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As lesões teciduais que se acompanham de morte celular e/ou destruição da Matriz extracelular (MEC) sofrem um processo de cura que se dá por regeneração ou cicatrização. Na regeneração, o tecido morto é substituído por outro morfofuncionalmente idêntico; na cicatrização, um tecido neoformado, originado do estroma (conjuntivo ou glia), substitui o tecido perdido. Antes de detalharmos como acontece os processos de reparo, vale a pena destacarmos os tipos de células (lábeis, estáveis e perenes) que temos e o papel do ciclo celular nesse contexto. Ciclo celular A multiplicação celular, responsável pela formação do conjunto de células que compõem os indivíduos, é indispensável durante o desenvolvimento normal dos organismos e necessária para repor as células que morrem após seu período de vida ou por processos patológicos. A diferenciação refere-se à especialização morfológica e funcional das células que permite o desenvolvimento do organismo como um todo integrado. No seu ciclo vital, as células encontram-se em duas fases ou períodos: (1) mitose, quando as células dividem o material nuclear e fazem a citocinese; (2) intérfase, período entre duas divisões celulares. Essas fases constituem o ciclo celular. Em tecidos com renovação contínua (lábeis), encontram-se células em mitose, células nas fases G1, S e G2 e células que estão se diferenciando. Com exemplos de células lábeis temos: células hematopoieticas e células do tecido epitelial de revestimento. As células estáveis, como as hepáticas, se diferenciam e deixam o ciclo (fase G0), mantendo, no entanto, a capacidade de entrar em G1 se forem devidamente estimuladas (células quiescentes). Em tecidos perenes, as células atingem a diferenciação terminal e não mais se dividem. Se estimuladas por fatores de crescimento em quantidade elevada, podem entrar em G1 e sintetizar DNA, mas permanecem em G2 ou completam a divisão nuclear, mas sem realizar a divisão celular. Formam-se, assim, núcleos poliploides, como acontece com neurônios e células musculares estriadas ou cardíacas. A proliferação celular resulta da ação coordenada de numerosos agentes estimuladores e inibidores da divisão celular. Entre eles estão produtos das próprias células, de células vizinhas ou de células situadas a distância, além de componentes do microambiente extracelular. O balanceamento preciso dessas forças opostas em diferentes momentos funcionais é que permite manter a população celular normal. As células regulam o ciclo celular por mecanismos muito conservados na natureza, razão pela qual são semelhantes em diferentes espécies. A regulação é feita por: (1) sinais externos, chamados fatores de crescimento; (2) moléculas da própria célula capazes de: (a) perceber ameaças para a estabilidade do genoma; (b) promover o início e a progressão da divisão celular (ciclinas e CDK). Regulação da proliferação celular A proliferação celular resulta da ação coordenada de numerosos agentes estimuladores e inibidores da divisão celular. Entre eles estão produtos das próprias células, de células vizinhas ou de células situadas a distância, além de componentes do microambiente extracelular. O balanceamento preciso dessas forças opostas em diferentes momentos funcionais é que permite manter a população celular normal. Numerosas substâncias têm a propriedade de controlar a taxa de divisão celular. As mais importantes são os chamados fatores de crescimento (FC) polipeptídicos, que têm a capacidade de estimular ou de inibir a multiplicação celular. Alguns atuam em células específicas; outros agem sobre vários tipos celulares. Os FC têm papel importante na proliferação celular durante o período embrionário e na manutenção da população celular normal nos organismos adultos. Para atuarem nas células, os FC ligam-se a receptores, quase sempre localizados na membrana citoplasmática. Os fatores de crescimento atuam por mecanismo autócrino, parácrino ou endócrino. E uma das formas de cessar a divisão celular é através do fenômeno de inibição por contato. Essa atividade inibidora da mitose e dos deslocamento por contato é um processo complexo que envolve moléculas de adesão e várias outras proteínas a elas associadas. Toda essa parte introdutória foi necessária para comprender como acontece