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DOCÊNCIA EM SAÚDE NEUROBIOLOGIA DA ANSIEDADE 1 Copyright © Portal Educação 2012 – Portal Educação Todos os direitos reservados R: Sete de setembro, 1686 – Centro – CEP: 79002-130 Telematrículas e Teleatendimento: 0800 707 4520 Internacional: +55 (67) 3303-4520 atendimento@portaleducacao.com.br – Campo Grande-MS Endereço Internet: http://www.portaleducacao.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - Brasil Triagem Organização LTDA ME Bibliotecário responsável: Rodrigo Pereira CRB 1/2167 Portal Educação P842n Neurobiologia da ansiedade / Portal Educação. - Campo Grande: Portal Educação, 2012. 91p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8241-74-0 1. Ansiedade. 2. Neurobiologia. 3. Ansiedade patológica I. Portal Educação. II. Título. CDD 616.8522 2 SUMÁRIO 1 O QUE É ANSIEDADE: DEFINIÇÕES ....................................................................................... 4 2 MEDO OU ANSIEDADE? ......................................................................................................... 11 3 ANSIEDADE NORMAL E ANSIEDADE PATOLÓGICA ........................................................... 15 4 CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE ANSIEDADE ..................................................................... 18 4.1 Transtorno do pânico .............................................................................................................. 20 4.2 Fobia específica ...................................................................................................................... 23 4.3 Fobia social .............................................................................................................................. 26 4.4 Transtorno obsessivo-compulsivo ........................................................................................ 30 4.5 Transtorno do estresse pós-traumático ................................................................................ 35 4.6 Transtorno de ansiedade generalizada ................................................................................. 40 5 TESTE DE ANSIEDADE EM ANIMAIS DE LABORATÓRIO ................................................... 43 5.1 Teste do sobressalto potencializado pelo medo .................................................................. 45 5.2 Teste de pressão à barra ........................................................................................................ 48 5.3 Teste do beber punido ............................................................................................................ 51 5.4 Teste da hipertermia induzida por estresse .......................................................................... 53 5.5 Teste do labirinto em cruz elevado ........................................................................................ 55 5.6 Teste do labirinto em T elevado ............................................................................................. 58 5.7 Teste da transição claro-escuro ............................................................................................. 60 6 AS BASES NEUROBIOLÓGICAS DA ANSIEDADE ................................................................ 63 6.1 O Sistema de Inibição Comportamental ................................................................................ 68 6.2 O Sistema Cerebral de Defesa ................................................................................................ 71 3 6.3 Substâncias endógenas e ansiedade .................................................................................... 75 6.4 O sistema GABA-benzodiazepínico ....................................................................................... 75 6.5 A serotonina ............................................................................................................................. 77 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................... 80 4 1 O QUE É ANSIEDADE: DEFINIÇÕES “A ansiedade é um desejo daquilo que tememos, um temor daquilo que desejamos, uma antipatia-simpática. É um poder estranho que agarra o indivíduo sem que ele possa desvencilhar-se dele, nem queira desvencilhar-se, pois tem medo disso. Mas esse medo é também um desejo”. Sören Kierkegaard “Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem. Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.” Fernando Pessoa “Se marco uma entrevista às 2 1:15 já fumei 10 cigarros Se vou gravar uma faixa A mesa do estúdio está quebrada Não sei esperar, não sei esperar (...) Se tenho uma festa às 10 8:30 já estou pronto Fico balançando os pés Sentado na beira da cama O tempo não passa pra mim (...)” Cazuza 5 Embora seja considerada um mal atual, relacionada ao ritmo acelerado da vida nos dias atuais, a ansiedade e as sensações desagradáveis que a acompanham têm sido alvo da preocupação, curiosidade e do interesse humano, desde tempos muito remotos, e têm ocupado o imaginário e a literatura nas mais diferentes culturas e nas mais variadas épocas históricas. Os três trechos transcritos acima ilustram o fato. O primeiro encontra-se na obra “O Conceito de Ansiedade”, de 1884, de autoria de Sören Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês. O segundo, retirado de um poema do poeta português Fernando Pessoa, foi escrito em meados de 1930. O terceiro trecho refere-se à letra da música “Alta Ansiedade”, de autoria do cantor e compositor carioca Cazuza, falecido em 7 de julho de 1990. Escritos em lugares diferentes do mundo e em épocas históricas também diferentes, os três trechos têm algo em comum: representam de forma clara a angústia experimentada por aqueles que acreditam sofrer de ansiedade. Embora esses relatos sejam de 1884, 1930 e da década de 80, respectivamente, portanto relativamente atuais, a ansiedade humana tem despertado o interesse e a curiosidade humana muito antes disso, há milênios. Inscrições descobertas remetendo à era antes de Cristo, bem como relatos na literatura leiga dos séculos subseqüentes, demonstram o antigo interesse das pessoas pelo tema. As primeiras reflexões sobre a ansiedade, registradas na Grécia clássica, já sugerem a possível existência de uma relação entre experiências subjetivas (aquilo que se sente) e sintomas corporais (aquilo que o corpo mostra). Embora o próprio Hipócrates, filósofo grego que viveu por volta de 370 a.C. e que é considerado o pai da medicina, já tivesse descrito casos óbvios de fobias e de outros tipos de ansiedade, a ansiedade raramente era tida como doença, até relativamente pouco tempo. A relação entre experiências subjetivas e sintomas corporais, característica da ansiedade, apresenta-se claramente na etimologia da palavra, bem como na de outras emoções correlacionadas. Do ponto de vista etimológico, a palavra “ansiedade” deriva do termo grego ansheim, que significa “estrangular, sufocar, oprimir”, remetendo à experiência subjetiva característica da ansiedade. Já a palavra “pânico”, também considerado um dos tipos de ansiedade, relaciona-se ao deus grego Pan, o qual, segundo a crença helênica, aterrorizava os incautos por sua fealdade e grande estatura. Outro deus grego que inspirava terror nos inimigos era Phobos,de onde deriva o termo “fobia”, utilizado para designar outras categorias de ansiedade. 6 Embora muito anteriormente registrada, foi somente a partir do final do século XIX que a ansiedade passou a ser encarada de forma diferente: as fobias adquiriram status de “problemas médicos” e a ansiedade passou a ter maior importância na cultura ocidental. Na Psiquiatria, a ansiedade adquiriu grande proeminência a partir da última classificação feita por Sigmund Freud, quando separou a neurose de ansiedade da neurastenia, e distinguiu a ansiedade crônica (a qual se relaciona à ansiedade generalizada do Manual de Estatística e Diagnóstico, em sua quarta edição) dos ataques de ansiedade (os quais, atualmente, denominam-se ataques de pânico). Nas últimas décadas, o tema tem sido alvo de inúmeros estudos. As palavras dos autores Dractu e Lader (1993) representam de forma clara o crescente aumento do interesse sobre o tema: “se a ansiedade não dá sossego aos homens, os homens, em resposta, resolveram não dar sossego à ansiedade” Os estudos científicos mais recentes sobre a ansiedade têm se dirigido às bases genéticas, ao conhecimento da neuroquímica, às interpretações de resultados farmacoterápicos e aprimoramentos de técnicas psicoterapêuticas, mas, via de regra, apresentam-se atrelados aos estados patológicos, particularmente àqueles descritos nos atuais sistemas classificatórios psiquiátricos, os quais serão mencionados de forma mais clara posteriormente: o Manual de Diagnóstico e Estatística, em sua quarta edição (DSM-IV), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, e a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento do Código Internacional das Doenças, em sua décima edição (CID-10), publicado pela Organização Mundial de Saúde. 