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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS ESCOLA DE DIREITO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO ADJUNTA DE TRABALHO DE CURSO ARTIGO CIENTÍFICO O PERITO JUDICIAL NO PROCESSO CIVIL: UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA ORIENTANDO (A): EDILSON GONÇALVES DE AGUIAIS ORIENTADOR (A): PROF. ME. JACOBSON SANTANA TROVAO GOIÂNIA 2019 EDILSON GONÇALVES DE AGUIAIS O PERITO JUDICIAL NO PROCESSO CIVIL: UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA Artigo Científico apresentado à disciplina Trabalho de Curso II, da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curso de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUCGOIÁS). Prof. Orientador: Me. Jacobson Santana Trovão GOIÂNIA 2019 EDILSON GONÇALVES DE AGUIAIS O PERITO JUDICIAL NO PROCESSO CIVIL: UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA Data da Defesa: 22 de maio de 2019 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Orientador: Prof. Ms. Jacobson Santana Trovão Nota 10,0 _____________________________________________________ Examinador Convidado: Profa. Ms. Godameyr Alves P. de Calvares Nota 10,0 Ao Grande Arquiteto do Universo (Deus). AGRADECIMENTOS Agradeço primeiro a Deus, o Grande Arquiteto Do Universo, pela vida, pela saúde e pela oportunidade de aprender a cada dia um pouco mais. Agradeço aos meus pais (Valdir – in memoriam – e Vera) pelas grandes e constantes ‘puxadas de orelha’ que tão bem me fizeram e me trilharam o caminho do sucesso. Para não criar uma extensa lista, agradeço a todos que me ajudaram de todas as formas durante minha vida acadêmica. À minha família, em especial à minha esposa Geane, que sempre foi o meu porto seguro. SUMÁRIO RESUMO .......................................................................................................01 INTRODUÇÃO ..............................................................................................02 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: A PERÍCIA E O PERITO.......................04 1.1 A PERÍCIA ..............................................................................................04 1.2 O PERITO ..............................................................................................06 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PERÍCIA NO PROCESSO CIVIL .............09 2.1 A PERÍCIA NA ANTIGUIDADE E IDADE MÉDIA ...............................09 2.2 O SURGIMENTO DA PERICIA NO BRASIL ........................................12 CONCLUSÃO ..............................................................................................17 REFERÊNCIAS ...........................................................................................19 A ATUAÇÃO DO PERITO NO PROCESSO CIVIL: UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA Edilson Gonçalves de Aguiais1 RESUMO O intuito desse trabalho foi entender como se deu a evolução histórica do perito nos processos judiciais de natureza civil. A justificativa desse trabalho está ligada ao crescente número de processos judiciais com fundamento em alguma questão de natureza técnica e, por isso, que demandam a atuação do perito. A primeira parte do trabalho traz a fundamentação teórica da perícia, definindo-a como o trabalho realizado por um profissional especializado e legalmente habilitado com o objetivo de geração de prova além de definir quem é o perito e qual é a sua função no processo. A segunda parte adentra a evolução histórica da perícia, iniciando nos rudimentos da perícia na Antiguidade, passando pela Idade Média e chegando ao Brasil influenciada pelas Ordenações Afonsinas. Além disso, ainda nessa parte, apresenta-se evolução histórica da perícia no Brasil, até o atual Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015). Por fim, são tecidos alguns comentários e conclusões sobre o estudo, apontando a necessidade de novos estudos com foco na lei processual vigente no país. Palavras-chave: Perito Judicial. Perícia judicial. Processo Civil. INTRODUÇÃO Na Antiguidade, as provas que seriam utilizadas no processo de julgamento de determinada questão eram colhidas diretamente pelo rei, que fazia o papel exclusivo de juiz, sem o auxílio de nenhum profissional técnico especializado. Um episódio bastante conhecido desse modo de julgar e da soberania das decisões reais é relatado na Bíblia Sagrada (2009) em I Reis, Cap. 3 ver. 16 - 28. Nessa passagem, o Rei Salomão é instado a julgar a causa de duas mulheres, ambas com filhos recém-nascidos. Uma mulher tinha seu filho vivo enquanto a outra estava com o filho morto. A mulher que teve seu filho morto, durante a noite, tomou o filho da outra, fingindo ser sua a criança viva. Como as duas afirmavam que o filho vivo era seu e o filho morto era da outra, a questão foi levada à presença de Salomão (BÍBLIA SAGRADA, 2009). O rei, que não dispunha 1 Acadêmico (a) do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, e-mail: edilsongyn@gmail.com. 2 de exame de DNA à época, teve que emitir uma sentença decidindo a questão baseado apenas nos relatos apresentados por cada uma das partes do processo. De modo geral, o papel do rei era ouvir os argumentos dos interessados e decidir a questão controvertida de modo soberano. Assim, mesmo que a matéria que estivesse sendo demandada exigisse algum nível de conhecimento técnico - como a medição da extensão das propriedades ou a capacidade de produção das terras -, ao rei caberia proferir uma decisão. Assim, a falta de especialização técnica sobre o assunto em demanda era sempre suprida pelo poder de comando do rei, que gozava de absoluta soberania visto que era um enviado dos deuses para liderar aquele povo (ALBERTO FILHO, 2015). Com a ampliação da divisão social do trabalho, as relações jurídicas se tornaram mais abundantes e complexas e o rei-juiz passou a perceber a latente necessidade de obter conselho com pessoas que conheciam mais a fundo as questões que envolviam a matéria que estava sendo julgada. Para auxiliar o rei em suas sentenças, incialmente foi criado um conselho formado por algumas pessoas, especialistas em determinadas matérias, que atuavam exclusivamente no aconselhamento ao rei quanto à melhor solução para o caso. Sem dúvida, esse é o surgimento da perícia como prova técnica a fim de suprir o juízo de conhecimentos técnicos os quais ele não possui (ou não deve possuir). Neste contexto, considerando a necessária utilização dos conhecimentos técnicos e científicos desenvolvida pelo ser humano para que se possa ter uma justa solução da lide, a questão norteadora do presente