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Porte legalizado - Revista Veja - 28 de agosto de 2015

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Especial
EM BREVE, UM BRASILEIRO QUE
carregar no bolso uma quantidade de
maconha menor ou igual à da imagem
.que ilustra esta reportagem não estará
infringindo nenhuma lei penaL Ao me-
nos é o que defende o ministro do Su-
premo Tribunal Federal (STF) Gilmar
Mendes, relator do julgamento que tra-
ta da descriminalização da posse de
maconha para uso pessoal. O julga-
mento - iniciado na semana passada e
suspenso depois que o' ministro Luiz
Edso~ Fachin pediu vista do processo
- trata de um caso específico: o do me-
cânico Francisco Benedito de Souza,
que, condenado por roubo, foi flagrado
em sua cela com 3 gramas de maconha,
e por isso teve nova punição ..Por se tra-
tar de assunto de "repercussão gerar'
- mecanismo que estende a decisão
firmada pelo tribunal a todo caso seme-
lhante -~ a conclusão a que chegar a
corte ao fim do j111gamento-deverá ser-
vir de referência..a todos os juízes do.
país - ou seja, vai se tornar regra.
No Brasil, frequentemente inven-
tam-se leis pará "~esolyer" ·proble- '.
mas. Não é o caso da liberação do
porte de maconha - muito mais uma
tentativa da Justiça de ficar ombro a
ombro com uma realidade há muito
em curso. O artigo 28 da Lei Antidro-
gas, de 2006, define como crime "ad-
quirir, guardar ou portar drogas·". Há
pelo menos uma década, porém, ne-
nhum brasileiro é mandado para a ca-
deia por consumir maconha (as exce-
·ções decorrem da dubiedade do texto
legal, que não determina com clareza
quem deve ser enquadrado como usuá-
rio ou traficante). Hoje, a pena má-
xima para quem é flagrado com um
punhado da droga no bolso é· a pres-
t.ação de serviço comunitário. Mesmo
branda, no en·tanto, a punição implica
uma condenação - e o usuário puni-
L do perde a primariedade.
Os pontos que, ao julgar o caso
Souza, o STF pode mudar são princi-
palmente ~0is. O pritneiro é que, ao
revog~r o arti.go 28 da Lei Antidro-
gas, :0 tribunal suspenderá a aplica-
ção de qualquer penalidade ao usuá-
fio da droga, que, comisso, não corre-
rá mais o risco de ser con$lerado um
criminoso (e reincidente,' se um dia
vier a ser processado criminalmente)
apenas porque fuma maconha. O se-
gundo ponto é que, se optar por esta ...,
b~lecer a quantidade da substância a
partir da qual o portador passa a ser
tratado como traficante, o:STF estará
limpando uma zona cinzenta que hoje
dá margem a arbitrariedades e equívo-
cos por parte de delegados e autorida-
des a quem cabe decidir, com base ape-
nas na própria convicção, quais dos
flagrados com a droga podem voltar
para casa e quais devem ir para a cadeia.