7 1 2 As definições de ansiedade são inúmeras, bem como as causas de sua manifestação, e variam de acordo com diferentes autores. O professor Marcus Lira Brandão, um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros sobre as bases neurobiológicas da ansiedade, define a ansiedade, de modo geral, como sendo um estado subjetivo de apreensão ou tensão, difuso ou vago, freqüentemente acompanhado por uma ou mais sensações físicas – como aumento da pressão arterial, da freqüência cardíaca, da respiração, urgência de micção ou defecação – induzidas pela expectativa de perigo, dor ou necessidade de um esforço especial. Na tentativa de se compreender as diferentes nuances da ansiedade, muitas outras definições foram sendo criadas. De maneira geral, portanto, a ansiedade pode ser considerada como sendo: a) um estado emocional com a qualidade subjetiva do medo ou emoção correlacionada (terror, horror, alarme, pânico, etc.); b) uma emoção desagradável, podendo manifestar-se através de um sentimento de morte iminente; 1) Manual de Diagnóstico e Estatística, quarta edição, publicado pela Associação Psiquiátrica Norte Americana e 2) Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento do Código Internacional das Doenças, décima edição, publicado pela Organização Mundial de Saúde. 8 c) direcionada para o futuro; d) relacionada tanto a um perigo reconhecível e real quanto a um perigo aquém da emoção evocada, muitas vezes apenas potencial; e) freqüentemente, a sensação subjetiva de apreensão ou medo é acompanhada por alterações somáticas também de caráter subjetivo, como sensação de constrição torácica (aperto no peito), de dificuldade de respiração (falta de ar, sufocamento), de fraqueza, etc. f) com freqüência também acompanhada por alterações somáticas perceptíveis, como sudorese, tremores, palpitação e outras funções relacionadas à atividade autonômica. Qualquer que seja a definição empregada, a ansiedade parece ser composta, de maneira geral, por duas categorias distintas de características: características mentais e características físicas. Esse fato é especialmente importante quando se leva em consideração que as características mais facilmente diagnosticáveis são as físicas: a taquicardia, os tremores, a falta de sono, as palpitações, os emagrecimentos súbitos (ou aumentos de peso súbitos), entre outros. Por serem mais facilmente percebidas, e causarem grande desconforto, as pessoas tendem a buscar ajuda médica para controlar especificamente esses quadros. Tem-se tornado muito comum, portanto, um paciente dar entrada ao hospital relatando estar sofrendo de um ataque cardíaco quando, na verdade, está sofrendo de uma crise de ansiedade. Muitos médicos cardiologistas, inclusive, têm incluído em suas prescrições medicamentos ansiolíticos, no lugar de medicamentos que atuariam especificamente sobre a função cardiovascular, ao perceberem que os sintomas relatados dizem mais respeito à condição ansiosa do paciente do que propriamente a um problema cardíaco. Esse pequeno exemplo ilustra a complexidade do quadro ansioso e a importância da multidimensionalidade da abordagem no tratamento de condições de ansiedade. Além de definições a respeito do que representa a ansiedade, ainda pode ser compreendida em termos de características individuais de personalidade. Assim, uma pessoa pode ter uma personalidade mais ansiosa ou menos ansiosa, de forma inata, ou ainda desenvolver um quadro de ansiedade que não faça parte de sua personalidade. Desta maneira, a ansiedade poderia ser distinguida como um estado ou como um traço: a ansiedade como um estado seria aquela transitória, passageira, geralmente voltada para um fato ou situação específica (exemplificado de maneira ilustrativa pela expressão “estou ansioso”). 9 Nessa situação, os sentimentos de tensão e apreensão acima mencionados estariam presentes, acompanhados pela hiper-reatividade autonômica, caracterizada pelos sintomas físicos perceptíveis: taquicardia, sudorese, respiração rápida, tremores musculares, entre outros. Já a ansiedade como um traço seria uma característica individual de personalidade (exemplificado ilustrativamente pela expressão “sou mais ansioso”): as pessoas reagem naturalmente com uma ansiedade maior ou menor a situações percebidas como estressantes. Por exemplo: a forma como Maria reage a um problema pode ser muito diferente da forma como Ana reage; se frente a um problema, de qualquer natureza, Maria se mostrar mais ansiosa que Ana, pode-se dizer que Maria apresenta uma ansiedade-traço, característica de seu modo de agir, de sua personalidade. Assim, torna-se compreensível que um indivíduo com maior grau de ansiedade-traço também apresente maior grau de ansiedade-estado, frente a situações que possam representar algum tipo de ameaça à sua integridade física ou sobrevivência. A ansiedade não se apresenta como um quadro constante: pode ser normal ou desproporcional às possíveis causas; ser branda ou ter alguma gravidade; ser benéfica ao indivíduo ou prejudicial; ocorrer esporadicamente ou de maneira persistente; ser causada por condições físicas ou condições psicológicas; ocorrer de maneira isolada ou juntamente com algum outro transtorno, como a depressão, por exemplo; pode afetar outras potencialidades humanas, como a memória, ou não afetar o funcionamento normal do organismo, entre outras condições. Em linhas gerais, a ansiedade não representa um quadro único e homogêneo, pelo contrário. Na dependência das características particulares, pode estar focada ou ser desencadeada por situações específicas (como no caso das fobias), aparecer subitamente e sem causa facilmente identificável (como no pânico), ser desencadeada por traumas anteriores (como no transtorno de estresse pós-traumático), entre outras condições associadas a diferentes tipos de ansiedade. De qualquer forma, qualquerque seja o fator desencadeante ou a caracterização do transtorno, uma coisa é fato: traz grande sofrimento para o indivíduo, muitas vezes atrapalhando a realização de suas atividades habituais e prejudicando o curso normal da vida. É importante mencionar, ainda, que os transtornos de ansiedade são muitas vezes encarados de maneira bastante preconceituosa por um número relativamente grande de 10 pessoas. Muitas vezes, o diagnóstico de transtornos de ansiedade é interpretado, por aqueles que não conhecem muito bem suas características, como falhas de caráter, fraqueza de personalidade ou outras condições de pouco valor. Essas interpretações equivocadas agravam ainda mais o sofrimento pessoal experimentado por aqueles que vivenciam transtornos de ansiedade e o apoio familiar constitui- se um fator de grande importância no tratamento de tais condições. 11 2 MEDO OU ANSIEDADE? Os progressos recentes das neurociências, o advento da Etologia (ciência que estuda o comportamento animal), a evolução da teoria da aprendizagem e o sucesso relativo da psicofarmacoterapia vêm orientando a Psiquiatria em direção à Biologia. Isso quer dizer que a Psiquiatria também vem interpretando a ansiedade de um ponto de vista biológico. Em outras palavras, a ansiedade também pode ser compreendida dentro do paradigma evolucionário e, nesse contexto, algumas perguntas parecem ser relevantes: Por que sentimos ansiedade? Como surge? Em que momento da história evolutiva dos seres humanos ela surgiu? Se ela persistiu como um padrão de comportamento até o estágio atual do ser humano, que vantagens biológicas pode ter proporcionado à espécie humana? Ao se tentar compreender a importância evolutiva da ansiedade para a espécie humana é imprescindível ter em mente a perspectiva instituída por Charles Darwin. Como se sabe, Charles Darwin foi o naturalista inglês que propôs que todas as espécies biológicas existentes fossem provenientes de um ancestral comum e que suas características, assim como as próprias espécies, seriam decorrentes de uma seleção natural e sexual. Essa é a teoria que representa o cerne dos fenômenos biológicos. Dessa forma, Darwin apresenta fatos que indicam que os diferentes comportamentos e emoções, tanto em animais quanto em humanos, tenham sido (e sejam até hoje) fundamentais para a sobrevivência e seriam, portanto, biologicamente baseados nos princípios evolutivos. Ou seja, os diferentes comportamentos e as diferentes emoções são características tão confiáveis e conservadas nas espécies quanto às características corporais, tais como as formas dos ossos, dos dentes ou qualquer outra estrutura corporal. Desta forma, Charles Darwin analisou e explicou todas as emoções existentes do seguinte ponto de vista: Qual a função dessas emoções? Como elas contribuíram para o processo de adaptação do indivíduo ao meio- ambiente? Os princípios dessa análise feita por Darwin, sobre as emoções, encontram-se no livro escrito por ele e intitulado The Expression of the Emotions in Man and Animals (A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais), publicada em 1872 e reeditada em1965. 