trabalho é entender como se deu a evolução histórica da atuação do perito no processo judicial de natureza civil? Por isso, o objetivo geral desse trabalho é apresentar a evolução histórica da atuação do perito no que tange ao processo judicial de natureza civil. Para tanto, elegeu-se como objetivos específicos: i) compreender a perícia e o papel do perito no processo judicial de natureza cível; ii) apresentar a evolução histórica da perícia no processo judicial e, por fim, iii) tecer alguns comentários sobre a atuação do perito. Esse trabalho se justifica porque dados do Conselho Nacional de Justiça - CNJ apresentam um crescimento constante do número de ações ajuizadas anualmente (CNJ, 2018) e, para cada processo que tenha como fundamentação alguma questão técnica ou científica, será necessária a nomeação de um perito judicial para esclarecer ao juízo os aspectos técnicos da demanda (BRASIL, 2015). Ou seja, quanto maior a conscientização dos cidadãosquanto aos seus direitos, maior será o número de 3 demandas judiciais que tenham por fundamento alguma questão técnica ou científica e, portanto, mais profissionais especializados serão demandados para atuarem como peritos. Como se trata de uma trabalho com clara conotação histórica e que está construído para orientar profissionais que não sejam da área do Direito sobre a atuação do perito em um processo judicial de natureza civil, adota-se como hipótese desse trabalho que o perito é um profissional essencial à prestação jurisdicional do Estado e, portanto, um importante auxiliar ao juízo e aos profissionais do Direito. Assim sendo, quanto mais conhecida for a forma de atuação desse profissional (que não tem formação jurídica) quanto às nuances do processo civil mais efetiva será a jurisdição. Ou seja, quando o profissional nomeado pelo juiz conhece a evolução histórica da atuação do perito e os limites de trabalho técnico, este profissional poderá elaborar um trabalho melhor fundamentado e, com isso, auxiliar efetivamente o juízo. Metodologicamente, este trabalho se encaixa na abordagem qualitativa da pesquisa. Para tanto, será feita uma revisão bibliográfica, a qual “é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (GIL, 2002, p. 56) sobre o objeto que está sendo discutido. Isso acontece porque a pesquisa bibliográfica é o instrumento que permite ao pesquisador acessar o que se tem produzido e registrado perante o tema e possibilita “a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente”. (GIL, 2002, p. 45). Nesta reflexão teórica do estudo foi feita uma abordagem da evolução histórica da perícia nos processos judiciais, com foco para a atuação do perito nas ações cíveis. Para tanto, os estudos tiveram enfoque nos autores: Alberto Filho (2015), Almeida (1870), Hortal (1997), Santos (2001), Silva (2014) dentre outros. Na mesma linha, a forma definida da lei processual para a atuação do perito foi abordada, ainda no delineamento teórico do estudo, embasadas em autores como Alvim (1999), Marques (2000), Neves (2016), Othon Sidou (1997), Ribas (1879), Theodoro Jr (2015), dentre outros. 4 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: A PERÍCIA E O PERITO 1.1 A PERÍCIA A palavra perícia vem do latim peritia, que significa conhecimento adquirido pela experiência, saber, habilidade (ALBERTO FILHO, 2015). De modo geral, esse conceito está intimamente ligado à habilidade de aplicar conhecimentos técnicos na construção de uma prova pericial, que poderá ser utilizada no juízo ou fora deste. Por isso, por sua própria característica, a perícia sempre versará sobre área do conhecimento humano especializado, tais como medicina, engenharia, economia, finanças, informática, agrimensura, etc. Pelo conceito etimológico da palavra entende-se que a perícia é habilidade que só se adquire por meio de sólido conhecimento em determinada área, seja ela técnica ou científica. Ademais, essa inteligência pode ser adquirida no decorrer da vida pela expertise obtida por meio da repetição dos trabalhos realizados ou pela aplicação de uma metodologia previamente definida, nos assuntos em que a solução demande conhecimento científico que esteja no estado da arte. Por longo período na evolução histórica da atividade pericial, acreditava que só poderiam ser peritos aqueles profissionais mais velhos e, portanto, mais experientes em sua área de atuação. De certo modo, a própria etimologia da palavra remetia a esse tipo de comportamento, tanto por parte dos magistrados quanto das pessoas de modo geral. Entretanto, com a disseminação do conhecimento científico nas mais diferentes áreas e a definição clara de suas metodologias, mesmo profissionais mais jovens - e menos experientes - têm se inserido de modo eficiente nessas carreiras visto que, nas áreas que demandam a aplicação do conhecimento científico, é mais importante a correta aplicação da metodologia do que a experiência do profissional. Por exemplo, em um processo que busca a declaração da paternidade, é inegável a importância da prova técnica do DNA. Essa prova será feita por um perito, que pode ser um médico, biomédico, etc. Esse profissional (ou órgão técnico) especializado em exames de DNA irá apenas aplicar uma metodologia previamente definida e, pelo resultado dos exames, poderá determinar a paternidade de acordo com os graus de confiabilidade do exame. Como esse é um procedimento que tem um modus operandi cientificamente definido, é mais importante a correta aplicação dos conhecimentos do que a experiência do profissional, sendo perfeitamente possível ser feito por um jovem perito. 5 Vários autores tentam dar uma definição completa para o termo perícia e, dentre as definições mais conhecidas, temos aquela dada pelo Prof. José Frederico Marques, em seu Manual de Direito Processual Civil, define a perícia como “a prova destinada a levar ao juiz elementos instrutórios sobre algum fato que dependa de conhecimentos especiais de ordem técnica” (MARQUES, 2000, p. 309). Na mesma linha de definição, mas ampliando a sua adjetivação e incorporando a devida essencialidade da prova técnica na solução da lide que está sendo levada ao juízo, o Curso de Direito Processual Civil do Professor Eduardo Arruda Alvim cuida que: a prova pericial é a modalidade de prova que se faz necessária quando o juiz necessita de pessoas munidas de conhecimentos especiais (técnicos, como por exemplo, agricultores e mecânicos, ou científicos, como, por exemplo, engenheiros e médicos), que possam informar o juízo acerca do significado desses mesmos fatos (ALVIM, 1999, p. 552). Considerando inicialmente esses conceitos, entende-se que a perícia