Ainda que o STF opte por não estabe-
lecer, neste momento, um paradigma
para diferenci~ as duas categorias, um
eventual posicionamento seu em favor
• Dar tratamento
criminal ao uso------------------------
de4rGgJSt
-------------------
~~~~~-~- ~~~
ofende, de forma---------------------------
.~~~'-~~'-~rç~~~~~~
· o direito à vida
privada e à
------------------
~~~~~~~~_i~~~~~ .,.,
GILMAR MEN·DES
o q~e pode mudar
Alguns dos efeitos possíveis
da descriminalização, caso o STF
ãecida que o porte dê drogas para
consumo não é crime
Se o SIF definir uma
quantidade legal para o porte,
milhares de pessoas poderão
deixar de ir para a cadeia e
out~os milhares poderão
recorrer de suas condenações
Sem o temor de terem
um registro criminal, mais
dependentes podem procurar
ajuda médica para se livrar
do víCjO. Em Portugal,
onde o consumo foi
descriminalizado em 2001,
os gastos diretos com
a saúde dos consumidores
de drogas cresceram
12% em cinco anos
Algl:lns especialistas temem
Que, para escaparem da polícia,
os traficantes possam cooptar
ajudantes para transportar as
drogas em pequenas quantidades,
formando um "exército de
formiguinhas" que atrairia mais
gente para o crime e dificultaria
o trabalho policial
ESQecialistas em segurança
pública afirmam que, sem
monitorar os usuários,
a polícia tende a perder
contato com "a última ponta
da cadeia do tráfico" f o que
atrapalharia as investigações
para chegar aos criminosos
76 r 26 DE AGOSTO, 2015 I veja
A quantidade permitida por portador
(cada cigarro equivale a 1,5 grama da droga)
MÉXICO
E HOLANDA
5GRAMAS
PARAGUAI
10 GRAMAS
PORTUGAL
25 GRAMAS
ESTADOS UNIDOS
28GRAMAS*
ESPANHA
200 GRAMAS
* No Estado do Colorado, onde a venda também é legaHzada
...29% dos presos em flagrante
por tráfico na cidade de São Paulo seriam.
considerados consumidores, segundo
o International Drug Policy Consortium
...12000 dos41500
que foram para a cadeia no Estado
de São Paulo no ano passado
estariam livres
veja 126 DE AGOSTO, 2015 I 77
de Souza poderá indicar os 3 gramas
de maconha que ele guardava como
marco inicial de consumo pessoal.
O estabelecimento de um critério
objetivo para diferenciar usuários de
traficantes teria ainda outro efeito posi-
tivo - o de diminuir a superlotação das
prisões do país. Um estudo feito pela so-
cióloga Juliana de' Oliveira Carlos com
1040 presos em flagrante na cidade de
São Paulo, e publicado pelo Intematio-
nal Drug Policy Consortium, concluiu
que 29% deles portavam 25 gramas ou
menos de maconha quando foram deti-
dos. Essa quantidade equivale ao limite
que define o usuário da droga em Portu-
gal, por exemplo. Se o Brasil, que tem
mais de 160000 presos por tráfico, ado-
tasse o mesmo marco - e se o porcen-
tual encontrado no estudo se repetisse nos
demais estados -, haveria hoje 50000
pessoas a men,?s nas cadeias nacionais.
Vários indícios reforçam o argu-
mento de que muitos dos brasileiros
presos por tráfico poderiam ter recebi-
do penas mais leves que punem os usuá-
rios. Desde o começo do ano, a Jüsti-
ça de São Paulo faz audiências de cus-
tódia nas quais detidos em flagrante
são levados à presença do juiz em até
24 horas para que ele decida se devem
permanecer presos, ter a prisão relaxa-
da ou substituída por pena alternativa.
nos 1386 detidos que compareceram a
essas a:udiências acusados de tráfico de
drogas entre março e julho, 152 foram
imediatamente soltos - na maior par-
te dos casos porque se verificou que
eram usuários, e não traficantes.
Desde 2011, o STF tem adotado
uma posição liberal em relação a ques-
tões como a união civil de pessoas do
mesmo sexo e o aborto de fetos anen-
céfalos. A descriminalização do porte
de maconha seria mais uma decisão
que, se não segue a opinião da maioria
da sociedade (três em cada quatro bra-
-sileiros -são contra a medida), avança
na consolidação dos direitos indivi-
duais garantidos pela Constituição. L
Como disse o ministro Gilmar Mendes
em seu voto, fazer com que fumar um
cigarro de maconha deixe de ser crime
sujeito a sanção penal é respeitar o di-
reito '~àprivacidade e à intimidade do
usuário" - bem como a decisão de
"colocar em risco a própria saúde". li
78 I 26 DE AGOSTO, 2015 I veja

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