12 De forma resumida, nesta obra, Darwin aponta o caminho de buscar o valor adaptativo dos processos comportamentais e psicológicos, caminho esse que hoje é percorrido pela Etologia. Tendo em vista esta perspectiva, pergunta-se: O que a ansiedade representou – e ainda representa – para espécie humana em termos de sobrevivência? Em que ponto ela pode ter representado um benefício à espécie, a ponto de permanecer até os dias de hoje? Que vantagens ela pode trazer? Uma segunda dúvida, muito freqüente no senso comum, é com relação às semelhanças e diferenças entre ansiedade e medo. Qual a diferença entre os dois? O que estou sentindo é ansiedade ou é medo? São padrões de emoção diferentes ou são iguais? Essas dúvidas são realmente pertinentes, principalmente quando se considera a história evolutiva desses dois padrões de emoção. Se considerarmos o medo e a ansiedade a partir da perspectiva evolutiva instituída por Charles Darwin, pode-se afirmar que ambos têm suas raízes nas reações de defesa dos animais. Ou seja, estariam baseadas no instinto de sobrevivência que determina estratégias de defesa contra perigos comumente encontrados no meio ambiente. Desta forma, quando um animal é confrontado com uma ameaça ao seu bem-estar, à sua integridade física ou à sua própria sobrevivência, ele apresenta um conjunto de respostas comportamentais e neurovegetativas, que caracterizam a reação de medo. Alguns exemplos das respostas comportamentais da reação de medo são: tremores, taquicardia, sudorese, posturas corporais de defesa, dilatação das pupilas, etc. Quais seriam os estímulos considerados perigosos e, portanto, que estariam aptos a desencadear tais comportamentos e reações? Isso varia de acordo com a biologia da espécie e envolve conhecer diversos aspectos de sua história biológica, tais como: quais são seus predadores naturais, quais situações representam perigo para aquela espécie, quais condições podem colocar sua sobrevivência ou integridade física em risco. Assim, por exemplo, as reações de medo de um gato podem ser provocadas pela presença de um cachorro, mas não pela presença de um rato, já que a última alternativa não representa para o gato um perigo biológico. Se transportarmos essa analogia para a espécie humana, podemos listar uma série de situações em que as reações de medo poderiam ser evocadas. No entanto, diferentemente dos outros animais, não é somente a constituição biológica que determina quais estímulos são considerados ameaçadores para os seres humanos; tão ou 13 mais importantes são as características sociais e ambientais em que os indivíduos vivem, bem como as condições psicológicas de cada um e sua história de vida. Assim, embora um estímulo possa, de maneira geral, eliciar uma reação de medo na maioria das pessoas, muitas delas não irão considerá-lo como realmente associado a um perigo. Vejamos um exemplo: uma pessoa está andando por uma rua quando se depara com um grande cachorro. O fato da presença do cachorro eliciar ou não uma reação de medo vai depender da história de vida dessa pessoa e de sua constituição psicológica, embora o cachorro realmente pudesse representar um perigo à sobrevivência, se considerássemos apenas a história biológica humana. E muitos são os padrões de resposta possíveis, que variam de indivíduo para indivíduo: a pessoa pode paralisar de medo, sem nunca ter tido uma experiência negativa com cachorros; a pessoa pode sentir muito medo, por já ter tido experiências negativas com cachorros ou por ter se lembrado de outras pessoas que vivenciaram experiências negativas; ou ainda, a pessoa pode não se importar e não sentir medo, por ter contato freqüente com outros cachorros. A diferença de comportamento vai depender - como já mencionado - da história de vida e de características psicológicas individuais. Mas qual é a relação entre o medo e a ansiedade? No que se assemelham e no que diferem? Embora exista ainda alguma discussão a respeito, e novas possíveis teorias estejam sendo ainda desenvolvidas, de maneira geral, considera-se que as reações de MEDO seriam evocadas em situações onde o perigo é considerado REAL. Ou seja, é uma resposta a uma ameaça realmente existente, presente, definida. A ANSIEDADE, por sua vez, embora apresente respostas comportamentais e neurofisiológicas muito semelhantes às observadas nas reações de medo, seria evocada onde a ameaça ou o perigo é apenas POTENCIAL. Ou seja, embora a ansiedade possua a qualidade subjetiva do medo (sensação desconfortável, freqüentemente voltada para a dúvida de que algo poderá ou não acontecer), o perigo ou a ameaça podem não ser reais,concretos, iminentes. De forma geral, pode-se dizer que as reações de medo envolvem uma certeza de perigo; o perigo está presente; não há dúvidas sobre sua existência; é reconhecível. Já a ansiedade envolve uma possibilidade de perigo ou ameaça; o perigo pode ou não estar presente, ou às vezes nem existir; é um perigo potencial; não necessariamente é reconhecível. 14 Para exemplificar em termos práticos, pense na seguinte situação hipotética: Você está andando por uma rua quando uma pessoa encapuzada e segurando uma arma caminha em sua direção. Nessa situação, o que você sente: medo ou ansiedade? Muito provavelmente, sua resposta seja MEDO. A ameaça está ali, ela é real, reconhecível, não há dúvidas sobre sua existência. Agora pense na seguinte situação hipotética: Você está no trabalho quando é abordado por seu chefe, que diz que quer que você se dirija à sala dele em 1 hora. O que você sente nessa situação: medo ou ansiedade? Você pode acreditar que sente os dois, uma vez que a ansiedade possui a qualidade subjetiva do medo, mas é muito provável que, durante essa 1 hora, você fique extremamente ansioso. Pode ser que exista uma ameaça, ou seja, ela é potencial, não é certa, é direcionada para o futuro, existem dúvidas. Se, apesar dessas diferenças, a ansiedade se assemelha tanto ao medo em termos de reações, isso significa que possui uma base neurofisiológica semelhante e que, portanto, também foi semelhantemente selecionada ao longo da história biológica humana. Ou seja, embora seja freqüentemente – e na maioria das vezes – interpretada como sendo uma emoção negativa, se a ansiedade se manteve presente na psicobiologia humana até hoje é porque algum tipo de benefício à sobrevivência da espécie ela representa. Portanto, pergunta-se: Que tipo de benefício a ansiedade pode acarretar? Ao contrário do que se pode pensar, a ansiedade não é um padrão patológico, doentio. A ansiedade tem sido reconhecida como uma resposta habitual e freqüente do ser humano ao seu meio. Mas pode, realmente, se tornar patológica. 15 3 ANSIEDADE NORMAL E ANSIEDADE PATOLÓGICA Como dito acima, a ansiedade é considerada uma resposta habitual do ser humano ao meio em que vive e às situações que vivencia. Do ponto de vista biológico, se ela está presente até os dias atuais como um padrão de comportamento humano significa que possui alguma função adaptativa. E realmente possui. A sensação de ansiedade prepara o indivíduo para situações que podem ser difíceis, sejam quais forem essas dificuldades. Ao se preparar para tais situações, a chance de sucesso pode, conseqüentemente, aumentar. Além disso, a ansiedade adverte o organismo a respeito de possíveis perigos, sejam eles físicos (dor, cansaço, esforço, ferimentos) ou psicológicos (impotência, punição, frustração, separação). Ou seja, a ansiedade motiva o indivíduo a providenciar o que é necessário para evitar o perigo ou a ameaça, ou pelo menos reduzir suas conseqüências. Um exemplo pode ser dado ao analisar a situação vivida por adolescentes que prestam vestibulares concorridos. Muito provavelmente, eles irão se preparar durante um ano inteiro, ansiosos por chegar o dia da prova. Mas essa ansiedade faz com que eles se preparem e se dediquem, com o objetivo de evitar o dano – nesse caso, representado pela não-aprovação. Essas medidas tomadas em função da ansiedade não irão garantir que esses adolescentes sejam, com certeza, aprovados, mas minimizarão a chance de não o serem. Portanto, como pode ser observado nessa e em outras inúmeras situações, a ansiedade não é, por si só, uma condição negativa. Ela se torna negativa quando passa a ser patológica. A própria Psiquiatria aceita que em todo ser humano existe um “grau” de ansiedade considerado normal e que tem função adaptativa, o que remete, novamente, à perspectiva biológica. No entanto, é difícil estabelecer o limite entre a ansiedade normal e a patológica, precisar o momento em que ela passa de vantajosa para prejudicial. Esse é, inclusive, um conceito que varia de acordo com diferentes autores, os quais estudam os distúrbios de ansiedade. Como mencionado, sabe-se que certo grau de ansiedade é necessário para um bom desempenho em tarefas cognitivas. 16 Contudo, uma ansiedade exagerada pode ser inadequada, perturbando acentuadamente o desempenho. Ou seja, conforme vai aumentando o grau de ansiedade de um indivíduo, o seu desempenho também vai aumentando, melhorando as chances de sucesso em determinada atividade; até que atinge um ponto a partir do qual o aumento da ansiedade passa a não ser mais associado a vantagens e, sim, a prejuízos, passando a alterar o comportamento normal do indivíduo e a afetar negativamente sua vida. Esse conceito pode ser representado esquematicamente pelo gráfico abaixo. É importante mencionar, no entanto, que delimitar qual é o ápice de ansiedade a partir do qual se torna prejudicial, ou patológica, é uma tarefa quase impossível, considerando ser a ansiedade uma experiência subjetiva e, portanto, altamente variável entre os indivíduos. Pode-se mesmo dizer que a linha divisória entre a ansiedade normal e a patológica é extremamente tênue, e sujeita a inúmeras variáveis, sendo praticamente impossível precisá-la. Mas o que é e o que caracteriza a ansiedade patológica? Segundo alguns autores, a ansiedade patológica pode ser considerada como uma resposta inadequada a um determinado estímulo (ou a vários estímulos, simultaneamente). Relação entre a ansiedade normal e a ansiedade patológica 17 Inadequada em função de sua intensidade e de sua duração (ser muito intensa e durar por muito tempo). Pode provocar, naqueles que a sofrem, confusão e distorções da percepção temporal, espacial - em relação a pessoas e ao significado dos acontecimentos. Diferentes pesquisadores afirmam que a ansiedade somente deverá ser considerada patológica e, portanto, alvo de intervenção médica, quando for desproporcional às possíveis causas aparentes, muito persistente e interferir no funcionamento global do indivíduo de maneira significativa. A ansiedade patológica pode ser de natureza primária ou secundária. É primária quando representa a manifestação principal ou única do quadro clínico e secundária quando é resultado de outras doenças, de natureza psiquiátrica ou não. De forma resumida, portanto, pode-se afirmar que a ansiedade é um estado emocional que possui tanto componentes psicológicos (como medo persistente, preocupação, entre outros) como componentes fisiológicos (como taquicardia, tremores, palpitações, sudorese, entre outros) e que faz parte do repertório normal de experiências humanas. Na grande maioria das vezes, inclusive quando a ansiedade é manifestada em intensidade normal, chega mesmo a ser propulsora do desempenho. Passa a ser patológica, portanto, quando é desproporcional à possível causa, persiste por tempo muito maior do que o necessário, quando se repete em pequenos intervalos de tempo ou quando não existe um fato ou situação específica, para os quais seja direcionada. 