seja principalmente um instrumento de constatação, de prova ou de demonstração científica ou técnica da veracidade de alguma situação, coisa ou fato sendo, portanto, feita para suprimir a falta de conhecimentos específicos do juízo sobre o objeto da prova. Se filiando a essa corrente, o Professor J. M. Othon Sidou (1997), em seu livro Processo Civil Comparado, entende que a prova pericial deve ser “levada a efeito por pessoa dotada de conhecimento científico ou técnico, em torno de uma pessoa, coisa ou fato cuja revelação se faz necessária para a formação da convicção do juiz sobre o objeto da demanda” (OTHON SIDOU, 1997, p. 239). Por fim, seguindo a mesma linha de definição, o Professor Reinaldo Alberto Filho, em seu livro Da Perícia ao Perito, apresenta entendimento que melhor coaduna com o definido atual Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), posto que incluiu os órgãos técnicos e científicos no rol dos habilitados a fazer perícia judicial. Assim, a obra define a perícia como a diligência realizada, como meio de prova, por pessoa ou pessoas físicas e por órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos no cadastro mantido pelo tribunal ao qual estão vinculados, com a finalidade de apurar tecnicamente um fato, como precípuo escopo de instrução de um procedimento (ALBERTO FILHO, 2015, p. 18). De modo bem sintético, tentando fazer uma conceituação mais simples da atividade, pode-se entender perícia como o exame, vistoria ou avaliação realizado por um profissional especializado e legalmente habilitado com o objetivo de geração de 6 prova, judicial ou extrajudicial. Ora, é a perícia um meio de prova consistente para se obter a melhor solução da lide, ou seja, o perito não é quem vai decidir o processo, mas o seu trabalho é fundamental para esclarecer os pontos técnicos que o juiz precisa conhecer para proferir uma sentença justa. O entendimento é que a perícia tem natureza jurídica de atividade processual probatória, logo, sempre ocorrerá em um processo, seja ele judicial, administrativo ou outro similar. Além disso, a períciapode acontecer preliminarmente, de modo preventivo, definitivo ou não. Por exemplo, uma perícia de engenharia pode ser feita de modo preventivo, para comprovar as condições físicas de determinado edifício antes da construção de um viaduto próximo. É salutar ressaltar, que existem casos onde a perícia irá se resumir apenas à análise de documentos, sendo esse o objeto da perícia. Esse é o caso, por exemplo, da perícia grafotécnica, que deverá se ater ao documento analisado e, cientificamente, atestar (ou não) a veracidade da grafia. Ou seja, o objetivo da perícia é dotar o juízo dos elementos fundamentais para subsidiar a decisão e, portanto, cumpre com a sua função quando consegue esclarecer o magistrado sobre a verdade dos fatos. O ordenamento jurídico brasileiro define que a perícia é um dos meios de prova admitidos em direito (BRASIL, 2015)2. Mesmo não tendo valor probatório absoluto (como nenhum outro meio de prova), o laudo pericial tem um grau de confiabilidade maior que os demais, exatamente por se pautar em procedimentos técnicos ou científicos que estão no estado da arte. Por exemplo, uma perícia que tenha por base um exame de DNA se torna uma prova mais robusta para comprovar a relação de paternidade em comparação ao depoimento de uma testemunha. Em suma, o objetivo da perícia no processo judicial é traduzir os fatos de natureza técnica ou científica importantes à solução da disputa em verdade formal. Então, cabe ao perito, no exercício de sua função, a responsabilidade de demonstrar tecnicamente a verdade (ou não) de uma tese apresentada no processo. Em outros termos, a perícia é um instrumento de constatação, prova ou demonstração, científica ou técnica, da veracidade da situação, coisa ou fatos e existe exatamente para suprir as insuficiências naturais do juízo. 2 , nos termos do art. 464 do CPC (BRASIL, 2015). 7 1.2 O PERITO A palavra perito é de origem latina, sendo um adjetivo oriundo de peritus, termo que tem como sinonímia: expert (em inglês), expertise (em francês) ou experto (português), sendo por vezes chamado também de Louvado em muitos expedientes forenses. Por se tratar de um estudo com foco claramente histórico, nesse ponto é preciso uma ressalva que é de vital importância para o completo entendimento do termo: até a publicação das Ordenações Afonsinas, os Arbitradores eram chamados pelo mesmo nome dos Louvados ou Fiéis. Entretanto, com a evolução da sociedade, o Arbiter – palavra também de origem latina – passa a ter o significado de juiz, de árbitro. Tanto esse entendimento é verdadeiro que o juiz arbitral nada tem a ver com o perito pois tem o poder de decisão enquanto o perito é apenas um auxiliar daquele que decide, sendo cabível a utilização da perícia inclusive nos procedimentos levados à termo nas cortes arbitrais3. Diferentemente do árbitro, o perito, lato sensu, é pessoa (ou grupo de pessoas) de estrita confiança do juiz, por ele designado, sempre que for necessário o esclarecimento de assuntos técnicos ou científicos que extrapolem os permissivos legais do magistrado. Por isso, “a nomeação do perito é indispensável, mesmo que o juiz possua conhecimento técnico pertinente à apuração do fato probando” (THEODORO JR, 2015, p. 592). Assim, o perito é mais que um auxiliar do juiz, ele é um auxiliar da justiça e, como tal, deve se portar com absoluta independência, focado sempre nos limites que a questão técnica que está sendo controvertida lhe impõe. O perito judicial é um cidadão comum que tenha vasto conhecimento sobre determinado assunto e que é chamado pela Justiça para esclarecer questões técnicas e científicas em um processo judicial. Trata-se, portanto, de um auxiliar eventual por necessidade técnica do juízo (THEODORO JR, 2015). Assim, sempre que houver controvérsia acerca de uma questão técnica ou científica, a legislação impõe ao magistrado a necessidade de nomear um profissional especializado naquele assunto para que o auxilie na correta prestação jurisdicional visto que “não se pode exigir 3 Não custa lembrar que o árbitro irá decidir a questão controvertida como se fosse um juiz, tendo a sua decisão um poder definitivo de decisão. Tanto é esse o entendimento que a Lei nº 9.307 de 1996, que dispõe sobre a Arbitragem, define o documento emitido pelo árbitro como sentença arbitral, que apenas será homologada pelo juiz togado sendo, portanto, irrecorrível. 