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56 Unidade II Unidade II 5 DIRETRIZES GERAIS DA POLÍTICA URBANA A Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b) dispõe sobre o SNHIS, cria o FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. 5.1 O que é o SNHIS? O SNHIS tem como objetivo principal implementar políticas e programas que promovam o acesso à moradia digna para a população de baixa renda, que compõe a quase totalidade do déficit habitacional do país. Além disso, esse sistema centraliza todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social, sendo integrado pelos seguintes órgãos e entidades: MCidades, Conselho Gestor do FNHIS, Caixa Econômica Federal, ConCidades, Conselhos, Órgãos e Instituições da Administração Pública direta e indireta dos estados, Distrito Federal e municípios relacionados às questões urbanas e habitacionais, entidades privadas que desempenham atividades na área habitacional e agentes financeiros autorizados pelo Conselho Monetário Nacional (BRASIL, 2020a). 5.2 O que é o FNHIS? A Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b) também instituiu o FNHIS, que em 2006 centralizou os recursos orçamentários dos programas de Urbanização de Assentamentos Subnormais e de Habitação de Interesse Social, inseridos no SNHIS. O Fundo é composto por recursos do Orçamento Geral da União e do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), dotações, recursos de empréstimos externos e internos, contribuições e doações de pessoas físicas ou jurídicas, entidades e organismos de cooperação nacionais ou internacionais e receitas de operações realizadas com recursos do FNHIS. Esses recursos têm aplicação definida pela Lei, como: aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma, locação social e arrendamento de unidades habitacionais, produção de lotes urbanizados para fins habitacionais, regularização fundiária e urbanística de áreas de interesse social ou implantação de saneamento básico, infraestrutura e equipamentos urbanos, complementares aos programas de habitação de interesse social (BRASIL, 2020a). O SNHIS surgiu de um projeto de lei de iniciativa popular apresentado ao Congresso Nacional em 1992, com mais de um milhão de assinaturas, as quais foram recolhidas com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas principalmente à Igreja Católica. Esse foi um dos quatro projetos de iniciativa popular que se tornaram lei desde que a Constituição de 1988 reservou ao povo brasileiro a prerrogativa de propor novas leis. Esse projeto de lei de iniciativa popular foi elaborado com o auxílio do FNRU, com o intuito de criar um fundo público para atender às demandas por moradia popular. Essa iniciativa surgiu no governo Collor como uma ação propositiva de entidades da sociedade civil organizada. Entre os principais atores 57 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO envolvidos, citamos a Confederação Nacional das Associações de Moradores, a Central de Movimentos Populares, a União Nacional por Moradia Popular e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (SAULE JÚNIOR; UZZO, 2009). A ementa original do Projeto de Lei n. 2.710 (BRASIL, 1992) estabelecia a criação do Fundo Nacional de Moradia Popular e do Conselho Nacional de Moradia Popular, além de outras providências. A redação final propôs alterações no projeto, e a nova ementa passou a dispor sobre o SNHIS, a criação do FNHIS e seu Conselho Gestor. Após 13 anos de tramitação e muitos embates ideológicos, a Lei n. 11.124 (BRASIL, 2005b) foi sancionada e publicada no Diário Oficial da União (DOU). Além disso, foram previstos mecanismos de controle social exercidos por meio do ConCidades e dos Conselhos Estaduais e Municipais, com função de gerir fundos de habitação com recursos orçamentários para subsidiar a baixa renda. Dessa maneira, para possibilitar o acesso à moradia pela população de baixa renda, era necessária a aprovação do projeto de lei de iniciativa popular de criação do SNHIS e FNHIS, que tramitava há 13 anos no Congresso Nacional (BONDUKI, 2009). No entanto, houve uma mudança na conjuntura política em 2005 que forçou o Governo Federal a negociar a ampliação da participação de partidos coligados no poder executivo. Entre as exigências feitas pela coalizão, a chefia do MCidades era uma das prioridades. Para evitar que a crise política se estendesse, o governo abdicou da proposta de desenvolvimento urbano integrado para as cidades brasileiras, e o SNHIS foi cada vez mais enfraquecido por meio da limitada influência dos movimentos sociais na discussão e deliberação de uso dos recursos do FNHIS (MARICATO, 2014). Portanto, não podemos negar o jogo de interesses políticos existente em torno das políticas públicas no Brasil. Observação As legislações pertinentes ao financiamento habitacional e os mecanismos de garantias habitacionais devem ser estudados e apropriados pelo assistente social, a fim de que ele realize intervenções em âmbito municipal, estadual e federal de projetos voltados à promoção social. 5.3 Política de Habitação de Interesse Social e Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) Na perspectiva de retomada dos principais instrumentos para o planejamento do setor habitacional, o MCidades coordenou a elaboração da Política Nacional de Habitação (PNH). A PNH contou com a contribuição de amplos setores sociais e foi aprovada pelo ConCidades em dezembro de 2004. Para a sua implementação, a PNH contou com um conjunto de instrumentos, sendo o principal deles o Sistema Nacional de Habitação (SNH). O SNH divide-se em dois subsistemas: o Sistema Nacional de Mercado e o SNHIS (BRASIL, 2004c). O Sistema Nacional de Mercado é composto por uma rede de agentes públicos e privados de produção e de financiamento imobiliário sujeitos às dinâmicas de mercado e regulamentações específicas. 58 Unidade II O principal objetivo do Sistema Nacional de Mercado é intensificar e diversificar a participação dos agentes privados, no sentido de promover a expansão da oferta de imóveis e crédito para a população com capacidade de arcar com financiamento imobiliário (BRASIL, 2004c). Para contribuir na ampliação da habitação de mercado, foi sancionada a Lei n. 10.931 (BRASIL, 2004d), que aprimora instrumentos como alienação fiduciária, patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias e pagamento do incontroverso, dando mais garantias jurídicas ao empreendedor e ao comprador de imóvel. Em complementação, em 2005, o Governo Federal sancionou a Lei n. 11.196 (BRASIL, 2005c), que cria mecanismos de segurança para financiamentos imobiliários e incentivos fiscais para os compradores de imóveis. Tais medidas somaram-se às alterações no direcionamento dos recursos captados em caderneta de poupança, tomadas pelo Conselho Monetário Nacional. Além de impulsionar a oferta de crédito dos agentes financeiros para a classe média, possibilitando contratações na ordem de 4,2 bilhões, essas medidas estimularam o setor da construção civil, a geração de empregos e o aumento no número de atendimentos (BRASIL, 2004c). O SNHIS é voltado prioritariamente para ações de promoção de moradia digna para a população de baixa renda. Seu principal objetivo é equacionar o problema do déficit habitacional por meio de programas e ações que invistam na melhoria das condições de habitabilidade, incorporando o saneamento ambiental, a requalificação de áreas centrais infraestruturadas, subutilizadas ou vazias, o controle do uso do solo, a urbanização e regularização fundiária de assentamentos precários (favelas e loteamentos irregulares), bem como a provisão de serviços e equipamentos públicos, considerando as diretrizes do plano diretor local (BRASIL, 2004c). Em seu Art. 2º, fica instituído o SNHIS com o objetivo de: I – viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãosque desempenham funções no setor da habitação. Art. 3º O SNHIS centralizará todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social, observada a legislação específica (BRASIL, 2005c). É importante compreender que cada legislação possui também seus princípios, assim como traz a Lei: Art. 4º A estruturação, a organização e a atuação do SNHIS devem observar: I – os seguintes princípios: 59 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO a) compatibilidade e integração das políticas habitacionais federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, bem como das demais políticas setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e de inclusão social; b) moradia digna como direito e vetor de inclusão social; c) democratização, descentralização, controle social e transparência dos procedimentos decisórios; d) função social da propriedade urbana visando a garantir atuação direcionada a coibir a especulação imobiliária e permitir o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade (BRASIL, 2005c). Quanto às diretrizes da referente Lei, temos: a) prioridade para planos, programas e projetos habitacionais para a população de menor renda, articulados no âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal; b) utilização prioritária de incentivo ao aproveitamento de áreas dotadas de infraestrutura não utilizadas ou subutilizadas, inseridas na malha urbana; c) utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social; d) sustentabilidade econômica, financeira e social dos programas e projetos implementados; e) incentivo à implementação dos diversos institutos jurídicos que regulamentam o acesso à moradia; f) incentivo à pesquisa, incorporação de desenvolvimento tecnológico e de formas alternativas de produção habitacional; g) adoção de mecanismos de acompanhamento e avaliação e de indicadores de impacto social das políticas, planos e programas; e h) estabelecer mecanismos de quotas para idosos, deficientes e famílias chefiadas por mulheres dentre o grupo identificado como o de menor renda da alínea “a” deste inciso (BRASIL, 2005c). 