Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Int J Psychoanal (2009) 90:311–327 doi: 10.1111/j.1745-8315.2009.00130.x Sobre tornar-se um psicanalista Glen O. Gabbard e Thomas H. Ogden Baylor College of Medicine – Psychiatry, 6655 Travis Street, Suite 500, Houston, Texas 77030, USA – ggabbard12@aol.com; dtrees@bcm.edu (Data da aceitação final – 12 de Novembro de 2008) A oportunidade e a responsabilidade de tornar-se um analista nos seus próprios termos surgem no decorrer dos anos de prática que seguem a conclusão da formação analítica formal. Os autores discutem seu entendimento sobre algumas das experiências de amadurecimento que contribuíram para torná-los analistas nos seus próprios termos. Acreditam que o elemento mais importante do processo de seu amadurecimento como analistas seja o desenvolvimento da capacidade de fazer uso do que é único e idiossincrático em cada um deles; cada um, em seus melhores momentos, conduz-se como um analista, de uma maneira que reflete seu próprio estilo analítico, sua própria maneira de estar com seus pacientes e de falar com eles, sua própria forma da prática da psicanálise. Os tipos de experiências de amadurecimento que os autores analisam incluem situações nas quais aprenderam a ouvir a si próprios falando com seus pacientes e, assim fazendo, começaram a desenvolver uma voz própria; experiências de crescimento que ocorreram em um contexto de apresentação de material clínico a um supervisor; fazer uso auto- analítico de sua experiência com seus pacientes; criar / descobrir a si mesmos como analistas na experiência da escrita analítica (dando atenção especial à experiência de amadurecimento envolvida na escrita do presente artigo); e responder à necessidade de continuar mudando, para ser original em seu pensamento e comportamento como analistas. Palavras chave: desenvolvimento, história da psicanálise, educação psicanalítica. Poucos de nós sentimos que realmente sabemos o que estamos fazendo quando completamos a nossa formação psicanalítica formal. Nós nos debatemos. Lutamos para encontrar a nossa „voz‟, o nosso 'estilo' próprio, um sentimento de mailto:dtrees@bcm.edu 2 que estamos comprometidos com a prática da psicanálise de uma maneira que leva a nossa própria marca: É apenas depois de se ter qualificado [como um analista] que se tem a chance de tornar-se um analista. O analista no qual você se torna é você, e somente você; a singularidade de sua própria personalidade tem que ser respeitada - isso é o que você usa, não todas aquelas interpretações [aquelas teorias que se usa para combater o sentimento de que você não é realmente um analista e que não sabe como tornar- se um]. (Bion, 1987, p. 15) No presente artigo discutimos uma variedade de experiências de amadurecimento que foram importantes para nós em nossos esforços para nos tornarmos analistas após nossa formação analítica. Certamente os tipos de experiência que tiveram valor especial para cada um de nós foram diferentes, mas também se sobrepuseram de formas importantes. Tentamos transmitir tanto a padronização quanto as diferenças entre os tipos de experiência que foram mais significativos para nós em nossos esforços para nos tornarmos analistas (e para amadurecermos como tal). Além disso, discutimos várias medidas defensivas que os analistas em geral, e nós em particular, temos usado diante da ansiedade que é inerente ao processo de tornar-se genuinamente um analista nos seus próprios termos. Um contexto teórico Uma variedade de experiências ao longo do desenvolvimento como analista é fundamental para o amadurecimento tanto como analista quanto como indivíduo. O amadurecimento do analista tem muito em comum com o desenvolvimento psíquico em geral. Identificamos quatro aspectos do crescimento psíquico que são essenciais para a nossa visão do processo de tornar-se um analista. O primeiro é a idéia de que pensar / sonhar a própria vivência no mundo constitui um meio principal, talvez o meio principal pelo qual se aprende com a 3 experiência e se atinge o crescimento psicológico (Bion, 1962a). Além disso, a vivência de alguém é geralmente tão perturbadora que excede a capacidade do indivíduo de usá-la psiquicamente de algum modo, ou seja, pensar ou sonhar a experiência. Sob tais circunstâncias, são requeridas duas pessoas para pensar ou sonhar a experiência. A psicanálise de cada um dos nossos pacientes, inevitavelmente nos coloca em situações que nunca foram antes experimentadas e, como conseqüência, exige de nós uma personalidade mais ampla do que aquela que trouxemos para a análise. Consideramos que isso seja verdadeiro para todas as análises: não existe uma análise “fácil” ou “direta”. A re- conceituação da identificação projetiva como um processo intrapsíquico ⁄ interpessoal nos trabalhos de Bion (1962a, 1962b) e Rosenfeld (1987) reconhece que nessas situações analíticas novas e perturbadoras, o analista requer outra pessoa para ajudá-lo a tornar o impensável pensável. Esta outra pessoa é na maioria das vezes o paciente, mas pode ser um supervisor, um colega, um mentor, um grupo de consulta, e assim por diante. Inerente a esse conceito de pensamento intersubjetivo existe a idéia de que, ao longo da vida do indivíduo, „„É preciso [pelo menos] duas pessoas para formar uma‟‟ (Bion, 1987). Precisa-se de uma mãe-e-bebê capaz de ajudar a criança a alcançar „„status de unidade‟‟ (Winnicott, 1958a, p. 44). Três pessoas são necessárias - mãe, pai e filho - para criar uma criança edipiana saudável; é preciso haver três pessoas - mãe, pai e adolescente - para criar um jovem adulto; precisa-se de dois jovens adultos para criar um espaço psicológico no qual se possa criar um casal que, por sua vez, seja capaz de criar um espaço psicológico no qual um bebê possa ser concebido (literalmente e metaforicamente); é preciso uma combinação de uma jovem família e de uma velha família (uma avó, um avô, mãe, pai e filho) para criar condições que contribuam para que se aceite, ou que facilitem a aceitação e o uso criativo da experiência de envelhecimento e morte dos avós (Loewald, 1979). 