8 conhecimento pleno do juiz a respeito de todas as ciências humanas e exatas” (NEVES, 2016, p. 1328). Nessa linha, o Direito Canônico, no entendimento dado pelo Padre Jesús Hortal (1997), define que são peritos “as pessoas legitimamente citadas para comparecer em juízo, em virtude de seus conhecimentos particulares de caráter científico e técnico, a fim de emitir um parecer que ajude o juiz a comprovar a veracidade de um fato alegado ou a natureza de alguma coisa”. O mesmo sentido é dado pelo Dicionário Jurídico Brasileiro ao definir que perito é a “pessoa com erudição técnica, específica e comprovada aptidão e idoneidade profissional, nomeada pela jurisdição judicial, com a finalidade de ajudar a Justiça nas suas investigações, fornecendo sua avaliação técnica sobre o objeto da demanda ou alguma coisa com ela relacionada” (SANTOS, 2001, p. 186). Não poderia ser diferente o caminho adotado pelo Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva (2014), define o perito como sendo o “homem hábil (experto), que, por suas qualidades ou conhecimentos, está em condições de esclarecer a situação do fato ou do assunto que se pretender aclarar ou por em evidência, para uma solução justa e verdadeira da contenda” (SILVA, 2014, p. 1569). Na mesma linha e apresentando uma conceituação mais atual, em face das inovações promovidas pelo legislador, o Professor Reinaldo Alberto Filho, em seu livro Da Perícia ao Perito, define que o perito é: o profissional legalmente habilitado [e os órgãos técnicos e científicos], devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado, com autorização profissional para elucidar sobre um fato objeto de qualquer contenda, sendo judicial ou administrativa, desde que com o espeque em conhecimentos técnicos ou científicos (ALBERTO FILHO, 2015, p. 30) Por essas conceituações apresentadas, entende-se que o perito judicial nada mais é do que um é um cidadão comum, que tenha vasto conhecimento sobre determinado assunto, e que é chamado pela Justiça no curso de um processo judicial para esclarecer questões técnicas e científicas. É, portanto, o portador da prova técnica e, como tal, deve se utilizar de seu amplo conhecimento sobre a matéria que está sendo periciada para esclarecer o juízo os assuntos que não sejam de domínio do juiz e que são essenciais para a solução da lide. Assim, sempre que a solução da lide depender da aplicação de conhecimento técnico ou científico o juiz deverá estar assessorado por um perito 9 (NEVES, 2016). Ao reconhecer a importância da prova pericial para a solução justa da lide, o CPC prestigia o perito, exigindo grande transparência para sua nomeação e reforçando a necessidade de que o perito escolhido seja detentor de conhecimento técnico especializado. O perito é o profissional que, face aos seus conhecimentos técnicos e científicos, é chamado para auxiliar o juiz no descobrimento da verdade sobre determinado fato. Alguns processualistas entendem que já está superada a visão do exame pericial como simples meio de prova. Assim, o perito passa a ser considerado, por disposição legal, auxiliar do juízo, realizando tarefa que, teoricamente, o próprio magistrado deveria fazer, mas que, por limitação técnica ou científica, se vê obrigado a recorrer à assistência de um expert, conforme previsto no Código de Processo Civil (THEODOROJR, 2015). O perito judicial é, portanto, pessoa estranha ao quadro de funcionários permanentes da Justiça, escolhido pelo juiz para atuar, mediante remuneração, em um processo específico (THEODORO JR, 2015). Em face de suas qualificações técnicas, dentre as quais, salvo nas localidades onde não existam profissionais qualificados, deverá ter nível universitário, inscrição no respectivo órgão de classe e especialidade na matéria objeto da perícia, nos termos do artigo 156 do CPC (BRASIL, 2015). A função do perito é suprir o juiz das noções que ele humanamente não consegue ter conhecimentos suficientes. O resultado desse trabalho será materializado em um laudo técnico pericial, que é a aplicação do conhecimento técnico ou científico sobre o assunto que está em discussão no juízo. De modo geral, o laudo emitido pelo perito é um “documento escrito, no qual é relatado o exame feito pelos peritos, ali expondo tudo o que fizeram e o resultado de sua investigação e observações.” (SANTOS, 2001, p. 143). Por isso, o perito é um auxiliar da justiça e deverá executar o seu trabalho de modo leal e honrado. É importante sempre lembrar que a função do perito é comprovar tecnicamente, na especialidade do expert, a veracidade ou não de determinada questão técnica, deixando a discussão sobre a quem assiste o direito em relação à realidade verificada para aquele que detém o poder da toga, ou seja, ao juiz. Assim, a perícia tem a função de declaração de caráter técnico sobre determinado objeto, ato ou fato, ou seja, a perícia tem o objetivo de auxiliar o juiz com um conhecimento especializado que ele não possui (THEODORO JR, 2015). 10 2 - EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PERÍCIA NO PROCESSO CIVIL 2.1 –PERÍCIA: DA ANTIGUIDADE AOS TEMPOS MODERNOS Na Antiguidade, o rei fazia o papel exclusivo de juiz e, como tal, colhia diretamente as provas que embasariam a sua decisão. Nesse período, o rei-juiz julgava baseado apenas em sua experiência de vida, sem o auxílio de nenhum profissional técnico especializado. De modo geral, o papel do rei era ouvir os argumentos dos interessados e decidir a questão controvertida de modo soberano. Assim, mesmo que a matéria que estivesse sendo demandada exigisse algum nível de conhecimento técnico caberia ao rei proferir uma decisão e, por isso, a falta de técnica era sempre suprida pelo poder de comando do rei (ALBERTO FILHO, 2015). Com a evolução da sociedade, as relações jurídicas se tornaram mais abundantes e complexas e o rei-juiz passou a perceber a latente necessidade de obter conselho com pessoas que conheciam mais a fundo as questões que envolviam a matéria que estava sendo julgada. Para auxiliar o rei em suas sentenças, foi criado um conselho formado por algumas pessoas, especialistas em determinadas matérias, que atuavam exclusivamente no aconselhamento ao rei quanto à melhor solução para o caso. É nesse momento que começam a surgir os primeiros rudimentos da perícia. Um livro que trata bem essa questão da evolução histórica da perícia se chama ‘Prova Judiciária no Cível e Comercial’, escrito pelo Professor Moacyr Amaral Santos. Esse é um livro antigo, publicado em 1949, mas que esclarece a matéria de modo seminal. Vale muito a leitura, principalmente no Volume V, que trata de exames periciais, presunções e indícios. Sobre a origem da perícia no Egito, traz um trecho do referido livro: Fizera Sesostris a partilha das terras aos súditos, distribuindo-as