18 4 CLASSIFICAÇÃO DOS TIPOS DE ANSIEDADE A classificação dos transtornos de ansiedade surgiu tardiamente, dentro da história das classificações de transtornos mentais, por dois motivos principais. Primeiro, pelo fato de que não eram reconhecidos como entidades clínicas distintas e, segundo, porque as primeiras classificações oficiais de que se têm notícia se destinavam basicamente a documentar pacientes internados em instituições psiquiátricas, sem a preocupação de diferenciar uma condição de outra. Nessas classificações iniciais, os sintomas mais representativos de ansiedade, quando descritos, relacionavam-se à depressão grave e não à ansiedade propriamente dita. Além do surgimentotardio, as classificações dos transtornos de ansiedade vêm sofrendo inúmeras modificações ao longo das últimas décadas, em função do maior conhecimento que vem sendo acumulado sobre as diferentes condições. Atualmente, em detrimento dos critérios de classificação inicialmente empregados pela Psiquiatria, os quais se mostravam muito subjetivos, foram adotados critérios mais operacionais, tanto pelo Código Internacional das Doenças como, principalmente, pelas últimas classificações elaboradas pela Associação Psiquiátrica Americana, designadas pela sigla DSM, do título em inglês Diagnostic Statistical Manual ou Manual de Estatística e Diagnóstico. Em 1994, a Associação Psiquiátrica Americana publicou a quarta edição do Manual de Estatística e Diagnóstico das doenças mentais. Nesta edição, cada categoria diagnóstica contém informações sobre aspectos diagnósticos, transtornos e aspectos associados, aspectos específicos de idade/cultura/sexo, prevalência/incidência/risco, curso, complicações, fatores predisponentes, padrão familiar e diagnóstico diferencial. A tabela abaixo apresenta os diferentes tipos de ansiedade, segundo o Manual de Estatística e Diagnóstico das doenças mentais, em sua quarta edição (DSM-IV). Classificação dos transtornos de ansiedade segundo o Manual de Estatística e Diagnóstico em sua quarta edição (DSM-IV) Transtorno do pânico sem agorafobia Transtorno do pânico com agorafobia Agorafobia sem história de transtorno do pânico 19 Fobia específica Fobia social Transtorno obsessivo-compulsivo Transtorno de estresse pós-traumático Transtorno de estresse agudo Transtorno de ansiedade generalizada Transtorno de ansiedade devido a uma condição médica geral Transtorno de ansiedade induzido por substância Transtorno de ansiedade não-especificado Embora, para fins práticos, a Associação Psiquiátrica Americana tenha organizado os diferentes tipos de ansiedade em 12 transtornos, com características sintomáticas e diagnósticas distintas, o diagnóstico preciso de um quadro de ansiedade é difícil de ser realizado e exige do psiquiatra um grande preparo e envolvimento com o quadro do paciente. Uma das dificuldades relatadas por esses profissionais como sendo a mais comumente encontrada é a superposição que existe entre os sintomas da ansiedade e os sintomas depressivos. Essa dificuldade, inclusive, não é relatada apenas pelos clínicos da área da Psiquiatria; muitos pesquisadores relatam grande dificuldade em separar a ansiedade da depressão, e vice-versa. Embora muitos pesquisadores tenham sugerido que ambos os quadros – ansiedade e depressão – sejam componentes de um processo único, os quais denominam de “estresse psicológico geral”, é importante salientar que possuem bases neurobiológicas distintas e, portanto, constituem realmente duas entidades separadas. Inclusive, alguns autores sugerem que essa aparente superposição entre os sintomas da ansiedade e da depressão seja devido ao fato de existirem limitações psicométricas nas escalas de avaliação de ansiedade utilizadas atualmente. Portanto, fica evidente a grande importância de um diagnóstico preciso realizado pelo psiquiatra, de forma a evitar, inclusive, tratamentos psicoterápicos e farmacológicos equivocados. Embora do ponto de vista neurobiológico exista uma evidente distinção entre as vias neurofisiológicas implicadas em cada uma dessas condições, muitas pessoas, no senso comum, não sabem diferenciar precisamente a ansiedade da depressão. De maneira geral, podem-se dizer esses dois quadros são diferentes basicamente em dois aspectos: no nível de estimulação autonômica e na qualidade do afeto apresentado. Em transtornos de ansiedade, há a presença de sintomas de hiperestimulação autonômica, tais como palpitação, tremores, aumento da freqüência cardíaca e respiratória, sudorese, 20 hiperatividade constante, entre outros, enquanto que a depressão apresenta o quadro inverso, uma hipoestimulação autonômica. Com relação à qualidade do afeto presente, a depressão pode ser distinguida da ansiedade pela presença do que se chama de anedonia (que é a perda da capacidade de sentir prazer). No entanto, em função da semelhança na questão da ausência do afeto positivo, que é observada tanto na depressão quanto na ansiedade, muitas vezes os quadros podem ser confundidos entre si, o que justifica o fato de que a depressão seja o principal fator de comorbidade em transtornos de ansiedade. Para fins de melhor compreensão, o presente Módulo apresentará os aspectos característicos dos principais transtornos de ansiedade observados atualmente na clínica. Portanto, serão detalhadas as principais características dos seguintes transtornos: a) transtorno do pânico (de maneira geral, e não subdividido em termos de presença ou ausência de agorafobia, que é o medo de estar em locais públicos, abertos ou no meio de multidões); b) fobia específica; c) fobia social; d) transtorno obsessivo-compulsivo; e) transtorno de estresse pós-traumático; e f) transtorno de ansiedade generalizada. Esses transtornos foram escolhidos para maior detalhamento em função de ocorrerem de forma mais freqüente na população em geral, quando comparados aos demais transtornos de ansiedade. 4.1 Transtorno do pânico Segundo o DSM-IV, um ataque de pânico pode ser caracterizado por um período de medo ou desconforto intenso, o qual surge subitamente e aumenta progressivamente. Esse pavor súbito e crescente atinge um pico rapidamente (10 minutos ou menos, em geral) e é freqüentemente acompanhado por uma sensação de perigo e morte iminentes, e de urgência de fuga. A sensação de pavor é acompanhada por, no mínimo, 4 a 13 sintomas somáticos ou cognitivos, geralmente associados a uma hiperativação autonômica, incluindo: palpitações; sudorese; tremores; sensação de falta de ar ou sufocamento; sensação de abafamento; dor ou desconforto torácico; vertigens; despersonalização; medo de perder o controle ou de “estar 21 ficando louco”; medo de morrer; parestesias; arrepios ou ondas de calor. Em um ataque de pânico, podem não ocorrer todos esses sintomas, mas sempre um mínimo de 4 deles estará presente. Esses ataques ocorrem de maneira inesperada, recorrente, sendo freqüentemente seguido por pelo menos um mês de preocupação e medo persistentes a respeito da possibilidade de se ter um novo ataque e de não ser capaz de controlá-lo, caso venha a ocorrer. O transtorno do pânico, com ou sem agorafobia (medo de lugares abertos, públicos e de multidões), tem sido considerado como um dos transtornos de ansiedade mais incapacitantes, tanto em função da sensação experimentada por quem o apresenta como pelas constantes buscas por tratamento e hospitais. Na tentativa de controlar o transtorno ou simplesmente de evitar que novos ataques aconteçam. Os relatos mais freqüentes de pacientes, com relação à sensação experimentada em um ataque de pânico, dizem respeito ao medo intenso de morrer, e à sensação de que realmente irão morrer naquele instante. Isso faz com que essas pessoas criem uma expectativa de que isso pode ocorrer a qualquer momento, e que da próxima vez não haverá escapatória. Portanto, é fácil perceber a intensa angústia e sofrimento causados por esse transtorno. Outra característica relevante desse transtorno relaciona-se ao comportamento de evitação que a pessoa passa a desenvolver. Isso significa que, tendo ocorrido um ataque de pânico em um determinado local, a pessoa passa a evitar esse local ou outros que remetam àquele em que um ataque tenha ocorrido. Isso porque ela passa a acreditar que aquele contexto pode, novamente, desencadear uma nova crise. Esse comportamento acaba por limitar drasticamente a autonomia e a vida cotidiana desses pacientes, uma vez que passam a não querer mais realizar tarefas sozinhos,por medo de que ocorra um novo ataque e de que ninguém possa socorrê-lo. Em função dessa característica, a vida social e profissional de pessoas que sofrem com o transtorno do pânico pode se tornar muito comprometida, uma vez que eles passam a desenvolver uma ansiedade antecipatória a qualquer evento ou situação pelos quais precisem passar. Em alguns casos, o uso de