássica permitiria uma descrição matematicamente exata das condições iniciais. Partindo daí, coloca a seguinte questão: supondo-se que uma teoria física, prima facie determinista, é 11 WHITEHEAD, 1942, p. 21, sintetiza isso de forma magistral: “As leis da física são o decreto dos fados...” “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 11 verdadeira, isto nos autoriza a concluir pela verdade do determinismo científico? Vejamos como isso se coloca. Em primeiro lugar, na medida em que estamos raciocinando em parâmetros científicos, temos de reconhecer que o demônio de Laplace será apenas uma idealização do cientista; portanto: a) não se supõe que o demônio possa precisar as condições iniciais de forma absoluta, mas sim em grau finito, mas tão finito quanto teoricamente possível; b) o demônio prevê o sistema de dentro, isto é, faz parte do sistema que se propõe prever, já que não pode de forma essencial superar os limites humanos, o que obviamente aponta na direção de uma falácia de petição de princípio 12 . Feitas essas precisões, Popper propõe definir o determinismo científico da seguinte forma: (...) é a doutrina de que o estado de qualquer sistema físico fechado em qualquer instante futuro dado pode ser previsto, mesmo a partir de dentro do sistema, com qualquer grau especificado de precisão, através da dedução da previsão a partir de teorias, em conjunção com condições iniciais cujo grau de precisão requerido pode sempre ser calculado (de acordo com o princípio da determinabilidade) se a tarefa de previsão for dada. (POPPER, 1992, p. 36) O que essa definição implica é: a) previsibilidade de qualquer acontecimento ao exigir a previsibilidade de qualquer sistema; b) previsibilidade em qualquer tempo futuro com qualquer grau de precisão especificado; c) assumir o princípio de determinabilidade. Para obtermos uma versão mais forte do determinismo científico bastaria acrescentar “(...) o requisito de que seja possível prever, de qualquer estado dado, se o sistema em questão irá alguma vez estar nesse estado ou não.” (POPPER, 1992, p. 36), um exemplo seria prever se alguma vez ocorrerá ou não um eclipse solar, seguido em dez dias de um furacão nas costas da Flórida, ou de um eclipse lunar, etc. Dada a semelhança entre a estrutura de uma teoria prima facie determinista e o determinismo científico, pode parecer válido inferir da verdade da primeira a verdade da segunda, “E, no entanto, a inferência não é válida.” (POPPER, 1992, p. 37). 12 Hawking radicaliza uma argumentação desse tipo: “(...) caso se acredite que o universo não é arbitrário, mas sim governado por leis definidas, será preciso, em última análise, combinar teorias parciais numa outra, completa e unificada, capaz de descrever tudo no universo. Existe, entretanto, um paradoxo fundamental permeando essa procura. (...) se de fato há uma teoria completa e unificada, ela provavelmente determinará também as nossas ações. Assim, a própria teoria determinaria o inicio de nossa busca nesse sentido! E por que determinaria que chegássemos às conclusões certas a partir das evidências? Ela não poderia igualmente determinar que esboçássemos as conclusões erradas? Ou que não atingíssemos quaisquer conclusões?” HAWKING, p. 25-26. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 12 Ao afirmarmos o caráter prima facie determinista fazemos uma afirmação a propósito de uma propriedade da teoria; o que está em questão é descrever uma determinada estrutura epistemológica como sendo dotada de certa propriedade,; estamos, portanto, nos domínios da linguagem. Por outro lado, no determinismo científico afirmamos ser o mundo dotado da rigidez determinística, o que conduz Popper a concluir que: “É certo que, se uma teoria é verdadeira então descreve determinadas propriedades do mundo; mas isso não significa que para qualquer propriedade de uma teoria verdadeira haja uma propriedade do mundo que lhe corresponda.” (POPPER, 1992, p. 38) 13 . O determinismo científico somente poderia ser inferido de uma teoria prima facie determinista, se essa descrevesse um sistema tão completo que permitisse a previsão de qualquer espécie de fenômeno físico e, do fato de uma estrutura teórica poder ser descrita como: x (Px → Qx), não se segue que toda a realidade assuma essa estrutura. A conclusão de Popper