em lotes tirados à sorte e separados uns dos outros por sinais e marcos, que atestavam os seus limites, ficando os beneficiários com o encargo de lhes pagar determinado tributo. Conta Heródoto, nesse passo citado por Fraga, que ‘quando o rio despojava alguém da quota agrária, a pessoa lesada ia procurar o rei a quem dava parte do ocorrido; então este enviava ao lugar da situação do lote inspetores que mediam para saber a área diminuída e a diminuição proporcional que devia sofrer no pagamento do tributo’. Tais inspetores, entendidos em geometria e expertos na arte de medir, são longínquos antecessores de uma categoria de peritos – os agrimensores (SANTOS, apud ALBERTO FILHO, 2015 p. 6). Do mesmo modo que aconteceu com os egípcios, os hebreus e os gregos passaram a possuir seus agrimensores, contratados e mantidos pelo rei com vistas a 11 garantir, mesmo que de modo ainda rudimentar, a correta aplicação da técnica nas demandas que tinham por objeto partilha e sobrepartilha de terras, bem como para fixação e restauração de lindes. Apesar de esses povos antigos começarem a adotar um certo tipo de perícia, ou seja, uma opinião eminentemente técnica de um profissional especializado na matéria para auxiliar a decisão do rei sobre a causa, foi só no Império Romano que a perícia foi qualificada como meio de prova judiciária. Com o crescimento do domínio romano, se tornou impossível ao Imperador decidir soberanamente acerca de todas as causas e, por isso, o processo judicial passou a ter duas fases distintas. Na primeira fase, o magistrado fazia a análise da questão controvertida sob o aspecto estritamente jurídico e legal. Na segunda fase do processo, era eleito um àrbiter, pessoa com conhecimento técnico especializado na matéria que estava em discussão, a quem estava resguardado o dever de decidir a lide, usando a melhor técnica disponível. Esse expert podia ser eleito pelas partes ou sorteado pelo magistrado, caso as partes não conseguissem um acordo sobre quem seria o àrbiter (ALBERTO FILHO, 2015). Nesse ponto da história, mesmo que o conhecimento técnico estivesse assumindo um papel relevante para a solução da lide, esse modelo apresentava um problema básico: aglutinação entre as funções de perito e de juiz em uma única pessoa. Apesar das dificuldades que esse modelo tinha em criar uma prova pericial puramente técnica, esse procedimento durou até o ano 294 da era Cristã, quando o Imperador Diocleciano (244-305 d. C) decide unir as duas fases do processo judicial romano. O objetivo dessa reforma era fortalecer o Direito, organizando a ciência jurídica de modo mais coerente e racional. Aqui novamente é dada mais ênfase à figura do perito ao mesmo tempo que torna o juiz um funcionário do Estado, criando uma estrutura mais próxima à existente atualmente. Na contextualização histórica, toda essa evolução proporcionada à atuação do perito judicial gerada pela evolução do Império Romano acabou se desvirtuando quase que completamente na Idade Média, com a adoção das Ordálias (ALBERTO FILHO, 2015). Ordália foi um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado era interpretado como um juízo divino. Isso aconteceu porque havia clara noção de existir um ‘juízo de deus’ que, combinado com a aplicação dos duelos para a comprovação da verdade, muito prejudicaram o desenvolvimento técnico e científico na busca da comprovação da verdade. Nesse período da Idade Média, o conhecimento 12 técnico passou a ter uma função meramente acessória nas decisões judiciais e, em muitos casos, se tornando inaplicáveis ao contexto dos fatos4. O Direito Canônico5 contribuiu muito para a superação do método das Ordálias exatamente porque deu um destaque significativo ao sistema de provas no processo judicial. Assim, quase que de modo natural, as novas legislações procuraram dar maior ênfase à necessidade de produção da prova pericial para o bom andamento do processo. As Ordenações Afonsinas de 1446, no item 16, do título 13, do primeiro livro, já admitia a prova por arbitramento, que deveria ser feita pelos Louvados, outra denominação dada ao Perito. Na mesma linha, as Ordenações Manuelinas, instituídas em 1521, também seguiam essa linha, influenciando as Ordenações Filipinas de 1603 que criou um título denominado ‘dos arbitradores’. E os arbitradores conhecerãosômente das cousas que consistem em feito: e quando perante elles for allegada alguma cousa, em que caiba dúvida de Direito, remettel-a-ão aos Juízes da terra, que a despachem e determinem, como acharem per Direito; e dahi por diante, havida sua determinação, procederão em seu arbitramento, segundo lhes bem parecer, guardando sempre o costume geral da terra, que ao tempo do seu arbitramento for costumado (ALMEIDA, 1870, p. 580). No mesmo liame de desenvolvimento quanto à importância da atividade pericial, em 1579 é inserido no Direito Francês um artigo definindo que, nas causas relativas ao valor das coisas, essas questões deveriam ser decididas pelo trabalho técnico dos peritos, não só por testemunhas6. No mesmo condão, em 1667, o Direito Francês se alinha ao entendimento dado pelo Direito Romano ao conceder às partes que litigam no processo o direito de escolher livremente os peritos, a exemplo da “inovação” trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 (BRASIL, 2015), em vigor atualmente no Brasil. 4 Exemplos de perícias da época: impotência em causa de divórcio, gravidez de mulher divorciada, aviventação de lindes de imóveis, avaliação de imóveis dados em garantia pelos devedores do Fisco, avaliação de plantações, avaliação de bens submetidos à administração, autenticidade de documentos, etc” (ALBERTO FILHO, 2015 p. 7). 5 O atual Código de Direito Canônico (Codex Iuris Canonici), promulgado pelo Papa João Paulo II, em 23/01/1983 traz um capítulo dedicado aos peritos (Cân. 1.574 a 1.581) além de destacar a sua importância em assuntos como reparação de imagens (Cân. 1.189) e alienação de bens (Cân. 1.293 §§ 1º e 2º). 6 Article CLXII. “En toutes matieres oú il fera nécessaire de procéder à une estimation, les parties conviendront d’experts, sinon les juges em nommeront d’office” Ordonnance du Roy Henry, donné à Blois em l’année 1579. 