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ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES BELO HORIZONTE / MG ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 2 SUMÁRIO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E CONCEITOS ........................................................ 4 2. TEORIAS DA OBRIGAÇÃO MORAL .................................................................... 11 2.1. Moral como busca do supremo bem ................................................................. 11 2.2. Teorias da Obrigação Moral .............................................................................. 12 2.3. Realização da Moral ......................................................................................... 13 2.4. Forma Lógica dos Juízos Morais ....................................................................... 13 2.5. Obrigatoriedade do Comportamento Moral ....................................................... 14 2.6. Justificação Moral ............................................................................................. 14 3. VALORES ............................................................................................................ 17 3.1. Valores: o que são? .......................................................................................... 17 3.2. Ética e Religião ................................................................................................. 24 4. RELAÇÃO DA ÉTICA COM OUTRAS CIÊNCIAS ................................................ 27 4.1. Filosofia............................................................................................................. 27 4.2. Psicologia .......................................................................................................... 27 4.3. Sociologia ......................................................................................................... 28 4.4. Antropologia ...................................................................................................... 28 4.5. História .............................................................................................................. 29 4. 6. Economia ......................................................................................................... 29 4.7. Direito ............................................................................................................... 30 4.8. Outras ciências ................................................................................................. 33 5. VIDA EM SOCIEDADE ......................................................................................... 34 5.1. Deveres Éticos na Família ................................................................................ 34 5.2. Ética e Comunidade .......................................................................................... 35 5.3. Ética e Sociedade ............................................................................................. 36 5.4. O Estado ........................................................................................................... 37 6. A ÉTICA E A COMUNICAÇÃO DE MASSA.......................................................... 43 6.1. Os Meios de Comunicação de Massa ............................................................... 43 6.2. Marketing .......................................................................................................... 44 6.3. Publicidade ....................................................................................................... 44 6.4. Propaganda ...................................................................................................... 45 6.5. Imprensa ........................................................................................................... 47 6.6. Ética e Comunicação de Massa ........................................................................ 49 7. A ÉTICA E A EMPRESA ...................................................................................... 53 7.1. A ética e a organização ..................................................................................... 53 7.2. Responsabilidade social corporativa ................................................................. 58 7.3. Educação corporativa........................................................................................ 60 7.4. Temas emergentes: responsabilidade global .................................................... 61 ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 3 8. ASSÉDIO MORAL ................................................................................................ 63 8.1. O Assédio ......................................................................................................... 63 8.2. Manobras do Assédio........................................................................................ 65 8.3. Assédio Organizacional ..................................................................................... 68 9. CÓDIGOS DE ÉTICA ........................................................................................... 72 9.1. Instituições e Códigos de Ética ......................................................................... 72 9.2. Construção de Código de Ética ......................................................................... 74 10. PALAVRAS FINAIS ............................................................................................ 76 11. REFERÊNCIAS.................................................................................................. 77 ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 4 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E CONCEITOS Caro aluno, Cá estamos em nosso primeiro encontro sobre um tema sempre palpitante, muito falado, pouco compreendido e duvidosamente aplicado; ainda mais hoje em dia, quando a fartura e velocidade de veículos de informação nos bombardeiam com notícias sobre esta e aquela ação praticada por alguém, muitas vezes já emitindo um julgamento, ou direcionando o julgamento do receptor pelas expressões usadas, para condenar, absolver ou enaltecer. As interpretações e julgamentos que você faz sobre (ou talvez fosse mais apropriado dizer sob) essa maré de informações acontece em conformidade com uma tábua de valores que você adota: quando coincidentes, são considerados positivamente; quando divergentes, são considerados negativamente. E fala-se em ética para cá, ética para lá, em imoralidade, em valores (financeiros, morais, afetivos?), mas os conceitos ficam em terreno movediço e coberto por névoa, de modo a ser quase um vale-tudo na hora de empregar tal ou qual expressão. Neste primeiro encontro, pretendemos ajudá-lo a: conceituar ética e moral; identificar o campo de atuação de cada uma; e identificar as condições de existência do ato moral. Vamos, então, aventurar-nos primeiro no campo dos conceitos. A ética está presente em todos os discursos. Em toda invocação referente à busca da conduta correta, ela é citada, mesmo que por pessoas cujo comportamento não seja lá muito correspondente aos seus ditames. Certas expressões tornaram-se tão presentes nos pronunciamentos que se pode considerar quase terem virado clichês: CIDADANIA, ÉTICA, LIBERDADE, IGUALDADE, DIGNIDADE, JUSTIÇA, PAZ SOCIAL, DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA, CULTURA, INCLUSÃO, IDENTIDADE, SOLIDARIEDADE e outras. O apelo frequente a tais expressões, nos mais variados contextos, buscando valer-se da carga emocional que encerram, banaliza-as e subverte o seu sentido, tornando-as “coringas” com o intuito de aumentar a capacidade de convencimento pela retórica. Como bem diz José Renato Nalini (2008, p.25-26), são expressões que se impregnam de sentimento, distanciam-se do sentido racional. Seu enunciado tem a complexidade própria das questões filosóficas. Quanto mais numerosos sejam os sentidos conceituais para definir uma noção que simbolize um valor, mais confusa essa noção parece. A banalização de seu uso acaba por fazer delas conceitos ocos, esua repetição pode produzir efeito contrário ao desejado – em lugar de inflamar o público, causam-lhe aversão. A hipersimplificação vocabular e a atribuição de significados totalmente distintos dos usuais para palavras e expressões (por exemplo, o termo irado, de equivalente a enfurecido passa a ser entendido como na moda, bacana) assemelham-se à novilíngua (ORWELL, 1984); a verborragia ou a hipersimplificação polissêmica permitem à linguagem ser vaga e dar margem às interpretações mais ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 5 convenientes para o momento, no melhor estilo do duplipensar descrito por Orwell em seu 1984. Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas. (...) até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam uma espécie de imprudência na sua deliberada subversão dos fatos. O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade, com as mentiras, o do Amor com a tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais, nem resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar. Pois é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder (ORWELL, 1984, p.200-202). Nessa profusão de discursos em que se empregam expressões fortes num vazio de sentido, o conceito que essas expressões representam esvazia-se. A verborragia do politicamente correto mostra-se discurso vazio na medida em que se mostra tão grande preocupação em esmiuçar o que se diz para supostamente não ferir suscetibilidades e, ao fim e ao cabo, alimentar a discriminação em detrimento da consideração de todos como pertencentes à mesma humanidade. Exemplos históricos existem à farta, de se proclamar a paz promovendo ações belicosas, ou de atribuir ao agredido a agressão que lhe era feita. “É paradoxal assistir à proclamação enfática dos direitos humanos, simultânea à intensificação do desrespeito por todos eles (NALINI, 2008, p.26)”. O que é cidadania? É só saber cantar o Hino Nacional, é só comparecer aos locais de votação nos dias determinados, é lembrar-se somente de direitos reais ou supostos, e dos deveres e proibições quando conveniente? O que é igualdade de oportunidade? É priorizar um grupo para determinados benefícios em detrimento de outro, em nome de alguma espécie de “retratação histórica” quando as circunstâncias que produziram a anterior segregação não mais existem? É atribuir alguma espécie de benefício diferenciado mercê de fatores não- controláveis pelo indivíduo, tais como aqueles do fenótipo? Ou é possibilitar às pessoas um mesmo ponto de partida, em paridade de condições de progressão? O que é identidade? É a afirmação de determinados elementos socialmente construídos com a exclusão do que lhes seja diferente, ou é aquilo que permite reconhecer a peculiaridade de um indivíduo ou grupo que se integra a um grupo social maior? O que é ética, o que é moral, o que é ser ético? Se os conceitos devem evoluir, até que ponto essa evolução arrisca-se a caminhar para uma polissemia manejável de modo a ser conveniente para os objetivos de cada emissor? Todas essas perguntas, como você notou, estão interligadas. Cidadania é a participação ativa na vida da polis, zelando pelos seus direitos, sim, mas cumprindo ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 6 os deveres, que visam ao bem da coletividade. Igualdade de oportunidade é assegurar o máximo de objetividade ao verificar o que a pessoa sabe e é capaz de fazer, independentemente de ser homem, mulher, ser narigudo, ter orelhas de abano ou crer no poder redentor da bolinha de gude amarela. Identidade é reconhecer-se único, rodeado por outros com seus próprios gostos, desejos e saberes e igualmente dignos de buscar a felicidade. E a ética envolve essa igualdade de oportunidade e de observância de direitos e deveres por um indivíduo identificável como único naquele grupo social. Vejamos, inicialmente, como se pode conceituar ética e moral. São dois conceitos que têm forte semelhança em sua etimologia, pois ethos, em grego, e mores, em latim, significam “costumes”. Referem-se, portanto, a comportamentos dos seres humanos em sociedade. E você já notou, em seu tempo de vida, que no seu grupo social existem vários tipos de regras: leis, que preveem punições para os casos de descumprimento; regras do trato social, que geralmente permitirão sua convivência sem grandes choques com os outros; e as regras morais, recomendando condutas que se enquadram no modelo “bom” daquela sociedade. Uma análise bem abrangente dos conceitos de ética e moral é de Luciano Zajdsznajder: As duas expressões buscam captar algo que é complexo e multifacetado: um todo que contém pelo menos as seguintes partes: Um conjunto de normas codificadas ou não sobre como devem se conduzir as pessoas e as instituições nas diversas situações que se apresentam na vida, servindo para distinguir o que é um bom ou um mau comportamento e estabelecendo de algum modo o que seria um comportamento correto ou ideal; Um conjunto de ideias acerca de como deve ser conduzida a vida humana para que seja considerada boa ou feliz; A maneira como as pessoas e instituições comportam-se realmente na prática; A reflexão e o raciocínio que ocorrem quando se tomam decisões ou se resolve agir, segundo o que é correto ou incorreto, no sentido de bom ou mau; Os sentimentos das pessoas diante de seus próprios comportamentos ou de outros, como vergonha, remorso, piedade, orgulho; As reflexões sobre a origem das normas, o seu fundamento, a sua justificativa (ZAJDSZNAJDER, apud AMOÊDO, 2007, p.18). Como diz Yves de la Taille (2006, p.26), a preocupação em distinguir moral e ética explica-se pelo fato de muitas pessoas verem na palavra “ética” um conceito cheio de promessas filosóficas, um rico campo de reflexões e atitudes nobres, sendo ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 7 a moral um pobre conjunto de ditames, nem sempre compatível com os interesses dos membros do grupo social. Segundo esse autor, o sucesso do vocábulo “ética” pode ser relacionado ao fracasso de seu irmão etimológico, “moral”. Moral é associada a “moralismo”, “moralista”, lembrando “normatização incessante, dogmática, de abrangência excessiva, de legitimidade suspeita e seu militante, esse normatizador e vigia contumaz da vida alheia (LA TAILLE, 2006, p.27) ”. Moralista, em sentido clássico, é o estudioso da moral. Modernamente, é esse vigilante da conduta alheia. Naturalmente, você já teve contato com algum (ou mesmo vestiu a máscara de) “moralista”, pregando para outros uma pureza que nem sempre encontra eco no pregador. Será coerente, será moralmente válido pautar-se por “faça o que eu digo, não o que eu faço”? Principalmente graças aos “moralistas”, a palavra moral é suspeita porque fala em normas; mas, se prestarmos atenção às atuais referências à “ética”, veremos que são tão normativas quanto aquelas associadas à moral. As frequentes referências atuais à ética parecem mais relacionadas a uma demanda por normas, por limites, por controle. Ao se falar em ética na profissão, ao se construírem códigos de ética ou comitês de ética para diversas atividades humanas, trata-se na verdade de regras de conduta, ou seja, fala-se muito em ética pensando em moral, devido a uma percepção de deterioração nas relações sociais, de banalização da desonestidade, das incivilidades e da violência, enfim, de uma falta de parâmetros nos costumes (desregramento). Mas será que a multiplicação das normas resolve o problema? Salta aos olhos que, mais do que a quantidade de normas, o que realmente conta para a vida em sociedade é a sua observância – que só é viável sem coerção se as normas forem entendidas como legítimas. Uma quantidade muito grande de normas, muitas vezes referindo-se a minúcias, pode, por um lado,engessar o seu cumpridor e, por outro, tornar viável a transgressão a partir de suas contradições e brechas (o que não é proibido é tacitamente permitido; ou, quando duas normas entram em conflito, tende-se a ir para a que dá menos restrições). Segundo Yves de la Taille, a convenção mais adotada para diferenciar o sentido de moral do de ética é reservar o primeiro conceito para o fenômeno social, e o segundo para a reflexão filosófica ou científica sobre ele. Todas as comunidades humanas são regidas por um conjunto de regras de conduta, por proibições de vários tipos cuja transgressão acarreta sanções socialmente organizadas. Portanto, toda organização social humana tem uma moral. Mas, como todo fenômeno social, indaga-se sobre ela para melhor compreendê-la. Como a moral trata de normas de conduta, há que se indagar para conhecer suas origens, seus fundamentos, sua legitimidade: é trabalho da filosofia. No entanto, sendo a moral objeto de um estudo científico, pode-se procurar traçar a história dos diversos sistemas morais (trabalho da história), pode-se procurar compreender as condições sociais que os tornam possíveis ou até necessários ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 8 (trabalho da sociologia), pode-se procurar desvendar os processos mentais que fazem com que os homens os legitimem (trabalho da psicologia), entre outras possibilidades de análise. A esse trabalho de reflexão filosófica e científica é que se costuma dar o nome de ética. Essa diferença de sentido entre moral e ética é interessante. Por um lado, permite nomear diferentemente o objeto e a reflexão que incide sobre ele; por outro, permite notar que se pode viver uma moral tem nunca ter se dado ao trabalho da reflexão ética (LA TAILLE, 2006, p.26). Mas é bom lembrar que esta diferenciação é apenas uma convenção. Há autores que consideram as duas expressões sinônimas. Um autor que segue a ideia de diferentes sentidos para moral e ética é Adolfo Sánchez Vázquez: “Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.23, grifo do autor) ”. O objeto da ética é a moral, conjunto de normas adquiridas pelo hábito reiterado de sua prática. A ética procura extrair dos fatos morais os princípios gerais a eles aplicáveis. A ética é mais direcionada a uma reflexão sobre os fundamentos do que a moral, que tem sentido mais pragmático. A moral é, por assim dizer, a matéria-prima da ética. O objeto de estudo da ética é constituído pelos atos conscientes e voluntários dos indivíduos e que afetam outros indivíduos, determinados grupos sociais ou a sociedade em seu conjunto (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.24). Os agentes morais são indivíduos reais que fazem parte de uma comunidade, e seus atos são morais somente se considerados nas suas relações com os outros. O homem diversifica seu comportamento de acordo com o objeto com o qual entra em contato e também com o tipo de necessidade que procura satisfazer, dependendo das condições históricas concretas. A moral é um fato histórico e a ética, como ciência da moral, tem de considerá-la como um aspecto da realidade humana mutável com o tempo. A moral é histórica porque é um modo de comportar- se de um ser histórico por natureza, o qual constantemente se recria tanto no plano de sua existência material, prática, como no de sua vida espiritual – que inclui a moral (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.37). A ética estuda a variedade e evolução das morais no tempo e no espaço, com seus respectivos valores, princípios e normas. Por buscar construir teorias que compreendam princípios gerais, não se identifica com os princípios e normas de nenhuma moral em particular e também não pode adotar uma atitude indiferente diante das morais que estuda. Além de explicar suas diferenças, deve investigar o princípio que permita compreendê-las no seu movimento e no seu desenvolvimento (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.22). A