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2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS FUNDAMENTAIS Maria Angélica Furtado da Cunha Marcos Antonio Costa Maria Maura Cezário O funcionalismo lingüístico contemporâneo difere das abordagens formalistas – estruturalismo e gerativismo – primeiro por conceber a linguagem como um instrumento de interação social e segundo porque seu interesse de investigação lingüística vai além da estrutura gramatical, buscando no contexto discursivo a motivação para os fatos da língua. A abordagem funcionalista procura explicar as regularidades observadas no uso interativo da língua analisando as condições discursivas em que se verifica esse uso. Os domínios da sintaxe, semântica e pragmática são relacionados e interdependentes. Ao lado da descrição sintática, cabe investigar as circunstâncias discursivas que envolvem as estruturas lingüísticas, seus contextos específicos de uso. Segundo a hipótese funcionalista, a estrutura gramatical depende do uso que se faz da língua, ou seja, a estrutura é motivada pela situação comunicativa. Nesse sentido, a estrutura é uma variável dependente, pois os usos da língua, ao longo dos tempos, é que dão forma ao sistema. A necessidade de investigar a sintaxe em termos da semântica e da pragmática é comum a todas as abordagens funcionalistas atuais. 2.1. Iconicidade e marcação Em lingüística, iconicidade é definida como a correlação natural entre forma e função, entre o código lingüístico (expressão) e seu designatum (conteúdo). Os lingüistas funcionais defendem a idéia de que a estrutura da língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência. Como a linguagem é uma faculdade humana, a suposição geral é que a estrutura lingüística revela as propriedades da conceitualização humana do mundo ou as propriedades da mente humana. As discussões em torno da motivação entre expressão e conteúdo na língua remontam à Antigüidade clássica, com a famosa polêmica que dividiu os filósofos gregos em convencionalistas e naturalistas. Enquanto os primeiros defendiam que tudo na língua era convencional, mero resultado do costume e da tradição, os naturalistas afirmavam que as palavras eram, de fato, apropriadas por natureza às coisas que elas significavam. Essas especulações filosóficas têm seus desdobramentos no debate posterior entre anomalistas e analogistas acerca da (ir)regularidade da estrutura lingüística. No início do século XX, essa controvérsia foi retomada por Saussure, que adotou posição favorável à concepção convencionalista, reafirmando o caráter arbitrário da língua: não existe relação natural entre a “imagem acústica” do signo lingüístico (o significante) e aquilo que ele evoca conceptualmente (o significado)1 . O filósofo Peirce (1940) discorda parcialmente da idéia de total arbitrariedade, recuperando, em certa medida, a posição adotada pelos antigos naturalistas e conjugando-a com a postura dos convencionalistas. Segundo ele, a sintaxe das línguas naturais não é totalmente arbitrária, e sim isomórfica ao seu designatum mental. No entanto, esse isomorfismo da sintaxe, ou correlação transparente entre forma e função, não é absoluto, mas moderado. Na codificação sintática, princípios icônicos (cognitivamente motivados) interagem com princípios mais simbólicos (cognitivamente arbitrários), que respondem pelas regras convencionais. Peirce estabeleceu dois tipos de iconicidade: a imagética e a diagramática. A primeira diz respeito à estreita relação entre um item e seu referente, no sentido de um espelhar a imagem do outro (ex. pinturas, estátuas); já a segunda refere-se a um arranjo icônico de signos, sem necessária intersemelhança. Ambos os tipos de relação icônica têm interessado pesquisadores de orientação funcionalista. É com Bolinger (1977) que o isomorfismo lingüístico revela sua face radical, quando postula que a condição natural da língua é preservar uma forma para um sentido e vice-versa. Estudos sobre os processos de variação e mudança lingüísticas, ao constatar a existência de duas ou mais formas alternativas de dizer "a mesma coisa", levaram à reformulação dessa versão forte. Na língua que usamos diariamente, especialmente na língua escrita, existem por certo muitos casos em que não há uma 1 Não parece haver uma correspondência estrita entre naturalistas vs. convencionalistas, por um lado, e analogistas vs. anomalistas, por outro. Apesar de algumas afinidades, eles possuíam preocupações distintas e, de certa forma, independentes. Enquanto naturalistas e convencionalistas discutiam a relação entre as “coisas do mundo” e suas designações, analogistas e anomalistas discutiam as regularidades do sistema lingüístico. Tomemos Saussure como exemplo. Com relação à conexão entre significado e significante, ele se alinha aos convencionalistas (arbitrariedade do signo lingüístico); quanto ao caráter regular e sistemático da língua, ele se posiciona junto aos analogistas (a língua é um sistema). relação clara, transparente, entre forma e conteúdo. Há contextos comunicativos em que a codificação morfossintática é opaca em termos de sua função. Tomadas sincronicamente, determinadas estruturas exibem um acentuado grau de opacidade em relação aos papéis que desempenham. Assim, encontramos correlação entre uma forma e várias funções, ou entre uma função e várias formas. O uso do sufixo –inho ilustra o primeiro caso. Essa forma, que originalmente indica tamanho diminuto, como em criancinha, desenvolveu-se para marcar afetividade, como em paizinho, pejoratividade, como em gentinha, ou ainda um valor de superlativo, como em devagarzinho (Silva, 2000). Por outro lado, a função de impessoalização do agente da ação verbal pode ser codificada, em português, por vários recursos: verbo na 3a pessoa do plural (Construíram uma ponte na cidade), partícula se apassivadora (Construiu-se uma ponte na cidade), voz passiva (Uma ponte foi construída na cidade), pronome indefinido (Alguém construiu uma ponte na cidade), pronome de 3a pessoa do plural sem referente explícito (Eles construíram uma ponte na cidade), entre outros. Em sua versão mais branda, o princípio de iconicidade se manifesta em três subprincípios, que se relacionam à quantidade de informação, ao grau de integração entre os constituintes da expressão e do conteúdo e à ordenação linear dos segmentos. Segundo o subprincípio da quantidade, quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma, de tal modo que a estrutura de uma construção gramatical indica a estrutura do conceito que ela expressa. Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão (Slobin, 1980): aquilo que é mais simples e esperado se expressa com o mecanismo morfológico e gramatical menos complexo. O subprincípio da integração prevê que os conteúdos que estão mais próximos cognitivamente também estarão mais integrados no nível da codificação – o que está mentalmente junto, coloca-se sintaticamente junto. O subprincípio da ordenação linear diz que a informação mais importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, de modo que a ordem dos elementos no enunciado revela a sua ordem de importância para o falante. Vejamos algumas aplicações da versão branda do princípio de iconicidade. No estudo da negação (Furtado da Cunha, 1996), a negativa dupla fornece evidência favorável ao princípio icônico da quantidade: (1)... e um motorista dele... nesse tempo ele... num era... num era um motorista dele não... era do hotel... porque ele ficou sem motorista... (Corpus D&G/Natal, p. 244). No discurso falado, a pronúncia do não tônico que precede o verbo freqüentemente se reduz para num átono, ou até mesmo para uma simples nasalização. Para reforçar a idéia de negação, o falante utiliza um segundo não no fim da oração, como uma estratégia para suprir o enfraquecimentofonético do não pré-verbal e o conseqüente esvaziamento do seu conteúdo semântico. Assim, o acréscimo do segundo não tem motivação icônica: quanto mais imprevisível se torna a informação, mais codificação ela recebe. Em seu trabalho sobre os procedimentos de manifestação do sujeito, Costa (2000) utiliza o princípio icônico da proximidade para explicar a ausência de concordância verbal em orações em que sujeito e verbo se encontram estruturalmente distanciados. A introdução de material de apoio entre o sujeito e o verbo, como o aposto do exemplo abaixo, enfraquece a integração entre sujeito e predicado no plano do conteúdo, o que resulta na não flexão verbal: (2) Há pouco tempo atrás, dois bárbaros assassinatos, o da atriz Daniela Perez e o da menina que foi queimada pelos sequestradores ressuscitou a polêmica da Pena de Morte. (Corpus D&G/Natal, p. 321). Com relação ao princípio da ordenação linear, o clássico exemplo citado é: “Vim, vi, venci”, cuja distribuição das palavras na oração corresponde à seqüência cronológica das ações descritas. Ainda outro exemplo: o trecho a seguir foi retirado de uma narrativa recontada, em que o falante reproduz o filme Cemitério maldito. Note-se que a apresentação dos eventos narrados obedece à ordem cronológica e lógica em que eles se deram na trama: (3)... o pai dele tava... tava tomando banho... o gato apareceu na... na janela lá do... do... do banheiro... ele tava tomando banho na banheira... ele pulou dentro e rasgou o... o... o pai dele todinho num matou não... só fez arranhar né... depois ele pegou um cabo de vassoura... meteu no gato e o gato foi embora... (Corpus D&G/Natal, p. 28). Do que foi exposto, conclui-se que a língua não é um mapeamento arbitrário de idéias para enunciados: razões estritamente humanas de importância e complexidade se refletem nos traços estruturais das línguas. As estruturas sintáticas não devem ser muito diferentes, na forma e organização, das estruturas semântico-cognitivas subjacentes. Como opção teórica, o princípio da iconicidade, em sua formulação atenuada, permite uma investigação detalhada das condições que governam o uso dos recursos de codificação morfossintática da língua. O princípio de marcação, herdado da lingüística estrutural desenvolvida pela Escola de Praga, estabelece três critérios principais para a distinção entre categorias marcadas e categorias não-marcadas, em um contraste gramatical binário: a) complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior) que a estrutura não-marcada correspondente; b) distribuição de freqüência: a estrutura marcada tende a ser menos freqüente do que a estrutura não-marcada correspondente; c) complexidade cognitiva: a estrutura marcada tende a ser cognitivamente mais complexa do que a estrutura não-marcada correspondente. Incluem-se, aqui, fatores como esforço mental, demanda de atenção e tempo de processamento. Há uma tendência geral, nas línguas, para que esses três critérios de marcação coincidam. Admite-se que a correlação entre marcação estrutural, marcação cognitiva e baixa freqüência de ocorrência é o reflexo mais geral da iconicidade na gramática, dado que representa o isomorfismo entre correlatos substantivos (de natureza comunicativa e cognitiva) e correlatos formais da marcação. Assim, as categorias que são estruturalmente mais marcadas tendem também a ser substantivamente mais marcadas. Givón (1995) admite que uma mesma estrutura possa ser marcada num contexto e não-marcada em outro, e acrescenta que, desse modo, a marcação é um fenômeno dependente do contexto, devendo, portanto, ser explicada com base em fatores comunicativos, socioculturais, cognitivos ou biológicos. Cita, como exemplo, que a tendência para a colocação do agente como sujeito e tópico da oração transitiva, que representa o caso não-marcado, provavelmente reflete uma norma cultural de se falar egocentricamente mais acerca de seres humanos volitivos do que sobre objetos inanimados. Outra observação importante feita por Givón é que a marcação não se restringe apenas às categorias lingüísticas, mas pode estender-se a outros fenômenos, tais como a distinção entre o discurso formal e a conversação espontânea. Por tratar de assuntos mais abstratos e complexos, o discurso formal é mais marcado em relação à conversação informal, que é cognitivamente processada com mais rapidez e facilidade, por referir-se, em geral, a assuntos comuns e fisicamente perceptíveis do cotidiano social. A título de exemplo, o contraste afirmação/negação ilustra bem a atuação dos critérios de marcação. Como afirmar algo é cognitivamente mais simples e esperado, portanto mais freqüente na interação verbal, isto se reflete também na estrutura lingüística, representando a forma não-marcada. A negação, ao contrário, por ser mais complexa em termos cognitivos e menos esperada, é também menos freqüente e estruturalmente maior (tem, no mínimo, um morfema a mais que a afirmativa), constituindo-se no caso marcado. Entretanto, essa marcação será relativizada se considerarmos as diferentes estruturas negativas em português (Furtado da Cunha, 2000), tais como: (4)... a nova regente... ela não tava sabendo reger direito... a regente do coral... tava errando lá um monte de coisas... né... (Corpus D&G/Natal, p. 278). (5) ... e teve uma pessoa que chegou pra mim e perguntou... “Gerson... você aceita ficar no cargo e tudo” num sei que... eu disse... não... num aceito não... (Corpus D&G/Natal, p. 178). (6)... tudo eu faço... sabe? tem isso comigo não... (Corpus D&G/Natal, p. 264). Essas três estruturas negativas não se opõem binariamente, mas sim se distribuem num contínuo, exibindo