substâncias psicoativas pode desencadear um ataque de pânico em pessoas que nunca o havia apresentado. É o caso da maconha, de alguns alucinógenos e de substâncias psicoestimulantes como a cocaína e algumas anfetaminas. No entanto, esses casos não caracterizam a existência de transtorno do pânico e, sim, 22 um ataque de pânico secundário, induzido por substância. Na comunidade norte-americana, parece haver uma prevalência do transtorno do pânico da ordem de 3,2% nas mulheres e 1,3% nos homens. Outros levantamentos, no entanto, sugerem que as mulheres apresentem ainda maiores prevalências de ocorrência do transtorno do pânico: 4 mulheres para cada homem com relação ao transtorno do pânico com agorafobia e 1,3 mulheres para cada homem com relação ao transtorno do pânico sem agorafobia. Existem dados que indicam que, ao longo da vida, exista uma prevalência de transtorno de pânico da ordem de 3,5%, considerada relativamente alta quando comparada a outras doenças incapacitantes. Essas proporções são similares ou maiores que as de outros distúrbios médicos comuns, como a hipertensão, o que sugere a relativamente alta ocorrência do distúrbio nessa população. Pacientes com transtorno do pânico, assim como os pacientes com ataques de pânico, mas que não se enquadram no critério para o transtorno do pânico, tendem a ser grandes usuários de serviços médicos. Uma explicação para o fato é que estes pacientes são predispostos a considerar sua saúde como estando sempre frágil e necessitando de consulta e tratamento médico. Isso representa enormes custos anuais aos programas de saúde. Com relação à idade de aparecimento dos sintomas, alguns levantamentos sugerem que os primeiros sintomas do transtorno do pânico surjam entre o final da adolescência (por volta dos 17 anos) e o início da idade adulta (em torno dos 25 anos), embora muitas variações individuais ocorram. Alguns estudos indicam que existe uma correlação positiva entre a ocorrência de transtornos de ansiedade na infância e o desenvolvimento de transtorno do pânico na idade adulta. Isso quer dizer que, em grande número de casos, pacientes adultos com ataques de pânico podem ter sido crianças dependentes, medrosas, com intensa ansiedade e, muitas vezes, que tenham apresentado dificuldades no período escolar. Sugere-se, inclusive, que indivíduos que tenham apresentado ansiedade de separação na infância (ansiedade excessiva em relação ao afastamento dos pais ou de seus substitutos. Não adequada ao nível de desenvolvimento da criança) tenham maior probabilidade de desenvolver ataques de pânico (bem como fobia social e transtorno obsessivo-compulsivo) na vida adulta quando confrontados com situações de perdas ou separações. Mas quais são as causas do transtorno do pânico? Muitos trabalhos encontram-se atualmente em curso, nas mais diferentes áreas do conhecimento, na tentativa de se responder 23 a esse questionamento. Acredita-se que a etiologia do transtorno, como a maior parte dos transtornos de ansiedade, seja de ordem multifatorial; ou seja, não pode ser explicada em termos de apenas uma causa e, sim, como um conjunto delas. Nesse contexto, incluem-se fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais e cognitivo-comportamentais, os quais, em conjunto, contribuem para o seu aparecimento. O tratamento do transtorno do pânico baseia-se numa combinação do uso de medicamentos e técnicas psicoterapêuticas comportamentais. Considerada muito eficaz, a terapêutica farmacológica é baseada nos antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina, inibidores da enzima monoaminoxidase e em alguns benzodiazepínicos. As principais drogas utilizadas no tratamento do transtorno do pânico têm sido a imipramina, a qual é considerada como a droga referência para comparação de outros medicamentos. A clomipramina, que parece ser tão eficiente quanto à imipramina, mas atuando em doses menores, benzodiazepínicos como o alprazolam e inibidores seletivos da recaptação de serotonina tais como a fluoxetina, a paroxetina, a fluvoxamina, a sertralina e o citalopram. Além desta abordagem farmacológica, as abordagens psicoterapêuticas comportamentais e cognitivas têm alcançado êxito no tratamento dos sintomas fóbicos e nas conseqüências psicológicas do pânico. 4.2 Fobia específica Medo de barata, medo de voar de avião, medo do mar, medo de lagartixa, medo de altura. Esses são, entre tantos outros, medos muito comuns. No entanto, o medo direcionado a determinada situação somente passa a constituir um quadro de fobia específica quando influenciar decisivamente a vida e a saúde do indivíduo. 24 Fobias específicas são caracterizadas pelo medo intenso e pavor, muitas vezes paralisante, de determinadas situações, altamente específicas, ainda que a situação desencadeante seja inofensiva e o medo pareça irracional. Além do pavor à determinada situação realmente presente, a fobia específica se caracteriza pela antecipação da situação temida (chamada de situação fóbica); ou seja, a pessoa tem intenso medo de se deparar com tal situação, mesmo que ela não esteja presente. Alguns exemplos de estímulos fóbicos são: lugares fechados (claustrofobia), animais, altura (acrofobia), alimentos, trovão, ventos, escuridão, tratamento dentário, avião, ferimentos, dirigir, entre outros. Da mesma forma como ocorre nos demais transtornos de ansiedade, esse medo é um medo persistente, excessivo e, na maioria das vezes, irracional. A pessoa que apresenta fobia específica tem consciência da irracionalidade ou improcedência do medo que sente a determinadas situações, mas não consegue controlá-lo, e a consciência da irracionalidade do seu medo acaba por trazer um sofrimento ainda maior, pois sabe que existe, mas não pode controlá-lo. Em função disso, a pessoa passa a evitar inúmeras situações com medo de que a situação fóbica se apresente - o que interfere diretamente em seu fluxo de vida, ou acaba limitando suas ações. Tanto o medo intenso da possível ocorrência da situação fóbica quanto o comportamento de evitar inúmeras condições, fazem com que a rotina dessas pessoas seja significativamente alterada, bem como seus relacionamentos, aumentando ainda mais o quadro de angústia gerado por esse transtorno de ansiedade. Até o início da década de 90, a fobia específica era chamada de fobia simples, principalmente em função do DSM-IV assim classificar esta condição. Após a renomeação, em sua quarta edição, a fobia específica passou a ser subdividida em cinco tipos principais: 1) fobia específica tipo animal; 2) fobia específica tipo ambiente natural; 3) fobia específica tipo sangue- injeção-ferimentos; 4) fobia específica tipo situacional; e 5) fobia específica de outro tipo não classificado. Os critérios diagnósticos do DSM-IV para fobias específicas são os seguintes: A – Temor significativo e persistente, excessivo ou irracional, desencadeado pela presença ou antecipação de um objeto ou situação específica; 25 B – A exposição ao estímulo fóbico quase invariavelmente provoca ansiedade, que pode tomar a forma de um ataque de pânico situacional; C – A pessoa reconhece que seu temor é excessivo e irracional (exceto em crianças); D – As situações temidas são evitadas ou são vividas com intensa ansiedade e desconforto; E – A evitação, a ansiedade antecipatória ou o desconforto na situação temida interferem significativamente com a rotina normal da pessoa,desempenho acadêmico ou profissional, atividades ou relacionamentos, ou há um desconforto significativo por ter a fobia; F – Em pessoas com menos de 18 anos, a duração deve ser de pelo menos seis meses; G – A ansiedade, ataques de pânico ou evitação fóbica associada com o objeto específico ou situação, não é mais bem classificada como outra doença mental, como transtorno obsessivo- compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade de separação, fobia social, transtorno do pânico com agorafobia ou sem agorafobia, sem história de transtorno do pânico. Geralmente, a fobia específica se inicia na infância ou adolescência, com exceção das fobias de origem traumática, as quais não apresentam necessariamente uma idade característica para início. É, muitas vezes, subdiagnosticada, ou seja, os pacientes acabam por não procurar atendimento médico, somente quando apresentam alguma comorbidade que agravam o quadro, como no caso dos ataques de pânico em contexto fóbico. Há uma estimativa de que somente 12 a 30% dos pacientes busquem ajuda profissional. O índice de comorbidade é relativamente alto: estima-se que entre 50 e 80% dos pacientes com fobia específica tenham algum outro transtorno psiquiátrico. É um transtorno de ansiedade com prevalência relativamente alta: alguns estudos indicam cerca de 10% de taxa de prevalência de fobias específicas em algumas comunidades. As prevalências são, em geral, maiores em mulheres, o que pode refletir diferenças genéticas ou ambientais nos padrões etiológicos das fobias. 