60 Unidade II Diante dos princípios e das diretrizes, podemos dizer que houve aprimoramentos na disponibilidade em se construir uma política nacional de habitação, mas o que é oferecido como direito à moradia não contempla a evolução das necessidades das famílias brasileiras, levando a um grande déficit habitacional. Conforme mostrado pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) (IBGE, 2019), o novo teto do problema foi atingido em 2017. Compreender o déficit nacional é recorrer à história, ainda que não se aprenda com ela. Na cidade de São Paulo, entre os anos 2000 e 2010, o IBGE aponta que a população cresceu 12,3%, enquanto o número de brasileiros vivendo em favelas subiu 70%. Entre 2008 e 2017, o salário mínimo variou 60%, enquanto os valores de aluguéis tiveram 100% de reajuste e os imóveis foram valorizados em 230%. Isso nos assegura de que a maioria dos brasileiros não possui renda para casa própria ou divide o mesmo teto com várias pessoas da família, conhecidos etc., pois não possui condições econômicas de alugar um imóvel próprio. Percebemos que, mesmo com todo o aparato legal existente nas legislações, estamos muito distantes de sanar os problemas habitacionais no Brasil. De acordo com Bonduki (1998), diversas pesquisas realizadas entre 1930 e 1940 apontaram que cerca de 20% dos orçamentos familiares eram gastos com o aluguel. Conforme mostrado na estatística a seguir, segundo os componentes do déficit, o único que apresentou elevação no período foi o ônus excessivo (ou excedente) com aluguel, que passou de 1,756 milhão de domicílios em 2007 para 2,293 milhões em 2012 (aumento aproximado de 30% em cinco anos). Ressalta-se, contudo, que o mercado de locação de imóveis urbanos pode ter sofrido da mesma alta que foi observada no mercado de compra e venda de imóveis, o que explica uma maior parcela de famílias ter comprometimento superior a 30% de sua renda familiar (KRAUSE; BALBIM; LIMA NETO, 2013). A maior redução no período de 2007 a 2012 se deu no componente habitações precárias (30%), seguida da coabitação familiar (26%). O último componente – adensamento excessivo em domicílios locados – teve em 2012 uma leve redução se comparado com o valor obtido em 2007, mas transparece sua estabilidade no período. A coabitação familiar é o fator individual que mais contribui para o déficit habitacional, correspondendo a 2,2 milhões de domicílios, com 87% localizados em áreas urbanas (KRAUSE; BALBIM; LIMA NETO, 2013). É importante compreender a relação existente entre renda familiar, poder aquisitivo, déficit habitacional, legislação e direito à moradia, pois são elementos que representam uma questão não apenas no âmbito social, mas numa projeção holística de realidade urbana, a partir de uma organização sociopolítica, socioeconômica e socioambiental que qualifica a complexidade das ações e necessidades da nossa realidade profissional, na qual podemos contribuir com ações que minimizem a questão habitacional da maioria das cidades brasileiras. Conforme Monte-Mór (2006): É nas cidades (e no campo, com articulação nas cidades) que se construíram as forças socioculturais, econômicas e políticas que formaram o Brasil, produziram seu espaço urbano-regional e ainda o fazem. Das cidades 61 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO coloniais às metrópoles atuais, os referenciais teóricos foram sendo redefinidos, adaptados, recriados para explicar processos socioespaciais e informar projetos políticos de classes e grupos de interesse, dentro e fora do Estado. De outra parte, os “lugares fora das ideias”, nas suas diversas escalas das cidades ao espaço (incompletamente) urbanizado dos nossos dias, realimentam também os modos de ver a produção do espaço urbano e regional no Brasil e forjando assim nosso planejamento urbano e regional, na relação dialética entre as teorias advindas do capitalismo avançado e sua releitura entre nós. Portanto, é preciso refletir sobre a função social das legislações existentes, que amparam a criação e execução de programas habitacionais, mas também não deixar de compreender a formação da geopolítica brasileira, uma vez que em diferentes momentos da história foram criadas diferentes visões sobre a habitação no Brasil. Quando Monte-Mór fala das forças socioculturais, econômicas e políticas, podemos compreender que a política de habitação sofreu construções e desconstruções nos diferentes olhares dentro do espaço urbano brasileiro durante séculos. Assim, é preciso resgatar a interpretação da dinâmica social e geográfica brasileira, considerando diferentes influências nacionais e internacionais, mas atuar na realidade daqueles que necessitam, pois as ideias impressas em documentos e legislações, se não ganham vida na sociedade, não transformam uma realidade. Segundo Monte-Mór (2006, p. 180): O tecido urbano, formado por essa metamorfose, estende a forma e processo socioespacial e as condições de produção para o espaço regional e nacional como um todo. Contudo, a extensão do fenômeno urbano, sintetizado pelo tecido urbano assim formado, dependerá da necessidade das indústrias quanto às demandas de produção e da reprodução coletiva da força de trabalho e de como o Estado tratará essas demandas no espaço urbano. Cada governo inicia, dentro de suas expectativas políticas, as nomenclaturas e os programas destinados à habitação, de forma a fazer cumprir o que diz o Artigo 6° da Constituição Federal de 1988: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma destaConstituição (BRASIL, 1988). É importante ressaltar que nomenclaturas e diferentes nomes atribuídos aos diversos programas habitacionaisapós a Revolução Industrial não trouxeram de fato uma solução eficaz ao déficit habitacional brasileiro, mas comungamos que, desde a Constituição Federal de 1988, a habitação se apresenta como reguladora do espaço urbano e se intensifica como direito social. 62 Unidade II Lembrete O termo déficit habitacional é utilizado para se referir ao número de famílias que vivem em condições de moradia precárias. Esse déficit está associado às moradias que estão em risco e que necessitam de nova construção, o que é diferente de moradias inadequadas, com falta de recolhimento de esgoto, de acesso à água potável e energia elétrica, de telefonia fixa, de recolhimento de lixo, entre outros fatores que interferem na qualidade de vida da população. O déficit habitacional se refere, portanto, à necessidade física de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação e é calculado a partir de quatro componentes, somados em sequência, para que haja uma compreensão dos parâmetros que envolvem a necessidade das novas habitações. É fundamental que o assistente social estude os termos da política urbana, as legislações da política habitacional em si, as formas com que elas se apresentam, as características, pois, além de ser um direito social conquistado, há muito trabalho e intervenções profissionais a serem realizadas pelo assistente social, principalmente como mediador de direitos e nos conflitos existentes nas políticas públicas e sociais. A partir da criação do SNHIS, instituído por lei e de iniciativa popular, que contou com intensa discussão entre os atores envolvidos, esperava-se que a política habitacional tomasse o caminho estabelecido para sua execução, algo que não ocorreu – isso se demonstra na dificuldade de a matéria entrar com vinculação orçamentária por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Nesse período, o que se observou por parte do Governo Federal foi a adoção de uma alternativa no que se refere à política habitacional desenhada pelo SNHIS, com a criação do PMCMV, um novo programa de habitação concebido como forma de aquecer a economia para enfrentar a crise financeira mundial que tinha repercussões no Brasil e assegurar um ganho político de curto prazo para a coalizão político-partidária do governo, que visava à continuidade de sua administração (FERREIRA et al., 2019). O PMCMV tem como principal objetivo a redução do déficit habitacional ao criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais, à requalificação de imóveis urbanos e à produção ou à reforma de habitações rurais para famílias com renda mensal de até dez salários mínimos. Com essa iniciativa, o governo buscou garantir o acesso da população de baixa renda à casa própria e influenciar o crescimento econômico com a geração de empregos (FERREIRA et al., 2019). Entretanto, para criar o PMCMV, o Governo Federal necessitou fazer barganhas e articulações políticas que permitiram que o processo tramitasse em regime de urgência e que a lei fosse aprovada com celeridade. Devido às barganhas e negociações políticas, tanto o Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano quanto a PNH foram subjugados às negociações do mercado (FERREIRA et al., 2019). 