4 No entanto, essa concepção intersubjetiva do desenvolvimento do analista é incompleta na ausência de sua contraparte intra-psíquica. Isso nos leva ao segundo aspecto do contexto teórico para essa discussão: para pensar / sonhar a nossa própria experiência, precisamos de períodos de isolamento pessoal, não menos do que precisamos da participação das mentes dos outros. Winnicott (1963) reconheceu esse requisito essencial do desenvolvimento quando observou: „„Há um estágio intermediário no desenvolvimento saudável no qual a experiência mais importante do paciente em relação ao objeto bom ou potencialmente satisfatório é a recusa do mesmo‟‟ (p. 182). No setting analítico, o trabalho psicológico que é realizado entre as sessões não é menos importante que o trabalho feito com o analista nas sessões. Na verdade, analista e paciente precisam „dormir sobre‟ a sessão, isto é, precisam sonhá-la por si próprios antes de serem capazes de realizar um trabalho mais profundo como um par analítico. De maneira semelhante, nas sessões, o trabalho psicológico que o paciente realiza separado do analista (e que o analista realiza no seu espaço isolado atrás do divã) é tão importante quanto o pensar / sonhar que os dois realizam um com o outro. Essas dimensões – a interpessoal e a solitária – são totalmente interdependentes e permanecem em tensão dialética uma com a outra. (Quando falamos de isolamento pessoal, estamos nos referindo a um estado psicológico diferente do estado de estar sozinho na presençade outra pessoa, isto é, „a capacidade de estar só‟ de Winnicott [1958b]. Ao invés disso, o que temos em mente é um estado que é muito menos dependente das relações de objeto externas, ou mesmo internalizadas [ver Ogden, 1991, para uma discussão desse estado saudável de „isolamento pessoal‟]). O terceiro aspecto do crescimento psíquico, que é essencial para a nossa concepção de amadurecimento do analista, é a idéia de que se tornar um analista envolve um processo de ''sonhar-se mais plenamente na existência'' (Ogden, 2004a, p. 858) de maneiras cada vez mais complexas e inclusivas. Na tradição de Bion (1962a), estamos usando o termo 'sonhar' com referência à 5 forma mais profunda de pensamento. É um tipo de pensamento no qual o indivíduo é capaz de transcender os limites da lógica do processo secundário sem perda do acesso a esse tipo de lógica. O sonho ocorre continuamente, tanto durante o sono como durante a vigília. Da mesma maneira que as estrelas persistem mesmo quando a sua luz é obscurecida pela luz do sol, assim também sonhar é uma função contínua da mente que persiste durante a vigília, mesmo se obscurecida pela consciência e pelo resplendor da vigília. (Sonhar acordado no setting analítico toma a forma da experiência de reverie do analista [Bion, 1962a; Ogden, 1997].) A atemporalidade dos sonhos permite que se elabore simultaneamente uma multiplicidade de perspectivas em uma experiência emocional de uma maneira que não é possível no contexto de tempo linear, e da lógica de causa e efeito que caracteriza a vigília, processo secundário de pensamento. (A simultaneidade de perspectivas múltiplas que foi capturada na arte cubista de Picasso e Braque teve influência sobre a arte do século 20 de todos os gêneros – a poesia de T.S. Eliot e Ezra Pound, os romances de Faulkner e os últimos romances de Henry James, as peças de Harold Pinter e Ionesco, e os filmes de Kieslowski e David Lynch, bem como a arte da psicanálise). O trabalho do sonho é o trabalho psicológico através do qual criamos significados simbólicos e pessoais, deste modo nos tornando nós mesmos. É nesse sentido que nos sonhamos dentro da existência como analistas, analisandos, supervisores, pais, amigos, e assim por diante. Na ausência do sonho, não podemos aprender com nossa experiência de vida e, conseqüentemente, continuamos presos em um presente infinito e imutável. O quarto aspecto do crescimento psíquico que acreditamos ser fundamental para a forma como pensamos sobre o processo de tornar-se um analista é o conceito de continente-conteúdo de Bion (1962a, 1970). O „continente‟ não é uma coisa, mas um processo de realizar o trabalho psicológico com nossos pensamentos perturbadores. A expressão „realizar um trabalho psicológico‟ é 6 aproximadamente equivalente a idéias/sentimentos como a experiência de „entrar em acordo com‟ um aspecto da própria vida que foi difícil de admitir ou „fazer as pazes com‟ acontecimentos importantes e profundamente perturbadores da vida da pessoa, tais como a morte dos pais, de um filho ou do cônjuge, ou a própria morte que se aproxima. O „conteúdo‟ é a representação psicológica daquilo com que se está fazendo as pazes ou entrando em acordo. O colapso de um relacionamento mutuamente produtivo entre os pensamentos provenientes de uma experiência perturbadora (o conteúdo) e a capacidade de pensar/sonhar estes pensamentos (o continente) pode tomar uma série de formas que se manifestam em uma variedade de tipos de fracasso em amadurecer como um analista (Ogden, 2004b). As vivências perturbadoras – „o conteúdo‟ (por exemplo, as violações de limites por parte do analista pessoal do analista) – pode destruir a capacidade do analista de pensar como um analista („o conteúdo‟), particularmente sob certas circunstâncias emocionais (Gabbard e Lester, 1995). Com essas idéias em mente, consideraremos então um conjunto de experiências de amadurecimento que são comuns aos analistas no decorrer do seu desenvolvimento. Quando se completa a formação psicanalítica, muitas vezes tem-se a vaga sensação de um sentimento um pouco fraudulento. Tem-se a autorização para um 'vôo solo', sem a ajuda de um supervisor, no entanto sente-se um certo grau de turbulência que pode ser desconcertante. Às vezes, os analistas bendizem a oportunidade de aprender (e amadurecer) com os tipos de situações analíticas que estamos prestes a descrever. Em outras vezes e em outras circunstâncias, de repente e inadvertidamente, os analistas encontram-se imersos nessas situações analíticas perturbadoras e conseguem um crescimento psicológico „agindo por intuição e percepção‟. 7 Experiências de amadurecimento do analista Nas seções seguintes deste artigo, discutiremos uma série de tipos de experiências de amadurecimento que desempenharam um papel importante no desenvolvimento de nossas identidades analíticas. Essas experiências incluem o processo gradual de desenvolvimento de uma maneira própria de falar com os pacientes; o desenvolvimento do senso de si próprio como um analista no processo de apresentar o trabalho clínico a um consultor; o fazer uso auto- analítico de experiências com os pacientes; e o criar/descobrir a si mesmo como analista no processo de escrever artigos analíticos. I. O desenvolvimento de uma voz própria Ao ouvir-se falando (por exemplo, com seus pacientes, supervisionandos, colegas e membros de seminários), o analista pergunta-se: “Que impressão eu causo quando falo desse modo?'' ''Eu realmente quero falar dessa maneira?'' ''Com quem eu me pareço?'' ''De que forma pareço diferente da pessoa na qual eu me tornei e estou me tornando?'' ''Se eu fosse falar de maneira diferente, como isso soaria? " ''Como eu me sentiria ao falar de uma maneira que é diferente de qualquer outro que não eu mesmo?'' Há um paradoxo no fato de que falar naturalmente, como a própria pessoa, é tanto fácil (no sentido de não ter que fingir ser alguém diferente de quem se é) quanto muito difícil (no sentido de encontrar / inventar uma voz que emerge da totalidade de quem se está sendo em um dado momento). Ao se prestar uma atenção cuidadosa, descobre-se que há resíduos inconfundíveis da voz de seu analista nas palavras faladas a seus pacientes. Essas formas de falar estão „em nossos