parece ser inescapável: se não podemos inferir o determinismo da física newtoniana, então o problema kantiano pode ser reformulado. É possível reconhecer com Kant, que as teorias científicas são sempre criações humanas, porém, como tais, falíveis e processuais e não válidas a priori; conseqüentemente, não mais se faz necessário remeter a ética para os domínios da coisa em si, já que a realidade sobre a qual se debruça a razão não é determinada; na mesma realidade em que enuncio a 3ª Lei do Movimento, também posso enunciar o Imperativo Categórico sem incorrernuma contradição. Se foi possível a Popper rejeitar o determinismo científico, cabe reconhecer que ainda poderíamos defender a determinação absoluta da realidade de um ponto de vista metafísico, que pode ser definido tal como se segue: A doutrina metafísica do determinismo afirma muito simplesmente que todos os acontecimentos deste mundo são fixos, inalteráveis ou pré-determinados. Não afirma que eles sejam conhecidos por alguém nem que sejam previsíveis por meios científicos. Mas afirma que o futuro é tão pouco capaz de ser mudado quanto o passado. (POPPER, 1992, p. 07-08) O argumento que Popper julga ser decisivo contra o determinismo metafísico, e que lhe permitirá propugnar a defesa de um Realismo Indeterminista, é o argumento denominado „Lâmina de Landé‟. Sua estrutura é a seguinte: tomemos 1000 bolas de 13 Sobre a questão da verdade em Popper cf., entre outros: POPPER, 1965, cap. 10; POPPER, 1979, cap. 02 e Apêndice. Para objeções a essa idéia cf.: MILLER, 1994, principalmente caps. 10-11. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 13 bilhar perfeitamente idênticas a descer por um tubo em direção de uma lâmina de aço. O resultado será uma média de 50% das bolas caírem à direita da lâmina e 50% caírem à esquerda. Sempre é possível atribuir a alguns desses lançamentos o caráter acidental, porém, um determinista deverá dizer que estava pré-fixado na estrutura das bolas que caem à direita esse comportamento, o mesmo se dando com as que caem à esquerda. Se pedirmos ao determinista uma justificativa da média de 50%, ele deverá responder que também essa razão já estava antecipadamente determinada. A questão é que 50% de cada lado é uma média que pode oscilar de acordo com a estatística dos acontecimentos aleatórios, porque estaria também a estatística de acordo? Sua resposta deverá ser que existiria uma harmonia pré-estabelecida entre acontecimentos que se comportam como se fossem aleatórios, e a realidade que é pré-fixada. O problema é que isso inverte as coisas. O real é a aleatoriedade, o “como se” é que é a construção determinista, se ele nos dissesse que este “como se” se dá a partir de uma realidade anterior determinada, cairá numa regressão infinita. Popper se propõe a explicitar ainda mais o argumento em três pontos: 1. Supondo-se as 1000 bolas, o determinista explica tanto a razão de 50% quanto à flutuação aleatória a partir de condições iniciais anteriores, postulando estar presente aí esse comportamento. Se solicitado a justificar o porquê disso cai num regresso infinito. E mais, se solicitarmos ao determinista uma prognose sobre os próximos 10.000 lançamentos, terá de concluir que o mesmo se dará. “Assim, terá de conjecturar que também eles serão devidos a uma distribuição correspondente de condições iniciais; e será incapaz de dizer por que é que conjectura que essas razões serão tão estranhamente estáveis.” (POPPER, 1992, p. 102). O que o determinista terminará por fazer é admitir uma hipótese geral de aleatoriedade, que poderá ser interpretada de um modo puramente estatístico ou, como veremos mais adiante, como propensão. 2. Supondo-se que a razão não seja de 50%, mas sim de 40/60, poderemos alterar a lâmina numa direção ou outra prevendo nos aproximar dos resultados médios; mas para um determinista isso deveria ser impossível devido à existência da harmonia pré-estabelecida que, diga-se de passagem, ele não consegue explicar. 