diferentes graus de marcação, quer quanto à freqüência de uso, quer quanto à complexidade estrutural, quer quanto à complexidade cognitiva. Considerando esses três critérios de distinção entre estruturas marcadas e não-marcadas, podemos estabelecer a seguinte hierarquia que ordena as orações negativas de acordo com o seu grau de marcação: negativa padrão (ex. 4) > negativa dupla (ex.5) > negativa final (ex. 6). Apesar de a negativa padrão ser marcada com relação à afirmativa, está claro que, das três, ela é a menos marcada, sob todos os aspectos: (i) quanto à freqüência, é a que registra maior ocorrência; (ii) quanto à complexidade estrutural, é a morfologicamente mais simples; (iii) quanto ao contexto de uso, é a menos marcada pragmaticamente pois pode ocorrer nos contextos que favorecem tanto a negativa dupla quanto a final. Dado o caráter fluido e criativo da língua, é necessário adotarmos parâmetros de gradualidade na análise da marcação, ao invés de considerarmos as categorias lingüísticas em termos discretos ou binários. A necessidade de superar a dicotomia marcado x não marcado, redefinindo o princípio de marcação, também é questionada por Oliveira (2000) em seu trabalho sobre as orações adjetivas. Exemplos como (7) e (8), em que se combinam informatividade do núcleo SN (menor integração) e definição da adjetiva (maior integração) são os de maior freqüência nos corpora pesquisados: (7) As pessoas que o acusam confundem o ato de governar com disposição e honradez. (Carta de leitor, JB). (8)... meu primo estava dirigino uma camionete que estava sem freio... (Língua escrita, 4a série, Corpus D&G/Niterói). Os resultados preliminares a que Oliveira chegou na pesquisa sobre a cláusula adjetiva levaram-na a um impasse, assim expresso por ela: se a freqüência é o parâmetro de maior visibilidade e saliência perceptual para a aferição da marcação, então teremos que admitir que as adjetivas restritivas, que são mais integradas, configuram-se como as não-marcadas. Por outro lado, seu maior vínculo semântico-sintático é traço caracterizador de complexidade estrutural e cognitiva, o que as classificariacomo formas marcadas face às explicativas. 2.2. Transitividade e planos discursivos Para a Gramática Tradicional, transitividade se refere à transferência de uma atividade de um agente para um paciente. É, portanto, uma propriedade dos verbos, que são classificados como transitivos, quando acompanhados de objeto direto ou indireto, ou intransitivos, quando não há complemento. Segundo a formulação de Hopper e Thompson (1980), a transitividade é concebida como uma noção contínua, escalar. Trata-se de um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção diferente da sentença. São eles: Transitividade alta Transitividade baixa 1. Participantes dois ou mais um 2. Cinese ação não-ação 3. Aspecto do verbo perfectivo não-perfectivo 4. Punctualidade do verbo punctual não-punctual 5. Intencionalidade do sujeito intencional não-intencional 6. Polaridade da oração afirmativa negativa 7. Modalidade da oração modo realis modo irrealis 8. Agentividade do sujeito agentivo não-agentivo 9. Afetamento do objeto afetado não-afetado 10. Individuação do objeto individuado não-individuado Cada um desses parâmetros contribui para a ordenação de orações numa escala de transitividade. Assim, é toda a sentença que é classificada como transitiva, e não apenas o verbo. A título de ilustração, vejamos alguns exemplos, extraídos de uma narrativa que reconta o filme Batman: (9) a. Batman derrubou o Pingüim com um soco b. A Mulher Gato não gostava do Batman c. Esse rio tem uma forte correnteza d. Então o Pingüim chegou na festa Pela classificação da Gramática Tradicional, as três primeiras sentenças são transitivas, pois apresentam um objeto como complemento do verbo. Segundo a formulação de Hopper & Thompson, (9a) é a que ocupa lugar mais alto na escala de transitividade, uma vez que contém todos os dez traços do complexo: dois participantes (Batman e Pingüim); verbo de ação (derrubou); aspecto perfectivo (verbo no passado); verbo punctual (ação completa); sujeito intencional; oração afirmativa; oração realis (modo indicativo); sujeito agente (Batman); objeto afetado e individuado (Pingüim – referencial, humano, próprio, singular). Ocupando o segundo lugar na escala de transitividade, temos (9d), classificada como intransitiva pela Gramática Tradicional. Esta oração contém sete traços: cinese; aspecto perfectivo; verbo punctual; sujeito intencional; polaridade afirmativa; modalidade realis; sujeito agente. (9b) está mais abaixo na escala pois apresenta quatro traços positivos: dois participantes (Mulher Gato e Batman), objeto individuado (Batman), perfectividade do verbo e modalidade realis. Por último, a oração com menor grau de transitividade é (9c), que só apresenta os traços modalidade (realis) e polaridade (afirmativa). Hopper & Thompson associam a transitividade a uma função discursivo- comunicativa: o maior ou menor grau de transitividade de uma sentença reflete a maneira como o falante estrutura o seu discurso para atingir seus propósitos comunicativos. A universalidade do complexo de transitividade parece residir no fato de que os parâmetros que o compõem estão relacionados ao evento causal prototípico, que é definido como um evento em que um agente animado intencionalmente causa uma mudança física e perceptível de estado ou locação em um objeto. São esses os eventos que a criança percebe e codifica gramaticalmente mais cedo. Há, portanto, uma correlação entre os traços que caracterizam o evento causal prototípico e os parâmetros que identificam a oração transitiva canônica. Desse modo, por refletirem elementos cognitivamente salientes, ligados ao modo pelo qual a experiência humana é apreendida, os parâmetros da transitividade assinalam elementos salientes no discurso. A transitividade oracional está relacionada a uma função pragmática. O modo como o falante organiza seu texto é determinado, em parte, pelos seus objetivos comunicativos e, em parte, pela sua percepção das necessidades do seu interlocutor. Nesse sentido, o texto apresenta uma distinção entre o que é central e o que é periférico. Para que a comunicação se processe satisfatoriamente, ou seja, para que os interlocutores possam partilhar a mesma perspectiva, o emissor orienta o receptor a respeito do grau de centralidade e de perifericidade dos enunciados que constituem seu discurso. Em termos da estrutura do texto, ou de planos discursivos, a divisão entre central e periférico corresponde à distinção entre figura e fundo. O grau de transitividade de uma oração reflete sua função discursiva característica, de modo que orações com alta transitividade assinalam