ética [como ciência que é] nos diz o que é a norma moral, mas não postula ou não estabelece normas; estuda um tipo de conduta normativa, mas não é o teórico da moral, e sim o homem real, que estabelece determinadas regras de comportamento. (...) A moral, pois, tem por base determinadas condições históricas e sociais, assim como determinada constituição psíquica e social do homem. Cabe à ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 9 ética examinar as condições de possibilidade da moral (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.103-104). Não se pode conceber moral sem que haja vida em sociedade; portanto, todo ato moral só pode ser assim considerado inserido na relação entre seres, praticado por um (uns) e refletindo-se sobre outro (s). Todo sistema moral contém deveres para com outrem, e esse costuma ser o foco principal na busca de um projeto de felicidade. A moral “não diz o que é ser feliz nem como sê-lo, mas sim quais são os deveres a serem necessariamente obedecidos para que a felicidade individual tenha legitimidade social (LA TAILLE, 2006, p.60) ”. A necessidade de ajustar o comportamento de cada membro aos interesses da coletividade leva a que se considere como bom ou proveitoso tudo aquilo que contribui para reforçar a união ou a atividade comum e, ao contrário, que se veja como mau ou perigoso o oposto; ou seja, o que contribui para debilitar ou minar a união; o isolamento, a dispersão dos esforços, etc. (...) O que mais tarde se qualificará como virtudes ou vícios acha-se determinado pelo caráter coletivo da vida social (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.40). A ética é uma disciplina descritiva, ao buscar descrever a forma como as pessoas agem e explicam sua ação, em termos de julgamentos de valor e pressuposições; e é uma disciplina normativa, no sentido de descobrir e elucidar normas, estudando as formas como as pessoas devem agir e analisando os julgamentos de valor e pressuposições que justificam tais ações. “Seu conteúdo mostra às pessoas os valores e princípios que devem nortear sua existência. A ética aprimora e desenvolve o sentido moral do comportamento e influencia a conduta humana (NALINI, 2008, p.30) ”. A ética é uma ciência voltada para a atualização ou experiência de valores, e as normas, que ela procura descobrir e elucidar, pressupõem valoração. “Norma é regra de conduta que postula dever. Todo juízo normativo é regra de conduta, mas nem toda regra de conduta é uma norma, pois algumas das regras de conduta têm caráter obrigatório, enquanto outras são facultativas (NALINI, 2008, p.30-31) ”. Regras de ordem prática, que exprimem uma necessidade condicionada, se incluem no conceito de regras técnicas, ou seja, preceitos que assinalam meios para a consecução de finalidades. As normas, diferentemente das regras técnicas, são preceitos cuja observância implica um dever para o destinatário, independentemente das especificidades. A noção de norma pode ser mais bem compreendida ao ser comparada com a de lei natural. As leis naturais ou físicas têm fim explicativo e são suscetíveis de serem provadas por fatos. As normas têm fim prático, pretendem provocar um comportamento, valem independentemente de sua observância ou violação. A norma exprime um dever, dirigindo-se a seres capazes de cumpri-la ou de violá-la. Funda-se no pressuposto filosófico da liberdade, pelo que não há relação necessária ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 10 entre validez (a norma vale para todos) e eficácia (capacidade de fazer cumprir, ou materializar a validez) da norma. Vários autores, como Max Weber e Jean Piaget, apontam para diferentes formas de o ser humano relacionar-se com as normas: a anomia, ou ausência de norma, pode-se dizer que corresponde a um estágio caótico de inconsciência, ou, numa expressão freudiana, ao império do id; a heteronomia pode-se dizer corresponder a um estágio no qual se tem consciência da necessidade de normas, mas as normas são dadas por outrem, ou, na trilha de Freud, uma autoridade externafazendo as vezes do superego impõe as normas; e a autonomia corresponde a uma situação na qual o ser lida com as normas vigentes e constrói também aquelas que percebe como capazes de propiciar-lhe satisfatória convivência na sociedade; ou, o ego e o superego balanceiam-se para operar a conduta. Algumas interpretações da ética como ciência normativa partem da ideia de que sua missão é dizer ao ser humano o que deve fazer, ditando-lhe as normas ou princípios pelos quais pautar seu comportamento. Mas a função fundamental da ética é a de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade. Ao longo destas páginas, pudemos ter contato com alguns conceitos sobre ética e moral, que ajudaram você a entender as semelhanças e diferenças entre uma e outra; a perceber que a moral, sendo socialmente construída, insere a ciência que a estuda (ética) no rol das ciências sociais; e a notar que o ato moral, essencialmente humano, tem determinadas condições a serem atendidas para ser identificado como tal. Após este contato com os conceitos, veremos algumas teorias referentes à obrigatoriedade moral. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 11 2. TEORIAS DA OBRIGAÇÃO MORAL Após passearmos pelos conceitos de moral e de ética, vamos fazer uma visita às teorias da obrigação moral. Como pudemos ver, a ética é uma ciência de caráter normativo, tendo por objeto de estudo a moral, ou seja, as normas que regem os costumes de determinado grupo social, os imperativos a cujo cumprimento o indivíduo percebe-se obrigado. E essa obrigatoriedade será definida por diferentes intérpretes, em diferentes momentos históricos, sendo cada concepção complementar às demais. Neste encontro, pretendemos ajudá-lo a identificar as principais teorias da obrigação moral e a caracterizar as concepções éticas fundamentadas no dever e na responsabilidade. 2.1. Moral como busca do supremo bem O ser moral busca a plena realização moral, ou seja, aquilo que tenha o maior valor moral, o summum bonum. A ética intenta orientar a busca da conduta virtuosa, ou aquela que é orientada para o bem comum. Vejamos, então, algumas concepções que se refletem na forma como interpretaremos e aplicaremos a moral. Aristóteles foi o primeiro a sustentar que a felicidade é o mais alto dos bens e que a ela todos os homens aspiram. Para os estoicos, o supremo bem é a virtude. Para os epicuristas, o bem supremo é o prazer, natural e necessário, consentâneo com o que Freud perceberia como o princípio do prazer: tendemos a buscar o que nos traz sensações e sentimentos agradáveis e a evitar o que nos dá sensações e sentimentos desagradáveis. Moral absoluta: seus defensores creem na validez atemporal e absoluta dos princípios. A partir dela, constrói-se a ética dos valores ou deontológica. Segundo ela, todo dever baseia-se em um valor. Um dos seus grandes nomes é Kant. Segundo Kant, o bom é a boa vontade (concepção formalista e apriorística do bom); o bem atuar é mais importante do que a razão. Kant apresenta um imperativo categórico: “age só segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal (apud NALINI, 2008, p.71) ”. Moral relativa: validez empírica, acorde com a subjetividade. A partir dela, constrói-se a ética dos fins ou teleológica. O valor é dado pelas consequências do ato. Uma de suas vertentes é o utilitarismo. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 12 Para Bentham, o grande nome do utilitarismo, ou da ética do interesse, o bom é o útil (Útil para quem? E em que consiste o útil?). O bom pode ser encontrado na relação entre os interesses pessoais e coletivos. As obrigações morais são os diques ou freios socialmente construídos de modo a impedir o autoesmerilhamento social que decorreria da assunção de uma percepção pura e simples das pessoas como presas (ou predadoras) umas das outras. E para tornar viável o cumprimento das normas, empregam-se mecanismos de caráter político (mais usualmente, refletindo-se em marginalização na polis) e simbólico (como, por exemplo, a não-concessão de um documento que credenciaria seu possuidor a determinadas benesses – diploma, certificado de quitação com o serviço militar etc.). Eis aí o ponto de partida para as teorias da obrigação moral. 2.2. Teorias da Obrigação Moral Basicamente, consideramos dois grandes campos teóricos para a ética: o das concepções deontológicas e o das concepções teleológicas. 2.2.1. Deontológicas (do dever) As teorias desta linha relacionam a obrigação moral com normas previamente estabelecidas. Do ato. O caráter específico de cada situação ou ato impede de apelar para uma norma geral; daí o guia tem de ser a própria consciência (“intuir” o correto). Da norma. Há normas gerais que indicam o dever. Assim, a ação deve dar-se de acordo com uma máxima universalizável 2.2.2. Teleológicas (dos objetivos) As teorias teleológicas relacionam a obrigação moral com as suas consequências – a vantagem ou benefício (individual ou coletivo). Egoísmo ético: “Deves fazer o que te traz o maior bem, independentemente das consequências que derivem para os outros”. Utilitarismo: “Deves fazer aquilo que beneficia, fundamentalmente, os outros, ou o maior número de pessoas”. Do ato: o melhor ato é o que beneficia o maior número de pessoas. Da norma: o melhor ato é o praticado de acordo com a norma cuja aplicação garanta o maior bem para o maior número. Como você notou, corroborando o caráter histórico da moral, nenhuma das ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 13 doutrinas da obrigação moral é capaz de indicar o que o homem deve fazer em todos os tempos e em todas as sociedades (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.179- 202). Mas é a sua complementaridade que reflete a busca de uma orientação que se reflita no bem comum com a maior frequência possível. A linha teórica deontológica é também conhecida como “ética da convicção”, que parte de valores e imperativos previamente estabelecidos e considerados atemporais ou de ideais a atingir, e o ato é avaliado segundo a sua coerência com tais princípios; e a teleológica, como “ética da responsabilidade”, que se baseia na análise das circunstâncias e dos fatores condicionantes com vistas aos resultados dos atos morais; neste caso, portanto, as consequências é que são objeto da avaliação. 