os processos de reparo celular. Dessa forma, abordaremos: (1) Regeneração, (2) Cicatrização e (3) Fibrose. (1) Regeneração: Em humanos, a regeneração de tecidos adultos ocorre facilmente em órgãos com células que se renovam continuamente, como os epitélios de revestimento e a medula óssea. Ela acontece quando não existe uma grande destruição da matriz extracelular, sendo possível a restituição morfofuncional completa. No fígado, a regeneração completa é a regra após pequenas lesões destrutivas, desde que haja preservação do estroma reticular. A regeneração pode ser feita a partir de hepatócitos ou do epitélio biliar diferenciado, especialmente em agressões agudas. Após agressões agudas, a regeneração de hepatócitos depende de fatores de crescimento liberados por células inflamatórias que migram para o local onde as células morreram ou por células vizinhas estimuladas por diferentes citocinas geradas na inflamação – TNF-α e IL-6 são fundamentais para iniciar o processo. Os receptores dessas citocinas, uma vez ativados nos hepatócitos vizinhos aos que morreram, ativam fatores de transcrição que estimulam genes para receptores de EGF, IGF e HGF. Esses receptores estimulam os hepatócitos a entrar em G1 e a progredir no ciclo celular. Em agressões crônicas, em que muitos hepatócitos estão sem condições de entrar em mitose, são acionadas células progenitoras e células-tronco residentes ou vindas da circulação, que entram em proliferação e se diferenciam em hepatócitos. Se a destruição celular afeta apenas pequeno número de hepatócitos, as células vizinhas são estimuladas e entram em mitose, ocupando o lugar das que desapareceram. Se a necrose é mais extensa, o estroma reticular sofre colapso. O colapso da trama reticular impede a reorganização da arquitetura lobular, resultando na formação de nódulos regenerativos, com trabéculas espessas, com mais de dois hepatócitos, e com arquitetura vascular alterada. (2) Cicatrização: Cicatrização é o processo no qual um tecido lesado é substituído por um tecido conjuntivo vascularizado, sendo semelhante quer a lesão tenha sido traumática ou causada por morte celular. Em ambos os casos, o primeiro passo é a instalação de uma reação inflamatória, cujo exsudato de células fagocitárias reabsorve o sangue extravasado e os produtos da destruição tecidual. Em seguida, há proliferação fibroblástica e endotelial que forma o tecido conjuntivo cicatricial. Posteriormente, o tecido cicatricial sofre remodelação, que resulta em diminuição de volume da cicatriz, podendo haver até seu desaparecimento. Para exemplificar o fenômeno, será descrita a cicatrização de uma ferida na pele em duas circunstâncias: (1) ferida cujas bordas foram aproximadas por sutura e que não tenha sido infectada; (2) ferida mais ampla, com bordas afastadas ou que tenha sido infectada. No primeiro caso, a cicatrização é denominada (a) primária ou por primeira intenção; no segundo, (b) secundária ou por segunda intenção. (a) Cicatrização primária: É mais rápida e forma cicatriz menor, visto que a fenda da ferida é mais estreita e a destruição tecidual nas suas bordas é menor. O exemplo clássico é o de feridas cirúrgicas, em que o sangue extravasado pelo corte forma um coágulo que ocupa o espaço entre as margens da ferida. Podemos destacar que a cicatrização passa pelas seguintes fases: inflamatória, proliferação, maturação e remodelamento. A reação inflamatória instala-se a partir da liberação de mediadores originados do coágulo de fibrina, das células aprisionadas no coágulo,do tecido conjuntivo das bordas da ferida e das células epiteliais na margem da lesão. Citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-1 e TNF-α) são liberadas por macrófagos do coágulo e por ceratinócitos da margem da lesão. Tais citocinas ativam as células endoteliais, que expõem moléculas de adesão (ICAM, VCAM, selectinas), favorecendo a adesão de leucócitos. A migração de leucócitos para a área ocupada pelo coágulo e para a MEC nas bordas da ferida depende da liberação de agentes quimiotáticos: nas primeiras horas, há migração maciça de neutrófilos por ação de fatores quimiotáticos gerados a partir da fibrina. A partir de 18h, há grande produção de quimiocinas, que recrutam linfócitos, os quais predominam no exsudato após 1 semana. Os leucócitos