3. O argumento permite criticar a idéia de que em ciência se oferecem explicações estatísticas em virtude de um déficit de conhecimento - única alternativa para se “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 14 manter o determinismo. Para descartar essa interpretação Popper propõe o seguinte experimento: introduzir uma lâmina ótica que nos diga com absoluta precisão de cada bola, se ela cairá à esquerda ou à direita, tornando a probabilidade desnecessária. E daí pergunta Popper? As bolas continuariam a cair na mesma razão, quer possamos antecipar ou não. Se resolvêssemos intervir no processo, retirando sempre as bolas que caíram à direita, teríamos ainda assim a mesma razão. “A razão de 50:50, há de ser claro nessa altura, depende das condições experimentais objetivas e não tem absolutamente nada a ver com o nosso conhecimento ou com a falta dele.” (POPPER, 1992, p. 104). O que a Lâmina de Landé fornece a Popper é a possibilidade de introduzir a indeterminação dentro da própria realidade, isto é, a possibilidade de racionalmente argumentar a propósito de uma Metafísica Realista de cunho Indeterminista mediante a noção de „propensão‟. A idéia de „propensão‟ é o contraponto oferecido por Popper à noção, caudatária do determinismo, de que em ciência somente trabalhamos com probabilidades quando dispomos de um déficit de conhecimento. Para compreendê-la, portanto, se fazem necessárias algumas breves considerações em torno da idéia de probabilidade. A teoria clássica da probabilidade se constrói a partir da seguinte definição: “(...) a probabilidade como sendo o número de casos favoráveis dividido pelo número de casos possíveis. Isto aponta para que possamos interpretar a probabilidade como uma medida de possibilidades.” (POPPER, 1996 b, p. 286). Dessa forma a possibilidade de termos „coroa‟ no lançamento de uma moeda é 1/2, e de dar „4‟ em um lance de dados é 1/6. A pergunta que pode ser formulada agora é: e se o dado estiver viciado, ou a mesa sobre a qual se joga a moeda não for plana? As possibilidades continuariam a ser as mesmas, mas os resultados não. Se o dado contiver um pequeno peso sob a face „1‟, aumentam as chances de sair „6‟. O que coloca de imediato a questão: como descobrir essas tendências? A resposta é óbvia: mediante um método estatístico, através do qual um número suficientemente grande de repetições nos permitirá calcular a freqüência do resultado. Isso posto podemos extrair como conclusão que a tendência de sair „6‟ no dado viciado é inerente ao objeto, é uma propensão, que num elevado número de repetições aponta para uma estabilidade, estabilidade essa produzida pelo objeto em si e pela interação que esse estabelece com o restante da situação física com a qual interage. A tendência para que as médias estatísticas se mantenham, se as condições se mantiverem estáveis, é uma das características mais notáveis do nosso “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 15 universo. Sustento que isso só pode ser explicado pela teoria da propensão: pela teoria segundo a qual há possibilidades ponderadas que são mais do que meras possibilidades, são mesmo tendências ou propensões para se tornarem realidade; ou propensões para se realizarem a si mesmas, as quais são inerentes a todas as possibilidades em vários graus e que são algo como uma força que mantêm as estatísticas estáveis. (POPPER, s.d., p. 24) Na interpretação de Popper as propensões não são possibilidades lógicas “(...) mas sim tendências ou propensões físicas para ocasionar o estado de coisas possível – tendências ou propensões para ocasionar aquilo que é possível.” (POPPER, 1996 b, p. 286), mas ao contrário das probabilidades matemáticas que se medem entre „0‟ e „1‟, onde „0‟ é impossibilidade e „1‟ é certeza, nas propensões físicas „1‟ significa a noção clássica de causalidade, onde causa e efeito se conectam de forma necessária. Para todos os valores menores que „1‟ devemos assumir que forças distintas interagem apontando para possibilidades que podem ou não ser atualizadas numa ou noutra direção, na medida em que o objeto está imerso em uma situação objetiva - o dado viciado ainda precisa ser lançado, mesmo que o fosse por uma máquina, esbarraríamos não só na impossibilidade de construí-la de forma absolutamente determinada, como também coma interação com as demais forças em ação. Para Popper, observados os limites, que são sempre hipotéticos, da interação entre as propriedades do objeto com a situação objetiva, é possível estabelecermos expectativas racionais corroboradas, mas não indutivas, por que a interação dos dois pólos é evolutiva e criativa. As propensões, como as