porções centrais do texto, correspondentes à figura, enquanto orações com baixa transitividade marcam as porções periféricas, correspondentes ao fundo. Há, portanto, uma correlação forte entre a marcação gramatical dos parâmetros da transitividade e a distinção figura e fundo. Por figura, entende-se aquela porção do texto narrativo que apresenta a seqüência temporal de eventos concluídos, punctuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de um agente, que constitui a comunicação central. Fundo, por outro lado, corresponde à descrição de ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, além da descrição de estados, da localização dos participantes da narrativa e dos comentários avaliativos. Vejamos o seguinte fragmento, extraído de uma narrativa falada de um informante do 2o grau: (10)... aí quando vinha ali no rio Tietê... num sei se você conhece... já ouviu falar... lá de São Paulo... quando vinha lá do rio Tietê... tava chovendo muito... a pista escorregadia... né? aí o carro perdeu o controle... o motorista perdeu o controle... né? ... aí quando ele viu que o carro ia cair dentro do rio... aí ele... colocou o carro num... pra cima de outro carro... que tava um casal de namorado assim... namorando... (Corpus D&G/Natal, p. 222) Figura Fundo ... aí quando vinha ali no rio Tietê... num sei se você conhece... já ouviu falar... lá de São Paulo... quando vinha lá do rio Tietê... tava chovendo muito... a pista escorregadia... né? aí... o carro perdeu o controle... o motorista perdeu o controle... né?... aí quando ele viu que o carro ia cair dentro do rio... aí ele... colocou o carro num... pra cima de outro carro... que tava um casal de namorado assim... namorando... O texto acima mostra oposição de tempo, aspecto e dinamicidade: as sentenças da coluna da figura contêm perdeu e colocou, verbos punctuais no tempo perfeito, enquanto no fundo se apresentam orações que contextualizam o evento narrado, com comentários descritivos e avaliativos do narrador. O fundamento cognitivo para plano discursivo, com suas dimensões originais de figura e fundo, provém da psicologia gestaltista: identificamos mais prontamente as entidades que se apresentam em primeiro plano, como figuras bem recortadas e focalizadas, em oposição a tudo o mais, que passa a ser percebido contrastivamente como em plano de fundo. Tipologicamente,a língua portuguesa é classificada como sendo de ordenação SVO (Sujeito-Verbo-Objeto), ou seja, a posição típica, não-marcada, do sujeito é anterior ao verbo. As construções oracionais em que o sujeito é deslocado, ocupando posição posterior ao verbo, parecem limitar-se a certos contextos discursivos. Por exemplo, a estrutura VS corresponde, normalmente, às circunstâncias que estão fora da seqüência narrativa propriamente dita (fundo), conforme o seguinte exemplo: (11) O drama começa quando a secretária de um empresário descobre que o seu patrão quer construir uma usina nuclear, não para gerar energia, e sim para sugar energia da cidade. O patrão chega repentinamente no escritório e flagra a secretária mexendo em seus documentos. Temendo ele que a secretária resolvesse contar a todos, ele tratou de matá-la empurrando-a pela janela do escritório que ficava no andar muito alto de um edifício. (Corpus D&G/Natal, p. 317) Figura Fundo O drama começa quando a secretária de um empresário descobre que o seu patrão quer construir uma usina nuclear, não para gerar energia, e sim para sugar energia da cidade. O patrão chega repentinamente no escritório e flagra a secretária mexendo em seus documentos. Temendo ele que a secretária resolvesse contar a todos, ele tratou de matá-la empurrando- a pela janela do escritório que ficava no andar muito alto de um edifício. Extrapolando o domínio da narrativa, Martelotta (1998) testa a possibilidade de aplicação dos parâmetros da transitividade em outros tipos de gênero textual, demonstrando que as noções de figura e fundo também podem ser extremamente úteis na análise de descrições, relatos de procedimento ou relatos de opinião. Mostra que um tipo de texto pode servir de fundo a outro tipo textual. Um trecho narrativo, por exemplo, dentro de um contexto maior não-narrativo, pode servir de fundo, pois, neste caso, está em posição secundária em relação ao foco central do texto. Em situações como essas, a seqüência narrativa que se acha em segundo plano pode apresentar-se, ao mesmo tempo, como figura em relação à outra não-narrativa de nível mais inferior. Para ilustrar esse ponto, tomemos o seguinte fragmento de um relato de opinião falado, de um aluno da 8a série: (12) E: Emerson... qual é... a sua opinião acerca da pena de morte? Você acha que é um... uma forma correta de... de... punir por um crime? Você acha que se a pessoa comete um crime bárbaro... até hediondo como a gente... como a gente vem... tem ouvido falar... você acredita que a pena de morte é ... é uma solução? I: eu acho que não... há pouco tempo... há pouco tempo atrás houve dois casos que... fez com que ressuscitasse a polêmica da pena de morte no Brasil... foi o assassinato da Dan/ da atriz Daniela Perez e de uma menina que foi seqüestrada e depois queimada... as pessoas... pela emoção... achavam que deveria ser implantado a pena de morte... mas cada caso é um caso... (Corpus D&G/Natal, p. 313). Respondendo à pergunta do entrevistador, o informante dá sua opinião sobre a pena de morte. Neste caso, a seqüência narrativa encontra-se num plano de fundo em relação ao foco principal do texto. Contudo, essa mesma seqüência sobressai-se como figura quando comparada ao trecho em que ele faz o esclarecimento quanto à opinião das pessoas acerca dos acontecimentos narrados. Atualmente não se trabalha mais com a concepção dicotômica de figura e fundo. Algumas pesquisas (cf. Tomlin, 1987 e Silveira, 1991) mostraram a necessidade de redefinir a categoria plano discursivo, não mais em termos binários, e sim como um continuum, cujos pólos seriam a superfigura, do lado mais saliente ou relevante, e superfundo, do lado mais difuso ou vago. Observe-se nesse sentido um fragmento do corpus de Silveira (1991), sobre a mãe que acorda a filha para a escola: (13) Aí... ela acordou... ela tava dormindo... aí ela levantou... penteou o cabelo... aí fo/foi lá onde tava a filha dela... aí ela acordou a filha dela... aí vestiu ela... pôs a mesa para o café... elas tomaram café... Figura Fundo Aí... ela acordou... ela tava dormindo... aí ela levantou... penteou o cabelo... aí fo/foi lá onde tava a filha dela... aí ela acordou a filha dela... aí vestiu ela... pôs a mesa para o café... elas tomaram café... Na coluna da figura, a cláusula aí ela acordou a filha dela tem um nível mais proeminente do que aí ela acordou. Podemos perceber também que as duas cláusulas em fundo têm graus distintos de fundidade, já que uma apenas localiza a filha, enquanto a outra dá conta de uma característica a mais, ao identificar o estado progressivo de dormir. 