fagocitam o coágulo, iniciando-se a produção do tecido conjuntivo cicatricial e a regeneração do epitélio. A proliferação de fibroblastos e a ativação de componentes da MEC são feitas por TGF-β e PDGF, sintetizados e liberados por macrófagos e linfócitos exsudados. Os fibroblastos proliferam, deslocam-se e depositam componentes da matriz, inicialmente com grande quantidade de poliglicanos (ácido hialurônico) e de colágeno do tipo III. Os fatores de crescimento VEGF, FGF e PDGF e a citocina TNF-α atuam sobre células endoteliais, que aumentam a expressão de receptores para VEGF. A estimulação destes induz a proliferação de células endoteliais. Estas, proliferadas, produzem metaloproteases (que digerem a membrana basal). As células endoteliais começam a proliferar, então vai havendo a formação de um tecido conjuntivo frouxo, rico em capilares sanguíneos e contendo leucócitos e matriz extracelular formada por fibras colágenas finas (colágeno do tipo III), ácido hialurônico e quantidade moderada de proteoglicanos, e esse conjunto recebe o nome de tecido de granulação. Macroscopicamente, este tecido tem coloração rósea e aspecto granuloso. Cerca de cinco dias após a sutura, o tecido de granulação preenche todo o espaço da ferida, e o epitélio da epiderme adquire sua espessura normal. Ainda durante sua formação, começa a remodelação do tecido cicatricial. A quantidade de colágeno aumenta com o tempo, e, por volta de duas semanas, suas fibras passam a predominar na matriz extracelular. Ao mesmo tempo, começa a haver redução na síntese de glicosaminoglicanos, especialmente do ácido hialurônico. O colágeno do tipo I passa a predominar em relação ao tipo III, e as fibras colágenas tornam-se mais grossas e compactas, comprimindo os capilares e reduzindo seu número. As células fagocitárias vão desaparecendo (por apoptose), e o tecido de granulação passa a ser constituído por um tecido conjuntivo progressivamente mais denso e menos vascularizado, situado logo abaixo da epiderme regenerada. Progressivamente, aumentam as ligações transversais nas moléculas de colágeno. Os fibroblastos sintetizam actina, tornam-se contráteis e adquirem o fenótipo de miofibroblastos, importantes no processo de retração da cicatriz e de aproximação das bordas da ferida. Apesar de estar consolidada por volta de 10 dias, a cicatriz leva algumas semanas para completar sua remodelação e adquirir resistência máxima. A substituição de colágeno do tipo III por colágeno do tipo I e as modificações de proteínas não colágenas da parte amorfa devem-se ao controle na síntese e na degradação desses componentes por metaloproteases. O processo de cicatrização é controlado, portanto, por vários fatores de crescimento e citocinas sintetizados por macrófagos, plaquetas, células endoteliais e linfócitos T, além daqueles produzidos após a ação de proteases na MEC. A maior ou menor velocidade de cicatrização, o tamanho da cicatriz e a sua maior ou menor retração dependem da quantidade e da qualidade de citocinas e de fatores de crescimento produzidos durante o processo. O equilíbrio entre síntese e degradação da MEC é fundamental para uma cicatrização normal. (b) Cicatrização secundária: Quando a ferida é extensa e tem margens afastadas, forma-se um grande coágulo. Se ocorre infecção, surge reação inflamatória exuberante. Nos dois casos, a exsudação de fagócitos é muito intensa e forma-se abundante tecido de granulação. Como as bordas da ferida são distantes, a regeneração da epiderme é mais lenta e demora mais tempo para se completar. Nas fases iniciais, o tecido de granulação faz saliência na superfície da ferida. Com o passar do tempo, ele sofre as mesmas transformações descritas na cicatrização por primeira intenção, sendo muito mais intenso e evidenciável o fenômeno de retração da cicatriz por miofibroblastos (a transformação de fibroblastos em miofibroblastos é muito mais frequente nesse tipo de cicatrização). Fatores que influenciam a cicatrização. A cicatrização é influenciada por fatores locais e sistêmicos que podem reduzir, retardar ou impedir o processo. Eles podem ser: (a) locais ou (b) sistêmicos. (a) Locais: isquemia local, por lesões vasculares ou por compreensão de vasos, além de diminuir o aporte de nutrientes para a MEC, reduz a síntese de colágeno e o pH, aumentando