26 Alguns pesquisadores discutem o fato de que a transmissão social de medos poderia ser mais freqüente e facilitada nas mulheres, daí a maior prevalência nesse gênero. Qualquer que seja a explicação constata-se que a fobia específica é o transtorno mental mais comum em mulheres e, nos homens, perde apenas para abuso de substâncias. Dados existentes sugerem que familiares de pacientes com fobia específica apresentam maior chance de também apresentar tal transtorno. Existe uma possível agregação familiar pelo tipo de fobia, embora tal conclusão necessite de estudos adicionais para sua confirmação. No Brasil, não existem muitos estudos sobre fobias específicas. Um grupo de pesquisadores, os quais investigaram a morbidade psiquiátrica na população da região de Porto Alegre, verificou uma prevalência estimada de fobia específica de 12,8%. Ao contrário do que ocorre com a maioria dos transtornos de ansiedade, os quais possuem duas vertentes de tratamento, o psicoterapêutico e o farmacológico, a fobia específica possui um tratamento preponderantemente psicoterapêutico, sendo a abordagem farmacológica empregada apenas em quadros de comorbidade. O tratamento mais eficaz para as fobias específicas tem sido a exposição sistemática ao objeto ou situação fóbica, quando o indivíduo é exposto à fonte de pavor. Geralmente, são realizadas sessões semanais de exposição gradual até a resolução do problema. Atualmente, com o desenvolvimento da tecnologia, exposições a situações fóbicas por meio de realidade virtual têm sido empregadas com sucesso. 4.3 Fobia social Embora o termo “fobia social” tenha sido cunhado em 1903, para designar o medo que algumas pessoas têm de serem observadas enquanto realizam tarefas, o transtorno de fobia 27 social somente passou a ter mais importância a partir da terceira edição revisada do DSM. A fobia social é um transtorno de ansiedade caracterizado pelo medo de ser observado ou analisado pelos outros, ou ainda pelo medo do embaraço durante a interação com outras pessoas, ou em situações de exposição pública. A pessoa com transtorno fóbico social apresenta um medo intenso e persistente de uma ou mais situações nas quais poderá ser exposta à possível avaliação por parte de outras pessoas, como por exemplo: comer, beber, falar em público, ser o centro das atenções, interagir com o sexo oposto, entre outras situações. A pessoa tem constante pavor de fazer algo em público, temendo comportar-se de maneira humilhante ou embaraçosa. Em função desse medo, acaba evitando qualquer tipo de situação em que a possibilidade de interagir com outras pessoas exista, isolando-se e criando um quadro de angústia do qual não consegue sair. O comportamento de evitar o contato com outras pessoas, temendo ser analisado ou apenas observado, caracteriza o quadro chamado de esquiva fóbica. Em função de muitas dessas situações não poderem ser evitadas, a pessoa acometida pela fobia social apresenta intensas manifestações de ansiedade, o que fornece uma leve perspectiva do grande sofrimento individual experimentado por esses pacientes. A fobia social pode ser classificada em dois subtipos: generalizada e não generalizada. O subtipo generalizado inclui indivíduos com amplo espectro de medos sociais, ao passo que o subtipo não generalizado envolve a ansiedade limitada a situações específicas. A despeito de ser um dos transtornos de ansiedade mais freqüentes na população em geral, a fobia social ainda é um transtorno relativamente negligenciado. Isso porque a grande maioria das pessoas não a considera como um quadro patológico, portanto, consideram que não há necessidade de tratamento médico e acompanhamento. Pelo contrário, muitas vezes interpretam a grande dificuldade de interação com outras pessoas como falta de sociabilidade ou até mesmo como uma fraqueza ou falha de caráter. Isso demonstra o duplo sofrimento experimentado pelos fóbicos sociais: sofrem com o medo que sentem da possível interação com outros e sofrem pelo julgamento que é feito deles pela grande maioria das pessoas. 28 Os próprios clínicos de outras áreas, que não a Psiquiatria, muitas vezes subestimam ou sub-reconhecem um quadro de fobia social. Isso é preocupante, uma vez que o diagnóstico precoce pode evitar o desenvolvimento de comorbidades, favorecendo um melhor prognóstico. Estima-se que a prevalência de fobia social ao longo da vida fique entre 10 e 15%, sendo o terceiro transtorno psiquiátrico mais comum na prática clínica, ficando atrás da depressão e da dependência ao álcool. Na prática médica, costuma ser a razão primária para a busca de tratamento, embora o desenvolvimento de comorbidades psiquiátricas, como depressão, pânico ou abuso de substâncias, acabem muitas vezes por ser o principal motivo para buscar tratamento médico. Esse é um importante aspecto associado à ocorrência de fobia social: a relação estreita existente entre este transtorno e o desenvolvimento de dependência a substâncias psicoativas, como o álcool e outras. De acordo com alguns autores, os transtornos de ansiedade, e em especial a fobia social, quando têm um início precoce na adolescência, parecem trazer severas conseqüências potenciais, predispondo os indivíduos afetados a uma maior vulnerabilidade para a depressão e para transtornos envolvendo o abuso de substâncias. Diversos estudos, utilizando evidências clínicas e epidemiológicas, têm demonstrado que a fobia social tende a preceder o início dos problemas com o álcool. Os pesquisadores explicam essa relação em termos de tentativa de automedicação: ao experimentar bebidas alcoólicas, as pessoas com fobia social experimentam uma sensação de relaxamento, de maior sociabilidade, de diminuição do medo e dos sintomas ansiosos pelos quais eram dominadas anteriormente. Assim, a ação do álcool acaba por reforçar seu uso contínuo, podendo levar ao abuso comórbido, que representa uma importante complicação dos quadros de fobia social. E essa situação, infelizmente, é muito mais freqüente do que se pensa: um grande número de parentes de alcoolistas relata que seus familiares passaram a fazer uso de grandes quantidades de bebidas alcoólicas para se tornarem mais sociais e conseguirem conviver em sociedade, o que, para eles, era muitodifícil antes da bebida. Isso é um aspecto a ser considerado no tratamento do alcoolismo, uma vez que pessoas com fobia social devem ser 29 acompanhadas de maneira mais próxima, em função deste quadro contribuir para a recidiva do uso de álcool. Apenas a título de exemplo, um estudo realizado em 1998 mostrou que 70% dos pacientes com fobia social estudados relataram que o quadro fóbico se iniciou antes do alcoolismo, sendo que 60% destes bebiam deliberadamente para suportar a fobia, o qual reforça a hipótese da automedicação. A etiologia da fobia social ainda não se encontra totalmente esclarecida, embora existam algumas evidências sugerindo uma grande importância de fatores familiares, genéticos e neurobiológicos. A ocorrência de traumas e dificuldades na infância estão implicados como fatores de contribuição na gênese da fobia social. Com relação à transmissão genética, sabe-se que familiares de pacientes com fobia social apresentam o mesmo diagnóstico com uma freqüência maior que familiares de pacientes com síndrome do pânico ou que pessoas sadias. É necessário fazer uma diferenciação entre pessoas que sofrem com timidez excessiva e aquelas que possuem fobia social. Embora os dois quadros apresentem muitas semelhanças, tais como: ocorrer em situações de desempenho social, reconhecer o medo como irracional e produzir fortes sintomas ansiosos, se diferenciam em outros aspectos: pacientes com fobia social são acometidos por um medo paralisante de situações de interação com outras pessoas, enquanto que pessoas tímidas, embora se sintam desconfortáveis, não sentem um medo tão intenso; embora os tímidos possam sentir-se encabulados em determinadas situações, não desejam sair correndo por medo daquela situação, nem ficam com pensamentos obsessivos sobre a possibilidade de uma interação pública, como ocorre com fóbicos sociais; pacientes com fobia social freqüentemente apresentam ataques de pânico frente a situações sociais, o que não acontece com pessoas apenas tímidas; e, tão importante quanto os demais aspectos, embora os tímidos possam sentir- se desconfortáveis em algumas situações, não chegam a experimentar o sofrimento intenso experimentado por aqueles que possuem fobia social. 30 Com relação às formas existentes de tratamento, embora a busca por tratamento médico para tal condição seja relativamente pequena, a fobia social responde tanto à terapia medicamentosa quanto ao tratamento psicoterapêutico. Do ponto de vista farmacológico, o tratamento da fobia social tem quatro objetivos principais: reduzir e controlar a ansiedade antecipatória; controlar as manifestações físicas e subjetivas da ansiedade quando da exposição a estímulos eliciadores de ansiedade; eliminar a esquiva fóbica associada; e tratar adequadamente, também, os transtornos comórbidos associados. Nesse contexto, três classes de fármacos têm se mostrado eficazes na fobia social: os betabloqueadores (em casos de fobia social não generalizada, ou seja, circunscrita a uma determinada situação) e os benzodiazepínicos e antidepressivos (em casos de fobia social generalizada). Do ponto de vista psicoterapêutico, certos tipos de psicoterapia podem auxiliar os pacientes e, muitas vezes, representam a principal e mais vantajosa alternativa, uma vez que muito do que se aprende durante a psicoterapia pode ser usado no decorrer da vida do paciente, funcionando como um instrumento para a prevenção de recaídas. A terapia do tipo cognitivo-comportamental tem sido amplamente utilizada com este intuito, embora muitos pacientes apresentem apenas uma diminuição parcial dos sintomas. 4.4Transtorno obsessivo- compulsivo O ator norte-americano Jack Nicholson interpreta no filme “Melhor Impossível” (As Good As It Gets), aclamado pelo público no ano de 1997, um homem chamado Melvin Udall. Melvin é um escritor solitário e grosseiro, que leva uma vida no mínimo peculiar. 