13 2.2 A PERÍCIA JUDICIAL NO BRASIL A Declaração da Independência emitida pelo Imperador (PEDRO I, 1822), não foi suficiente para sustar os efeitos das leis portuguesas referentes ao processo civil, em grande parte por falta de equivalente nacional. Assim, naquilo que não contrariassem a soberania brasileira, permanecia em vigor as determinações processuais das Ordenações Filipinas. Apenas com a edição do Código de Processo Criminal (Lei de 29 de novembro de 1832), se criou um anexo denominado de ‘disposição provisória acerca da administração da justiça civil’ (BRASIL, 1832), eliminando algumas formalidades desnecessárias, tais como a abolição dos juramentos de calúnia, sem, no entanto, apresentar trazer novos elementos sobre a atuação do perito no tocante ao processo judicial. O objetivo dessa legislação nacional foi a simplificação do procedimento judicial civil principalmente quanto ao número de embargos e apelações permitidas pela legislação anterior. Entretanto, depois de alguma pressão por parte dos advogados que atuavam nesse período, toda essa ‘evolução procedimental’ foi revogada pela Lei n. 261/18417. Por isso, com a publicação da referida lei, o direito processual brasileiro volta a seguir as disposições emanadas das Ordenações Filipinas (BRASIL, 1841) em todas as suas nuances. Como o Código Francês e as Ordenações Filipinas serviriam de base para a formação da legislação brasileira no período imperial, o Regulamento nº 737/1850, que foi a primeira lei processual civil brasileira a dispor sobre a ‘ordem do juízo no processo comercial’, passou a contar com uma seção especial, exclusivamente para tratar as questões de Arbitramento (Cap. XII, Secção VII). Apesar de usar o nome ‘arbitradores’ para se designar ao perito, essa legislação avança em muitos pontos, visto que já define que o arbitramento (perícia) é um dos meios de prova admitidos no juízo comercial (art. 137, § 9º) e deve ser feita quando a natureza da questão discutida exigir conhecimento especializado (art. 189). É preciso destacar, nesse ponto, que a atuação do perito ganha notável importância no bojo do processo civil brasileiro com o Reg. nº 737/1850 visto que, dentre 7 “Art. 120. Fica revogado o art. 14 da Disposição Provisoria, tanto na parte que supprimio as replicas e treplicas, como naquilo que reduzio os aggravos de petição e instrumento a aggravos no auto do processo, ficando em vigor a legislação anterior que não fôr opposta á esta Lei.” (BRASIL, Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841, 1841). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-29-11-1832.htm#dpart14 14 outras coisas, o legislador detalha como seria a escolha do perito, o juramento que deveria ser feito pelo Louvado e os motivos de suspeição do perito. Além disso, em termos práticos, essa legislação já determinava a necessidade de consulta mútua entre os peritos antes de proferir o laudo que seria apresentado ao juízo, atentando ainda à possibilidade de existirem pareceres divergentes, além da possibilidade de se realizar uma nova perícia, caso a primeira perícia não fosse suficientemente conclusiva para o esclarecimento da lide. In verbis: “Art. 197. Os tres arbitradores consultaram entre si, e o que resolverem por prularidade de votos será reduzido a escripto pelo terceiro arbitrador e assignado por todos cumprindo ao vencido declarar expressamente as razões de divergência. Art. 198. Se nenhum accordo houver, e forem os tres arbitradores de opinião diversa, cada hum escreverá o seu laudo como entender, dando as razões em que se funda e impugnando os laudos contrarios. Art. 199. O arbitramento no caso de accordo, ou os laudos, havendo divergencia, serão escriptos em termos claros e precisos e conforme aos quesitos propostos.“(BRASIL, 1850). A marcha processual definida pelo Reg. nº 737/1850 se assemelha, em muito, com a regra em vigor atualmente no país, que determina a construção da prova técnica pericial em um procedimento que garanta, além do contraditório técnico, a cooperação entre os peritos e assistentes técnicos indicados pelas partes (BRASIL, 2015). Outrossim, traz ainda a necessidade de que o perito esclareça a questão técnica de modo preciso e conforme os quesitos propostos, não ultrapassando os limites definidos pelos quesitos feitos pelas partes e pelo juízo. Apesar de ser o primeiro código de processo elaborado no Brasil, o Reg. 737/1850 estava vigente apenas para os processos comerciais, sendo que os processos cíveis continuavam sob a égide de farta legislação portuguesa. Diante disso, em 1879, a pedido da Coroa8, é organizada e publicada pelo Conselheiro Dr. Antonio Joaquim Ribas a Consolidação do Processo Civil (RIBAS, 1879) que já trazia a clara noção da essencialidade da perícia para trazer informação ou esclarecer fatos que sejam fundamentais para a decisão do juízo, na mesma linha adotada pelas Ordenações Filipinas. Outrossim, no entendimento adotado por essa Consolidação, são estendidos ao processo civil muitas das definições feitas no Reg. nº 737/1850 e, em muitos comentários feitos pelo autor ao longo do texto, percebe-se claramente que os 8 Art. 29, § 14 da Lei n. 2.033/1871. 15 doutores da época já haviam adotado esse entendimento de aplicar, subsidiariamente as regras do processo comercial às causas de natureza cível9. Com a Proclamação da República em 1889 e os novos ares trazidos por tal ato, foram editadas novas regras para o processo civil, em especial, o Dec. 763/1890 que resolve estender oficialmente aos processos civis as normas do Reg. 737/185010. O objetivo da medida era simplificar os procedimentos judiciais, reduzir o número de recursos à disposição dos litigantes e, com isso, agilizar a tramitação dos processos, retomando alguns princípios do processo civil constantes do Código Penal de 1832. Nessa linha, a primeira constituição republicanaque foi promulgada em 1981 teve um caráter fortemente descentralizador dos poderes, dando autonomia aos municípios e estados, seguindo o modelo federalista norte-americano. Nesse interim, o legislador constitucional repassou a competência para legislar sobre matéria processual para União e dos Estados, concorrentemente (BRASIL, 1981). Assim, passa a existir uma legislação federal, que apresentava as normas gerais sobre a condução do processo civil, ao mesmo tempo em que surgem vários códigos estaduais definindo os procedimentos de processo submetido ao juízo. A Constituição de 1934, criada em um contexto político avesso às liberdades, retorna à União a competência plena de legislar sobre a matéria processual, criando a consequente necessidade de se criar um Código de Processo Civil – CPC. Esse codex viria a normatizar efetivamente o funcionamento da construção da prova pericial no processo judicial brasileiro visto que o cenário político “exigia que se atualizasse o confuso e obsoleto corpo de normas que, variando de Estado para Estado, regia a aplicação da lei entre nós” (CAMPOS, 1939, p. 1). As mudanças em curso no Brasil trazidas no bojo da revolução de 1930 exigia maior força estatal na realização da justiça. Isso acontece porque, “a ordem judiciária tornara-se inacessível à compreensão popular, e com isto se obliterava uma das finalidades mais altas do Direito, que é introduzir e manter a segurança nas relações sociais” (CAMPOS, 1939, p. 2). Nesse contexto de estado centralizador e impositivo, a 9 “O Cons. Paula Baptista entende que, para obviar os inconvenientes que d'ahi resultam, se deveria adoptar, no civel, a disposição do art. 192 do Reg. n. 737 de 25 de nov de 1850, de fórma a serem nomeados desde logo os tres peritos que conferenciam conjunctamente, fundamentando o seu voto aquelle que divergir dos outros” (RIBAS, 1879, p. 334). 