forças, são entidades inobserváveis, porém testáveis, mas ao contrário das forças implicam na suposição de que a realidade apresenta uma estabilidade oscilante, o que impõe de imediato a pergunta sobre a natureza dos testes, noção central da epistemologia de Popper. Na idéia de teste, temos a tentativa de descobrir contra-exemplos para a estrutura teórica e, por Modus Tollens, falseá-la. Nesse esquema geral a busca por conexões causais desempenha um papel central. Como as propensões aparentemente suprimem as noções de causa-efeito poderiam conduzir Popper a incorrer numa contradição, mas tal não é o caso. A objetividade do teste se dá em virtude do fato de criarmos condições para que um fato singular descrito nos falseadores potenciais ocorra ou não, no caso de uma hipótese probabilística, temos a previsão de “(...) uma determinada propensão para o acontecimento singular se efetuar. Essa previsão pode ser testada repetindo a experiência nas condições prescritas e registrando a distribuição de freqüência em “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 16 experiências repetidas.” (POPPER, 1996 b, p. 288), desnecessário dizer que a manutenção das condições e a repetição do teste se dão de forma a serem independentes, para que a última experiência não seja afetada pela primeira; quer as hipóteses sejam probabilísticas ou causais o procedimento não só será o mesmo, como também em sendo assim respeita a exigência de que para cada teste a probabilidade permanecerá a mesma, caso contrário nossa hipótese será refutada, ou seja, a introdução das propensões em nada altera o esquema geral de Popper. A busca por explicações causais dedutivas ainda se mantém desde que tenhamos claro duas coisas: 1. A noção clássica de causalidade será interpretada como uma situação onde temos a probabilidade 1, isto é, p(efeito, causa) = 1, porém no mundo popperiano das propensões isso somente pode ser afirmado no momento em que o fato acontece, nos momentos que o antecedem “(...) sob condições sempre em mutação, muitas dessas propensões ter-se-ão reduzido a zero, e outras terão valores muito reduzidos; mas outras terão crescido.” (POPPER, s.d., p. 35), apenas quando o fato se efetiva as propensões concretizadas terão o valor de 1. 2. As chamadas „leis naturais‟ são hipóteses testadas mediante a criação de condições artificiais que praticamente reduzem a zero todas as propensões capazes de interferir no experimento; porém, com a possível exceção do nosso sistema solar, que é quase um laboratório ideal, “(...) não é possível encontrar leis estritamente determinísticas.” (POPPER, s.d., p. 37). Não resta dúvida de que a idéia de propensão é altamente especulativa, porém permite a Popper uma alternativa objetiva entre o Demônio de Laplace e o Deus Jogador de Dados de Heisenberg. Seguindo a metáfora, não é que Deus não jogue dados, ele até é um grande jogador, porém os dados de Deus são viciados, no entanto se o „6‟ ocorre mais vezes, isso não significa que o „4‟ não possa ocorrer: “(...) todas as possibilidades não-zero, mesmo aquelas que só têm uma pequena propensão não-zero, concretizar-se-ão no tempo, desde que tenham tempo para isso (...).”(POPPER, s.d., p. 32). A pergunta que se impõe agora é: não estaria Popper aqui incidindo em uma metafísica materialista? Para que modelo de „realidade‟ aponta a idéia de „propensão‟? Grosso modo o termo „realidade‟ é empregado para designar objetos materiais, de tamanho mais ou menos manipulável, estendendo-se posteriormente para aviões, estrelas ou planetas, como também para insetos ou para o ar. O princípio que parece “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 17 reger essa inferência diz que objetos são reais se podem exercer algum efeito causal sobre objetos prima facie manipuláveis. Assim os átomos são reais por afetarem o cigarro que eu fumo e as bactérias reais por afetarem a minha saúde, etc. É claro que os átomos ou as bactérias não são diretamente observáveis, os admitimos enquanto tais por terem seus efeitos corroborados, o que pressupõe uma teoria que os constitua enquanto “realidade”. Desse modo, entidades reais podem ser mais ou menos abstratas, dependendo do tipo de teoria que as constitua, porém na medida em que sua realidade é constituída por corroboração, em momento algum podem ser ditas