31 Quem assiste ao filme percebe claramente os principais sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo, o qual será denominado a partir deste ponto apenas pela sigla TOC. Melvin sofre deste transtorno, o que significa dizer que sua vida é delineada em função das manias que desenvolveu ao longo dos anos. Apenas a título de exemplo, Melvin tem, em seu armário do banheiro, uma dezena de sabonetes, uma vez que utiliza cada um apenas uma vez, jogando-o no lixo em seguida. Outra mania sua diz respeito ao número de vezes que precisa verificar se a porta está trancada antes de ir se deitar. A posição dos chinelos à beira de sua cama também deve estar precisamente correta, entre outras manias apresentadas pelo personagem. Embora provoque risos e surpresas, é fácil perceber, ao assistir o filme, como esse quadro psiquiátrico acaba por afastá-lo do convívio com outras pessoas, as quais o consideram um excêntrico, ou apenas uma pessoa muito esquisita, e isso vai trazer problemas mais sérios à sua vida. É uma sugestão de filme que vale a pena assistir para se compreender um pouco mais das características sintomáticas do TOC, embora esteja representada anedoticamente. Do ponto de vista psiquiátrico, o TOC é caracterizado pela presença de obsessões, compulsões e/ou manias que causam profunda ansiedade e sofrimento. Obsessões podem ser definidas como processos mentais – pensamentos, idéias, impulsos e imagens – que são vivenciados como intrusivos, repetitivos e incômodos. Podem ser criadas a partir de qualquer evento mental, tais como palavras, medos, preocupações, memórias, imagens, músicas, pessoas ou cenas. Já as compulsões são definidas como comportamentos ou pensamentos repetitivos, intensos, que são realizados para diminuir o incômodo ou a ansiedade causada pelas obsessões, ou para evitar que uma situação temida venha a ocorrer, e estes acabam virando regras a serem cumpridas rigidamente. Assim, no caso do personagem Melvin Udall, mencionado anteriormente, sua compulsão por limpeza se dava pelo temor de contrair alguma doença, e o fator doença era, para ele, uma obsessão. É fácil perceber, portanto, como as duas situações se acompanham: desenvolve-se um quadro de obsessão por alguma idéia e um quadro de compulsão pode ser desenvolvido à medida que comportamentos para evitar a idéia obsessiva passam a ocorrer repetitivamente. 32 Existe uma imensa variedade de obsessões e compulsões possíveis. O diagnóstico para TOC, entretanto, é feito quando as obsessões e/ou as compulsões causam profunda interferência nas atividades do indivíduo, ou as limitam, quando consomem tempo (pelo menos uma hora por dia para realizá-las). E quando passam a causar sofrimento e incômodo tanto para o paciente quanto para seus familiares. Assim como outras condições psicopatológicas, não existe um diagnóstico laboratorial para identificação deste quadro psiquiátrico, estando o diagnóstico vinculado apenas à avaliação clínica. Entretanto, é importante ressaltar que, apesar dos casos mais típicos de TOC em geral não serem de difícil identificação, trata-se de um quadro que faz fronteira com vários outros transtornos mentais, o que pode dificultar seu diagnóstico diferencial. Em geral, seus sinais e sintomas parecem seguir um contínuo entre os transtornos de movimentos repetitivos, que variam dos tiques simples à ideação obsessiva, formando um espectro de quadros patológicos que incluem, entre outros: Transtornos somatoformes: presença repetida de sintomas físicos associados à busca constante de assistência médica, sem que os médicos consigam encontrar algo anormal; Transtornos alimentares; Tricotilomania: distúrbio caracterizado por arrancar cabelos de maneira compulsiva e sem finalidade estética; Transtornos do controle dos impulsos: comportamentos repetitivos baseados no fracasso em resistir a um impulso ou à tentação em executarum ato que pode ser nocivo à própria pessoa ou a outros; -Outras condições. Quando alguns sintomas do quadro de TOC passam a ocorrer em conjunto, esses sintomas podem ser agrupados e analisados como um único quadro. Assim, já foi possível estabelecer algumas categorias sintomatológicas desta condição psiquiátrica: obsessões religiosas, sexuais e compulsões relacionadas; obsessões de agressão e compulsões relacionadas; obsessões de simetria e compulsões de ordenação e arranjo; 33 obsessões de contaminação e compulsões de limpeza ou lavagem; e obsessões e compulsões de colecionismo. É importante ressaltar, ainda, que a simples ocorrência de sintomas obsessivo- compulsivos não determina o diagnóstico do TOC. Eles podem fazer parte da apresentação clínica de outro transtorno primário, como depressões, esquizofrenias e demências. Podem também ser manifestações normais de determinadas fases da vida, como os rituais na hora de dormir observados na infância e outros rituais presentes durante a gravidez e puerpério, tais como pensamentos intrusivos sobre a saúde do feto ou rituais de verificação de bem-estar do recém-nascido. Por isso, assim como no caso dos outros transtornos psiquiátricos mencionados nesta apostila, torna-se extremamente importante o treinamento médico adequado para fazer o preciso diagnóstico de uma real condição de TOC. Vários autores salientam que, no início do processo de instalação de um quadro de TOC, nem sempre os sintomas têm um caráter claramente classificável como obsessivo. No início, o TOC pode ser manifestado apenas como sintomas de ansiedade, principalmente fobias, ou como distúrbios do humor, com quadros depressivos ou certa disforia, acompanhada de tensão e irritabilidade. Acredita-se que tende a se instalar inicialmente entre a infância e o início da adolescência, persistindo na fase adulta. No entanto, ainda não existe um consenso sobre como determinar a idade de início do aparecimento dos sintomas. A maioria dos estudos existentes considera o surgimento dos sintomas como a idade de início do transtorno; outros consideram o início do incômodo causado pelos sintomas ou a primeira vez em que o paciente procurou ajuda profissional como a idade de início. Um estudo epidemiológico americano, entrevistando uma amostra populacional de 20.862 indivíduos, constatou que 64% dos portadores de TOC apresentaram início dos sintomas antes dos 25 anos de idade, e 74% antes dos 30 anos. Esses dados confirmam observações de estudos clínicos de que o TOC instala-se predominantemente na infância, na adolescência e no início da idade adulta. Para alguns pesquisadores, quanto mais precoce for o início do transtorno, maior parece ser a gravidade dos sintomas obsessivos, e pior tende a ser sua evolução. 34 De uma maneira geral, parece haver uma grande demora entre o início dos sintomas obsessivos e a busca por tratamento. Alguns estudos indicam que esse tempo costuma ser, em média, de sete a dez anos. Essa demora talvez possa ser explicada, em parte, pelo caráter secreto e reservado dos sintomas, que faz com que os pacientes evitem ao máximo o contato com psiquiatras e só procurem auxílio quando a intensidade do quadro se acentue a tal ponto que os familiares e amigos precisem intervir. Estudos sobre a evolução dos quadros obsessivos demonstram que ela é crônica na maioria das vezes, sendo raros os períodos de remissão completa dos sintomas. Os sintomas obsessivos, ainda, apresentam flutuações, com períodos de melhora e piora, sem que ocorra remissão completa na maioria dos casos. Existem evidências de que, na fase adulta, o curso do TOC pode ser mais episódico e menos grave em mulheres do que em homens. Além disso, mulheres com TOC podem ter um início mais agudo do transtorno do que homens, o que facilitaria tanto o diagnóstico quanto o tratamento. No período da infância, entretanto, parece haver uma preponderância do transtorno em meninos. Alguns estudos epidemiológicos sugerem que o TOC seja menos raro do que se supunha anteriormente e, segundo a Organização Mundial da Saúde, é atualmente a décima causa de incapacitação no mundo. A influência de fatores genéticos na etiologia do TOC tem sido investigada por meio de estudos de famílias, estudos com gêmeos e, mais recentemente, estudos de genética molecular. Em vários estudos com gêmeos, as taxas de concordância de TOC entre gêmeos monozigóticos variam entre 53 e 87%. Enquanto para gêmeos dizigóticos elas variam entre 22 e 47%, sugerindo um componente genético forte para este transtorno, embora os fatores ambientais pareçam contribuir decisivamente para o seu aparecimento, uma vez que a concordância em gêmeos monozigóticos é inferior a 100%. Além disso, parece haver maior prevalência de TOC, sintomas obsessivo-compulsivos, Síndrome de Tourette (caracterizada pela presença intensa de tiques) e 35 transtorno de tique motor ou vocal crônico entre familiares de pacientes com TOC, o que sugere um forte componente familial. Com relação ao tratamento empregado para quadros de TOC, e seguindo a tendência já manifestada e mencionada nos subtipos de ansiedade mencionados anteriormente, a psicoterapia aliada à intervenção medicamentosa parece ser a melhor escolha. A introdução de terapia do tipo cognitivo-comportamental parece induzir uma melhora dos sintomas, além de diminuir o risco de recaída após o término do tratamento medicamentoso. As drogas de escolha no tratamento do TOC têm sido na última década os inibidores da recaptação de serotonina, principalmente a clomipramina, a fluvoxamina e a sertralina. No entanto, o tratamento com tais medicamentos deve ser feito apenas quando os sintomas apresentam-se muito graves, ou quando houver risco de suicídio ou quadro depressivo muito pronunciado. Além disso, é importante ressaltar que, com os tratamentos disponíveis, muitos pacientes podem esperar melhora significativa ao longo do tempo, mas muito raramente ocorre a remissão completa dos sintomas. 