ossos‟, internalizadas há muito tempo e fazem parte de nós sem que tenhamos consciência do processo de assimilação. Embora esse tipo de experiência de amadurecimento ocorra principalmente no contexto do falar com os outros, há também um aspecto intra-psíquico, uma batalha consciente e inconsciente consigo mesmo no esforço de encontrar-se / 8 criar-se como um analista. As vozes que se ouve estão principalmente na mente (Smith, 2001) e pertencem aos nossos '„„fantasmas‟‟ e „„ancestrais‟‟ (Loewald, 1960, p. 249). Os fantasmas nos habitam de uma maneira que não está totalmente integrada ao nosso senso de self; nossos ancestrais nos fornecem um sentido de continuidade com o passado. No processo de tornar-se um analista, precisamos „sonhar‟ por nós mesmos uma maneira autêntica de falar que envolva nossa liberação de nosso(s) próprio(s) analista(s), bem como de nossos supervisores, professores e escritores que admiramos, enquanto também recorremos ao que aprendemos com eles. A tensão dialética existe entre reinventar-se, por um lado, e utilizar de forma criativa a própria ascendência emocional, por outro lado. Ninguém descreveu melhor do que Loewald os dilemas psicológicos que estão envolvidos na passagem da autoridade de uma geração para a seguinte. Em The waning of the Oedipus complex, Loewald (1979) descreve as maneiras pelas quais o crescer (tornando-se um indivíduo amadurecido por direito próprio) exige que se mate os próprios pais (em mais que uma forma metafórica) e simultaneamente os imortalize.O parricídio é um ato de reivindicar o próprio lugar como uma pessoa responsável por si própria; a imortalização dos próprios pais (um ato de reparação ["at-one-ment"] para o parricídio) envolve uma internalização metamórfica dos pais. Esta internalização é „metamórfica‟ no sentido de que os pais não são simplesmente transformados em um aspecto de si mesmo (uma simples identificação). Pelo contrário, é uma internalização de um tipo muito mais rico: o da incorporação na própria identidade de uma versão dos pais que inclui uma concepção de quem eles poderiam ter se tornado, mas foram incapazes de se tornar, como conseqüência das limitações de suas próprias personalidades e das circunstâncias em que viveram. Que melhor reparação se pode fazer em relação aos pais que se matou (Ogden, 2006)? 9 No processo de tornar-se um analista, é preciso que se seja capaz de cometer atos parricidas em relação aos próprios pais analíticos, enquanto se repara o parricídio no ato de internalizar uma versão transformada dos mesmos. Essa internalização metamórfica reconhece seus pontos fortes e suas fraquezas e envolve uma incorporação na própria identidade de um sentido não somente de quem eles foram, mas também de quem eles poderiam ter se tornado, caso as circunstâncias externas e internas o tivessem permitido. Na seguinte vinheta clínica, um de nós (Ogden) descreve uma experiência em que paciente e analista viveram e sonharam juntos uma experiência que facilitou o amadurecimento de ambas as partes. Por um período de tempo significativo, o analista descobriu-se usando a palavra bem [well] para introduzir praticamente cada pergunta e comentário que dirigia aos seus pacientes. Parecia tão natural que levou um bom tempo para que ele reconhecesse o fato de que tinha adotado essa maneira de falar. Observou também que falava dessa maneira somente quando falava com os pacientes e não quando falava com supervisionandos, quando conversava em seminários, ou quando falava com colegas, e assim por diante. Ao tornar-se consciente de que estava falando dessa maneira, ficou imediatamente aparente para ele que tinha adotado um maneirismo do seu primeiro analista. Disse a si mesmo que não sentia necessidade de „corrigi-lo‟, já que o experimentava como uma conexão emocional com um homem que admirava e de quem gostava. O que ele não percebeu foi que também não tinha visto necessidade de analisá-lo (isto é, refletir sobre a razão pela qual essa identificação tinha se evidenciado daquela forma, naquela conjuntura de sua vida e naquela conjuntura de seu trabalho com aqueles pacientes em particular). Um dos pacientes com o qual ele estava trabalhando em análise durante esse período era o Sr. A, um homem que tinha escolhido uma carreira na mesma área em que seu pai era uma figura proeminente. Foi nas sessões com o paciente – embora houvesse experiências relacionadas com outros pacientes – que ele 10 começou a se sentir de uma maneira diferente a respeito do que tinha parecido um subterfúgio inofensivo no seu modo de falar. Essa mudança de perspectiva surgiu em um período de semanas enquanto ele ouvia o Sr. A minimizar o efeito causado pelo fato dele ter entrado na mesma área de seu pai enquanto que ao mesmo tempo usava repetidamente a frase „a área dele‟ em vez de „a minha área‟ ou „a nossa área‟. Durante esse período da análise, o Sr. A mencionou uma ocasião na qual tinha parecido ao analista que o paciente estava estranhamente provocando um de seus filhos para „tentar agir como um adulto‟. Embora o analista não tenha feito comentários sobre esse comportamento, isso teve um efeito perturbador sobre ele. No início de uma sessão durante esse período de trabalho, o paciente queixou-se que o analista estava valorizando demais os efeitos de sua escolha para entrar „na área de meu pai'. O analista acreditou que ele tinha tido o cuidado de não tomar partido em relação ao assunto, então optou por permanecer em silêncio em resposta a essa acusação de seu paciente. Mais tarde na sessão, o Sr. A contou o seguinte sonho:‘‘Um terremoto havia começado com apenas uns poucos tremores, mas eu sabia que isso era apenas o início de um enorme terremoto no qual eu poderia muito bem ser morto. Tentei reunir umas poucas coisas que gostaria de levar comigo antes de deixar a casa em que estava. Era como se fosse a minha casa. Peguei uma fotografia de família – uma que na verdade eu deixava sobre uma mesa na minha sala de estar. É uma foto de meus pais, de Karen (sua esposa) e das crianças que tirei na Flórida. Senti uma enorme pressão de tempo – sentia-me como se estivesse sufocando e como se fosse uma loucura gastar o último fôlego que tinha para salvar uma fotografia. A sufocação não é a maneira pela qual um terremoto nos atinge, mas era assim que eu me sentia. Acordei assustado, com meu coração disparado‟‟. (Por razões que não foram de maneira alguma aparentes para o analista, também ele sentiu-se intensamente ansioso enquanto o paciente contava o sonho). 