2.3. Informatividade A informatividade manifesta-se em todos os níveis da codificação lingüística e diz respeito ao que os interlocutores compartilham, ou supõem que compartilham, na interação. Do ponto de vista cognitivo, uma pessoa comunica-se para informar o interlocutor sobre alguma coisa, que pode ser algo do mundo externo, do seu próprio mundo interior, ou algum tipo de manipulação que pretende exercer sobre esse interlocutor. Tradicionalmente, a parte da cláusula que apresenta a informação velha é denominada tema, enquanto a parte que apresenta a informação nova é denominada rema. Alguns exemplos presentes em Ilari e Geraldi (1985) serão retomados aqui: (14) O que trouxe, desta vez o carteiro? Desta vez, o carteiro trouxe uma encomenda. (15) O que fez, desta vez, o carteiro? Desta vez, o carteiro trouxe uma encomenda. (16) Quem trouxe a encomenda? O carteiro trouxe a encomenda. No exemplo (14), o tema é o carteiro trouxe e o rema é uma encomenda; no exemplo (15), o tema é o sujeito e o rema é o predicado; e no exemplo (16) verifica-se o contrário: o tema é o predicado e o rema é o sujeito. Na língua oral, a ênfase é o recurso mais usado para delimitar o status informacional da cláusula. Aqui a análise foi feita através de exemplos descontextualizados, mas, num texto real, o que se verifica com freqüência é a informação velha estar contida no sujeito (tema) e a nova no predicado ou parte do predicado (rema). O primeiro esforço no sentido de formular um modelo de discurso em que o grau de conhecimento compartilhado desempenha um papel essencial se deve a Prince (1981). O domínio que tem registrado mais avanço refere-se à codificação da informação nos referentes nominais. Mesmo aqui, as tipologias de status informacional são ainda muito incompletas e as escalas propostas como refinamento da dicotomia clássica entre informação velha e informação nova não cobrem todos os casos e se concentram exclusivamente nos nomes. A partir do trabalho de Prince, muitas pesquisas foram realizadas para a descrição do status informacional dos nomes em várias línguas, dentre as quais o português. Um dos trabalhos em que o tema é tratado com profundidade é a obra de Görski (1985), de onde são retirados a maioriados exemplos desta seção. O tema informatividade é tratado na lingüística funcionalista principalmente a partir da classificação semântica e da codificação de referentes no discurso, demonstrando que a forma como um referente é apresentado no discurso é determinada por fatores de ordem semântico-pragmática. Segundo Lyons (1981), a referência é a relação que se estabelece entre expressões lingüísticas e o que elas representam no mundo ou no universo discursivo. Muitos lingüistas utilizam a noção de referência. No entanto, o conceito é de difícil formulação, porque a relação entre referente e denominação envolve questões de diferentes ordens como, por exemplo, questões de ordem psicológica e social. Quando, por exemplo, uma criança chama gato e cachorro de auau, ela está tomando como parâmetro para a denominação o traço ‘quadrúpede’; ou, quando a criança usa um só nome para se referir a frutas como maçã e laranja, ela tem como parâmetro os traços ‘forma’ (círculo) e ‘tamanho’. A categorização dos objetos ou dos eventos não depende apenas da percepção, mas também da interpretação e do desenvolvimento cognitivo. O adulto, devido às suas experiências, utiliza outros traços para dar nomes a diferentes seres. Chafe (1977) postula que, antes da produção discursiva, o falante tem em mente apenas uma idéia geral acerca do evento. À medida que vai produzindo o discurso, ele organiza e detalha o conteúdo ao mesmo tempo em que situa os seres no evento e assinala os papéis que esses seres desempenham através de uma categorização adequada (cf. Chafe, 1977 e Görski, 1985). Chafe enfatiza o processo criativo da verbalização, uma vez que a estruturação da idéia se dá no momento da enunciação. O estudo da codificação de referentes é importante para entender a estruturação discursiva. O trecho da narrativa oral a seguir apresenta alguns recursos morfológicos para a codificação de referentes. Dentre eles, destacam-se os sintagmas nominais: (17) foi uma situação difícil... né? eu não sei... eu não sei onde que engloba isso... mas eu fui a Petrópolis com uma amiga que nunca tinha subido a serra... estava dirigindo há pouco tempo (...) quando a gente está voltando... começa a chover assim... torrencialmente... e fura o pneu do carro dela... e a gente nunca tinha trocado pneu... nenhuma das duas... e aquela serra totalmente deserta... né? aí a gente encostou o carro assim do lado... o carro já foi puxando (...) meu coração assim disparado... a gente desesperada... (...) desatarrachando tudo (...) a gente... demorou um pouquinho... né? aí a gente entrou no carro... estava tudo molhado (...) paramos num posto... pra ver se estava tudo bem atarrachado e tal... aí o mecânico falou que... (φ) não sabia qual o homem que tinha apertado aquilo ((riso)) (Corpus D&G/RJ). A partir desses elementos destacados, algumas questões são levantadas: a) o que levaria um informante a produzir uma anáfora zero ao invés de um SN pleno ou um pronome em que φ não sabia qual o homem que tinha feito aquilo? (O símbolo φ representa um sintagma elíptico); b) por que o informante apresenta um SN longo com uma cláusula adjetiva em uma amiga que nunca tinha subido a serra? c) por que a expressão o mecânico é apresentada como uma informação definida, se é a primeira vez que aparece no texto? d) por que a segunda menção da expressão o carro, em aí a gente encostou o carro assim do lado... o carro já foi puxando é codificada através de um SN pleno mesmo quando a sua última menção está muito próxima (a informação é previsível)? e) por que há tantos recursos gramaticais para codificar referentes? Essas e outras questões são tratadas pelos lingüistas funcionalistas através do estudo do tema informatividade. Prince (1981) classifica os referentes (ou entidades) do discurso a partir da noção de conhecimento compartilhado, que é assim descrito: “O falante assume que o ouvinte conhece, admite ou pode inferir algo particular (sem estar necessariamente pensando nisso)” (p. 235). Organiza as entidades em três grupos: novas, evocadas e inferíveis. Um referente é novo quando é introduzido pela primeira vez no discurso (como no exemplo 18). Quando o referente é inteiramente novo é chamado novo-em-folha. Se já está na mente do ouvinte, por ser geralmente um referente