2.3. Realização da Moral Adolfo Sánchez Vázquez (2002, p.217-233) apresenta três tipos de instâncias ou fatores sociais que contribuem de maneira diversa para a realização da moral: Relações econômicas, ou vida econômica da sociedade: compreendendo tanto a própria produção material quanto as relações sociais que os homens nela contraem. Estrutura ou organização social e política da sociedade: inserção numa família, numa classe social e como cidadão de um Estado ou organização política e jurídica à qual está sujeita a população de um território. Estrutura ideológica, ou vida espiritual da sociedade. 2.4. Forma Lógica dos Juízos Morais x é y. Forma enunciativa, na qual x (substantivo: pessoa ou ação) é caracterizado por y (adjetivo), que exprime uma propriedade, possuída em relação com uma finalidade ou necessidade. Exprime um juízo factual, ou juízo de valor. Exemplo: Roubar é errado. Flávio é uma pessoa honrada. x é preferível a y. Forma preferencial. Comparação entre atos valorados em relação a certa necessidade ou finalidade humana e tomando em consideração determinadas condições ou circunstâncias concretas, considerando um ato mais valioso que o outro. Exemplo: Redigir seu trabalho é preferível a (melhor que) fazer uma colagem da internet. Você deve fazer x (faça x). Forma imperativa. A norma não é uma expressão ou registro de um fato, ela exige a realização daqueles que ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 14 devem cumpri-la. Sua validade independedo seu cumprimento ou do grau em que ele ocorra. Aquilo que se julga dever ser realizado é sempre considerado valioso. Os juízos expressos na forma imperativa têm por objetivo regulamentar as relações entre os homens numa sociedade. Exemplo: Ajude o colega em dificuldades (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2001, p.237-243). 2.5. Obrigatoriedade do Comportamento Moral O comportamento moral é obrigatório e devido; o agente é obrigado a comportar-se de acordo com uma regra ou norma de ação e a excluir ou evitar os atos proibidos por ela. Por conseguinte, a obrigatoriedade moral impõe deveres ao sujeito. Conforme visto anteriormente, toda norma funda um dever. Diferentemente doutras formas de comportamento humano (como a jurídica ou a do trato social), a vontade do agente moral é livre. Por outro lado, mercê dessa liberdade de escolha, tais normas devem ser respeitadas por causa de uma convicção interior, e não por uma conformidade exterior. Os traços essenciais da obrigatoriedade moral que permitem distingui-la de outras formas de obrigação ou de imposição são: A liberdade na prática do ato: a causa do ato está no próprio agente (ou causa interior), e não em uma causa exterior que o force a agir de certa maneira, contrariando a sua vontade; A consciência (do agente) quanto ao seu comportamento: o sujeito não ignora nem as circunstâncias nem as consequências da sua ação; e O caráter social, ou seja, o reflexo sobre o grupo. Esses traços devem ser considerados ao analisar o ato em sua natureza, e permitem atribuir responsabilidade ao agente pelo ato. 2.6. Justificação Moral O verdadeiro comportamento moral não se exaure no reconhecimento de determinado código por parte dos indivíduos; ele demanda – e a isto tende o progresso moral – a justificação racional das normas que se aceitam e se aplicam. A ética procura saber se é possível uma justificação racional da moral e, particularmente, dos seus juízos de valor e das suas normas, e quais seriam – se esta justificação é possível – as razões ou os critérios justificativos que se poderiam aduzir (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.249). Critérios de justificação moral, segundo Sánchez Vázquez (2002, p.253-259): I – Justificação social: toda norma corresponde a interesses e necessidades sociais, o que condicionará sua validade para a sociedade em questão. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 15 II – Justificação prática: toda norma implica uma exigência de realização; assim, devem existir na sociedade as condições necessárias para o cumprimento da norma. III – Justificação lógica: as normas não existem isoladas; fazem parte de um conjunto articulado que é o código moral da sociedade, que deve caracterizar-se pela não contraditoriedade de suas normas e pela sua coerência interna. IV – Justificação científica: uma norma se justifica cientificamente quando não só se adapta à lógica, mas também aos conhecimentos científicos já estabelecidos. V – Justificação dialética: uma norma moral se justifica dialeticamente quando contém aspectos ou elementos que, no processo ascensional moral, se integram em um novo nível numa moral superior. É possível superar o relativismo ético quando se consegue justificar os juízos morais? O relativismo ético parte do princípio de que diferentes comunidades julgam o mesmo tipo de atos de maneiras diferentes, ou postulam normas morais diferentes perante situações semelhantes, e a causa dessas diferenças deve ser buscada na diversidade de interesses e necessidades das várias comunidades. O relativismo ético proclama, portanto, que os juízos morais, relativos a diferentes grupos sociais ou comunidades, e que, por conseguinte, são diferentes entre si e, inclusive, contraditórios, justificam-se pelo contexto social correspondente. Mas este relativismo não se limita a justificar um juízo moral pela relação com a comunidade na qual se formula, mas considera que um juízo diferente, ou até oposto, será igualmente correto, porque também corresponde a necessidades e interesses. Cada juízo moral ficaria justificado por esta referência e, portanto, todos seriam igualmente válidos. Tal é o núcleo do relativismo no terreno moral (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.259). Mas o fato de duas normas sobre o mesmo fator referirem-se a diferentes necessidades sociais não significa que sejam igualmente válidas. A validade será dada pela capacidade de a norma transcender os limites daquela comunidade específica, pois afeta as interações com outras comunidades. Assim, a justificação social não basta para evitar o relativismo. Da mesma forma ocorre com a justificação prática, já que as condições de cumprimento da norma também variarão. A exigência de coerência e não contraditoriedade também é insuficiente, pois, “se se considerasse suficiente este critério, resultaria que duas normas opostas entre si, mas igualmente coerentes e não contraditórias com os seus respectivos códigos, teriam a mesma validade (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.259-261) ”. Quando aplicamos o critério da justificação científica, começamos a ter elementos para superar o relativismo, pois não se pode justificar uma norma que derive de uma premissa cuja falsidade a ciência tenha demonstrado. Ainda assim, por não se tratar de um critério especificamente ético, a concordância do juízo moral ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 16 com o conhecimento científico não basta para justificar o grau de validade de uma norma ou de um código além das necessidades ou das condições sociais a que correspondem. É o critério de justificação dialética, que, situando uma norma em um código num processo histórico ascensional, permite, de um lado, reconhecer a relatividade da moral, e, do outro, admitir a existência de elementos positivos que extrapolam as limitações e particularidades das necessidades sociais da comunidade e das condições reais que explicam a aparição e a aplicação das normas morais (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.262-263). Após termos passeado por definições de ética e moral e pelas teorias que buscam explicá-las, voltamos a invocar Yves de la Taille, que define como moral os sistemas de regras e princípios que respondem à pergunta “como devo agir? ”, e como ética as respostas à pergunta “que vida eu quero viver? ” (LA TAILLE, 2006, p.49-58). Essa definição nos traz ao tema dos valores, de que trataremos no próximo encontro. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 17 3. VALORES Após passearmos pelos conceitos de moral e de ética, vamos incursionar pelo terreno do seu fundamento: os valores. Veremos que valorizar é atribuir significado. Atribuir significado é função eminentemente humana, variável historicamente, geograficamente e mesmo individualmente. Para Humberto, chegar lá é o mais importante; para Artur, como chegar lá, em termos materiais, tem mais importância; para Emílio, como chegar lá, em termos morais, é mais relevante; para Ernesto, o que “chegar lá” vai provocar tem maior peso; para João, por que chegar lá é o maior destaque; para José, quem chega lá é mais importante. Priorizar objetivos, processos, recursos materiais, pessoas, princípios, resultados depende de cada agente. Conforme você se paute pela moral do sucesso, da convicção, da parceria, do oportunismo, da utilidade, da parcialidade ou da responsabilidade (e isso decorre da sua própria história de vida), por essa moral tendem a ser orientadas as suas decisões e modos de agir. Vejamos. 3.1. Valores: o que são? Como já vimos, Yves de la Taille define como moral os sistemas de regras e princípios que respondem à pergunta “como devo agir?”, e como ética as respostas à pergunta “que vida eu quero viver?”