11 No decorrer da conversa sobre o sonho, o Sr. A ficou impressionado com o fato de que: „„porque eu tirei a foto, eu não estava nela. Estava nela como um observador, não como um membro do grupo‟‟. O analista disse: „„Você ficou primeiramente assustado com a sensação do início de um terremoto que poderia aumentar de intensidade ao ponto de poder matá-lo e a todos os que lhe são caros; mais tarde no sonho, você sentiu que estava prestes a morrer sufocado. Penso que no sonho você estava falando consigo mesmo e comigo sobre o seu sentimento de estar sendo expulso da sua própria vida – você era apenas um observador na foto de sua família e, no entanto, estava pronto a usar seu último fôlego para preservar aquele lugar, ainda que marginal. Isso lhe pareceu loucura, mesmo no sonho‟‟. Enquanto o analista estava dizendo isso, ocorreu-lhe que o Sr. A, no seu relato sobre o sonho, poderia estar fazendo uma observação sobre o analista. A fala do paciente ao dizer que ele sabia que „„poderia muito bem ser morto‟‟ no terremoto, envolvia um fraseado que não somente usava a mesma palavra na qual o analista estava focalizado, como também a ligava diretamente à idéia de ser morto. Isso levou o analista a suspeitar que o Sr. A estava respondendo a algo que estava acontecendo no analista e que estava refletido na mudança em sua maneira de falar. Pareceu-lhe que o paciente temia que o analista tivesse desenvolvido uma forma de tique verbal que refletia uma loucura no analista que o impediria de ser o analista que ele precisava. Se também o analista estivesse sendo expulso de sua própria vida como um analista e de sua própria maneira de falar (com a qual o paciente tinha se tornado familiarizado com o passar dos anos), como poderia o analista ajudá-lo com um problema muito semelhante? O analista pensou que era altamente improvável que o relato desse sonho fosse o primeiro comentário inconsciente do Sr. A sobre algo que ele percebia ser significativamente diferente no modo de falar do analista. O sonho do paciente foi crítico para o trabalho analítico, não somente porque estava se 12 referindo a sentimentos tão diferentes daqueles que estavam sendo abordados em outros sonhos, mas porque foi a primeira vez em que o analista foi capaz de ouvir e responder ao que ele acredita ser o esforço inconsciente do paciente para falar com ele sobre seu medo de que ele percebesse uma mudança ameaçadora no analista. Retrospectivamente, a origem do sintoma (como o analista veio a compreendê-la) havia afetado sua capacidade de amadurecer como uma pessoa e como um analista. Também pensando retrospectivamente, o analista reconheceu que o fato do paciente cruelmente apontar que seu filho estava „tentando agir como um adulto‟ representava uma comunicação ao analista referenteao auto-ódio do paciente pela forma com que ele se sentia como uma criança. (Consideramos o sonho como um sonho que não pode ser atribuído somente ao paciente, mas a um sujeito inconsciente que é co-construído pelo paciente e pelo analista – „o terceiro analítico‟ [Ogden, 1994]. É este terceiro sujeito que sonha os problemas na relação analítica [além do paciente e do analista como sonhadores individuais].) A observação inconsciente do paciente de que ele era um observador na foto de família, associada à percepção do analista da sua própria ansiedade enquanto ouvia o relato do sonho, fez com que o analista iniciasse uma linha de pensamento, uma conversa consigo mesmo, sobre os significados de sua imitação de seu primeiro analista. O que era mais poderoso na nova percepção do padrão da fala que ele havia adotado era sua persistência e invariabilidade através da plena gama de situações emocionais e através de formas diversas de conversações com tipos muito diferentes de pacientes. Parecia-lhe que a qualidade impessoal dessa forma genérica de falar refletia um sentimento subliminar que ele tinha abrigado por um tempo muito longo, mas que não tinha anteriormente colocado em palavras para si mesmo: ele havia tido a impressão durante a sua primeira análise (e posteriormente) que seu analista tinha em alguns aspectos importantes percebido-o de formas genéricas que não eram pessoais nem para ele e nem para o analista. Havia uma maneira na qual ele 13 sentiu que a primeira percepção do analista em relação a ele foi inabalável e que alguma coisa importante estava faltando. Ambos os sentimentos também se refletiam na fotografia do sonho, no qual também a foto estava inalterada e não incluía o fotógrafo. O analista sentiu uma certa decepção em relação ao seu primeiro analista, mas sentiu-se principalmente envergonhado por não ter tido a coragem de conscientemente reconhecer a qualidade impessoal da forma como ele sentiu que estava sendo percebido e registrar um protesto. No sonho, houve uma escolha entre o sonhador salvar a foto ou salvar a sua própria vida. O analista percebeu que ele tinha metaforicamente escolhido salvar a fotografia – sua imagem fixa de seu próprio analista – e, como conseqüência, tinha abandonado algo de sua própria vitalidade. Com base nesses pensamentos e em outros que se seguiram nos meses e semanas subseqüentes, o analista foi finalmente capaz de falar com o Sr. A sobre os seus sentimentos de vergonha (a vergonha de ter traído a si próprio) ao escolher buscar uma carreira na „área de seu pai‟ e não uma carreira na sua própria área (mesmo que fosse na área na qual seu pai também tinha trabalhado). (Voltaremos a esse exemplo clínico mais adiante neste artigo). II. Apresentação de material clínico a um supervisor Ao lutar com uma situação clínica em seus consultórios, os analistas freqüentemente procuram um colega em quem confiam. Ouvir a si mesmos nesse contexto é significativamente diferente das ocasiões nas quais se fala com os pacientes, alunos ou supervisionandos. Ao falar com um consultor, os analistas não estão tentando entender a outra pessoa como o fariam no seu trabalho com um paciente. O gradiente de maturidade (Loewald, 1960) se inclina na outra direção no trabalho do analista com um supervisor. As inseguranças e ansiedades do analista estão no centro do palco, dado o fato de que ele explicitamente solicitou a ajuda do consultor. A ênfase está no que o analista não sabe. A falta de entendimento por parte do analista – sua dúvida em 14 relação a si mesmo, sua ansiedade, temor, vergonha, culpa, tédio, luxúria, inveja, ódio, terror e seus pontos cegos, – são todos expostos a um colega em um ato de fé. A experiência dos seus próprios limites (como um analista e como uma pessoa), e a aceitação desses limites pelo consultor, ajudam a moldar a identidade do analista no sentido da humildade, da curiosidade sobre si mesmo e da percepção de que sua própria análise é uma tarefa para toda a vida. Uma parte da identidade do analista envolve conflito, ambivalência, anseios e medos da infância, e uma tentativa de reconciliar-se com o fato de que a sua análise pessoal não lhe permitiu transcender o tormento interno que o levou primeiramente ao trabalho analítico. Além disso, o fato de que o consultor não recua em resposta às lutas do analista fornece a confirmação de que ser “suficientemente bom” nos termos de Winnicott (1951, p. 237) é aceitável para os outros e que ao analista inevitavelmente faltará a compreensão abrangente e os resultados terapêuticos pelos