único (num dado contexto), é chamado disponível. São exemplos de referentes disponíveis termos como a lua, o sol ou Pelé ou Petrópolis (como no exemplo 19). Os referentes novos-em-folha podem vir ancorados a outras entidades, como é mostrado no exemplo (20), em que o referente um rapaz é novo, mas apresenta uma cláusula adjetiva que “ancora” esse referente a um referente conhecido, que é a pessoa que fala (eu). (18) Comprei um carro semana passada. (19)... mas eu fui a Petrópolis. (20) Um rapaz com quem trabalho foi assaltado ontem. Um referente pode ser evocado ou velho se já tiver ocorrido no texto (referente textualmente evocado) ou se estiver disponível na situação de fala (referente situacionalmente evocado), como os próprios participantes do discurso: (21) aí o mecânico falou que... (φ) não sabia qual o homem que tinha apertado aquilo ((riso)) (Corpus D&G/RJ). (22) Você poderia me dizer as horas? Para Chafe (1976), a distinção novo e evocado (ou velho) é determinada pelo falante e está relacionada ao conhecimento que ele presume que o ouvinte tenha. Assim, numa frase como Vi seu irmão ontem, o referente seu irmão é novo, porque o ouvinte provavelmente não estava pensando no irmão no momento. Um referente denomina-se inferível quando é identificado através de um processo de inferência (exemplos 23 e 24) a partir de outras informações dadas. As entidades inferíveis podem estar contidas em outras que já fazem parte do modelo de discurso, como evocadas ou mesmo inferíveis, como nos exemplos (25) e (26). Os referentes inferíveis geralmente são codificados com um artigo definido: (23) O ônibus parou e o motorista desceu. (24).... paramos num posto... pra ver se estava tudo bem atarrachado e tal... aí o mecânico falou que... não sabia qual o homem que tinha apertado aquilo ((riso)) (Corpus D&G/RJ). (25) A beirada da mesa está suja. (26)... e fura o pneu do carro dela... O referente codificado como o motorista é inferível porque foi mencionado o referente o ônibus: há um consenso de que ônibus têm motoristas. No exemplo (24), a informante toma como um consenso que num posto haja mecânico e apresenta o referente como inferível. No exemplo (25), há também um conhecimento compartilhado de que mesas tenham beiradas. Neste caso, o sintagma nominal a beirada está contido em outra expressão referencial, a mesa. Em (26), o referente o pneu (contido em outra expressão referencial) é inferível, uma vez que no discurso precedente a informante diz que subiu a serra de Petrópolis com uma amiga que estava dirigindo há pouco tempo. Görski (1985) utiliza a taxonomia de Prince e propõe algumas alterações para dar conta de determinadas formas de se codificar referentes não previstas no modelo de Prince. Aqui serão destacados os seus principais resultados. Os SNs que representam referentes novos são geralmente introduzidos por meio de SNs indefinidos, morfologicamente marcados (com artigo indefinido) ou não: (27) Quando eu vinha de Turiaçu pra cá, vinha um caminhão, entrou numa curva, então ele acabou de entrar na curva ele pegou um ônibus. (28) Eu tinha levado comida. Os SNs novos no discurso, porém disponíveis no universo espacial ou cultural do ouvinte, são representados por SN definidos: (29) Passei um mês no Souza Aguiar. [Hospital de pronto socorro no Rio de Janeiro] Os referentes evocados são codificados por anáfora zero, por pronome, por advérbio ou por SN definido, como, respectivamente, é ilustrado a seguir: (30) Eu tinha levado comida(φ) tinha levado frango, (φ) tinha feito arroz de forno. (31) Ele botou uma moça pra morar lá em casa comigo aí eu fui confiar nela. (32) Eu fui num baile à fantasia né (...) foi em Paquetá (...) chegamos lá (...). (33) Eu vi uma velha cair, coitada, segurei a velha. Görski concluiu que, numa narrativa, os personagens principais geralmente são codificados através de pronomes ou de anáfora zero, enquanto os secundários são identificados por SN pleno, como no exemplo (34) em que o personagem principal é o amigo do marido e o personagem secundário é o médico. Os referentes humanos, na função de sujeito, são geralmente codificados por anáfora zero (exemplos 21 e 30), enquanto os referentes não-humanos são freqüentemente representados por SN plenos, mesmo quando evocados (exemplo 35): (34) Meu marido tem um amigo que φ era campeão de natação, φ tinha várias medalhas, φ era um atleta. Um dia surgiu um caroço, ou qualquer coisa parecida, nas suas costas, ele foi ao médico. O caso era simples porque o caroço ainda estava pequeno, mas não existia ainda tecnologia para este tipo de cirurgia no Brasil. O médico estava sendo treinado por uma equipe francesa para realizar este tipo de cirurgia. Ele foi a França com o médico e o caso foi analisado pelos médicos de lá. (Corpus D&G/RJ) (35) aí a gente encostou o carro assim do lado... o carro já foi puxando Givón (1990) explica a codificação dos referentes em termos do subprincípio da quantidade (cf. seção 2.1). No que diz respeito à referência, esse princípio funciona da seguinte forma: “Quanto mais previsível/acessível for uma informação para o interlocutor, menor quantidade de forma será utilizada”. Votre (1992) exemplifica o funcionamento desse subprincípio com o seguinte trecho de uma narrativa oral: (36) Quando eu tinha uns dois ou três anos... meu pai chegou em casa do trabalho à noite e falou pra mim que tinha uma surpresa... aí... ele me deu um pacote... eu abri... e era um cachorrinho de borracha, desses que a gente aperta e faz barulho. Na cláusula e falou pra mim, por exemplo, o referente-sujeito (meu pai) foi codificado através de anáfora-zero, porque é um referente bastante previsível, uma vez que foi mencionado na cláusula anterior. Na cláusula era um cachorrinho de borracha, desses que a gente aperta e faz barulho, a expressão referencial destacada é codificada com muita forma (grande quantidade de massa fônica), porque o referente é imprevisível, isto é, não está acessível à mente do interlocutor, havendo necessidade de maiores especificações. Os recursos gramaticais usados para representar ou codificar referentes são apresentados de forma escalar, dos mais previsíveis aos menos previsíveis: anáfora zero, pronome, SN definido e SN indefinido. Como foi mostrado, esses recursos estão disponíveis nas línguas para codificar a informatividade de um referente nominal a partir do conhecimento compartilhado entre os interlocutores. 