. “Como agir” remete-nos às normas, aos preceitos da vida em sociedade. E “que vida viver” remete-nos à busca da vida boa. Os qualificativos bom ou mau exprimem valoração, ou seja, significados que o ser humano atribui aosatos e às suas consequências. O estudo e interpretação dos valores é chamado AXIOLOGIA, e tem como veículo a ética. A humanidade tem um desejo perenemente insatisfeito por significado, gerando aquilo que se conhece por vazio existencial. O psiquiatra Viktor Frankl (1985) aponta a busca do significado como fator de preservação da integridade psíquica tanto do indivíduo como do grupo social. E ele pôde experimentar isso de forma bastante contundente: foi um sobrevivente dos campos de extermínio nazistas da década de 1940. Seu trabalho sobre o papel da atribuição de significado na sobrevivência psíquica é aplicado na linha terapêutica por ele desenvolvida, a logoterapia, ou a terapia pela construção de significado. Atribuir significado é atribuir valor e, quando entramos no campo dos valores, entramos no campo da moral, objeto de estudo da ética. Quando se tem a percepção de significado e de objetivo conexo a esse significado, pode-se proceder eticamente. Diferentemente dos animais, o ser humano é capaz de atribuir aos seres, às coisas e aos atos significados que vão além dos de nutrição, sexo, dominância, rivalidade ou perigo. A valoração humana compreende aquilo que é visto como benéfico ou maléfico para o grupo, e a partir daí estabelecem-se linhas gerais para ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 18 interpretar os atos. Como diz Adolfo Sánchez Vázquez: Todo ato moral inclui a necessidade de escolher entre vários atos possíveis. Esta escolha deve basear-se, por sua vez, numa preferência. Escolhemos a porque o preferimos pelas suas consequências a b ou c. Poderíamos dizer que a é preferível porque se nos apresenta como um comportamento mais digno, mais elevado moralmente ou, em poucas palavras, mais valioso. E, por conseguinte, deixamos de lado b e c, porque se nos apresentam como atos menos valiosos ou com um valor moral negativo. (...) ter um conteúdo axiológico (de axios, em grego, valor) não significa somente que consideramos a conduta boa ou positiva, digna de apreço ou de louvor, do ponto de vista moral; significa também que pode ser má, digna de condenação ou censura, ou negativa do ponto de vista moral. Em ambos os casos, nós a avaliamos ou julgamos como tal em termos axiológicos (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.135). Valor é significado simbólico, utilidade (propriedades materiais do objeto/relação com o sujeito que o usa), possibilidade de satisfação de uma necessidade humana. Os valores existem para um sujeito, não apenas isoladamente, mas como ser social. O homem, social e historicamente, cria os valores e os bens nos quais se encarnam, independentemente dos quais só existem como projetos ou objetos ideais. “Os valores são, pois, criações humanas, e só existem e se realizam no homem e pelo homem (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.146) ”. A opção por praticar determinado ato é feita mediante uma escolha em que se prefere a alternativa considerada mais valiosa e adequada ao que se pretende. Os valores “existem em função da atribuição humana que lhes é imposta, a priori ou não, emergindo ao sabor da complexidade dos inter-relacionamentos sociais”. Ou seja, atribui-se sempre um valor às coisas, às ações ou aos objetos, naturais ou produzidos pelo homem, distinguindo-os por seus conteúdos estético, político, jurídico ou moral. E esse valor é culturalmente construído e disseminado de acordo com os veículos de comunicação disponíveis (AMOÊDO, 2007, p.17-20). Como já vimos, o ato moral tem caráter social, e a escolha pela linha de ação a adotar ou por qual partido tomar envolve conflito de interesses: o nosso ou o coletivo, o do chefe ou o do cliente, o do chefe imediato ou o da organização (SROUR, 2000). E a escolha será feita de acordo com o valor que atribuirmos ao ato, quer à luz de princípios preestabelecidos, quer à luz de uma análise de suas consequências. De todo modo, só se pode falar em valores morais referindo-se a atos ou produtos humanos e, entre estes, naqueles realizados livremente, ou seja, de modo consciente e voluntário. Por avaliação, pode-se entender a atribuição do valor respectivo a atos ou produtos humanos. A avaliação moral compreende os três elementos seguintes: a) o valor atribuível; b) o objeto avaliado (atos ou normas morais); e c) o sujeito que avalia (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.153). ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 19 Nem todos os atos humanos estão sujeitos a uma avaliação moral, mas somente aqueles que, por seus resultados e consequências, afetam a outros. O objeto da avaliação insere-se necessariamente num contexto histórico-social. E a avaliação é sempre atribuição de valor por parte de um sujeito, julgando o ato não como o afeta pessoalmente, mas como afeta o grupo social. Portanto, a avaliação é a atribuição de um valor concreto numa situação determinada (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.153-155). A moralidade entra em jogo quando os atos de uma pessoa afetam outras, seguindo ou infringindo normas socialmente estabelecidas. A conduta é amoral quando não há prescrições que a contemplem e quando não afeta os outros; é moral quando se realiza de acordo com as normas; e é imoral quando fere as normas. Por exemplo, fazer o registro contábil da empresa é amoral; fazê-lo retratando fielmente a realidade é moral; e maquiá-lo para fraudar os acionistas ou o fisco é imoral (no caso, imoral e ilegal). O ato moral pretende ser uma realização do “bom”. O bom e o mau relacionam-se reciprocamente como conceitos axiológicos inseparáveis e opostos. Definir o bom implica, pois, em definir o mau, o que nos remete a Lao-Tzu: Se todos na Terra reconhecerem a beleza como bela, desta forma já se pressupõe a feiúra. Se todos na Terra reconhecerem o bem como bem, deste modo já se pressupõe o mal. Porque o Ser e Não-ser geram-se mutuamente [...] (LAO-TZU, 1987, p.38). Tal concepção é histórica e real, baseando-se em aspirações e interesses humanos concretos. Ninguém aceita como bom o que entra em contradição com os seus interesses sociais. As ideias de bom e de mau “mudam historicamente de acordo com as diferentes funções da moral efetiva de cada época, e essas mudanças se refletem sob a forma de novos conceitos nas doutrinas éticas (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.157) ”. E a transmissão dos valores ocorre por diversas formas no grupo social, entre as quais destacam-se as lendas e histórias populares (CASCUDO, 2001; MELLO, s/d), que apresentam situações/personagens com as quais a pessoa se identifica e que processa psiquicamente, reforçando ou redirecionando a conduta. Quanto às virtudes, atributos que manifestam o que é bom, podemos aproveitar como exemplo três virtudes que Yves de La Taille selecionou como capitais: a justiça, a generosidade e a honra. A justiça pode ser definida principalmente a partir de dois princípios: igualdade (todos os seres humanos têm o mesmo valor intrínseco, independentemente do gênero, nacionalidade, etnia...) e equidade (tornar iguais os diferentes ao proporcionar condições de paridade para que ocupem de forma competente seu papel no grupo social). ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 20 A generosidade é a virtude altruísta por excelência. Consiste em dar a outrem o que lhe falta, sendo que essa falta não corresponde a um direito. A honra é o autorrespeito: mais do que a reputação perante os outros, é o valor moral que a pessoa tem aos próprios olhos e a exigência que faz a outrem para que esse valor seja reconhecido e respeitado. A honra de uma pessoa depende da qualidade de suas ações, do seu mérito moral. A pessoa honrada, se faltasse com seu dever, se tornaria indigna aos seus próprios olhos (LA TAILLE, 2006, p.61- 64). Aproveitando que mencionamos uma palavra meio fora de moda, a saber, a virtude denominada honra, uma boa ilustração de como se pode interpretar diferentemente conceitos referentes ao campo da moral já nos era dada por Shakespeare, notávelem sua percepção humana, no monólogo de Sir John Falstaff, na 1ª parte de Henrique IV, ato V, cena I: (...) Pode a honra repor uma perna? Não; um braço? Não; ou tirar a dor de um ferimento? Não. A honra não sabe nada de cirurgia? Não. Que é honra? Uma palavra. Que conteúdo tem essa palavra, “honra”? Que é essa palavra? Ar. Bela coisa! Quem a tem? O que morreu na quarta-feira. Sentiu-a? Não. Ouviu-a? Não. Então, ela é insensível! É, aos mortos. Mas não viverá com os vivos? Não. Por quê? A infâmia não o consente. Então, não quero nada com ela. A honra é um mero escudo pintado; e assim acaba meu catecismo (SHAKESPEARE, 1989, p.499, tradução livre). Como vemos, Falstaff atribui valor apenas àquilo que satisfaz à natureza animal, o gozo dos sentidos “aqui e agora”. Sua moral é a do máximo proveito pessoal, moral oportunista e egoísta, com as considerações de “bom” e “mau” variando conforme seus interesses na ocasião. Seu extremo oposto pode ser visto no cervantino Quixote, que relega ao segundo plano as necessidades da vida material e social em prol de uma “honra” da imortalidade. Marshall, em seu clássico Homens ou fogo?, destaca que, em situação de combate, mais do que quaisquer conceitos abstratos, a moral ligada à sobrevivência do grupo primário é que baliza o comportamento do indivíduo e do grupo. “Não falhar com os companheiros” e depois, num nível mais alto, “não enfear o nome da coletividade (Companhia/Batalhão)” tem um apelo psicológico muito forte, por remeter à necessidade de pertencimento (MARSHALL, 2003, 141-159). De forma direta, é o que se refere ao sentido de “honra”. É desonroso não contribuir para que o companheiro (e, por extensão, o grupo), com quem há uma história em comum (vínculo) sobreviva e, se possível, alcance os objetivos indicados. Não