quais ele pode lutar. Aspectos da vivência do analista excedem sua capacidade de realizar um trabalho psicológico com os mesmos e muitas vezes emergem no contexto de seus encontros com seus pacientes. Buscar uma supervisão pode fornecer um continente muito necessário quando um analista se encontra na impossibilidade de processar o que ele está confrontando, tanto nele próprio quanto nos seus pacientes. Um de nós (Gabbard) trabalhou durante anos com uma paciente inflexivelmente suicida que continuava a planejar seu suicídio apesar dos melhores esforços do analista para entender, conter e interpretar os motivos e significados múltiplos envolvidos no desejo dela de morrer. Após o analista ter apresentado esse dilema a um consultor, este observou que o analista estava tentando evitar a idéia de que todos os seus esforços bem intencionados poderiam vir a dar em nada, e que a paciente provavelmente daria fim à própria vida a despeito do tratamento. O consultor enfatizou que o analista estava irritado com a fantasia interpessoalmente atuada da paciente de ter controle onipotente sobre ele e também com sua própria incapacidade de 15 aceitar a sua impotência para impedir a paciente de cometer suicídio. Em última análise, o suicídio seria a escolha da paciente, sem levar em conta os desejos ou necessidades do analista. Ouvir os comentários do consultor permitiu ao analista trabalhar com esses pensamentos assustadores e forneceu uma maneira de desintoxicá-los para que eles pudessem realmente ser considerados pelo analista, aceitos como inerentes à situação do tratamento e ouvidos como uma comunicação do próprio sentimento da paciente de não ter voz ativa a respeito de sua própria vida ou morte. A mente do analista tinha sido colonizada pelo mundo interno da paciente e na medida em que essa colonização diminuiu, o analista tomou consciência de como as suas próprias aspirações para o empreendimento analítico estavam sendo contrariadas pelo firme desejo de morte da paciente (Gabbard, 2003). Como muitos analistas, ele abrigava uma poderosa fantasia inconsciente em relação ao relacionamento analítico – uma fantasia na qual uma forma específica de relacionamento do objeto seria gerada. Ele seria o curador dedicado e generoso e a paciente melhoraria progressivamente e finalmente expressaria gratidão ao analista por sua ajuda (Gabbard, 2000). Sua paciente suicida não tinha concordado com esse contrato inconsciente, e sua marcha em direção à auto-destruição continuava, a despeito do – ou desatenta ao – desejo do analista de ajudá-la. Com uma reflexão posterior, o analista reconheceu que havia sido relegado a uma posição de transferência que seria mais tarde descrita por Steiner (2008) como o observador excluído que se ressente do fato de que ele não é o objeto mais importante para o paciente. A consulta também liberou o analista para refletir sobre ressonâncias de experiências precoces de desenvolvimento onde ele percebeu sua impotência em face do declínio e morte inevitáveis dos outros e dele próprio, um determinante inconsciente importante em sua escolha de carreira. Analisar firmemente seus desejos mágicos e reconhecer a impossibilidade de determinar o que um outro ser humano (ou ele próprio)fará em última instância 16 constituíram-se em elementos centrais do amadurecimento do analista. Parte do conhecimento sobre quem se é como um analista é conhecer os limites do próprio poder de influenciar um paciente e usar esse conhecimento para ser capaz de ouvir e responder a um paciente que confronta seus próprios limites (assim como os do analista). III. O trabalho analítico como um meio importante para a auto-análise Toda análise é incompleta. Como Freud (1937) enfatizou, o término é normalmente mais uma questão prática do que um ponto final definitivamente determinado pela resolução de conflitos. É amplamente aceito atualmente que não „terminamos‟ uma análise (acreditando que ajudamos o paciente a atingir uma análise „completa‟); mais precisamente, o paciente e o analista finalizam uma experiência em análise em um ponto no qual eles sentem que uma parte significativa do trabalho psicológico foi realizada e que eles se encontram em uma conjuntura na qual o trabalho principal disponível para eles parece ser a separação. Ainda em uma forma diferente: a transferência é interminável, a contra-transferência é interminável, o conflito é interminável. Uma experiência produtiva em análise coloca em movimento um processo que continuará ao longo da vida do analista. A auto-análise do analista serve como uma função de contraponto para o diálogo que se tem com um consultor em quem se confia. A experiência interpessoal de trabalho com o consultor é pontuada por períodos de isolamento nos quais o analista pensa os seus próprios pensamentos na quietude do seu carro, ou de madrugada, ou quando está olhando para o teto, ou na privacidade do próprio consultório quando está esperando por um paciente que não comparece. O tratamento psicanalítico inicia uma exploração – muitas vezes tentativa e ambivalente – da vida interior tanto do paciente como do analista. A auto-análise contribui para esse processo, mas nessa variação trabalha-se 17 sozinho, com a determinação de analisar inflexivelmente o que se descobre, mas sempre ficando aquém do alvo. A partir dessa perspectiva, o término de uma análise, o „fim‟ de uma parte do trabalho de auto-análise ou do trabalho analítico com um consultor não é o ponto no qual o conflito inconsciente é resolvido, mas o ponto no qual o sujeito do trabalho analítico é capaz de pensar e sonhar a sua experiência (em um alto grau) por si mesmo. IV. Descobrir ⁄ criar o que se pensa e quem se é na experiência de escrever Escrever é uma forma de pensar. Muito freqüentemente, na escrita, não se escreve o que se pensa; pensa-se o que se escreve. Há algo da sensação de que as idéias surgem da caneta de quem escreve, do observar idéias se desenvolverem de maneiras não planejadas (Ogden, 2005). Escrever, no entanto, não é necessariamente uma atividade solitária. Na escrita psicanalítica, a medida em que se escreve, tem-se muitas vezes um leitor em mente. A fantasia de como o leitor reagirá a uma volta da frase ou a uma nova perspectiva radical sobre teoria ou técnica, molda e influencia o que aparece na página. Entretanto, muito do processo criativo se desenvolve isoladamente conforme se pensa no âmago de uma idéia repetidamente em contextos diferentes. Esse período contemplativo pode levar dias, semanas, ou mesmo anos. A maioria dos textos envolve alguma oscilação entre, por um lado, a reflexão silenciosa sobre o que se tem a dizer e, por outro lado, a reflexão sobre as respostas imaginadas pelos leitores em potencial. Um público imaginário é uma constante na escrita de Freud. Ele repetidamente inventa um público cético imaginário, antecipa de maneira magistral as objeções do público/leitor à sua argumentação e