entidades últimas. Considerações Finais A realidade, enquanto um sistema de propensões, não é pré-fixada, é objetivamente aberta ao novo, sendo interpretada a partir do pluralismo ontológico dos Três Mundos. A tese dos Três Mundos é bem conhecida, Popper argumenta sobre ela em vários textos 14 , e pode ser inicialmente enunciada de maneira bem simples: um livro, por exemplo, é um objeto físico e, nesse sentido, faz parte do que Popper chama de Mundo 1, porém foi escrito por alguém, é o que Popper chama de Mundo 2, entretanto esse livro veicula uma idéia, que pode ser verdadeira ou falsa, consistente ou contraditória, é o que Popper chama de Mundo 3. O M 3 é real como M 1 e M 2, não apenas por conter materializações de idéias subjetivas, mas também porque induz os homens não só a produzir outros objetos do M 3, mas também a agir sobre M 1 e M 2 de determinada maneira e, principalmente, a descobrir novos objetos em M 3. A pergunta que se impõe é: são esses novos objetos incorporais ou existiam em M 2? Se existirem em M 2, cai a objetividade e a autonomia de M 3; portanto, a resposta de Popper deverá conduzi-lo não só a argumentar a favor da existência de objetos incorporais: “É importante nos darmos conta que a existência objetiva e incorporal desses problemas precede a sua descoberta consciente, do mesmo modo que a existência do Monte Everest precede ao seu descobrimento (...).”(POPPER, 1993, p. 41-42), como também que a captação dos objetos do M 3 não depende de sua incorporação física em 14 Para nossos propósitos dois textos serão nossa referência principal: POPPER, 1993, e POPPER, 1996 a. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 18 um livro ou numa partitura musical 15 . Temos agora duas questões: qual é o modo de existência dos objetos incorporais, e como captá-los. Comecemos com a segunda. Para Popper, a compreensão de qualquer objeto de M 3 se dá mediante sua reconstrução sistemática. Para clarificar esse ponto, tomemos como exemplo uma teoria falsa -: a Teoria das Marés que Galileu apresentava como prova indireta do movimento da Terra. A Terra giraria em torno do Sol e em torno do seu eixo. Chamamos de „ ‟, o movimento em torno do Sol, e vamos distinguir o movimento da Terra a meia-noite do movimento da Terra ao meio-dia; chamamos de „ ‟ ao primeiro e de „C‟ ao segundo. Em uma face da Terra teríamos uma situação de „ ‟ e „B‟ apontando na mesma direção, enquanto que na face oposta „C‟ a Terra operaria em sentido oposto a „ ‟, partindo dessa mudança de velocidade Galileu explicava o movimento das marés e inferia a veracidade do heliocentrismo copernicano. Para compreender essa teoria 16 se faz necessário descobrir qual o seu problema imediato, e qual a situação-problema na qual se insere. O problema imediato é óbvio: explicar as marés, já à situação-problema é algo mais complexa, pois ao buscar as marés como forma de argumentação sobre a validade do heliocentrismo, a teoria está implicada numa enorme reformulação do M 3 de sua época, que envolve não só a supressão do modelo ptolomaico e a sua substituiçãopelo modelo copernicano, como também na rejeição da física aristotélica e na construção de uma nova física fundada na idéia de inércia e na conservação dos movimentos circulares. Mas porque basear a fundamentação de Copérnico apenas sobre duas idéias e, principalmente, porque admitir a questão dos movimentos circulares quando Galileu já conhecia as órbitas elípticas de Kepler? E mais, porque Galileu negou qualquer influência da Lua sobre as marés? Para Popper a restrição explicativa de Galileu a duas leis gerais é uma simplificação que expõe claramente sua teoria ao processo crítico de refutação. Galileu simplifica para viabilizar a refutabilidade do sistema teórico que constrói. E porque rejeitar qualquer papel a Lua? Porque Galileu está comprometido em construir uma nova física, e nesse momento histórico a astrologia associa os corpos celestes a deuses e falar numa atração a distância seria abrir o flanco para os “poderes ocultos”. Além 15 Sobre os antecedentes históricos do M 3, cf., entre outros. Epistemology Without a Knowing Subject, principalmente § 5, IN: POPPER, 1979, Para uma análise desses aspectos históricos, principalmente em suas relações com Frege cf.: NOTTURNO, 1985. 