necessariamente por “fazer-se de herói”, mas simplesmente por não expor os demais à morte ou sofrimento evitáveis. Com o desenvolvimento tecnológico e a agilidade das comunicações, com alta disponibilidade de produtos de consumo ao alcance do bolso, acentuou-se a tendência para ser mais igual que os outros, exacerbando-se a busca do interesse ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 21 próprio. “[Na] medida em que inúmeras situações do cotidiano levam os agentes a fazer escolhas egoístas, destituídas de desprendimento e de compromissos coletivos, coloca-se incessantemente em xeque o arcabouço ético (SROUR, 2000, p.111)”. Essa busca da satisfação imediata, do atendimento aos desejos e conveniências pessoais é o que embasa o que Srour (2000) denomina moral do oportunismo, que, com outro foco ou outra abrangência, alimentará a moral do sucesso e a moral da parcialidade. A concepção de moral do sucesso pode ser associada às relações sociais e econômicas do mundo capitalista, tendo por modelo básico o norte-americano, que pode ser entendido como uma deturpação do princípio da ética protestante orientada para o trabalho; propor-se-ia originalmente ser correto, portanto bom aos olhos de Deus, que o homem, pelo trabalho se faça capaz de estabelecer e consolidar suas próprias bases (seu sustento e de sua família), de modo a não ser um peso para a sociedade e produzir em proveito dela. A derivação para a moral do sucesso passa a discriminar as pessoas em winners (vencedores) e losers (derrotados) conforme suas conquistas materiais, traduzidas no consumismo, no hedonismo materialista, na ambição, no jogo de soma zero (um só ganha com a perda do outro), num verdadeiro darwinismo social. O indivíduo torna-se indiferente a tudo que não diga respeito ao interesse próprio e narcisista e exclui tudo aquilo que não seja vencedor ou útil para os seus propósitos pessoais. A moral do oportunismo tem fonte ligeiramente diferente: parte da busca do indivíduo pela obtenção de benesses dando um jeitinho numa engessadora ética da convicção de base católica com caráter paternalista, salvacionista e assistencial. Essa base ética rigidamente deontológica propicia a que os indivíduos manifestem uma dupla moral: a proclamada e pública, ferrenhamente acorde com as mais estritas regras de boa conduta; e a vivenciada e privada, na qual o principal valor é sair ganhando, como já analisaram em profundidade Roberto DaMatta (1997a; 1997b; 2000) e Lívia Barbosa (1992). “A moral do oportunismo repousa no mais estreito interesse pessoal, num egoísmo mesquinho que, na ânsia de obter vantagens e saciar caprichos, despe-se de quaisquer escrúpulos (SROUR, 2000, p.152) ”. Expressa a famosa “Lei de Gérson”, segundo a qual o objetivo fundamental é “levar vantagem em tudo”. A título de curiosidade, a famosa “Lei de Gérson” não é lei, nem foi feita pelo ex-jogador da Seleção Brasileira tricampeã de futebol em 1970. Acontece que o dito jogador foi garoto-propaganda para uma marca de cigarros (anos 1976-78), e nas peças publicitárias o slogan era “eu gosto de levar vantagem em tudo”, e fumar aquele cigarro deveria ser considerado vantajoso pela relação preço/qualidade. Mas voltando ao nosso assunto, convém citar Robert Srour: Os brasileiros não se dividem discretamente em agentes oportunistas e em agentes íntegros. Mesmo que existam alguns visceralmente oportunistas, estranhos ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 22 a qualquer gesto decente, e outros essencialmente íntegros, que quase nunca prevaricam. A maior parte dos brasileiros vive oscilando entre as duas morais, ora inescrupulosos, ora idôneos. Agentes híbridos. Ambíguos quanto às suas culpas e inseguros quanto às suas razões. Moldados por uma moralidade casuística – tão louvada quanto o são a mistura das comidas, a miscigenação das raças, o sincretismo das religiões, ou o jogo das inversões nos carnavais, em que se confundem hierarquias, gêneros ou papéis (SROUR, 2000, p.158). Conhecemos oportunistas contumazes, sujeitos intrinsecamente de “mau caráter”, mas podemos considerar que na maior parte dos casos temos os oportunistas de ocasião, pessoas em geral “honradas” e que, premidas pelas circunstâncias, eventualmente dão o seu jeitinho. Dependendo do pecado cometido, esses pecadores são vistos com alguma indulgência, como humanamente falíveis, e passam a gozar de uma condição atenuante, já que, na maioria das vezes, podem ser confiáveis (SROUR, 2000, p.159-160). Tal duplicidade moral não é privilégio dos brasileiros, pois, como pudemos notar na descrição da moral do sucesso, ali há também uma moral da conquista dos bens pelo trabalho e uma da superação de todos os “concorrentes”, custe o que custar. Basta que os interesses próprios sejam seriamente ameaçados para que não se cumpram mais promessas, não se respeitem mais acordos, não se sigam mais regras. Na feliz imagem de Srour, é como se fosse uma peça de teatro na qual em vários momentos os atores se tornassem diferentes personagens: íntegros quando não se percebem pressões ou ameaças; anti-heróis se as circunstâncias exigirem; vilões às vezes; quase sempre espertos e criativos para solucionar os desafios. Isso provoca profunda ansiedade e exige precauções e salvaguardas quase tão numerosas quanto as possíveis formas de burlá-las (SROUR, 2000, p.159). A moral do oportunismo encontrará ambiente para vicejar onde houver fortes relações de dominação e dependência, alto índice de personalismo nas concessões de benesses e onde o atendimento às necessidades de sobrevivência é incerto. Para a barriga vazia (ou em risco de o ficar), ética é uma palavra bonita, mas que não é mais que uma emissão de ar (como diria Falstaff). Contrapõe-se à moral da integridade, fortemente apregoada, mas dificilmente implementada por fundar-se numa rígida ética da convicção de raízes jesuítas. Pedro Malasartes e Macunaíma representam a moral do jeitinho, a necessária esperteza para sobreviver no mundo cão. A moral da parcialidade adota seletivamente normas de conduta, exigindo lealdade para com“os nossos” e justificando as conveniências oportunistas no trato com “os outros”. Ideias-força típicas da moral da parcialidade: “Todo mundo faz assim”. “Se não o fizermos, outros o farão”. “Primeiro o nosso, o resto a gente vê depois”. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. A moral da parceria é expressão da ética da responsabilidade, considerando os negócios como acordos que beneficiam as partes envolvidas (SROUR, 2000, ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 23 p.179). Sua visão e padrões de conduta focam-se em objetivos de médio e longo prazo. Busca-se compromissos mutuamente vantajosos para perenizar o negócio. Caracteriza-se pela idoneidade nas transações, transparência, apoio mútuo e compartilhamento de informações. Como dito mais acima, a exacerbação da busca do interesse próprio encaminha as relações para algo muito próximo de um vale-tudo. Mais ainda quando as ações boas e más (especialmente as moralmente condenáveis) são facilmente dadas a público – mas, muitas vezes, a mensagem que supostamente se transmite como “não se deve proceder assim”, acaba sendo interpretada como “tenho de fazer diferente para não ser pego e me dar bem”. A moral da culpa, que incide sobre o ato (o ato é imoral; sente-se culpa pelo que se fez) vai cedendo lugar à moral da vergonha, que incide sobre a pessoa (sente-se vergonha do que se é: o sujeito procede mal; o sujeito é imoral; ou, noutra vertente, o sujeito é otário o suficiente para ser pego cometendo o ato). Como diz Lis Soboll: O sentimento de culpa requer um interesse pelos vínculos que nos ligam a nós mesmos, aos outros, e ao infinito, estabelecendo uma luta entre desejo e proibição. A civilização da vergonha pressupõe que “todo ato repreensível, seja ele qual for, pode ser perpetrado. Basta que não seja descoberto. Se ele for conhecido, a vergonha se abate sobre o autor da ação. Tudo está no ato e na sua visibilidade”. A relevância não está no que deve ou não ser feito, mas na visibilidade da ação (...) A regra dominante é de que tudo é permitido, desde que ninguém tome conhecimento de como foi executado. (...) No trabalho onde predomina a violência, os processos ficam na obscuridade, num submundo organizacional permissivo e com um padrão ético “econômico” que exige apenas os resultados. A ameaça está em ser descoberto (SOBOLL, 2008, p.116-117). O ambiente social acaba caracterizando-se por: declínio da credibilidade pública de instituições consagradas e corrosão da autoridade; desemprego e exclusão social; acelerada obsolescência dos saberes e competências pela evolução tecnológica (percepção de inutilidade e impotência); alta rotatividade nas empresas, enfraquecendo os laços de lealdade empresa-funcionários, funcionários- empresa e entre funcionários. Enfraquece-se o controle social exercido pelas agências ideológicas tradicionais – família, escola, comunidade, igreja – especialmente nas metrópoles. Ainda que precariamente, entram em cena outros controles sociais: Coibição promovida internamente pelas empresas; “Poder do mercado” com a seleção de fornecedores por parte dos clientes; Mídia enquanto expressão da vigilância da sociedade civil; Aparelho judiciário do Estado quando as transgressões morais coincidem com as legais. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 24 Assim, não é muito de estranhar que os valores, fundamento da moral e da ética, sejam relativizados ao ponto de uma total descrença, pela perda de referenciais em qualquer dos ambientes de convivência, pela exacerbação do individualismo e do hedonismo. Quando o prazer é a regra e o próprio interesse a exclusiva preocupação, obedecer a regras morais pode parecer insano. Mas as regras morais são o que ajuda a impedir um curto-circuito ou autoesmerilhamento na máquina humana (NALINI, 2008, p.94). E como estamos a tratar de valores, que tal darmos uma olhada num campo em que eles estão fortemente presentes? 