oferece uma réplica irrefutável. Quando se trata de um texto de co-autoria, uma complexidade adicional é introduzida no processo. Além da contemplação solitária e da interação imaginada com um leitor, uma colaboração com um outro escritor requer uma 18 sensibilidade especial para com seu co-autor – afinal, cada sentença deve representar dois autores, e não apenas um. Esse exemplo de colaboração surgiu no decorrer da elaboração deste artigo. Começamos com uma idéia compartilhada, ou seja, uma atualização da idéia de Freud de que o que era definitivo na análise como um tratamento para problemas psicológicos é o fundamento do trabalho na compreensão da transferência e da resistência (Freud, 1914). Planejamos descrever como a nossa própria definição de análise evoluiu a partir das idéias de Freud em 1914, e/ou é descontínua com estas mesmas idéias. Começamos nosso trabalho nesse projeto colaborativo com entusiasmo. No entanto, descobrimos que as palavras não fluíam tão livremente como tínhamos esperado de cada um de nós. Sentindo-nos presos em nossos esforços para fazer com que as coisas avançassem, relemos e estudamos o texto de Freud de 1914. Ficamos particularmente decepcionados quando viemos a reconhecer que muito do artigo de Freud apresentava uma polêmica bastante cáustica contra os desvios de Jung das premissas teóricas de Freud e uma insistência feroz em afirmar que ele, e somente ele, foi o fundador da psicanálise. A partir daí viemos a entender que o tom defensivo de Freud era um reflexo de suas inseguranças a respeito das reivindicações concorrentes de autoria da sua idéia (isto é, da psicanálise como uma disciplina) e um receio de que Jung subvertesse o que ele tinha inventado e continuasse a chamá-lo de psicanálise. Tínhamos escolhido uma citação que mostrava Freud em um momento não auspicioso da história de seu próprio amadurecimento psicológico. Como o nosso entusiasmo diminuiu, tivemos que re-pensar o tema de nosso trabalho. Trocamos várias revisões até que começamos a ver claramente que o que era mais urgente para nós não era a tarefa de propor uma definição contemporânea de psicanálise. Em vez disso, a colaboração em si tinha servido para esclarecer para cada um de nós como nós tínhamos evoluído como 19 analistas no decorrer de 30 anos de prática. Conversamos longamente sobre como cada um de nós tinha chegado à sua percepção atual e desenvolvida de si mesmo como um psicanalista. Nossas experiências de desenvolvimento no decorrer da formação analítica e nos primeiros anos após a mesma eram nitidamente diferentes em alguns aspectos, e, no entanto, descobrimos que havia uma grande justaposição na forma como concebíamos nossa maneira de trabalhar e de quem éramos como psicanalistas. Apesar de nos conhecermos por mais de 20 anos, descobrimos que no decurso dessas discussões viemos a conhecer um ao outro de uma maneira nova. Entretanto, com relação à tarefa de decidir o que esperávamos atingir dividindo a autoria de um artigo, falar consigo mesmo não era suficiente. Somente através de nossos esforços repetidos para escrever nossos pensamentos (ou, mais precisamente, nos permitir ver o que nós pensávamos no próprio ato de escrever), é que fomos finalmente capazes de discernir o que era que queríamos tentar. Colocando palavras na página obrigou-nos (e nos liberou) para transformar os pensamentos e sentimentos incipientes em conceitos e em uma idéia do que era aquilo que queríamos comunicar na forma de trabalho analítico de co-autoria. Ao refletir sobre como os leitores poderiam responder à nossa perspectiva, reconhecemos que nossas experiências de amadurecimento não poderiam ser compartilhadas por outros analistas. Certamente não queríamos usar um tom prescritivo. Fizemos então um esforço conjunto para apresentar nossas idéias como simplesmente uma descrição de nossas próprias experiências, ao invés de sugerir que elas eram universais. Tornamos mais claro para nós mesmos que entre as qualidades de um analista que consideramos como a mais importante está a maneira pela qual um analistafaz uso do que é único e idiossincrático na sua personalidade. Trabalhar com um co-autor também envolve uma experiência de se ter um editor ou consultor incorporado (quer se queira tê-lo ou não) que pode oferecer uma perspectiva „externa‟ a respeito do material clínico do outro autor. Ao 20 longo da nossa colaboração neste trabalho, um de nós (Ogden) enviou um rascunho do artigo ao seu co-autor incluindo a vinheta clínica apresentada acima envolvendo o sonho do terremoto. O co-autor (Gabbard) respondeu (por escrito) com os seguintes pensamentos sobre o caso em geral e o sonho em particular: Concordo inteiramente com seu ponto de vista de que o sonho não pode ser atribuído somente ao paciente, mas a um sujeito co-construído. Senti que o sonho era tanto seu quanto dele. Minha fantasia sobre o sonho é a seguinte: que mesmo que você tenha percebido o seu analista tratando-o de uma forma genérica, você sentiu algum tipo de proteção – um porto seguro, se você preferir – ao recorrer ao seu estilo de falar. Ao fazer isso, você não tinha se separado dele e, portanto, não tinha que suportar a dor associada à perda dele. Lembro-me do famoso comentário de Freud de que a única maneira pela qual o ego pode desistir de um objeto é colocá-lo para dentro. O terremoto, então, poderia ser visto como uma consciência crescente no paciente de que você estava prestes a ser arrancado de sua casa internamente criada – ou seja, o porto seguro do consultório do seu analista ou sua presença internalizada – e lançado em um mundo onde você precisava falar com a sua própria voz. Em algum nível, o paciente sentiu-se daquela maneira a respeito de ser arrancado da ‘casa’ de seu pai. O que estava acontecendo em você teve uma grande ressonância com o que estava acontecendo dentro dele. Não adicionei isso ao artigo porque é puramente a minha própria conjectura e pode não se encaixar à sua experiência. Como essa citação indica, uma perspectiva do co-autor a respeito do material clínico deve ser então filtrada através de pensamentos do autor fornecendo os dados clínicos para se verificar se é „um bom encaixe‟ com o momento analítico real descrito. Ogden, que não estava habituado a essa „interferência‟ no seu processo de escrita, sentiu-se perturbado pelos comentários inesperados de Gabbard. Solicitou mais de dois meses para „dormir sobre‟ (sonhar) o que havia sido despertado nele pelas observações de Gabbard antes que fosse capaz de oferecer uma resposta ponderada (também por escrito): 21 Relendo meu relato do meu trabalho com o Sr. A, penso que o mesmo aponta o fato de que eu vi na invariabilidade da fotografia no sonho do paciente somente estase [stasis], ao contrário de confiabilidade; e que eu vi na ausência do fotógrafo na fotografia somente a ausência de uma pessoa que pensa / sente, contrapondo-se à discrição. Seus comentários sobre a