10 “Art. 1º São applicaveis ao processo, julgamento e execução das causas civeis em geral as disposições do regulamento n. 737 de 25 de novembro de 1850, excepto as que se conteem no titulo 1º, no capitulo 1º do titulo 2º, nos capitulos 4º e 5º do titulo 4º, nos capitulos 2º, 3º e 4º e secções 1ª e 2ª do capitulo 5º do titulo 7º, e no titulo 8º da primeira parte.” (BRASIL, 1890). http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-737-25-novembro-1850-560162-publicacaooriginal-82786-pe.html 16 liberdade advinda das Ordenações Filipinas para que as partes escolhessem os arbitradores (e outros aspectos do processo) deve ser tolhida para que o processo civil se tornasse efetivamente “um instrumento de defesa dos fracos” (CAMPOS, 1939). Nesta linha: A direção do processo deve caber ao juiz; e este não compete apenas o papel de zelar pela observância formal das regras processuais por parte dos litigantes, mas o de intervir no processo de maneira, que este atinja, pelos meios adequados, o objetivo de investigação dos fatos e descoberta da verdade. (CAMPOS, 1939, p. 3) Nessa linha, o CPC/1939, amplia os poderes do juíz nos processos de natureza cível, definindo-o como um agente essencial na busca do conhecimento da verdade. Esse procedimento, acabou por criar um procedimento extremamente moroso para a realização da perícia judicial mas serviu também para consolidar a importância desse instrumento para a correta aplicação da justiça. Abaixo, in verbis, o texto original definido pelo legislador. Art. 129. Os exames periciais serão feitos por um perito, sempre que possível técnico, de livre escolha do juiz (BRASIL, 1939). Observe que, na redação original da lei, há uma importante inovação do ponto de vista prático: a preferência por um profissional técnico. Assim, mesmo que a escolha do perito fosse feita por livre escolha do juiz, independentemente do consentimento das partes, já prevalece o quesito técnico sobre as indicações puramente pessoais. Além disso, a nova legislação permitia às partes indicar os seus assistentes técnicos que deveriam acompanhar todo trabalho que desenvolvido pelo perito, tendo ainda a possibilidade de impugnar o resultado apresentado pelo perito do juízo. Observe que a imposição da legislação quanto à impossibilidade de as partes escolherem, em comum acordo, um profissional responsável pelo procedimento pericial, muito comum desde as Ordenações, criou uma celeuma jurídica enorme. A solução veio com o Dec.-Lei n. 4.565/1942, que modificou o art. 129 do CPC, in verbis: Art 129. Os exames periciais serão feitos por um perito, sempre que possível técnico, de escolha do juiz, salvo se as partes acordarem num mesmo nome e o indicarem. Se a indicação for anterior ao despacho do juiz, este nomeará o perito indicado. Não havendo indicação, a escolha do juiz prevalecerá se as partes não indicarem outro perito dentro de quarenta e oito (48) horas após o despacho de escolha. Com a alteração processual, passou a determinar-se que o juiz só poderia nomear um perito de sua escolha caso as partes não chegassem a um consenso sobre 17 a escolha de um profissional. Além disso, pelo próprio texto legal, percebe-se que se criou uma vinculação do juiz quanto à escolha das partes, mesmo após aquele ter feito a nomeação do perito. Entretanto, mesmo com essa faculdade processual, a celeuma em torno da escolha do perito não foi solucionada sendo editado, portanto, o Dec.-Lei n. 8.750/1946, que altera novamente o art. 129 do CPC e cria a figura do ‘perito desempatador’. “Art. 129.Os exames periciais poderão ser feitos por um só louvado, concordando as partes; se não concordarem indicarão de lado a lado o seu perito e o juiz nomeará o terceiro para desempate por um dos laudos dos dois antecedentes, caso não se contente com um dêstes". Com essa alteração da legislação processual mantém-se a possibilidade de as partes indicarem, em comum acordo, um perito único e, em caso de discordância quanto ao profissional, o juiz nomearia um perito de sua confiança, que seria o desempatador. Como as partes quase nunca concordavam com a indicação de um ‘perito em comum’ - e quase sempre eram apresentados laudos divergentes -, a figura do perito desempatador se tornou quase que obrigatória em todos os procedimentos levados à juízo. O Código de Processo Civil de 1973 (Lei n. 5.869/1973) avança ao reintroduzir a figura do Assistente Técnico - prevista no CPC/1939 e que fora retirada nas alterações de 1942/1946. Entretanto, na redação original da legislação, o Assistente Técnico não era mais um auxiliar da parte e sim um Auxiliar do Juízo e, como tal, compromissado com a imparcialidade da mesma forma que o perito nomeado, nos termos do art. 422, in verbis: Art. 422. O perito e os assistentes técnicos serão intimados a prestar, em dia, hora e lugar designados pelo juiz, o compromisso de cumprir conscienciosamente o encargo que lhes for cometido. Ora, como que o Assistente Técnico, que é contratado pela parte e às suas expensas exatamente para acompanhar o trabalho do Perito Oficial, poderia prestar compromisso de imparcialidade perante o juízo? Esse regramento era tão absurdo que previa a substituição do Assistente Técnico caso este deixasse de prestar o compromisso sem motivo legítimo 11 . Além disso, estava previsto no ordenamento a recusa dos assistentes em casos de impedimento ou suspeição12. 11 Art. 424, II, Lei n. 5.869/1973. 12 Art. 423, Lei n. 5.869/1973. 