3.2. Ética e Religião A ética está inseparavelmente ligada à religião, pois não há religião que não apresente preceitos éticos. Budista, cristã, taoísta, hinduísta, muçulmana, animista, toda linha de crença tem seus mandamentos de boa conduta, em alguns casos especificando formas de proceder em relação aos fiéis e em relação aos “ímpios”. As religiões com frequência não fazem distinção entre o plano ético e o plano religioso. Os costumes da tribo, as regras ou os princípios morais da casta são tão religiosos quanto os sacrifícios e as orações. (...) A noção do ser humano como uma criação divina implica que ele é responsável perante Deus por tudo o que faz, ritual, moral, social e politicamente (GAARDER, 2000, p.31). A moral de inspiração religiosa impõe observância aos mandamentos, pois é imoral desatendê-los. Provido de livre arbítrio, o ser humano pode escolher entre o bem e o mal. A consciência dessa condição de escolha legitima não apenas a crença na transcendência (Deus), mas também o prestígio do direito natural. O ser humano é capaz de perceber que há condutas que deve observar e outras que não (em decorrência do instinto gregário, aliado ao delineamento das convenções sociais). Nenhuma religião deixa de impor sua ética aos seus crentes. E esses preceitos éticos de base religiosa serão ecoados no Direito Natural, geralmente ordenado a partir do princípio de amor a Deus e ao próximo. Para atender a esse princípio, uma ética religiosa tem de ser tolerante em relação aos demais credos. Isso é especialmente importante quando pessoas das mais variadas crenças se instalam numa mesma região geográfica, sendo igualmente responsáveis pelo provimento da sobrevivência e aprimoramento da coletividade. A laicização do Estado é uma consequência do pluralismo religioso, de modo a propiciar a imparcialidade legal e administrativa no trato dos cidadãos de diversas ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 25 fés. As sociedades onde coexistem várias religiões e vários pontos de vista consideram mais difícil vincular a ética exclusivamente à religião. A sociedade precisa ter suas linhas mestras éticas, e algumas delas são preservadas nas leis. (...) hoje muitos países aceitam a Declaração dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas, como uma afirmação ética comum, seja qual for a religião ou a perspectiva geral do país (GAARDER, 2000, p.31). A secularização do Estado “propõe como finalidade do direito o estabelecimento de uma ordem social que assegura aos membros da comunidade política uma coexistência pacífica, sejam quais forem suas concepções religiosas (PERELMAN, apud NALINI, 2008, p.249) ”. A tolerância recíproca é basilar numa sociedade propiciadora do pluralismo religioso, tendo como principal valor a liberdade de consciência, sendo seu consectário a liberdade de religião (NALINI, 2008, p.249). A ética predominante na civilização ocidental é a cristã, cujos valores são fornecidos pelo cristianismo, baseado solidamente na tradição judaica. A primeira fonte da moral cristã é a Bíblia. Enfatizam-se dois mandamentos: Amar a Deus (Mt 22,37); e Amar ao próximo como a si mesmo (Lv 19,18 e Mt 22,39). Conforme diz a Bíblia, Jesus é muito enfático com a chamada regra de ouro: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também por eles (Mt 7, 12) ”. É a mesma regra que Confúcio apresenta na negativa. Se cumprida, seria a regra pela qual se instauraria a paz mundial. O apóstolo Paulo faz com que o cristianismo, de religião baseada nas obras, passe a fundar-se na fé. A moral calca-se sobre as virtudes da fé, esperança e caridade (amor). “Ao contemplar o amor como a mais importante das virtudes, o Cristianismo reconhece que somente precisa de moral quem não tem amor (NALINI, 2008, p.87) ”. As virtudes cardeais são o eixo central da moralidade cristã: prudência, temperança (in medio virtus), justiça (jogo limpo) e fortaleza (fibramoral, superação da adversidade). Como mostra Max Weber, entre os cristãos a ênfase no que é valorizado varia: os protestantes emprestaram maior valor ao trabalho, tendo a riqueza como seu corolário (o trabalho agrada a Deus, que abençoa o diligente com riquezas), enquanto os católicos consideraram mais valiosos a abnegação, o espírito de pobreza (humildade) e o sacrifício (AMOÊDO, 2007, p.12). Cada Estado pode estabelecer limites à liberdade religiosa, definindo a licitude ou não da recusa ao serviço militar, à transfusão de sangue ou à vacinação, do canibalismo ou assassínio ritual, ou da poligamia/poliandria, ou do uso de drogas. Não obstante o pluralismo religioso implicar certa tolerância (aos chamados ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 26 imperativos de consciência), há as exigências da vida em sociedade a imporem limites – sociedade não apenas dentro de um Estado, mas nas interações com outros Estados ou envolvendo os naturais doutros Estados. Assim, por exemplo, se o islamismo autoriza o fiel a ter até quatro esposas desde que consiga dar a todas o mesmo padrão de vida, o indivíduo não pode invocar essa liberdade num país em que a legislação estabelece a monogamia. O estabelecimento destes limites, como temos visto, ocorre, primeiramente, no campo da moral, irradiando-se para outras situações do trato social e tomando uma forma mais consolidada no arcabouço legal. Esta formalização na lei pode fazer-se necessária especialmente quando algum grupo, por critérios totalmente subjetivos (formato das orelhas, religião, atributos físicos etc.), discrimine outro quanto a direitos fundamentais. Vimos, portanto, que o ser humano é capaz de atribuir significado a coisas, ideias e ações; esse significado se traduz em valores. Esses valores foram construídos historicamente, em sua forma mais rudimentar como uma proposta de reciprocidade de tratamento (“não bata em mim e eu não baterei em você”), evoluindo para a percepção de uma inspiração divina (“se os frutos da mesma árvore envenenarem uns aos outros, como fica a árvore? ”) e adquirindo contornos mais sofisticados ao traduzir-se no corpo normativo que rege uma sociedade, nos mais diversos setores de atividade. E em nossa próxima aula veremos a relação da ética com outras ciências. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 27 4. RELAÇÃO DA ÉTICA COM OUTRAS CIÊNCIAS Caro aluno, Como você já percebeu, a ética nos permite compreender e acompanhar a construção e evolução dos valores e das normas que buscam fazer com que as pessoas vivam de acordo com esses valores. E sendo a ética ciência, será conveniente vermos o seu relacionamento com outras ciências. Veremos que nenhum conhecimento se constrói isoladamente, mas sim em constante interação com outros. Neste encontro, esperamos que você identifique os pontos de contato da ética com outros campos do conhecimento e a influência mútua que exercem. 4.1. Filosofia Para que nos lembremos, quando o ser humano começou a investigar de maneira mais sistemática o mundo ao seu redor, todas as especulações de busca do conhecimento das leis que regem os fenômenos ficavam sob o guarda-chuva da filosofia, e foram recebendo nomes específicos à medida que o conhecimento sobre seu objeto de estudo e seus métodos se tornavam mais específicos. A ética é uma disciplina filosófica: é uma investigação racional e sistemática sobre um objeto de estudo que lhe é próprio (a vida moral), sob uma perspectiva de totalidade e com o intuito de trazer à luz seus aspectos mais profundos e universais (NALINI, 2008, p.112). 4.2. Psicologia Freud sublinhou o caráter conflitivo da relação do indivíduo com a moral. Por um lado, quer submeter-se a ela para poder viver em sociedade e civilizar-se. Por outro, reluta fortemente em fazê-lo, pois tal submissão implica perda da liberdade de buscar a saciação dos desejos (LA TAILLE, 2006, p.13). Submeter seus atos a um crivo moral é como colocar em ação o superego de modo a orientar a conduta para, mais do que a gratificação da satisfação imediata, buscar outro nível de gratificação pela satisfatória convivência com o outro. Os atos morais são também psíquicos, derivados de motivação, impulso e consciência. Antes de produzir efeito em relação às outras pessoas, o ato moral é produzido na psique de seu agente, que pode escolher entre agir e deixar de agir. A explicação psicológica do comportamento humano possibilita compreender as condições subjetivas dos atos dos indivíduos e, assim, contribui para a compreensão da sua dimensão moral (NALINI, 2008, p.113). Responsabilidade e culpabilidade não podem ser examinadas sem a consideração dos fatores psíquicos ensejadores do ato. ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 28 Ainda que o comportamento moral responda (...) à necessidade social de regular as relações dos indivíduos numa certa direção, a atividade moral é sempre vivida interna ou intimamente pelo sujeito em um processo subjetivo para cuja elucidação contribui muitíssimo a psicologia (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p.29). A psicologia auxilia a ética ao pôr em evidência as leis que regem as motivações internas do comportamento do indivíduo e ao mostrar a estrutura do caráter e da personalidade. Os traumas, os bloqueios, os comportamentos que foram reprimidos ou gratificados, o desenvolvimento afetivo refletir-se-ão na interpretação e valoração do ato moral pelo agente. 