vinheta me ajudaram a ver o que tinha estado lá ao longo de todo a minha escrita sobre o relato: minha avaliação profunda sobre o que eu sinto serem duas de minhas melhores qualidades como analista – a disposição de permanecer emocionalmente presente durante os períodos dolorosos na análise e durante os períodos muito difíceis da vida; e a habilidade de ‘ficar fora do caminho’ (e não fazer reflexivamente interpretações de transferência) quando eu estava realizando sozinho o trabalho psicológico nas sessões. Os co-autores consideram a experiência emocional que Ogden descreve como sendo uma resposta atual tanto para sua memória do seu trabalho com o Sr. A quanto para os comentários de Gabbard no seu relato escrito dessa experiência. Essa troca entre os co-autores constitui um tipo de experiência de amadurecimento que foi valiosa para ambos os autores. V. Ousar improvisar Com cada paciente, temos a responsabilidade de tornar-nos um analista que nunca vimos antes. Isso requer que deixemos de lado o script e entremos em uma conversa, uma conversa de um tipo que nunca experimentamos antes (Hoffman, 1998; Ringstrom, 2001). Isso pode tomar a forma de resposta a uma menção de um filme por parte do paciente que diz: „„Quase não há uma só palavra falada no filme inteiro, pelo menos foi assim que o filme me fez sentir‟‟. Com outro paciente, improvisar pode significar permanecer em silêncio – não aquiescer a exigências coercitivas implícitas para tranqüilização ou mesmo para o som da nossa voz. A improvisação é claramente uma metáfora teatral. O grande professor russo de teatro, Konstantin Stanislavski, certa vez observou: O melhor que pode acontecer é ter-se o ator completamente arrebatado pela peça. Então, independentemente da sua própria vontade ele vive o papel, não percebendo 22 como se sente, não refletindo sobre o que faz, e tudo se move por conta própria de forma subconsciente e intuitiva. (Stanislavski, 1936, p. 13) De uma maneira análoga, o amadurecimento como analista envolve a permissão crescente que concedemos a nós mesmos para sermos apanhados no momento (no inconsciente da análise) e sermos transportados pela música da sessão. A análise não é uma experiência que possa ser mapeada e planejada. Ocorrem acontecimentos entre duas pessoas que estão juntas em uma sala, e o significado desses acontecimentos são discutidos e compreendidos. Os analistas aprendem mais sobre quem são através da participação na 'dança' do momento. A extensão na qual a análise está „viva‟ pode depender da disposição e habilidade do analista para improvisar, e para ser improvisado pelo inconsciente da relação analítica. VI. Observação dos aspectos de nós mesmos que, como se por sua própria iniciativa, protestam contra sermos o analista que temos sido por tanto tempo O que em certa época poderia ter sido chamado de confiável e estável, pode gradualmente tornar-se demasiado fácil e bastante envelhecido e previsível. Às vezes nos tornarmos conscientes durante uma sessão com um paciente de que nos tornamos confortáveis demais com nós mesmos como analistas. 'Erros', nessas sessões, podem muitas vezes ser vistos como expressões de nossas partes mais saudáveis e são de valor inestimável para o nosso amadurecimento, se pudermos fazer uso desses alertas. Esses "erros" incluem o analista atrasar-se para uma sessão, terminar uma sessão mais cedo, dormir durante uma sessão, e esperar um paciente diferente quando encontra o analisando na sala de espera. (Não estão incluídos nesse tipo de erro as violações de fronteira, tais como, relações sexuais com um paciente, quebras da confidencialidade, relações de negócios com um paciente, e assim por diante [Gabbard e Lester, 1995].) Os 23 erros que não envolvem violações de fronteiras muitas vezes representam os esforços inconscientes do analista para perturbar o seu próprio equilíbrio psíquico, para forçar-se a tomar conhecimento das formas nas quais ele se tornou estagnado no seu papel de analista. Acreditamos haver uma necessidade auto-imposta para se ser original – não no sentido de uma demonstração narcisista, mas no sentido da necessidade de entrar em uma conversa com o paciente ou com o supervisionando de maneira tranqüila, firme e generosa, de uma forma que não poderia acontecer entre ninguém mais no mundo a não ser essas duas pessoas (Ogden, 2004a). Se isso for forçado, rapidamente se revelará um artifício vazio. O desenvolvimento de um „„estilo analítico‟‟ (Ogden, 2007, p. 1185) que é experimentado como completamente autêntico é parte de um esforço contínuo por parte de cada analista para se tornar um analista por seu próprio direito. Pode-se conseguir esse sentimento de ter-se tornado „original‟ somente através de um esforço árduo para livrar-se ao longo do tempo dos grilhões da ortodoxia, da tradição e de suaspróprias proibições inconscientes e irracionais (Gabbard, 2007). A luta do analista com a teoria, como senhora ou como serva, pode ser uma parte integrante deste esforço. Partilhamos o ponto de vista de Sandler (1983) de que cada analista desenvolve um amálgama particular ou um modelo misto, tomando emprestado certos aspectos de várias teorias que são consistentes com a própria subjetividade e com a própria abordagem da análise. Ao mesmo tempo, concordamos com a noção de Bion de que o analista deve esforçar-se por esquecer o que ele pensa que sabe ou conhece „bem demais‟ para que possa ser capaz de aprender com sua experiência atual com o paciente. Bion (1987) uma vez disse a um apresentador: ''Eu [confiaria na teoria somente] ... se eu estivesse cansado e não tivesse idéia do que estava acontecendo ...'' (p. 58). 24 VII. Manter os olhos abertos para a maneira pela qual se está amadurecendo / envelhecendo Conforme se envelhece, pode-se falar a partir da experiência de uma forma que não poderia ter sido feita anteriormente. Muitas vezes a pessoa se torna consciente, após o fato, de que ela mudou, por exemplo, através da escuta de si mesma ao falar com seu paciente. Idealmente, o analista se engaja em um processo de luto no qual a perda da juventude e a inevitabilidade da velhice e da morte são reconhecidas, aceitas e até mesmo abraçadas como uma nova forma de existir como uma pessoa levando uma vida ponderada. O analista pode, dessa forma, alcançar uma maior valorização das experiências de perda do paciente e das maneiras pelas quais ele lidou com elas ou evadiu-se delas. Esse processo de amadurecimento ocorre tanto dentro como fora do setting analítico. O analista que atua cada dia na sala de consultas (idealmente) não é nunca inteiramente o mesmo analista que atuava no dia anterior. A capacidade de um analista de entender plenamente a dor de um paciente pode ser limitada até que o próprio analista tenha navegado em sua própria dor associada à perda de entes queridos e ao término de períodos importantes de sua vida, por exemplo, a época em que seus filhos moravam em casa