63 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO Como resposta à crise econômica mundial de 2008, que teve reflexos no crescimento econômico brasileiro, e visando à eleição que se aproximava em 2010, o governo optou pela adoção de políticas com resultados de curto prazo no que se refere ao aquecimento da economia, que incluíam a manutenção do crédito, o atendimento aos setores mais atingidos pela recessão e a sustentação dos investimentos públicos, principalmente na área de infraestrutura (FERREIRA et al., 2019). Considerando o desenho adotado para o programa, baseado na participação do setor privado, o PMCMV relegou ao segundo plano as premissas e os debates acumulados em torno do Plano Nacional de Habitação de Interesse Social. Um dos impactos mais imediatos em relação aos programas desenvolvidos no âmbito do FNHIS foi a redução dos repasses de recursos para as ações de provisão habitacional. Desde o lançamento do PMCMV, o FNHIS passou a concentrar seus recursos nas ações de urbanização de assentamentos precários e desenvolvimento institucional. Os recursos foram alocados em obras complementares de projetos em andamento, financiados com recursos do PAC, demonstrando o caráter subsidiário do FNHIS nas decisões de política habitacional (FERREIRA et al., 2019). No entanto, a dinâmica do PMCMV nem sempre leva em consideração o déficit habitacional para selecionar os municípios prioritários. Ao abdicar do papel de produtor direto de habitação de interesse social, o poder público cede à iniciativa privada a relevante tarefa de decisão sobre a localização dos conjuntos habitacionais. Na lógica de mercado, são priorizados os aspectos de viabilidade econômica dos empreendimentos e são desprezados os aspectos de reforma urbana e direito à cidade. Dessa forma, são deixados em segundo plano os instrumentos de indução do desenvolvimento urbano, a regularização fundiária e a democratização da gestão urbana, conforme previsto no Estatuto da Cidade (FERREIRA et al., 2019). O PMCMV foi criado com a finalidade de gerar demanda habitacional e impulsionar o mercado financeiro, sem propor solução para o problema da segregação socioespacial e da questão da terra, que representam entraves da política urbana brasileira. Já o SNHIS foi formulado com o intuito de ser uma política que busca discutir a reforma urbana e o direito à cidade, com diretrizes urbanas consolidadas, participação social e distribuição de competências entre os entes federados, mas não chegou a ser implementado na prática. Cada um desses períodos foi marcado por intensas relações de poder entre diferentes grupos de atores, que foram mapeados e analisados por meio de coalizões de defesa. Além disso, constatamos que a contribuição do PMCMV para reduzir o déficit habitacional no nível nacional se mostrou limitada, devido à expansão da demanda no mesmo período. No entanto, se o número de unidades habitacionais entregues pelo programa não resultou em redução efetiva do déficit, ao menos foi suficiente para conter seu avanço (FERREIRA et al., 2019). A prioridade de aplicação de recursos no PMCMV faz parte de uma estratégia de introduzir mecanismos de mercado na gestão das políticas de desenvolvimento urbano. No entanto, a redução da política ao discurso financeiro resulta em uma financeirização da política de habitação, acarretando prejuízo em relação à universalização do acesso à moradia (ROYER, 2009). Dessa maneira, o aquecimento do mercado proveniente da explosão nos preços dos imóveis no território brasileiro reafirma a segregação e amplia as desigualdades sociais (FERREIRA et al., 2019). Tendo em vista a mercantilização de direitos, o Estatuto da Cidade nos apresenta a obrigatoriedade de o Estado promover o direito à moradia, tendo mecanismos suficientes para tal: 64 Unidade II Essa obrigação, na verdade, tem dois aspectos. Um, de caráter imediato, que visa a impedir a regressividade do direito à moradia. Visa também ao impedimento de medidas e ações que igualmente dificultem ou impossibilitem o exercício do direito à moradia, como por exemplo, um sistema e uma política habitacionais que acarretem a exclusão ou medidas discriminatórias de impedimento de acesso ao direito à moradia para uma grande parcela da população. Infelizmente, esse tem sido o papel do sistema financeiro da habitação brasileiro, sendo obrigatória, portanto, a reformulação desse sistema. O outro aspecto da obrigação do Estado Brasileiro de promover e proteger o direito à moradia refere-se à intervenção e regulamentação das atividades do setor privado sobre a política habitacional, como a regulamentação do uso e acesso à propriedade imobiliária, em especial, a urbana, de modo a atender à sua função social, regulamentar o mercado deterra, dispor sobre sistemas de financiamento de habitação de interesse social e promover programas de urbanização e regularização fundiária nos assentamentos informais. Nesse último caso, contribuindo para a integração social e territorial das comunidades carentes que vivem nestes assentamentos (BRASIL, 2001). Sinalizamos a fundamentação internacionalizada ao direito à moradia, conforme o Estatuto da Cidade: O direito à moradia é reconhecido como um direito humano em diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos, nos quais o Estado Brasileiro participa. Entre tantos, destaca-se os seguintes: a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV, item 1), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 11),64 a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 (artigo V), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979 (artigo 14.2, item h), a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (artigo 21, item 1), a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976 (Seção III (8) e Capítulo II (A.3), a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Capítulo 7, item 6) (BRASIL, 2001). E também a fundamentação nacional prevista na Constituição de 1988: Por meio da emenda constitucional n° 26, o direito à moradia está previsto expressamente no artigo 6° da Constituição, que dispõe sobre os direitos sociais. O Direito à moradia como integrante da categoria dos sociais, para ter eficácia jurídica e social, pressupõe a ação positiva do Estado por meio de execução de políticas públicas, no caso, em especial, da promoção da política urbana e habitacional (BRASIL, 1988). 65 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO Podemos entender, portanto, que o PMCMV não é tratado como um programa para solução do déficit habitacional por parte do governo àqueles que realmente estão morando em barracos de madeira e lona, que não têm sequer um vínculo empregatício; não é um programa que remete a uma política urbana pública de inclusão social, uma vez que está atrelado ao ambiente privado desde 2009, tornando mercantilizada a política de direito. Observação Desde o dia 26 de agosto de 2020, as operações de financiamento contratadas com recursos do FGTS integram o Programa Casa Verde e Amarela, conforme a Lei n. 14.118/2021. Saiba mais Obtenha mais informações sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida: o que é, como funciona, público-alvo, diretrizes etc.: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Minha Casa Minha Vida. [s.d.]. Disponível em: https://bit.ly/3977NX7. Acesso em: 22 mar. 2021. 5.4 Atuação do assistente social na política urbana Para iniciarmos nosso estudo sobre políticas habitacionais, vamos compreender o significado de habitação para traçar uma linha de raciocínio utilizada pelas funções da habitação. A falta, as más condições de moradia, o inchaço das cidades, o crescimento desordenado dos bairros e o surgimento das favelas são expressões da questão social, relacionadas à habitação; portanto, caracteriza-se um dos novos espaços de atuação do assistente social. O serviço social tem como matéria-prima do seu trabalho essas expressões da questão social. Assim, cabe ao profissional o desafio de decifrar permanentemente as contradições postas na realidade e construir práticas criativas, capazes de superar as dificuldades encontradas pela população em questões como falta de moradia, ineficácia de políticas sociais, falta de equipamentos/serviços públicos, exposição a áreas de risco, condições ambientais inadequadas e ausência de participação social na gestão e no planejamento das políticas habitacionais (CFESS, 2016). Os profissionais atuam de forma a contribuir no planejamento – gestão, execução, avaliação – com ações em programas e projetos sociais e monitoramento, por meio de conselhos, órgãos públicos, ONGs e outros espaços de luta. Além dessa atuação, a ação profissional está ligada ao desenvolvimento social em programas de assentamento, regularização fundiária e remoções. 66 Unidade II Cabe destacar que os usuários do serviço social na área habitacional são sujeitos sociais e muitos não têm acesso a uma moradia digna. Eles representam uma parcela significativa da classe trabalhadora que possui renda familiar de até cinco salários mínimos. Nesse cenário, o assistente social, por meio das dimensões éticopolíticas, teóricometodológicas e técnicooperativas do fazer profissional, tem o desafio de contribuir no espaço institucionalizado com a defesa dos direitos (CFESS, 2016). Para o desenvolvimento de suas atividades, o assistente social utiliza meios teóricos para contribuir no planejamento da política de habitação e na elaboração de diagnósticos, pesquisas e projetos de intervenções, compondo a equipe multiprofissional na instituição e entidades parceiras, realizando trabalhos com as comunidades para o desenvolvimento socioeducativo, a inclusão social e a articulação com a rede socioassistencial e órgãos públicos. Podemos dizer que o serviço social atua em quatro etapas: • Pesquisa de campo e estudo das realidades territoriais, para nortear a construção do projeto habitacional e o plano diretor. • Construção de instrumentos de planejamento. • Implantação e execução dos projetos, diretamente ou indiretamente, ou seja, contato face a face com os sujeitos. No caso de regularização ou remoção da população, esse vínculo se estende ao conhecimento da realidade e da organização da comunidade envolvida nesse processo. • Finalização do processo e acompanhamento pós-entrega dos conjuntos habitacionais ou do processo de remoção. Não podemos esquecer que a habitação engloba o seu entorno, visando à qualidade de vida dos sujeitos. Portanto, cabe ao profissional articular os recursos nas proximidades para receber esses novos moradores. Quanto aos recursos não existentes, cabe a ele propor e defender a construção de equipamentos públicos para atendimento à população, como centros de saúde, centros de referência de assistência social, escolas, meios de transporte e lazer, promovendo a participação da comunidade nesse processo e na defesa dos seus direitos, por meio de conselhos municipais, organizações e associações de moradores (CFESS, 2016). O trabalho do assistente social deve ser compreendido no espaço da complexidade – por isso a necessidade de se trabalhar de forma multidisciplinar. Precisamos compartilhar os saberes para construir intervenções no coletivo pautadas na garantia dos direitos e na promoção da qualidade de vida dos sujeitos. 