18 A solução desse impasse só viria com a edição da Lei n. 8.455/1992 que alterou o Art. 422 do Código de Processo Civil, abolindo a necessidade de se prestar ‘termo de compromisso’, enquanto estivesse atuando como auxiliar técnico da parte. Além disso, essa alteração restaurou o papel do perito-assistente como um auxiliar da parte e, portanto, não sujeito a impedimento ou suspeição. Outro ponto incluído por essa leifoi a obrigatoriedade de o juiz comunicar à respectiva corporação profissional caso o perito deixe de cumprir o encargo no prazo que lhe foi assinado. Apesar da controvérsia quanto ao papel do assistente técnico no processo, é inegável a grande evolução proporcionada pela edição do CPC/1973 no que concerne à atuação do perito. Enquanto no Codex de 1939 existia a preferência pela nomeação de profissionais técnicos, a nova legislação processual declarava textualmente a obrigatoriedade da assistência do expert nos processos em que a resolução da lide demandasse conhecimento técnico ou científico. No bojo dessa evolução jurídica, como o juiz tinha grande liberdade no processo de nomeação do perito, essa situação eventualmente gerava distorções. Em alguns casos, criou-se a figura do ‘perito universal’, considerado apto pelo juízo para realizar qualquer prova pericial, sobre todo e qualquer assunto. Daí veio outra modificação necessária na legislação processual com a edição da Lei n. 7.270/1984 que definiu a necessidade de serem nomeados peritos entre os profissionais de nível universitário, devidamente registrados em seus respectivos conselhos de classe. Além disso, passou a ser exigida a especialidade comprovada na matéria que será objeto da perícia. Reconhecendo que, em algumas regiões do país, havia clara insuficiência de profissionais de nível universitário, devidamente inscritos em seus órgãos de classe, com a qualificação necessária e que possam colocar seus conhecimentos à disposição do Poder Judiciário, a própria lei facultou ao juiz a livre nomeação do perito nesses casos. Observe que essa faculdade processual se aplica apenas quando na localidade não houver profissionais que cumpram com os requisitos elencados acima, ou seja, caso existam profissionais que cumpram com aquelas condições, a escolha destes é preferível. Muitas das alterações que foram sendo incorporadas na legislação processual civil ao longo do tempo foram encampadas pelo Novo Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), atualmente em vigor no país. Entretanto, por não ser objeto de estudo desse trabalho, deixou-se de abordar mais detidamente essas questões. 19 CONCLUSÕES GERAIS Como foi destacado anteriormente, o objetivo desse trabalho foi entender como se deu a evolução histórica da atuação do perito nos processos judiciais de natureza cível. Este é um tema de extrema relevância visto que o perito é um auxiliar da justiça e, para exercer a contento sua designação, esse profissional precisa compreender bem os limites e potencialidades de sua função. É preciso ter em conta que os profissionais que são/serão nomeados para atuar como peritos nos processos judiciais foram treinados nas questões técnicas de sua área de formação e, portanto, não são especializados nas questões jurídicas, principalmente as processuais. Por isso se torna tão importante esse trabalho. Para tanto buscou-se primeiramente dotar este trabalho com toda fundamentação teórica acerca da perícia e, neste caminho, acabou-se por definir perícia como o trabalho técnico realizado por um profissional especializado e que seja legalmente habilitado. Desse esforço profissional feito pelo perito irá se extrair um documento, que é a prova pericial, um meio de prova admitido em Direito no Brasil. No mesmo interim, foi preciso reconstruir a teoria que define quem é o perito judicial e qual é a sua função no processo de natureza cível trazendo, com isso, sua evolução histórica e, an passant, delineando os limites de sua atuação. Ato contínuo, a discussão teórica avança para trabalhar a evolução histórica da perícia, iniciando na Antiguidade, passando pela Idade Média e chegando ao Brasil influenciada pelas Ordenações Afonsinas e Filipinas. Além disso, ainda nessa parte, apresenta-se evolução histórica da perícia de natureza cível no Brasil, apresentando as inovações legislativas que foram sendo incorporadas até o atual Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015). Como esse é um trabalho com clara conotação histórica, os resultados dessa análise demonstram as modificações quanto à forma de atuação do perito judicial nos processos de natureza cível ao longo do tempo. Essa atividade profissional surge enquanto um auxiliar do rei naquelas demandas em que fosse necessário aplicar o conhecimento técnico ou científico. Assim, a hipótese adotada no início desse trabalho foi comprovada pois, em toda evolução histórica apresentada neste trabalho, fica nítida a importância da atuação do perito no processo judicial de natureza cível. É esse o papel do perito: atuar 20 como um agente que auxilia o magistrado, concorrendo para uma efetiva prestação jurisdicional do Estado. Com essas conclusões acerca da evolução histórica, abre-se espaço para outros trabalhos abordarem a atuação do perito de acordo com o Código de Processo Civil vigente no país (Lei n. 13.105/2015). Por não ser objetivo desse trabalho, essa análise do modus operandi do perito no processo judicial cível atual deixou de ser feita nesse artigo mas entende o autor ser esse um importante tema para outros trabalhos científicos, principalmente para os profissionais da área do Direito com o fito de esclarecer aos peritos, profissionais de outras áreas de formação, uma explicação clara quanto à sua atuação nos processos judiciais. REFERÊNCIAS ALBERTO FILHO, R. P. (2015). Da perícia ao perito (4º ed.). Niterói, RJ: Ímpetus. ALVIM, E. A. (1999). Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais. BÍBLIA SAGRADA, A. (2009). A Bíblia Sagrada. Traduzida em Portugues por João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. BRASIL, R. F. (nov de 1832). Lei de 29 de novembro de 1832. Código de Processo Ciminal. BRASIL, R. F. (1841). Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841. Reformando o Codigo do Processo Criminal. BRASIL, R. F. (1939). Decreto-lei n. 1.608 de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. BRASIL, R. F. (1981). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. BRASIL, R. F. (2015). Código de Processo Civil. BRASIL, R. F. (2015). Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. CAMPOS, F. (1939). Exposição de motivos. Código de Processo Civil, p. 12. CNJ, C. N. (2018). Justiça em números 2018: ano-base 2017. Brasília: CNJ. GIL, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa - 4ª ed. São Paulo: Atlas. GONÇALVES, M. V. (2017). Direito processual civil esquematizado - 8. ed. São Paulo: Saraiva. 21 MARQUES, J. F. (2000). Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Millenium Editora. NEVES, D. A. (2016). Manual de direito processual civil: volume único. Salvador: JusPodivm. 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