4.5 Transtorno de estresse pós-traumático Embora os sintomas presentes no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) já tenham sido descritos há cerca de 100 anos, embora ainda não apresentasse essa denominação nessa época, foi somente após a Guerra do Vietnã que foi dada maior atenção a esse transtorno. Ao regressarem aos Estados Unidos após servirem nessa guerra, os soldados passaram a manifestar sintomas de trauma psicológico pronunciado, com significativo prejuízo de sua vida pessoal, e os médicos passaram a se interessar por esta condição. Em 1980, o transtorno passou a compor, oficialmente, o quadro dos subtipos de transtornos de ansiedade apresentados pela terceira edição do DSM. A partir daí, muitos 36 estudos psicológicos, farmacológicos e neurológicos foram sendo desenvolvidos em ordem de se conhecer melhor o TEPT. O TEPT é um transtorno caracterizado por sintomas que surgem após a exposição do indivíduo a um evento traumático grave. Esses sintomas incluem: Sentimentos de estar revivendo a situação indefinidas vezes; Comportamento de evitação a situações ou estímulos que lembrem a situação traumática; hiperexcitabilidade associada a essas condições; Embotamento afetivo; Intenso e constante medo, horror e sentimento de impotência; Diminuição do interesse geral em relação às pessoas ou situações; Sintomas persistentes de ansiedade que não estavam presentes antes do trauma. Para o diagnóstico do TEPT, esses sintomas devem ocorrer em conjunto e persistir por no mínimo três meses. Muitas vezes, ocorre uma latência entre a ocorrência do evento traumático e o aparecimento dos sintomas. O indivíduo sente-se como se estivesse revivendo o evento traumático indefinidamente, o que é vulgarmente chamado de flashback. Neste momento, as sensações psíquicase físicas experimentadas são exatamente as mesmas que se teve no momento exato do trauma psicológico. Geralmente, a pessoa tende a evitar ativamente situações e conversas associadas ao evento e, adicionalmente, desenvolve um medo extremo, verdadeiro pavor, de que venha a ocorrer novamente, consigo ou com outros. Em conjunto, essas sensações acabam por diminuir significativamente seu interesse em atividades rotineiras, perde a vontade de interagir com outras pessoas ou de participar de eventos sociais. Afastando-se dos amigos e até mesmo da família, e criando um isolamento que tende a agravar não só seus sentimentos negativos com relação ao trauma; como cria novos sentimentos negativos, relacionados à solidão provocada pelo evento traumático. Além dos sintomas comportamentais mencionados, sintomas físicos também são manifestados, principalmente os associados a uma hiperativação autonômica, com profundas alterações do 37 sono, dificuldade de concentração, presença constante de palpitações, sudorese ou tremores, hipervigilância e reações exageradamente intensas de sobressalto a qualquer estímulo. Apenas a título de exemplo, abaixo está descrito um depoimento verídico de um paciente atendido pelo Ambulatório de Ansiedade, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, para exemplificar o sofrimento experimentado por quem sofre de TEPT: “Aquele dia poderia ter sido apenas mais um, mas na realidade ele mudou completamente minha vida. Estava com meu pai em um pequeno supermercado perto de casa e, quase já saíamos, quando apareceram dois indivíduos encapuzados. Foi tudo muito rápido. Apontaram suas armas para nós, que estávamos no caixa, e deram uma coronhada no dono do mercadinho para intimidá-lo. Meu pai, por puro reflexo, tentou ampará-lo e acabou levando dois tiros. Enquanto ele estava caído, sangrando muito, um dos ladrões mantinha sua arma em minha cabeça e o outro roubava. Fui levado como refém, sofrendo ameaças de morte constantes. Após rodar duas horas pela cidade e ter que sacar dinheiro em caixas eletrônicos, fui abandonado numa avenida muito longe do local onde eu estava anteriormente. Quando cheguei ao hospital meu pai já estava morto. Já faz três meses e não consigo esquecer, tenho pesadelos diários com o ocorrido ,não entro mais em supermercados, não tenho vontade de sair com meus amigos, falar a respeito de tudo aquilo me faz muito mal, começo a suar e tremer. Ultimamente, não tenho conseguido dormir direito. Passei a andar armado, tenho tido algumas visões, parecem pedaços de um filme que passam em minha mente, flashes do ocorrido. Desconfio de todos, tenho até medo de atirar em alguém suspeito” Um dado importante a ser mencionado é que o TEPT pode ser desenvolvido não somente pela pessoa que vivenciou diretamente o evento traumático. Indivíduos que tenham testemunhado um evento traumático ocorrido com terceiros, ou pessoas que tenham apenas 38 tomado conhecimento da ocorrência de um evento traumático, também podem vir a desenvolver o TEPT. No caso de eventos ocorridos diretamente à pessoa, as situações traumáticas mais freqüentemente associadas ao desenvolvimento do TEPT são: assaltos; vivência de guerras; ser vítima de atos terroristas; de seqüestro; torturas ou violência sexual; acidentes automobilísticos graves; receber notícia de estado grave de saúde; violência infantil; entre outros. Entre os estímulos eliciadores de TEPT em pessoas que tenham testemunhado o evento estão: presenciar um assassinato ou violência extrema; encontrar corpos humanos; presenciar evento traumático ocorrido com parente ou amigo íntimo. Já entre as situações que podem vir a desencadear o TEPT em pessoas que apenas tomaram conhecimento de uma situação traumática estão: saber da ocorrência de um ataque violento; sério acidente ou ferimentos graves sofridos por um membro da família ou ente querido; saber da morte súbita ou inesperada de um membro da família ou ente querido; saber da ocorrência de doença com risco de vida a filhos ou pais; entre outros. Um fator interessante é o fato de que nem todas as pessoas que vivenciaram um evento traumático acabam por desenvolver o TEPT, e essa é uma questão que tem intrigado os pesquisadores. Segundo algumas pesquisas, apenas 15 a 30% dos indivíduos que vivenciam situações traumáticas acabam desenvolvendo o TEPT. Embora ainda não se saiba exatamente o motivo disso, acredita-se que existam alguns fatores predisponentes ao desenvolvimento deste transtorno. Acredita-se que o sexo feminino apresenta maior predisposição ao TEPT, uma vez que o transtorno ocorre em uma proporção de 2:1 em relação ao sexo masculino. Além disso, outros fatores parecem contribuir ao seu aparecimento, tais como: já ter vivenciado outras situações traumáticas; ter uma história pessoal ou familiar de outros transtornos psiquiátricos; ter vivenciado história de separação precoce (seja com relação aos pais e cuidadores, sejam em relação a companheiros afetivos); ter vivenciado situações traumáticas na infância; entre outros fatores. Além disso, parecem existir alguns fatores específicos os quais dispõe o indivíduo a uma maior vulnerabilidade ou tolerância à ocorrência do TEPT, como fatores que precedem o 39 trauma (variações genéticas); fatores concomitantes ao trauma (severidade e duração); e fatores que estão presentes após o trauma (apoio social e compreensão familiar). Diferentes estudos comprovam a existência de elevadas taxas de comorbidade nas pessoas com TEPT. Indivíduos com TEPT têm duas a quatro vezes maior probabilidade de apresentar outro transtorno psiquiátrico, em relação às pessoas sem TEPT, e os mais freqüentemente observados são depressão severa, transtorno de abuso de substâncias e transtornos de personalidade. Além disso, é importante ressaltar que as pessoas com TEPT tendem a tentar o suicídio seis vezes mais do que outras pessoas, sendo o transtorno de ansiedade com a maior relação com tendências suicidas, daí sua elevada importância em termos de tratamento, apoio e acompanhamento. Outro aspecto importante em relação à vida produtiva dos indivíduos com TEPT se refere ao comprometimento no trabalho, o qual é similar ao prejuízo associado às pessoas com depressão, mas menor que o comprometimento dos indivíduos com transtorno do pânico. Esse comprometimento refere-se tanto à alta porcentagem de ausências quanto ao fato de que pacientes com TEPT tendem a se submeter a atividades profissionais que lhes pagam salários inferiores, em função do fato de se julgarem incapazes de lidar com o estresse provocado por um trabalho que lhes remunere melhor. Com relação ao tipo de tratamento deste transtorno, as abordagens psicoterapêuticas e farmacológicas são de fundamental importância, principalmente quando administradas em conjunto. O tratamento psicoterápico facilita à adesão ao tratamento farmacológico, bem como evita recidivas, e o tratamento farmacológico permite a melhora dos sintomas, para que o paciente possa se dedicar mais ao tratamento psicoterapêutico. Do ponto de vista farmacológico, diferentes categorias de medicamentos têm sido empregadas no tratamento do TEPT, na dependência da sintomatologia e das características individuais do paciente. Entre essas categorias estão: antidepressivos (como a imipramina, fluoxetina e paroxetina), benzodiazepínicos (como o diazepam) e outras drogas, embora de uso menos comum, como o topiramato e o valproato de sódio. Do ponto de vista psicoterapêutico, a técnica 40 com maiores níveis de sucesso no tratamento do TEPT tem sido a psicoterapia do tipo cognitivo- comportamental. Neste ponto, é importante ressaltar que um estudo realizado na Universidade de São Paulo. Ele mostrou por meio de investigações com neuroimagem, que
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