16 Seguimos aqui: On The Theory of The Objective Mind, IN: POPPER, 1979, principalmente § 7-9. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 19 disso, a tese de Galileu aponta numa direção claramente matematizante, já que explica as marés pela diferença entre + B > C. A compreensão desse objeto de M 3 nos leva ao seguinte esquema: P¹ → TE → EE → P² Onde „P¹‟ é a reconstrução da situação-problema de Galileu, „TE‟ é a teoria de Galileu, que por sua estrutura lógica viabiliza „EE‟, isto é, todos os processos de eliminação de erro que viriam a culminar em Newton gerando „P²‟. Como podemos observar, a captação de um objeto do M 3 é um meta-problema para o sujeito que está desde já imerso nos objetos do M 3; é por sermos sujeitos imersos em M 3 que podemos compreender e captar M 3. Certo, objetará o leitor, mas a teoria de Galileu mesmo sendo falsa, é um objeto incorporado nas estruturas lingüísticas de M 3, e quanto aos objetos não incorporados? Os objetos não incorporados nada mais são do que as conseqüências lógicas que os objetos lingüisticamente formulados estabelecem não só a partir de si, como também entre si: Portanto, uma problemática lógica ainda não descoberta e ainda não incorporada, pode se revelar decisiva para os nossos processos de pensamento, podendo conduzir a ações com repercussão no Mundo 1 físico, como por exemplo, uma publicação. (...). Desta forma, os objetos do Mundo 3, inclusive as possibilidades lógicas que não tenham sido plenamente examinadas, podem atuar sobre o Mundo 2, isto é, sobre nossas mentes, sobre nós, e nós, por nossa vez atuarmos sobre o Mundo 1. (POPPER, 1993, p. 46) Como podemos observar o que Popper faz com as entidades não incorporadas nada mais é do que transferir a idéia de propensões não atualizadas, que no M 1 são possibilidades físicas, para o M 3, agora com o estatuto de possibilidades lógicas, que geram sobre M 2 um processo de causação descendente, isso significa que “(...) temos possibilidade de extrair mais do Mundo 3 do que aquilo que introduzimos nele. Ocorre uma ação de dádiva e recebimento entre nós próprios e o Mundo 3, recebendo-se muito mais do que aquilo que se dá.” (POPPER, 1996 a, p. 30). Quando retomamos agora a estrutura ética da Sociedade Aberta e seus Inimigos podemos rapidamente elencar algumas conclusões: a) Sendo o M 3 o lugar dos valores morais, a Sociedade Aberta não é meramente fruto de uma “fé irracional na razão” (POPPER, 1966, Vol. 2, p. 231), mas pressupõe uma cosmologia como seu elemento transcendental. “A Posição dos Valores em um Mundo de Fatos” - Formulação de um Problema 20 b) Descartar valores totalitários fundados em verdades definitivas por uma redução ao absurdo, como Popper faz com Platão na Sociedade Aberta e seus Inimigos, não é um processo indiferente, mas sim resultante da assunção de um modelo cosmológico-metafísico. c) Não teríamos aí uma falácia naturalista porque os valores da Sociedade Aberta não serão inferidos da indeterminação, mas apenas adequados a ela, nessa medida serão propostos por serem dotados de eficácia social. d) Continua sendo possível, por exemplo, propor um completo controle econômico da vida social, apenas será absurdo por ineficaz, na medida em que a sociedade se insere num todo mais amplo - a realidade, que é indeterminada, evolutiva e criativa. Todo o problema é que tais conclusões terminam por nos conduzir a uma situação onde apenas um único grupo de valores será admissível, quais sejam, os valores liberais da Sociedade Aberta, todos os outros valores serão descartados. Algo muito próximo ao Cristianismo quando esse me afirma que eu tenho livre-arbítrio e, portanto, posso optar por valores distintos, o problema é que se assim o fizer, “irei para o inferno”, mas isso, é claro, já é outra história... Referências Bibliográficas 1. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IN: Coleção Os Pensadores, 1a ed , São Paulo, Abril Cultural, 1973. 2. AYER, A. J. Lenguaje, verdad y lógica, Barcelona, Martinez Roca, 1971. 3. CONSTANT, B. Da Liberdade dos Antigos comparada a dos Modernos, IN: Filosofia Política 2, Porto Alegre, LPM, 1985. 4. EINSTEIN, A. Como Vejo o Mundo, 11a ed,, Rio de Janeiro, Nova fronteira, 1981. 5. HAWKING, S. W. Uma Breve História do Tempo, São Paulo, Círculo do Livro, s.d. 6. 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