67 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO Saiba mais Para entender melhor o papel do assistente social na habitação, leia os artigos a seguir: CFESS. Atuação de assistentes sociais na política urbana: subsídios para reflexão. Brasília, 2016. Disponível em: https://bit.ly/39249he. Acesso em: 12 mar. 2021. REZENDE, C. J. S. et al. A atuação do assistente social na habitação sob a ótica dos novos espaços sócio ocupacional. Cadernos de Graduação - Ciências Humanas e Sociais - Unit, Aracaju, v. 1, n. 2, p. 137-146, mar. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3c9p9EI. Acesso em: 12 mar. 2021. Diante da mundialização do capital (CHESNAIS, 1996), com seus impactos destrutivos no emprego, nos salários e nos sistemas de proteção social, e dadas as formas particulares da crise do capitalismo assumidas no contexto brasileiro, um dos mais importantes desafios do assistente social é analisar e buscar explicações sobre a realidade social numa perspectiva de totalidade, identificando suas múltiplas determinações e reconhecendo as contradições em tempos de concentração da riqueza e intensa desigualdade social, para um agir profissional com ética, comprometido com as necessidades dos trabalhadores (CFESS, 2016). Na particularidade do capitalismo brasileiro, as emergências políticas e sociais se veem diante de uma forma dependente de desenvolvimento que reestruturao Estado, cujas ações intervencionistas se voltam para o aprofundamento da acumulação capitalista e têm nas cidades o lócus das mais diversas expressões da desigualdade social, econômica, política e ambiental (CFESS, 2016). As cidades caóticas e marcadas pela pobreza do século XXI representam, na atualidade, “a mais acabada materialização territorial e espacial das contradições do sistema produtor de mercadorias” (BURNETT, 2012, p. 101). No caso brasileiro, segundo Maricato (2011), a herança escravocrata e o desprestígio do trabalho, o patriarcalismo e a privatização da esfera pública, o personalismo e a rejeição às relações impessoais e profissionais, o clientelismo e a universalização da política do favor contrariamente ao reconhecimento dos direitos, além da tradição autoritária negando a cidadania, estão presentes em cada m² da cidade periférica (CFESS, 2016). Para localizar o trabalho de assistentes sociais no contexto da política urbana, é fundamental considerar a direção social dada pelo projeto ético-político profissional, cujos fundamentos históricos e teórico-metodológicos, orientados por valores e princípios éticos numa perspectiva totalizante e crítica (BARROCO, 2001), comparecem no conjunto das regulamentações profissionais, como a Lei n. 8.662, de 1993, de regulamentação da profissão (CFESS, 1993), o Código de Ética do Assistente Social, de 1993 (CFESS, 2012), as Diretrizes Curriculares para o Curso de Serviço Social da ABEPSS, de 1996, e a Política Nacional de Estágio da ABEPSS, de 2009. 68 Unidade II O espaço se define não a partir dos seus resultados finais mais imediatos e visíveis, tais como se apresentam na paisagem urbana de nossas cidades; mas sim por meio da compreensão do seu processo de produção social, que articula, concomitantemente, as dimensões material e simbólica das relações sociais. Assim, o espaço supõe ao mesmo tempo diferentes dimensões e temporalidades contraditórias da práxis social (CFESS, 2016). Como afirma Lefebvre (2008, p. 40), o desafio da crítica marxista está na seguinte compreensão dialética: “qual é a relação entre o espaço mental (percebido, concebido, representado) e o espaço social (construído, produzido, projetado, portanto, notadamente o espaço urbano), isto é, entre o espaço da representação e a representação do espaço?” São muitos os mecanismos pelos quais a cidade reproduz a desigualdade social, explicitando a ausência do direito à cidade, na apropriação desigual dos espaços na lógica entre legislação urbana, serviços públicos e obras de infraestrutura (MARICATO, 2013). Os traços que desenham o perfil da sociedade brasileira são definidos historicamente por uma estrutura fundiária que privilegia a concentração de terra, de renda e de riqueza, em um processo que teve seu principal marco histórico na Lei de Terras de 1850, que instituiu a propriedade fundiária no país. Essa desigualdade social está presente nos condomínios fechados, alimentando uma sociabilidade enclausurada que rejeita a vida pública, estabelecendo com a cidade a prática da segregação (CALDEIRA, 2000). Está nas cidades nas quais a classe trabalhadora se vê pressionada a construir suas moradias em encostas inseguras, em áreas de preservação ambiental, ou a viver em conjuntos habitacionais edificados em áreas periféricas, sem equipamentos sociais e sem infraestrutura urbana, em razão do preço da terra mais barata. Está na separação que se faz entre campo e cidade, nos impactos pela expansão do agronegócio, na construção de grandes obras, como as barragens, e na expansão das commodities, que estabelecem o preço dos alimentos. Está na violação dos direitos humanos pelos despejos que sofrem as populações que moram em favelas e loteamentos não reconhecidos pelo poder público, reféns de uma dinâmica urbana definida pelo capital imobiliário e pela supervalorização do título de propriedade (MULLER, 2012). São, pois, transformações alimentadas por relações mercantis, em um mundo urbano no qual a qualidade da vida está condicionada por um intenso individualismo, que determina “as formas espaciais de nossas cidades, que consistem progressivamente em fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados mantidos sob constante vigilância” (HARVEY, 2012, p. 81). Em síntese, a ausência do direito à cidade resulta das consequências de profundas contradições sociais presentes nos espaços urbanos, fomentadas pela sociabilidade do capital, cujos desdobramentos configuram uma segregação espacial funcional ao sistema, alimentam a desinformação e desorganização política dos subalternizados, disseminam a violência e provocam a omissão da política social, substituída por uma polícia ostensiva e onipresente e um aparato penal (WACQUANT, 2001). A luta pela cidade é a luta pela cidadania, pelo direito de todos ao trabalho, à educação, ao lazer, à saúde, à habitação, à criação, à participação política, à cidade como fruição. Nesse sentido, a produção 69 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO do espaço é social e, portanto, pressupõe uma relação orgânica entre produção e reprodução de novas relações sociais (CFESS, 2016). Como afirma Harvey (2009), o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Diante de uma sociedade capitalista cada vez mais destituída de direitos, a implementação da política urbana coloca-se como possibilidade de distribuição da riqueza socialmente produzida. Tal distribuição se expressa na moradia adequada, na disponibilidade dos serviços de saneamento e infraestrutura, na qualidade do transporte coletivo e na mobilidade, nos serviços e equipamentos urbanos, no uso da cidade respondendo à diversidade da dinâmica societária, independentemente de etnia, idade, orientação sexual, religião e capacidades (CFESS, 2016). O trabalho social na política urbana, exercido por assistentes sociais sob a direção do projeto ético-político, deve estar orientado na perspectiva do direito à cidade (CFESS, 2016). Nesse sentido, o desafio está na apropriação do “seu significado social no processo de reprodução das relações sociais, ante às profundas transformações que se operam na organização e consumo do trabalho e nas relações entre o Estado e a sociedade civil com a radicalização neoliberal” (IAMAMOTO, 2009, p. 368), refletidas na questão urbana. Tudo isso exige a apreensão das determinações políticas, econômicas e sociais que demarcam as condições objetivas do trabalho do assistente social na sociedade brasileira contemporânea, para qualificar a intervenção profissional na multidimensionalidade da problemática social que se revela no espaço urbano, numa perspectiva de totalidade (CFESS, 2016). Portanto, é na dinâmica da vida social, dadas as condições históricas e conjunturais, que devem estar referenciados os elementos do trabalho social, tendo em vista sua relação com determinado projeto profissional e a conexão com um projeto societário, “cujo eixo central vincula-se aos rumos da sociedade como um todo” (TEIXEIRA; BRAZ, 2009, p. 189). Conforme Guerra (2012), não há neutralidade na intervenção profissional, e a direção política do trabalho social se baseia no compromisso assumido com o projeto ético-político da profissão, que é qualificado por Netto (1999) como um conjunto de valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, institucionais e práticos) para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais e estabelecem as balizas de sua relação com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições sociais. As referências históricas na construção desse projeto merecem ser permanentemente lembradas, por serem resultado delutas coletivas que possibilitaram saltos qualitativos na trajetória profissional e respostas profissionais orientadas por questões teórico-metodológicas e ético-políticas (CFESS, 2016). 