4.3. Sociologia As relações no grupo social e com outros grupos fornecem os elementos para a construção das regras de convivência, para a definição do que é certo ou aceitável e do que é errado, por conseguinte censurável ou inaceitável. A moral que condiciona a conduta do indivíduo resulta de uma criação coletiva, das exigências da vida social. As expectativas de comportamento forçam o ser humano a posturas que isoladamente ele não adotaria. Por exemplo, ao trazer caça, o homem tinha de pensar não apenas em seu consumo imediato – relativamente fácil, bastava fazer uma fogueirinha em local abrigado e assar o bocado escolhido –, mas no da coletividade – levar maior quantidade do que a bastante para si e sua prole, repartir os bocados, empregar processos de conservação... Não obstante, a opção moral é uma opção de consciência individual. Se o homem fosse exclusivamente um ser coletivo não poderia vir a ser moralmente responsabilizado por qualquer ato. Somente o grupo social responderia pela atitude de seu componente. (...) A criatura sempre tem uma faixa individual de discernimento para fazer suas escolhas morais (NALINI, 2008, p.118, grifo do autor). 4.4. Antropologia Todo sistema normativo é parte da cultura do grupo social. Ele é construído na vivência grupal e, pela transmissão continuada, firma-se na tradição. As normas para vestir-se, para tratar os estranhos ao clã, para casar-se, para construir e usar moradia, para dispor do alimento traduzem as necessidades do grupo em certo momento histórico (fatos geradores) e se mantêm enquanto o grupo considerar que satisfazem as suas necessidades. Não é considerado adequado, por exemplo, andar pela rua em trajes menores ou adâmicos, mesmo que o calor esteja perto dos 40°C. Matar o idoso ou o enfermo hoje é inadequado, mas isolar aquele que está sem trabalho formal é tido por ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 29 normal. Conhecer a antropologia social facilita a distinção entre as normas morais permanentes ou absolutas, detectáveis em qualquer tipo de sociedade e em todos os contextos históricos, daquelas vinculadas a um modelo concreto e tendentes a desaparecer com ele (NALINI, 2008, p.120). Em nome do pragmatismo e do repúdio à dor e ao sofrimento, vários temas são recorrentes na história humana a orientar as normas morais. O altruísmo recíproco – trate os outros como quer que eles tratem você – é o mais presente. Entretanto, a solidariedadeestá entre os proclamados importantes e relativizados na vivência, num ambiente de competição desenfreada. 4.5. História A ética é intrinsecamente histórica. Como pudemos notar, ela é socialmente construída no tempo e no espaço. Faz parte do conteúdo cultural transmitido por sucessivas gerações, refletindo as peculiaridades do momento vivido, das condições ambientais e da evolução do grupo social. Sobre a relação da ética com a história, podemos acompanhar o que diz José Renato Nalini: A história propicia o debate sobre a possibilidade de um progresso moral (...), assim entendido: 1. a ampliação da esfera moral na vida social; 2. a elevação do caráter consciente e livre do comportamento dos indivíduos ou dos grupos sociais e, por consequência, pelo crescimento da responsabilidade desses indivíduos e grupos no seu comportamento moral; e 3. o grau de articulação e de coordenação dos interesses coletivos e pessoais (NALINI, 2008, p.120, grifo do autor). Por progresso moral pode-se entender a evolução das práticas sociais ao longo do tempo em direção a percepções mais apuradas quanto à abrangência do bem comum, compreendendo as necessidades individuais e grupais em níveis mais elevados que as meramente destinadas à sobrevivência física. Tal evolução ocorre numa marcha desigual e contraditória – o que é proibido hoje pode ser permitido no futuro e voltar a ser tido por ilícito mais adiante –, mas ascensional, ou seja, traduzindo um maior refinamento na percepção do ser humano e das necessidades que norteiam suas condutas. 4. 6. Economia Numa era em que o mercado é o regente, a economia dita as regras e, assim, ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 30 impõe o ritmo e as escolhas para a humanidade. O acúmulo de bens materiais é visto como indicação de prestígio, como medida para valorização do indivíduo perante o grupo. Como o ser tem uma alta subjetividade, a objetividade quantificável do ter empresta um certo conforto simplista a quem quer, por algum parâmetro, dizer se é valioso ou desvalioso relacionar-se com determinada pessoa. Num regime em que o trabalho se vende como mercadoria, desvinculado de sua dignidade ínsita, em que o lucro é o maior objetivo, em que amealhar bens materiais a suprema finalidade, a moral é egoísta e individualista. (...) por outro lado, os atos econômicos – assim compreendidos a produção de bens através do trabalho e a apropriação e distribuição dos mesmos – não podem deixar de apresentar conotação moral. A atividade do trabalhador, a divisão social do trabalho, as formas de propriedade dos meios de produção e a distribuição social dos produtos do trabalho humano são questões morais (NALINI, 2008, p.122). Se a economia é a ciência cujo escopo é prover a humanidade em suas necessidades materiais, não pode distanciar-se do mundo moral. Se o homem é força produtiva, é também sujeito das relações de produção. Ou seja, a atividade econômica não é fim em si mesma tendo o homem por recurso, mas sim, atividade provedora de recursos para o homem. Assim, a atividade econômica auxilia no estudo da ética quando se compreende os processos usados na geração de riqueza em sua dimensão humana – ou seja, no papel desempenhado pelo homem como sujeito das relações de produção. 4.7. Direito Não é preciso um esforço muito grande para perceber que os códigos legislativos, de uma forma geral, têm um forte enraizamento moral. Todo sistema jurídico é baseado no respeito entre as pessoas e na ideia de limitar a atividade própria para tornar possível o exercício da atividade alheia (o direito de um acaba onde começa o direito do outro). Este soberano imperativo ético é pressuposto da reciprocidade e da equidade que fundamentam qualquer ordem jurídica. Nalini apresenta alguns elementos característicos que aproximam o direito da moral: Ambos disciplinam a relação entre os homens por meio de normas. Impõem conduta obrigatória a seus destinatários. Tanto as normas jurídicas como as morais são imperativas, não constituindo meras recomendações. Direito e moral têm por escopo a garantia da coesão social, portanto, atendem à mesma necessidade social. Moral e direito refletem formas históricas de comportamento humano, modificando-se conforme se altere historicamente o conteúdo de sua ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 31 função social. (NALINI, 2008, p.124). Esse autor apresenta, também, aspectos nos quais direito e moral se distinguem: A vida moral é interior, a vida jurídica é exterior. A consciência individual orienta a observância da norma moral. Já a obediência à norma jurídica independe da consciência; concorde ou não, o agente deve cumpri-la. A coação é interna em relação à moral (reação da consciência – remorso – ou reprovação social, com variados graus de constrangimento) e externa no que tange ao direito (meios coercitivos concretos, aparato repressor oficial). A moral é mais abrangente que o direito. Voltada a permitir a coexistência entre as pessoas, existe mesmo nas manifestações gregárias incipientes, enquanto o direito instaura-se na estruturação formal de uma sociedade. A moral precedeu o direito. O direito positivo é necessariamente estatal. A moral pode ser ou não. A relação mútua entre moral e direito, assim como suas esferas de incidência, revestem caráter histórico (NALINI, 2008, p.124-126). A justiça tem caráter ético, mas há três diferenças entre moralidade e justiça (NALINI, 2008, p.126-127): A justiça não só impõe deveres, mas estabelece um direito correspectivo. A lei moral é unilateral, proibindo ou determinando sem propor uma contrapartida. O direito, como norma de pacífica cooperação externa, não entra em função senão depois que a atividade cooperante seja exteriorizada (ou seja, a partir de ações objetivas e de seus resultados). A lei moral governa também as determinações interiores (a moralidade está na intencionalidade do agente, antes de estar no efeito ou no resultado). Os preceitos morais não podem ser coercitivos. Os jurídicos são coercíveis. Atuar juridicamente é exigível, enquanto atuar moralmente reside na espontaneidade. Uma sanção moral manifesta-se na reprovação social. Uma sanção jurídica manifesta-se na retribuição material (multas, confiscos) e/ou restrição de liberdade, para atender ao bem-estar da coletividade. Quase todo crime é também falta moral. Ao violar as regras vigentes na comunidade, subvertendo o pacto de convívio, o infrator percorrerá, necessariamente, a área reservada à moral. Raro é o delito que escape à aferição de compatibilidade com parâmetros morais. Não há como desvincular o aspecto ÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES 32 moral presente na fraude, na simulação, nos vícios dos atos jurídicos, nos vícios intrínsecos e ocultos, na violência e em tantas outras noções do Direito Privado (NALINI, 2008, p.137). Boa-fé, má-fé, indignidade, solidariedade, improbidade, maus-tratos, obrigações... São termos que, condicionando atos, emprestam-lhes um cunho moral. Entretanto, como já foi mencionado anteriormente, as nuanças da reprovação do ato, conquanto violação da lei, estão sujeitas ao status de legitimidade que aquela lei tenha, à luz dos parâmetros morais vivenciados (lembre-se da diferença entre valores proclamados e vivenciados) na sociedade. Como diz Nalini: Quando a infração penal é moralmente irrelevante, ela não logra obter o repúdio social. A linguagem brejeira do brasileiro chega a mencionar leis que não pegam, para identificar as tipificadoras dos delitos tolerados pela comunidade (NALINI, 2008, p.134). Delitos como o homicídio e os crimes contra os costumes ofendem qualquer noção de moral geralmente aceita. A condução de veículos de maneira perigosa atenta contra os preceitos de preservação da vida própria e alheia. A perturbação do sossego
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