2.4. Gramaticalização e discursivização Entre os lingüistas, o debate sobre a origem e o desenvolvimento das categorias gramaticais não é recente. No século XIX, por exemplo, acompanhando a orientação diacrônica e comparada do período, encontramos importantes estudos nessa área. Dentro do quadro da lingüística funcional, a gramaticalização e a discursivização são fenômenos associados aos processos de regularização do uso da língua. Ou seja, relacionam-se à variação e mudança lingüísticas. Esses processos manifestam o aspecto não-estático da gramática, demonstrando que as línguas estão em constante mudança em conseqüência da incessante criação de novas expressões e de novos arranjos na ordenação vocabular. A compreensão é a de que, do ponto de vista de sua evolução, a gramática está num contínuo fazer-se, o que nos permite falar de uma relativa instabilidade da estrutura lingüística. É sob esse aspecto que se deve a Hopper (1987) a noção de “gramática emergente”, no sentido de que a gramática de uma língua natural nunca está completa. Do ponto de vista sincrônico, entende-se por gramática o conjunto de regularidades decorrentes de pressões cognitivas e, sobretudo, de pressões de uso. O termo discurso está relacionado às estratégias criativas utilizadas pelo falante para organizar funcionalmente seu texto para um determinado ouvinte em uma determinada situação comunicativa. Por um lado, o discurso é tomado como o ponto de partida para a gramática; por outro lado, é também seu ponto de chegada. Quando algum fenômeno discursivo, em decorrência da freqüência de uso, passa a ocorrer de forma previsível e estável, sai do discurso para entrar na gramática. No mesmo sentido, quando determinado fenômeno que estava na gramática passa a ter comportamentos não previsíveis, em termos de regras selecionais, podemos dizer que sai da gramática e retorna ao discurso. Assim, na trajetória dos processos de regularização do uso da língua, tudo começa sem regularidade, exatamente por estar no seu começo, mas se regulariza com o uso, com a repetição, que passa a exercer uma pressão tal que faz com que, o que no começo era casuístico, se fixe e se converta em norma, entrando na gramática (gramaticalização). No momento de estabilização, verifica-se o nível de iconicidade maior, isto é, relação transparente entre expressão e conteúdo, o que resulta no máximo de economia comunicativa e no máximo de rentabilidade sistemática. Essa estabilidade, entretanto, é relativa e aparente. O que foi sistematizado entra em um processo de desgaste, com liberdade progressiva da expressão em termos de restrição de ocorrência, e com liberdade progressiva do conteúdo em termos de desbotamento e esvaziamento semântico. Assim, as unidades migram para um nível não-gramatical, no sentido de que elas deixam de obedecer às restrições de seleção, e literalmente retornam ao discurso (discursivização). O processo de gramaticalização privilegia: a) a trajetória dos elementos lingüísticos do léxico à gramática (Ex.: verbo pleno > verbo auxiliar); b) a trajetória de categorias menos gramaticais para categorias mais gramaticais, como o de categorias invariáveis para categorias flexionais (Ex: menos > menas). O termo gramaticalização, portanto, é tomado em dois sentidos relacionados: a gramaticalização stricto sensu se ocupa da mudança que atinge as formas que migram do léxico para a gramática; a gramaticalização lato sensu busca explicar as mudanças que se dão no interior da própria gramática, compreendendo aí os processos sintáticos e/ou discursivos de fixação da ordem vocabular. Como exemplo de gramaticalização stricto sensu, podemos citar a pesquisa de Silva (2000) sobre a trajetória de mudança de ir , que acumula as funções de verbo pleno e auxiliar, conforme signifique deslocamento espacial ou deslocamento temporal, como nos exemplos (37) e (38), respectivamente: (37)... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato... ele pega o gato... entra no carro e vai embora... (Corpus D&G/Natal, p. 308). (38) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p. 363). O estudo de Oliveira (2000) exemplifica a gramaticalização lato sensu. A autora investiga o deslizamento de sentido do item onde, cuja mudança se dá dentro da própria gramática. De pronome relativo, com sentido de espaço físico (ex. 39), onde passa a designar também espaço de tempo (ex. 40), evoluindo até a categoria de marcador discursivo, desprovido de significado lexical e utilizado como um recurso coesivo para organizar e planejar o turno (ex. 41): (39)... no banheiro nós vamos encontrar... uma prateleira... onde fica os utensílios pessoais... (Corpus D&G/Natal, p. 309). (40)... depois disso... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas maisou menos... (Corpus D&G/Natal, p. 304). (41)... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua... pedindo para... ser implantado a pena de morte no Brasil... deveria estar lutando por outras... por outros métodos... outros objetivos... de melhores condições de vida... de melhor educação para os seus filhos... onde as pessoas poderiam viver num país bom... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314). No ponto extremo do contínuo de mudança, localiza-se o processo de discursivização, que focaliza a trajetória de retorno dos elementos da gramática ao discurso. Estudando a trajetória de mudança semântica que caracteriza os usos da partícula né? (não é verdade? > não é? > né?), Martelotta e Alcântara (1996) observam que essa partícula, após perder os traços semânticos básicos dos seus componentes e, concomitantemente, sofrer redução fonética, distancia-se de seu sentido original como pergunta referencial ou pergunta não-retórica e passa a desempenhar o papel de preenchedor de pausa causada pela perda da linearidade do discurso. No exemplo (42), abaixo, o informante parece perder, por um momento, a linha de raciocínio e usa o né? (ao lado de outros elementos: poxa... eu sei lá... sabe?) para preencher o vazio causado por essa perda, enquanto tenta solucionar seu problema comunicativo: (42)... mas que adianta um casamento tão lindo... gastam tanto... pra no final eh... viv/ fica dois... três dias... depois se separam... entendeu? eu acho isso aí um absurdo... porque... poxa... eu sei lá... sabe? num... né? a vida:: / tudo bem... tá tudo difícil... mas a pessoa... eu acho que a pessoa tem que saber... diretamente aquilo que quer... (Corpus D&G/Rio de Janeiro). Costa (1995) trabalha com a hipótese de o português estar sofrendo um processo de discursivização no sentido de que a categoria sintática sujeito estaria retornando da gramática ao discurso, na forma de tópico. Essa hipótese se fundamenta no pressuposto de que a categoria sujeito emerge a partir da categoria tópico. Para Givón (1979), a linguagem humana teria evoluído do modo pragmático para o sintático e, por isso mesmo, a sintaxe teria evoluído a partir do discurso. A trajetória tópico > sujeito > tópico nos remete ao caráter cíclico da trajetória lingüística sugerida