70 Unidade II A apreensão das determinações e a visão histórico-processual da realidade são elementos que contribuem para identificar os limites dados pela estrutura econômica capitalista e alimentar a convicção de que tudo se move, se transforma, se desenvolve, porque são processos; mas só se tornam processos pela ação dos indivíduos, sujeitos capazes de transformar a história (CFESS, 2016). Nesse sentido, o trabalho social exercido pelo assistente social na política urbana demanda: • Conhecimento teórico-metodológico que propicie aos profissionais a compreensão da realidade social e o reconhecimento das demandas e possibilidades de ação profissional. • Capacitação técnico-operacional que possibilite a construção e identificação de mediações, para fortalecer as lutas dos movimentos sociais, com vistas a outra sociabilidade. • Pressupostos ético-políticos no desenvolvimento de ações que se orientam em princípios e valores ontológicos fundamentais, como liberdade, equidade, universalidade, socialização da riqueza e emancipação, e nas formas de comportamento, como respeito à diversidade, defesa da autonomia e da alteridade, recusa do arbítrio, do autoritarismo, da discriminação e do preconceito (BARROCO, 2009). Os subsídios para a atuação profissional na política urbana têm como fundamento a tese de Iamamoto e Carvalho (1982), na qual a profissão é afirmada como uma especialização do trabalho coletivo no quadro do desenvolvimento capitalista industrial e da expansão urbana (IAMAMOTO, 2007). Por isso, são princípios e diretrizes do trabalho formular e desenvolver projetos de intervenção que viabilizem o acesso de segmentos da classe trabalhadora aos direitos, pela mediação da política urbana e dos diferentes programas das políticas setoriais, com a implementação de serviços com qualidade, mobilizando e estimulando os sujeitos sociais em processos participativos e de organização popular (CFESS, 2016). Essa atuação ocorre sob dois grandes eixos: numa perspectiva coletiva, junto aos movimentos sociais, nos processos de participação e organização popular; e numa perspectiva individual e/ou grupal, com vistas a construir respostas às necessidades básicas dos sujeitos usuários da política urbana, no acesso aos direitos, bens e equipamentos públicos. Portanto, o trabalho do assistente social se fundamenta nas reflexões construídas sobre as funções privativas profissionais (Art. 5º do Código de Ética do Assistente Social, de 1993), para a construção de: [...] estratégias para fazer frente à questão social, [que] têm sido tensionadas por projetos sociais distintos, que convivem em luta no seu interior, os quais presidem a estruturação e a implementação das políticas sociais públicas e dos serviços sociais atinentes aos direitos legais inerentes aos poderes do Estado – legislativo, executivo e judiciário (IAMAMOTO, 2012, p. 54). Essas reflexões permitem compreender que a inserção do serviço social na divisão sociotécnica do trabalho define a forma e o conteúdo do trabalho do assistente social na política urbana. A partir dessa 71 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO inserção, as condições e relações de trabalho – existentes no âmbito específico dessa política e no contexto mais amplo das transformações do trabalho – expressam situações concretas de subordinação e/ou autonomia do assistente social como sujeito e força de trabalho. Logo, os processos de trabalho desse profissional na política urbana são constituídos e mediados pelas contradições e determinações sócio-históricas, advindas das relações sociais de produção e reprodução capitalistas (CFESS, 2016). O assistente social está inserido como trabalhador, a partir das ações do capital, do Estado e da classe trabalhadora na dinâmica contraditória de produção social do espaço (CFESS, 2016). A política urbana não esgota o urbano, mas é uma das principais formas de regulação e produção do espaço. Assim, torna-se necessário compreender o papel, os interesses e as formas de ação e organização da cadeia produtiva imobiliária, do Estado e da classe trabalhadora frente à política urbana e à produção do espaço (CFESS, 2016). As ações profissionais na política urbana devem ser feitas no campo da intersetorialidade, o que significa considerar conhecimentos e práticas de profissionais de outras áreas de conhecimento, os quais, apoiados na dimensão da totalidade, possibilitam estabelecer uma interlocução necessária para “superar a fragmentação dos saberes” e romper “com a naturalização, a psicologização e a moralização das expressões da questão social” (ORTIZ, 2010, p. 333). Isso assegura as condições de acesso às políticas e aos direitos, além de ajudar a fortalecer os sujeitos coletivos e estimular a apropriação do espaço público de forma participativa (CFESS, 2016). Nos processos participativos, a organização política das classes populares consolida espaços de poder e permite a ampliação da visão de mundo, com o salto do senso comum para o senso crítico. Espaços de participação são espaços de poder, de mudanças sociopolíticas, porque são espaços possíveis de enfrentamento das contradições e dos conflitos de classe. A partir do exposto, serão apresentadas as principais ações desenvolvidas pelo assistente social, sob os pressupostos da autonomia profissional, que, ainda que relativa (IAMAMOTO, 2009), expressa uma perspectiva de classe. As ações são: • De caráter socioeducativo: — Atuar na perspectiva da totalidade contra uma visão fragmentada da realidade social. — Construir o perfil socioeconômico da população usuária da política urbana, evidenciando as condições determinantes e os condicionantes da precarização do modo de vida, com vistas a possibilitar a formulação de estratégias de intervenção e a produção de informação qualificada. — Entender o cadastramento que é realizado com famílias e grupos sociais, usuários da política urbana, como um importante instrumento de informações e identificação de demandas, que possibilita a apreensão tanto de suas expressões culturais, políticas e econômicas quanto das múltiplas faces da violência. 72 Unidade II — Promover espaços de discussão com a população, problematizando a realidade, em um exercício permanente de conhecimento e análise da realidade. — Identificar as representações e problematizar as percepções que os grupos sociais têm sobre sua realidade social. — Garantir espaços e processos de reflexão contínua para propiciar o entendimento das instituições públicas e seus vínculos sociais. — Conhecer e mobilizar a rede de serviços, tendo por objetivo viabilizar os direitos sociais. — Conhecer e articular a rede de sujeitos coletivos que atuam no espaço urbano. — Democratizar as informações por meio de orientações, individuais e coletivas, tendo claras as singularidades e particularidades das famílias e dos grupos sociais usuários da política urbana. — Democratizar os encaminhamentos quanto aos direitos da população usuária da política urbana. — Facilitar a socialização de experiências entre os sujeitos sociais, possibilitando o fortalecimento de relações e vínculos sociais. — Desenvolver metodologias de trabalho que contribuam para o fortalecimento das relações de identidade e pertencimento no espaço urbano. — Utilizar metodologias de trabalho que contribuam para a socialização do conhecimento das áreas habitadas pela população, com vistas à apropriação das potencialidades dessas áreas. — Elaborar e/ou divulgar materiais socioeducativos como folhetos, cartilhas, vídeos, cartazes e outros que facilitem o conhecimento e o acesso dos sujeitos sociais aos serviços oferecidos pela política urbana e aos direitos em geral. — Fomentar ações que permitam uma compreensão abrangente das questões que afetam a população envolvida em projetos e obras, comvistas ao entendimento mais profundo da realidade e na busca de alternativas para agir sobre essa realidade. — Incentivar a troca de experiências entre diferentes grupos sociais para que, num processo de interação, formulem propostas e realizações de interesses comuns. — Orientar a população envolvida em projetos e obras de urbanização a exigir tempo e condições de participar de todo o processo, com vistas a minimizar os impactos das intervenções. — Contribuir para que todas as informações sobre projetos e obras de urbanização estejam facilmente acessíveis para a população envolvida com bastante antecedência. 73 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO — Exigir o cumprimento do direito à participação no planejamento das ações, nos casos de desalojamento compulsório, remoção e reassentamento de famílias e grupos sociais, que provocam impactos significativos na vida dos grupos sociais atingidos. — Denunciar ao Ministério Público Estadual e Federal e à Defensoria Pública, em parceria com os movimentos sociais e outras entidades comprometidas na luta pelos direitos, o não acesso às informações das intervenções de desalojamento compulsório, remoção e reassentamento que envolvem famílias e grupos sociais. — Atuar junto a todos os envolvidos nos projetos e nas obras de urbanização, para que as intervenções realizadas não signifiquem segregação ou discriminação contra a população. — Valorizar e preservar a memória e a história social do lugar e de seus moradores como elemento definidor das relações de uso do espaço urbano, na perspectiva do fortalecimento do direito à diversidade cultural. — Construir, na práxis cotidiana, a possibilidade de escolha ética diferente da barbárie, identificando as possibilidades de enfrentamento das questões concretas de violação dos direitos. — Fomentar debates para capacitar os grupos sociais usuários da política urbana e outros sujeitos coletivos para a identificação da violação aos direitos. — Debater e socializar, com os grupos sociais usuários da política urbana e outros sujeitos coletivos, os PLHIS, as legislações, as políticas e programas sociais e os recursos dos empreendimentos e obras, de forma a ampliar o escopo dos argumentos na defesa dos direitos. — Estimular a busca de alternativas face às dificuldades que tendem a inviabilizar o acesso aos direitos. — Identificar os mecanismos que facilitam e/ou dificultam o acesso das famílias e dos grupos sociais à política urbana. — Promover reflexões críticas sobre as formas de classificação e nomeação do que se considera impacto socioambiental decorrente de intervenções públicas e/ou privadas no espaço urbano e/ou rural. • De caráter organizativo e de mobilização popular: — Planejar o trabalho profissional sob a perspectiva de articulação e fortalecimento dos movimentos sociais da classe trabalhadora, para não restringir a ação político-profissional, que, diante de exigências governamentais, pode assumir um caráter autoritário e controlador. — Fomentar a participação de grupos sociais usuários da política urbana, no conhecimento crítico da sua realidade, potencializando os sujeitos sociais para a construção de estratégias coletivas. 