ou a época em que seus pais estavam vivos. VIII. Dificuldades em tornar-se um analista As razões pelas quais um analista pode temer o processo de „crescer‟ como um analista e as maneiras pelas quais ele pode se defender contra tais temores são extremamente numerosas. Neste breve artigo, não podemos enumerar, muito menos explorar, esses medos e defesas. No parágrafo seguinte, ofereceremos alguns exemplos do vôo do analista a partir das experiências potenciais de amadurecimento e algumas formas de defesa contra tais experiências. O analista pode ter medo de que ele seja tão insubstancial como uma pessoa que não seja possível para ele desenvolver uma voz própria; ou ter medo do 25 isolamento que ele imagina que virá quando tornar-se um analista em seus próprios termos; ou ter medo de que com um reconhecimento maduro da incerteza virá uma confusão insuportável. Um analista pode defender-se contra esses e outros medos empenhando-se em uma rebelião adolescente contra „a instituição analítica‟ em um esforço para evitar definir-se nos seus próprios termos; ou falando no início com uma voz de experiência inventada, quando, na verdade, sente-se dolorosamente carente como conseqüência de sua inexperiência; ou abraçando uma falsa certeza sob a forma de uma intensa identificação com uma determinada escola de psicanálise, com seu próprio analista, com um escritor analítico idealizado e assim por diante. Finalmente, devemos lembrar que, por mais que amemos a análise, uma parte de nós também a odeia (Steiner, 2000). A dedicação ao trabalho analítico contínuo (em nós mesmos e com os pacientes), nos destina não somente à incerteza, mas também a enfrentar o que menos gostamos em nós mesmos e nos outros (Steiner, 2000). Comentários finais No presente artigo discutimos algumas de nossas experiências de amadurecimento e as analisamos sob várias perspectivas teóricas. Alguns leitores reconhecerão no que descrevemos algo de suas próprias experiências de amadurecimento como analistas, enquanto que outros não o farão. De fato, um tema recorrente em nosso trabalho tem sido o fato de que falar com pacientes, colegas e alunos em termos genéricos é anti-analítico (no sentido de representar um fracasso para pensar e falar por si mesmo). Como Bion (1987) observa no comentário citado no início deste artigo, parte de tornar-se um analista é evoluir em uma direção que não é nem determinada por teoria, nem dirigida exclusivamente pela identificação com os outros: “O analista no qual você se torna é você e somente você – isso é o que você usa ...” (p. 15). O discurso analítico envolve o que é único, idiossincrático e vivo na experiência particular 26 de um determinado indivíduo. Tornar-se um analista envolve necessariamente a criação de uma identidade altamente pessoal, que é diferente da de qualquer outro analista. Não podemos superestimar a dificuldade de tentar viver por esse ideal. Os laços conscientes e inconscientes que temos com o que pensamos que sabemos são poderosos. Mas a luta para superar estes laços (pelo menos em um grau significativo) é o que exigimos de nós mesmos em cada sessão. Em nossa experiência verificamos que quando o analista está confuso, é quando ele faz seu melhor trabalho analítico. References Bion WR (1962a). Learning from experience. In: Seven servants. New York, NY: Aronson, 1975. Bion WR (1962b). A theory of thinking. In: Second thoughts, 110–19. New York, NY: Aronson, 1967. Bion WR (1970). Attention and interpretation. In: Seven servants. New York, NY: Aronson, 1975. Bion WR (1987). Clinical seminars. In: Clinical seminars and other works. London: Karnac. Freud S (1914). On the history of the psychoanalytic movement. SE 14,1– 66. Freud S (1937). Analysis terminable and interminable. SE 23, 209–53. Gabbard GO (2000). On gratitude and gratification. JAPA 48:697–716. Gabbard GO (2003). Miscarriages of psychoanalytic treatment with the suicidal patient. Int J Psychoanal 84:249–61. Gabbard GO (2007). „Bound in a nutshell‟: Thoughts on complexity, reductionism and „infinite space‟. Int J Psychoanal 88:559–74. Gabbard GO, Lester EP (1995). Boundaries and boundary violations in psychoanalysis. Washington, DC: American Psychiatric. Hoffman I (1998). Ritual and spontaneity in the psychoanalytic process: A dialectical constructivist view. Hillsdale, NJ: Analytic Press. Loewald H (1960). On the therapeutic action of psychoanalysis. In: Papers on psychoanalysis, 221– 56. New Haven, CT: Yale UP, 1980. 326 G. O. Gabbard and T. H. Ogden Int J Psychoanal (2009) 90 ª 2009 Institute of Psychoanalysis Loewald H (1979). The waning of the Oedipus complex. In: Papers on psychoanalysis, 384–404. New Haven CT: Yale UP, 1980. Ogden TH (1991). Some theoretical comments on personal isolation. Psychoanal Dial 1:377–90. 27 Ogden TH (1994). The analytic third: Working with intersubjective clinical facts. Int J Psychoanal 75:3–20. Ogden TH (1997). Reverie and interpretation. Psychoanal Q 66:567–95. Ogden TH (2004a). This art of psychoanalysis: Dreaming undreamt dreams and interrupted cries. Int J Psychoanal 85:857–78. Ogden TH (2004b). On holding and containing, being and dreaming. Int J Psychoanal 85:1349–64. Ogden TH (2005). On psychoanalytic writing. Int J Psychoanal 86:5–29. Ogden TH (2006). Reading Loewald: Oedipus reconceived. Int J Psychoanal 87:651–66. Ogden TH (2007). Elements of analytic style: Bion‟s clinical seminars. Int J Psychoanal 88:1185–200. Ringstrom P (2001). Cultivating the improvisational in psychoanalytic treatment. Psychoanal Dial 11:727–54. Rosenfeld H (1987). Impasse and interpretation: Therapeutic and anti- therapeutic factors in the psychoanalytictreatment of psychotic, borderline and neurotic patients. London: Tavistock. Sandler J (1983). Reflections on some relations between psychoanalytic concepts and psychoanalytic practice. Int J Psychoanal 64:35–45. Smith HF (2001). Hearing voices. JAPA 49:781–812. Stanislavski C (1936). An actor prepares, Hapgood ER, translator. New York, NY: Theatre Arts Books. Steiner J (2000). Book review of A mind of one‟s own by R. Caper. JAPA 48:637–43. Steiner J (2008). Transference to the analyst as an excluded observer. Int J Psychoanal 89:39–54. Winnicott DW (1951). Transitional objects and transitional phenomena. In: Through paediatrics to psycho-analysis, 229–42. New York, NY: Basic Books, 1958. Winnicott DW (1958a). The theory of the parent–infant relationship. In: The maturational processes and the facilitating environment, 37–55. New York, NY: International UP, 1965. Winnicott DW (1958b). The capacity to be alone. In: The maturational processes and the facilitating environment, 29–36. New York, NY: International UP, 1965. Winnicott DW (1963). Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites. In: The maturational processes and the facilitating environment, 179–92. New York, NY: International UP, 1965. Tradução de Margarida C. T. Busatto
Compartilhar