por Givón (1979), que toma como marco de partida o discurso, passa pela sintaxe, pela morfologia, pela morfofonologia até retornar ao discurso, completando o círculo. A hipótese da trajetória sujeito > tópico tem como base a observação de que a estrutura tópico-comentário pode ser vista como o resultado do enfraquecimento progressivo das relações entre sujeito e verbo, tanto em termos morfossintáticos quanto semânticos, que faz com que o sujeito deixe de ter uma função intra-oracional e se desloque para fora da oração, passando a exercer o papel de tópico. Para Costa (1995), qualquer classificação sintática tanto para o SN esse acampamento (ex. 43) como para o SN a casa de minha avó (ex. 44) parece um tanto forçada. O autor observa que esses SNs se mostram relativamente independentes da oração-comentário que os segue, sem desempenharem nela qualquer função sintática. Antes, são tomados como ponto de partida da porção do discurso que os seguirá. O informante os seleciona como o elemento central a partir do qual a informação será transmitida. Trata-se, portanto, de SNs marcadamente discursivos que recebem o rótulo de “tópico”. (43)... esse acampamento todos os meus amigos foram... (Corpus D&G/Natal, p. 303). (44)... a casa de minha avó... ela é grande sabe? (Corpus D&G/Natal, p. 347). 2.4.1. Ciclo funcional e unidirecionalidade O desenvolvimento de novas estruturas gramaticais é motivado quer por necessidades comunicativas não satisfeitas, quer pela ausência de designações lingüísticas para determinados conteúdos cognitivos. Dessa forma, a gramaticalização é interpretada como um processo diacrônico e um contínuo sincrônico que atingem tanto as formas que vão do léxico para a gramática como as formas que mudam no interior da gramática. O caráter cíclico da evolução lingüística é postulado por Givón (1979), que formula o seguinte esquema processual para representar os processos diacrônicos de regularização do uso da língua, desde o ponto mais imprevisível até a fase terminal: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero. De acordo com essa trajetória unidirecional de gramaticalização, alguns itens lexicais passam a ser utilizados, no discurso, em contextos nos quais desempenham certa função gramatical, ainda não totalmente fixada. Progressivamente, via repetição, seu uso vai se tornando mais previsível e regular, resultando numa nova construção sintática com características morfológicas especiais, podendo, posteriormente, desenvolver-se para uma forma ainda mais dependente, como um clítico ou um afixo, com eventuais adaptações fonológicas. Com o aumento da freqüência de uso, essa construção tende a sofrer desgaste formal e funcional que poderá causar seu desaparecimento, dando início a um novo ciclo. Alguns teóricos funcionalistas propõem que, semanticamente, a trajetória de gramaticalização se manifesta na passagem do concreto para o abstrato. Entidades abstratas emergem da experiência humana com o mundo concreto. Traugott e Heine (1991), por exemplo, propõem a seguinte escala para representar o processo de abstratização gradativa no percurso de gramaticalização dos elementos lingüísticos: espaço > (tempo) > texto. Essa escala apresenta dois desdobramentos possíveis: num dos casos, descreve a emergência de categorias gramaticais, que têm sua origem em itens lexicais de sentido concreto. Serve de exemplo, aqui, o processo de gramaticalização de ir , conforme ilustrado nos fragmentos (37) e (38) transcritos acima e repetidos abaixo: (37)... quando ele vai atrás ele vê apenas um gato... ele pega o gato... entra no carro e vai embora... (Corpus D&G/Natal, p. 308). (38) Bem, a minha opinião sobre o namoro é que está muito avançado, porque esses rapazes de hoje não pensa do amanhã que vai ser. (Corpus D&G/Natal, p. 363). Em (37), ir está sendo usado como verbo principal, com o seu sentido primário de movimento físico. Em (38), por outro lado, ir se comporta como um verbo auxiliar marcador de tempo futuro, o que é enfatizado pelo uso do advérbio amanhã. Constata- se, portanto, que a trajetória de mudança de ir evolui do sentido mais concreto para o mais abstrato, representada pelo estágio espaço > tempo na escala de Traugott e Heine (1991). O segundo desdobramento dessa escala diz respeito à abstratização progressiva de significado de um dado elemento lingüístico sem que haja, necessariamente, mudança de categoria gramatical. Para este caso, servem de exemplo os fragmentos em (39-41), retomados abaixo: (39)... no banheiro nós vamos encontrar... uma prateleira... onde fica os utensílios pessoais... (Corpus D&G/Natal, p. 309). (40)... depois disso... teve a noite onde foi escolhido o grupo de cinco pessoas mais ou menos... (Corpus D&G/Natal, p. 304). (41)... eu acho que ao invés das pessoas sair na rua... pedindo para... ser implantado a pena de morte no Brasil... deveria estar lutando por outras... por outros métodos... outros objetivos... de melhores condições de vida... de melhor educação para os seus filhos... onde as pessoas poderiam viver num país bom... certo? (Corpus D&G/Natal, p. 314). Em (39), o onde desempenha sua função padrão de pronome relativo, com sentido de espaço físico, remetendo à prateleira. No exemplo (40), o referente de onde é a noite, que não é espaço físico mas espaço de tempo, ou melhor, é o tempo representado como se fosse espaço. O onde, então, por se referir a a noite, funciona como uma metáfora, representando, assim, um conceito mais abstrato a partir de um mais concreto. Em (41), o onde funcionacomo um mero marcador de pausas, ou seja, como meio de organizar e planejar internamente o turno. Por não ter referente recuperável, apresenta-se como um conector que é vazio de significado, podendo, portanto, ser omitido, sem qualquer prejuízo semântico para o enunciado. Referências bibliográficas BOLINGER, Dwight. 1977. Meaning and form. London: Longmans. CHAFE, Wallace. 1977. The recall and verbalization of past experience. In: COLE, Roger (ed.) Current issues in linguistic theory. Bloomington: Indiana University Press. _____. 1976. Giveness, contrastiveness, definiteness, subjects and point of view. In: LI, Charles. (ed.) Suject and topic. New York: Academic Press. COSTA, Marcos Antonio. 2000. Procedimentos de manifestação do sujeito. In: FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica. (org.) Procedimentos discursivos na fala de Natal - uma abordagem funcionalista. Natal: EDUFRN. _____. 1995. Procedimentos de manifestação do sujeito: uma análise funcionalista. Natal: UFRN. Dissertação de Mestrado. FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica. 2000. A negação no português: uma perspectiva pancrônica. 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