74 Unidade II — Refletir, junto aos usuários da política urbana e outros sujeitos coletivos, sobre o significado do levantamento de informações das áreas de intervenção. — Mobilizar e incentivar os grupos sociais usuários da política urbana a participar do controle democrático dos serviços que lhes são prestados. — Contribuir para discussões democráticas e para a viabilização das decisões aprovadas nos espaços de controle social. — Incentivar e fomentar o compartilhamento de processos de decisão, privilegiando a transparência das ações. — Incentivar a atuação das lideranças, contribuindo para a sua legitimidade junto aos sujeitos sociais. — Respeitar as formas próprias de organização dos grupos sociais usuários da política urbana. — Incentivar a organização dos sujeitos sociais para desenvolver processos de negociação com os setores públicos. — Identificar aspectos culturais que contribuam para fortalecer a identidade social da população usuária da política. — Promover ações que favoreçam a intersetorialidade das políticas, de forma a democratizar o acesso dos grupos sociais usuários da política urbana. — Orientar grupos sociais usuários da política urbana que sofrem os conflitos urbanos ambientais sobre os seus direitos, com relação ao acesso aos serviços básicos e à segurança na posse, porque significam direito à vida, à saúde e ao meio ambiente saudável. — Fomentar a participação de grupos sociais usuários da política urbana e dos movimentos sociais, com vistas a ampliar os espaços democráticos de decisão e construir formas de intervenção no campo minado de tensões, lutas e contradições em que se movem indivíduos e instituições, sob a regência do capital. — Mediar a construção de respostas sociais e políticas para atender às necessidades sociais da classe trabalhadora, que demanda direitos, bens e serviços necessários à reprodução de suas vidas, com vistas a reafirmar permanente e cotidianamente os valores e princípios do projeto ético-político profissional. — Debater, com os grupos sociais usuários da política urbana e com os movimentos sociais, as respostas que são construídas frente à questão urbana. Essas não devem se restringir à construção de moradias ou de reassentamento de famílias, pois isso reproduz o isolamento de grupos sociais, sem a perspectiva de desenvolvimento econômico-social. 75 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO — Debater, com os grupos sociais e os movimentos sociais, sobre a moradia como um direito social e humano, o que remete ao acesso à cidade a partir de intervenções físicas, jurídicas e sociais que garantam a segurança na posse e potencializem o enfrentamento da pobreza. — Aprofundar o debate com os grupos sociais e os movimentos sociais, com vistas a buscar mecanismos para exigir e consolidar os direitos, fazendo enfrentamento ao modelo político-econômico, que sobrepõe o econômico aos fins sociais. — Mobilizar os grupos sociais usuários da política urbana em torno de um processo de conhecimento recíproco e da articulação com formas de organizações já existentes no bairro e no espaço urbano. — Contribuir com o conhecimento técnico e ético-político na definição de pautas políticas e na agenda de luta dos movimentos sociais. — Trabalhar a inserção das famílias, dos grupos e movimentos sociais no espaço urbano, apreendendo-o como parte da cidade, a partir do desenvolvimento de sua dimensão política e de formas de resistência. — Fomentar a construção de ações autônomas das famílias, dos grupos e movimentos sociais na gestão das contradições advindas das relações sociais capitalistas. • De assessoria, supervisão e formação: — Desenvolver análises críticas das expressões da questão social na particularidade da questão urbana, para identificar mediações que sejam capazes de fazer enfrentamentos às violações dos direitos, recompondo-os e ampliando-os. — Estimular a apreensão dos instrumentos jurídicos e urbanísticos explicitados no Estatuto da Cidade, que definem que a terra e a cidade devem cumprir a função social. — Debater e socializar informações sobre a efetivação dos instrumentos urbanísticos e jurídicos para o acesso à justiça, nas demandas fundiárias e de ocupação do espaço. — Contribuir para a instrumentalidade profissional, por meio de consultas bibliográficas, de preparação de seminários sobre assuntos de interesse do trabalho, de leituras de arquivos, bancos de dados e documentos. — Desenvolver uma formação continuada, com vistas ao conhecimento da política urbana, para o aperfeiçoamento na prestação dos serviços aos grupos sociais usuários da política urbana. — Elaborar e desenvolver instrumentais e pedagogias participativas de intervenção, que possibilitem identificar as potencialidades dos grupos sociais. 76 Unidade II — Desenvolver metodologias e construirmediações que articulem e conectem a dimensão local do trabalho social com as políticas, os planos, os projetos e as diretrizes mais gerais da cidade. — Contribuir na apreensão de mecanismos que facilitem o estabelecimento e fortalecimento de vínculos com as famílias e os grupos sociais usuários da política urbana. — Reafirmar a importância do exercício profissional orientado por um plano de trabalho que articule as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa. — Conhecer e buscar qualificar, permanentemente, as diferentes etapas do trabalho social, nos diversos programas referidos à política urbana. — Reconhecer que o trabalho social tem objetivos diferentes relativos à instituição, ao profissional e à população e deve ser construído a partir de alianças com os grupos sociais usuários da política urbana e com os movimentos sociais. • De planejamento, gestão e coordenação: — Subsidiar a equipe de trabalho profissional no entendimento de que a moradia é o cenário do cotidiano de seu habitante, carregado de histórias, subjetividade, afetividades, desejos, possibilidades objetivas e subjetivas e formas de ser e viver. — Subsidiar a equipe de trabalho profissional com informações sociais, econômicas e culturais sobre os grupos sociais usuários da política urbana e sobre os movimentos sociais. — Desenvolver, junto com a equipe, um trabalho na perspectiva interdisciplinar, resguardadas as especificidades profissionais, para superar dificuldades de entendimento da linguagem técnica específica e fortalecer a integração. — Construir, junto com a equipe, formas de articulação entre as políticas setoriais urbanas e com as políticas sociais, na elaboração de projetos integrados e multidisciplinares de trabalho social. — Assumir posicionamento em favor da equidade e justiça social, na perspectiva da universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas urbanos, bem como a sua gestão democrática. — Fortalecer as lutas autônomas na defesa de interesses das classes trabalhadoras. — Fortalecer a perspectiva da gestão democrática e participativa, com controle social. — Conhecer e divulgar legislações, normativas e manuais que orientam o trabalho social. — Identificar dificuldades de estrutura e gestão e atuar para a sua superação. 77 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO — Identificar os mecanismos que potencializam o trabalho social e os aspectos estruturais e conjunturais que dificultam o processo. — Afirmar a importância dos registros e da documentação das atividades desenvolvidas. — Exigir o registro sistemático do desenvolvimento do trabalho social. — Desenvolver metodologias de intervenção participativas nos diferentes espaços de atuação profissional, tais como nas reuniões, nas visitas domiciliares e às áreas, no atendimento individual e em grupos, nas oficinas etc. — Socializar conhecimentos sobre a heterogeneidade do espaço urbano e a diversidade dos grupos sociais que convivem no espaço. — Elaborar e alimentar sistemas de informação participativos. — Assegurar espaços de reflexão teórica e política sobre o trabalho social. — Incentivar a formação de fóruns de debates, grupos de estudos interdisciplinares e diálogos com a Academia. — Garantir a transparência e a participação na definição das responsabilidades e atribuições da coordenação e gestão de programas e projetos de intervenção urbanística e social. — Acompanhar e supervisionar o uso dos recursos disponíveis, que viabilizem a execução dos programas e da política urbana. — Potencializar a formação de uma rede de serviços sociais para o fortalecimento do trabalho social. — Criar condições para explicitar conflitos interdisciplinares e desenvolver metodologias de caráter político-pedagógico para gerenciá-los. — Atuar nos processos de monitoramento da política urbana, de forma a contribuir para sua permanente avaliação frente às necessidades sociais e à dinâmica da realidade socioinstitucional. — Elaborar formas de planejamento do trabalho social, articuladas com outros planejamentos, como o Plano Nacional de Direitos Humanos, o Plano Local de Habitação de Interesse Social e o Plano Diretor Participativo. — Ocupar