a quantidade de catabólicos. E isso retarda ou impede a cicatrização. Ex: úlcera de decúbitos que ocorrem em pacientes acamados. (b) Fatores sistêmicos: Paciente diabético tem cicatrização deficiente por causas das lesões vasculares (hipóxia), formando produtos de glicação avançada (AGE). Células endoteliais, fibroblastos e macrófagos têm receptores específicos (receptores RAGE) para glicoproteínas hiperglicadas (AGE). Quando ativados, tais receptores induzem citocinas pró-inflamatórias e proteases e diminui a expressão de moléculas antiinflamatórias favorecendo a ampliação da lesão inflamatória nos processos cicatriciais, o que dificulta a cicatrização. Outro exemplo é o tabagismo que pode prejudicar a cicatrização por causa da vasoconstrição provocada pela nicotina e dos efeitos antiinflamatórios do monóxido de carbono. Cicatrização hipertrófica e Quelóide. Cicatrização hipertrófica e queloide são duas condições em que há formação excessiva de tecido conjuntivo denso em cicatriz cutânea, podendo adquirir volume considerável. A cicatriz hipertrófica tende a ser reversível, regredindo parcialmente com o passar do tempo. O queloide forma tumorações nas áreas de cicatrização, mesmo em feridas pequenas, podendo não regredir ou ter regressão muito lenta. Nos dois casos, o aspecto microscópico é semelhante: as fibras colágenas são irregulares, grossas, e formam feixes distribuídos ao acaso, contendo capilares e fibroblastos em maior número do que uma cicatriz normal. Essas duas lesões são mais frequentes em jovens negros ou amarelos, mas não se conhece o defeito que leva ao descontrole da síntese do colágeno nos dois processos. Trata-se de situações em que os mecanismos de produção estão exacerbados e/ou os mecanismos de degradação da MEC estão reduzidos. (3) Fibroses: são condições em que há aumento do estroma conjuntivo de um órgão resultante de cicatrização ou de um processo reacional em que a produção de MEC não está relacionada com o reparo de lesões. Mecanismos gerais de fibrose: A primeira fase de uma fibrose é a resposta inflamatória, na qual são liberados citocinas e fatores de crescimento que desencadeiam a formação excessiva de MEC. Nem sempre o processo inflamatório é bem evidente, como ocorre em agressões difusas por agentes infecciosos (vírus, parasitos). Em muitas circunstâncias, agressão física ou química gera radicais livres, que, ao agredirem células e o estroma, induzem a liberação de citocinas e de fatores de crescimento. Todos os componentes do órgão participam do processo de fibrose, contribuindo para produção aumentada de MEC. Em cada órgão, no entanto, as células mais envolvidas na síntese e deposição de matriz podem variar. Na fibrose hepática, por exemplo, ascélulas que sintetizam MEC podem ter diferentes origens: fibroblastos residentes, células estreladas ou pericitos existentes em torno de capilares e vênulas menores; células precursoras vindas da circulação (células-tronco multipotentes ou células mesenquimais indiferenciadas). Os fatores que estimulam a proliferação, a diferenciação e a ativação de miofobroblastos são numerosos. Algumas citocinas (IL-1, TNF-α, IL-6, PDGF, IL-4 e IL- 13) e quimiocinas (CCL2, CCL4) são importantes na indução de receptores para fatores de crescimento que induzem a proliferação e o deslocamento de miofibroblastos (ou seus precursores). A IL-13 e a IL-4 têm papel em fibroses associadas a inflamações granulomatosas com ativação de linfócitos Th2, como a esquistossomose mansônica, mas são menos importantes em fibroses associadas a inflamações granulomatosas dependentes de estimulação de linfócitos Th1, como a tuberculose. Um fator importante na evolução da fibrose é o balanço entre estímulos fibrogênicos e fibrolíticos. Metaloproteases são liberadas por leucócitos exsudados em inflamações ou por células residentes. Macrófagos e miofibroblastos as liberam em grande quantidade, mas outras células, inclusive células parenquimatosas e endoteliais, também as produzem. Conclusão: Conclui-se que a habilidade em reparar a lesão causada por lesões tóxicas e inflamação é crítica para a sobrevivência de um organismo. A resposta inflamatória não serve apenas para eliminar os causadores da agressão, mas também inicia o processo de reparo, sendo os principais: regeneração e cicatrização.