e qualificar profissionalmente os diversos espaços de planejamento da política urbana, nas suas diferentes escalas municipais, estaduais e federal. As cidades brasileiras, atravessadas pelos conflitos e contradições que tensionam os diferentes sujeitos que nelas habitam, são espaços marcados pelo modelo neoliberal empreendedorista, que se 78 Unidade II desenvolve sob a lógica das relações capitalistas, nos programas e projetos urbanísticos que reproduzem a periferização, a segregação social, a violência urbana, a degradação ambiental, a precariedade das moradias sem infraestrutura e distantes dos equipamentos sociais, com transportes coletivos também precários (CFESS, 2016). Os marcos liberais do capitalismo privilegiam um modelo político econômico que sobrepõe os fins econômicos aos sociais, abrindo espaço para um processo de reestruturação urbana que alimenta a especulação imobiliária e a disputa pelo acesso à terra e pelo controle do uso e da ocupação do solo (CFESS, 2016). As formas de ocupação e apropriação da terra no Brasil foram fundamentais para a consolidação do Estado nacional e a formação das classes sociais. A consolidação da propriedade privada no Brasil tem suas consequências até hoje, ao deixar intocada a questão da terra, concentrando riqueza e poder, e tornando a classe trabalhadora refém dessa base econômica. São elementos fundamentais para entender a dinâmica das cidades brasileiras sob a sociabilidade do capital e para impulsionar a retomada das dimensões valorativas e emancipatórias presentes no ideário da reforma urbana, na defesa da função social da propriedade e na luta por cidades que atendam às necessidades coletivas e garantam os direitos de todos ao trabalho, à educação, ao lazer, à saúde, à habitação, à criação, à participação política (CFESS, 2016). O breve resgate das mudanças da política urbana no Brasil mostrou a forma como foi conduzida a organização do espaço urbano (e sua relação com o campo), no processo de produção do capital. São mudanças que revelam uma distância entre a realidade que se propõe a transformar, na defesa da função social da propriedade e da cidade, e as normas jurídicas e os programas e projetos que são desenvolvidos, incapazes de alterar as relações desiguais de acesso à terra e à cidade e de privilegiar interesses coletivos que transformem a realidade social (CFESS, 2016). No diálogo estabelecido entre o desenvolvimento da política urbana e o serviço social, buscou-se registrar as características do exercício profissional e suas particularidades em contextos históricos e políticos específicos (CFESS, 2016). É, portanto, na dinâmica de uma sociedade em mudança que o trabalho social, desenvolvido pelos assistentes sociais, afirma-se no campo da política urbana, configurando-se desde a necessidade de respaldar o controle exercido pelas classes dominantes, até o estabelecimento de alianças com os movimentos sociais e outros sujeitos coletivos, na perspectiva dos direitos e das conquistas emancipatórias da classe trabalhadora (CFESS, 2016). Diante da realidade social e sob esses parâmetros políticos, há muitos desafios na luta por cidades justas e igualitárias, que exigem dos assistentes sociais a atuação pela ampliação da esfera pública, pelo fortalecimento dos espaços democráticos de decisão e das instâncias de conquista do poder e pela garantia do acesso aos direitos. Nessa direção, o conhecimento dos dispositivos desenhados pelo sistema jurídico brasileiro, referidos ao desenho do espaço urbano (principalmente o Estatuto da Cidade), deve subsidiar reflexões e debates na implantação de políticas de ocupação do solo, de forma a atender aos 79 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO interesses coletivos, na implementação dos marcos regulatórios da política urbanae no desenvolvimento de projetos urbanísticos e sociais. Assim, reconhecemos a moradia digna como direito social e como forma de possibilitar o acesso à cidade, com segurança na posse e medidas de prevenção de despejos. Isso se traduz na defesa do direito ao saneamento como política pública e estatal, “de estratégica importância na perspectiva da saúde pública e do ambiente, considerando a universalização do acesso com qualidade aos serviços prestados e o reconhecimento do saneamento nas suas interfaces com as políticas setoriais urbanas” (PEREIRA, 2013, p. 280), com prioridade de atendimento às famílias pobres, moradoras de áreas periféricas das cidades (CFESS, 2016). A defesa da mobilidade é um direito, e a prioridade do transporte coletivo um serviço público essencial, a ser disponibilizado com qualidade e barateamento das tarifas, garantindo o direito de ir e vir e de circular livremente nos espaços na cidade. É imprescindível, portanto, a defesa de uma gestão democrática das cidades, de forma a articular o financiamento e a tomada de decisão sobre o uso e a destinação dos recursos públicos e os instrumentos de intervenção, com participação popular e controle social (CFESS, 2016). Concluímos que os assistentes sociais têm como desafio, diante da realidade brasileira, assumir o trabalho social como exercício de criação coletiva, alimentando as demandas populares por autonomia e controle social e consolidando a luta pelo direito à cidade (CFESS, 2016). 6 MOBILIDADE URBANA Por que é importante compreendermos a mobilidade urbana como matéria que influencia as intervenções do assistente social? O espaço urbano onde vivemos, caminhamos, trabalhamos, consumimos, estudamos etc., segundo Telles (2001, p. 13): é uma consequência de uma sociedade que se fez moderna, ou seja, é uma sociedade que se industrializou e se urbanizou, que gerou novas classes e grupos sociais, novos padrões de mobilidade e conflito social [...] é uma sociedade portadora de uma dinâmica associativa que fez emergir novos atores, identidades, novos comportamentos, valores e demandas. Assim, podemos afirmar que a mobilidade urbana está intrinsecamente relacionada à PNAS (BRASIL, 2005a), que define o princípio de territorialização e considera as desigualdades socioterritoriais como elemento norteador dessa política pública. Consequentemente, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) se respalda na condição socioespacial para identificar as demandas do serviço social e elaborar programas e projetos, respeitando a localização das demandas do serviço social e melhorando, assim, o acesso dos usuários aos serviços prestados pela assistência social. A Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) passou a exigir que os municípios com população acima de 20 mil habitantes, além de outros, elaborem e apresentem um plano de mobilidade urbana, com a intenção de planejar o crescimento das cidades de forma ordenada (BRASIL, 2016a). 80 Unidade II Saiba mais Para conhecer as orientações para a elaboração de um plano de mobilidade urbana, cadastre-se no site a seguir e acesse “PlanMob - Caderno de Referência para Elaboração de Plano de Mobilidade Urbana - Caderno de Referência”: Disponível em: https://bit.ly/3fca9YC. Acesso em: 23 mar. 2021. A Lei n. 12.587 (BRASIL, 2012) estabelece os princípios, as diretrizes e os objetivos da PNMU de forma clara e objetiva, visando orientar a atuação tanto do Governo Federal quanto dos estados e municípios em busca de um padrão de mobilidade urbana mais sustentável. É nas cidades onde as pessoas mais se deslocam em suas atividades diárias, sendo necessária, portanto, uma atuação conjunta entre os vários níveis de governo e a sociedade civil para garantir a construção de cidades mais saudáveis para todos (BRASIL, 2016a). A sustentabilidade é um termo muito utilizado nas últimas décadas. Esse termo surgiu no relatório desenvolvido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, apresentado em 1987, conhecido como Relatório de Brundtland ou Nosso Futuro Comum. O relatório traz a definição de desenvolvimento sustentável como aquele que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Sachs (2002 apud CAMOLESI, 2004) define oito critérios básicos para o conceito de sustentabilidade: • Social: refere-se ao alcance de um patamar de homogeneidade social, distribuição de renda e garantia de igualdade no acesso a serviços e recursos sociais. • Cultural: convivência equilibrada entre inovação e tradição, condição de autonomia com a elaboração de um projeto nacional com perfil endógeno e abertura para o mundo sem comprometimento da autoconfiança interna. • Ecológica: limitação de acesso a recursos não renováveis e preservação do potencial da natureza na reprodução dos recursos renováveis. • Ambiental: respeito à capacidade de autodepuração dos sistemas naturais. • Territorial: alocações de investimentos públicos balanceados entre as áreas urbanas e rurais, ecodesenvolvimento com conservação da biodiversidade e superação das disparidades inter-regionais. 81 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO • Econômico: segurança alimentar, promoção de um desenvolvimento econômico intersetorial equilibrado, desenvolvimento da capacidade de modernização permanente dos instrumentos de produção e soberania quanto à inserção internacional. • Política (nacional): alcance de patamares de apropriação de direitos humanos como pressuposto básico da democracia, desenvolvimento da capacidade do Estado em estabelecer uma rede de parcerias na implementação de um projeto nacional e alcance de um nível razoável de coesão social. • Política (internacional): eficiência da ONU nas medidas de prevenção de guerras, pactuação norte-sul sobre medidas de ecodesenvolvimento, controle internacional sobre o sistema internacional financeiro e de negócios, gestão responsável sobre o meio ambiente e recursos naturais globais e promoção de cooperação científica e tecnológica internacional, com flexibilização do caráter de commodity dessas áreas, conferindo-as como herança da humanidade. A Lei de Mobilidade Urbana (BRASIL, 2012) traz também o papel da União, dos estados e municípios na implantação da PNMU, ao esclarecer os direitos dos usuários dos sistemas de mobilidade e apontar as diretrizes para a regulação dos serviços de transporte público coletivo e as diretrizes para o planejamento e a gestão dos sistemas de mobilidade urbana (BRASIL, 2016a). Com relação aos princípios, a PNMU trata de conceitos abrangentes que visam orientar a implantação da política. Entre eles, destacam-se: a acessibilidade universal; o desenvolvimento sustentável; a equidade no uso dos espaços públicos e no acesso aos sistemas de mobilidade; e a gestão democrática no planejamento e na avaliação da política (BRASIL, 2016a). As diretrizes, por sua vez, são orientações sobre os caminhos que devem ser seguidos para atingir os objetivos da Lei. Assim, entre as dispostas na PNMU, destacam-se: a necessidade de integração entre as políticas setoriais de desenvolvimento urbano; a priorização dos modos não motorizados e do transporte público coletivo; a integração entre os vários modos de transporte; e a utilização de energias renováveis e menos poluentes nos sistemas de mobilidade (BRASIL, 2016a). Os objetivos definem a visão de futuro almejada para a mobilidade urbana das cidades brasileiras. A PNMU visa interferir nas cidades para que ofereçam maior igualdade de acesso às oportunidades de emprego, à saúde, à educação e ao lazer; para que trilhem o caminho de um desenvolvimento urbano mais sustentável, economicamente equilibrado, menos agressor ao meio ambiente e socialmente inclusivo; e, por fim, para que as condições de mobilidade das cidades possam evoluir continuamente, com apoio e participação de toda a sociedade (BRASIL, 2016a). De acordo com um estudo do BNDES, a maior parte dos problemas de deslocamento,que prejudicam a qualidade da mobilidade nas cidades brasileiras, está concentrada em 15 regiões metropolitanas. Enquanto o tempo médio de deslocamento nessas regiões no trecho casa-trabalho é de 43 minutos (chegando a aproximadamente 50 minutos nas RMs de São Paulo e Rio de Janeiro), nas demais regiões metropolitanas é de 27 minutos e, no restante do Brasil, de 23 minutos (BRASIL, 2016a). 82 Unidade II Podemos compreender que ter qualidade de mobilidade e deslocamento nas grandes cidades se tornou um desafio para os gestores do século XXI. Também é possível mencionar o quanto nossa saúde é afetada não somente pela poluição dos veículos motorizados, mas pelos altos ruídos do próprio movimento dinâmico das cidades. Assim, a interação entre mobilidade urbana e serviço social se pauta nos direitos e deveres dos usuários nas cidades e também na compreensão dos fenômenos urbanos da atualidade, que muitas vezes são recortados por leituras dispersas da verdadeira realidade de chão, a qual o serviço social deve observar, conhecer e intervir. Conforme nos aponta Gottdiener (2010, p. 127): O espaço não pode ser reduzido apenas a uma localização ou às relações sociais da posse da propriedade — ele representa uma multiplicidade de preocupações sociomateriais. O espaço é uma localização física, uma peça de bem imóvel, e ao mesmo tempo uma liberdade existencial e uma expressão mental. O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilidade de engajar-se na ação. Podemos citar situações cotidianas que ilustram a multiplicidade das questões sociomateriais dos usuários da assistência social na dinâmica da mobilidade urbana. Por exemplo: muitos usuários agendam uma consulta médica na UBS X, mas no dia da consulta não têm recurso para o seu transporte até a UBS. O problema em si não pode ser considerado como ausência intencional à consulta médica; portanto, não podemos considerar o problema como falta de acesso à saúde, mas é também uma questão de renda familiar, pois se relaciona à falta de recurso material para o seu deslocamento. Também podemos tratar essa questão como problema de transporte, pois há locais que não possuem acesso ao transporte público para que o deslocamento do usuário possa ocorrer de forma efetiva. Assim, a problemática se expande para além da ausência intencional à saúde, da renda, do transporte, e se consolida como uma questão de liberdade existencial e de consequências emocionais, devido a uma complexidade de arranjos socioterritoriais de mobilidade que precisam ser estudados, compreendidos e conhecidos pelos assistentes sociais. Como o próprio Gottdiener (2010, p. 127) menciona, “o espaço contém e está contido nas relações sociais, logo, o real é historicamente construído, tendo como representação mental o urbano e a cidade como expressão material desta representação”. Com relação aos direitos dos usuários no transporte público, temos um tema muito abordado nas questões de mobilidade urbana por várias categorias. O MCidades (BRASIL, 2013) nos esclarece que: Os usuários devem ser informados sobre os padrões preestabelecidos de qualidade e quantidade dos serviços ofertados, inclusive com informações disponibilizadas nos pontos de embarque e desembarque como itinerários, horários e tarifas. 83 POLÍTICA SETORIAL - HABITAÇÃO E ainda define: Mobilidade Urbana Sustentável - mecanismos para que os municípios implementem os princípios e diretrizes e cumpram os objetivos estabelecidos na Lei. Ressalta-se, principalmente, o controle da demanda por viagens de automóveis e o estímulo ao uso de modos não motorizados e transporte público coletivo. Aliado ao uso de instrumentos de controle de demanda por viagens de automóveis é importante aumentar a oferta de serviços e infraestruturas com qualidade, segurança, acessibilidade e modicidade tarifária. Como exemplo, pode-se citar a oferta de rede cicloviária segura e bem sinalizada, calçadas acessíveis, transporte público confortável, confiável, acessível e com baixo custo aos usuários (BRASIL, 2013). A mobilidade urbana e o serviço social são, sem dúvidas, matérias de aprofundamento constante no que diz respeito a direitos e deveres. Retratam conflitos, contradições, diferentes interpretações, mas acima de tudo são áreas de muitas possibilidades e intervenções, que podem ser efetivas se houver um trabalho profissional com ética e conhecimento das legislações que amparam suas ações, suas relações profissionais com gestores municipais e estaduais. Conforme nos lembra Faleiros (1999), a prática profissional só deixará de ser repetitiva e pragmática se os profissionais souberem vincular as intervenções no dia a dia a um processo de construção e desconstrução permanente de categorias que permitam a crítica e autocrítica do conhecimento e da intervenção. Trata-se, portanto, de interpretar o mundo na sua transformação e de transformá-lo na sua interpretação. Dessa forma, as intervenções do assistente social na mobilidade urbana demandam uma busca constante de diferentes saberes e aprimoramentos para atingir o reconhecimento de sua importância nos processos de mediações complexas. Como essa representação profissional ocupa diferentes áreas e busca fazer a diferença na realidade, é necessário conhecer o chão do cotidiano, o qual exige uma interação com novas e diferentes realidades. A diferença não deve ser apenas no discurso, nas ideologias, mas em ações precisas, direcionadas, coordenadas, planejadas em função de um projeto de sociedade, dignas de pluralidades sócio-humanas e de múltiplas configurações. 6.1 Saneamento básico e saúde Para realizar intervenções efetivas no âmbito de direitos relacionados ao saneamento básico, é preciso que os assistentes sociais conheçam os conceitos, os critérios, os objetivos, o planejamento e as ações que amparam sua atuação profissional na área e sua interação direta com a saúde dos usuários que atendem no dia a dia. Conforme o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) (BRASIL, 2008): O saneamento básico envolve a atuação de múltiplos agentes numa ampla rede institucional e está marcado por um grande déficit no acesso, em termos de parcelas expressivas da sociedade e, principalmente, da população de baixa renda. 84 Unidade II Figura 19 – Lançamento de esgotos diretamente no córrego (São Paulo/SP) O entorno da habitação e suas condições são fundamentais para garantir a sobrevivência e a qualidade de vida. Imagine, por exemplo, se você vivesse em uma casa sem saneamento básico, em que o esgoto corre a céu aberto e desemboca em um rio da sua cidade, única fonte de água para consumir. Qual seria o impacto dessa falta de infraestrutura na sua vida? Todos os possíveis: haveria insetos, bactérias e animais que transmitem doenças e contaminação da água e do solo, tornando-o improdutivo para o plantio e consumo, entre outros. Esse é o resultado da falta de saneamento básico, muitas vezes imperceptível ao nosso olhar. Pensar em habitação significa considerar tudo, inclusive o entorno, pois sem a adequada estrutura os resultados impactam diretamente na qualidade de vida, em todos os sentidos – ambiental, social e econômico. A Lei n. 11.445 (BRASIL, 2007c) estabelece as diretrizes nacionais da Política de Saneamento Básico; determina o planejamento, a regulação, a fiscalização e o controle social como fundamentais para a gestão dos serviços; estimula a solidariedade e a cooperação entre os entes federados; define as regras gerais para a atuação dos prestadores de serviços – público e privado – e dos agentes reguladores; prevê a obrigatoriedade da elaboração dos planos municipais, regionais e nacional de saneamento básico; bem como estabelece mecanismos e procedimentos para a avaliação sistemática da eficiência e eficácia das ações programadas para o Plano, em consonância com o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (SINISA) (BRASIL, 2008). Essa Lei define, entre outros, os princípios da universalização
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