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Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 91 tes, define-se pela duração. Enquanto a transmissão se define pelo presente do ato da Performance. Nas longas durações a tra- dição constitui-se um ato de memória em que toda palavra tem haver com algo que já foi dito. A transmissão tem a ver com as circunstâncias que dependem do orador e do seu ouvinte, em que o algo já dito parece uma frase primeira, saída da cabeça e do coração de uma mente única e insubstituível. De acordo com o esquema de Paul Zumthor o ciclo entre tradição e transmissão obedece à sistemática de cinco fases in- terligadas: 1-Produção; 2- Comunicação; 3- Recepção; 4- Con- servação; 5- Repetição. Dentro desse ciclo, a tradição fica res- ponsável pela produção, pela conservação e pelos ritos e atos da repetição, que por sua vez retroalimentam a tradição. Os atos de comunicação e recepção se encarregam mais diretamente da transmissão, embora todas as fases estejam interconectadas, visto que a recepção depende de uma repetição, a comunicação de uma produção e assim recursivamente. Os congressos e as cantorias de Violeiros de Itapetim, as rodas de prosa, as rodas de glosa, até mesmo as conversas de rua estão banhadas por essa difusão vocal e poética. Conse- quentemente, o evento de comemoração ao Centenário de Cancão1 assegurou a mesma lógica de Produção, Comunicação, Recepção, Conservação e Recepção, que contribuiu para imor- talizar a grandeza de uma cultura e de um dos seus expoentes, Cancão: “Homem modesto e cheio de poesia [que] construiu em si elos e abrangências que o norteavam no mundo encantado do verso, o tor- naram figura amada, respeitada, dada a introspecções e circunspecções ampla” (LEÃO, 2012, p.12). Em uma palavra, o homem que realizou em si o elo da tradição, da poesia, da oralidade e da imortalidade. Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 92 4. Tipos de Oralidade Amiúde, a oralidade é vista como inferior à escritura. Em sua acepção mais comum, a oralidade é classificada por uma ausên- cia, ela é negativamente conceituada como ausência de escrita. De fato, em algum momento da história da humanidade a orali- dade precedeu o uso de códigos escritos. No entanto, a própria racionalidade é devedora do surgimento da linguagem oral. Nos dias de hoje, oralidade e escritura estão presentes uma na outra, e não somente a tradição como a própria ciência tem se benefi- ciado dessa interdependência. Aliás, esse é um dos laços onde ciência e tradição podem se cruzarem e se reconhecerem. Maria da Conceição de Almeida que estudou a complexida- de entre os saberes da tradição e os saberes científicos alerta para esse diálogo fundamental entre as duas matrizes que pre- sidem o nosso modo de conhecer o mundo: De fato, grande parte da história da ciên- cia e da técnica se beneficiou desse diálogo que pode ser fecundo até os dias de hoje. A fertilidade desse diálogo requer, entretan- to, que não se reduza um saber ao outro, que não se valide um, por critérios estipu- lados pelo outro, uma vez que tratam de estratégias distintas de pensar o mundo (ALMEIDA, 2010, p. 120-121). Restaria reduzir esta oposição e entender os meandros que entrelaçam essas duas estratégias de leitura e produção de sa- beres. Recorrendo, mais uma vez, ao estudioso Paul Zumthor Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 93 (2010; 1993) entendemos que a oralidade se subdivide em di- ferentes tipos, conforme seu diálogo com a escrita. Apenas um primeiro tipo de oralidade que é primária e imediata não por- taria contato com as escrituras, essa poderia ser identificada na linguagem primitiva, infantil ou de alguns grupos sociais em que predominaria o analfabetismo. Um segundo tipo, mais complexo, seria o da oralidade mista, quando há influência do escrito. E, por fim, a oralidade segunda, que seria uma recom- posição da escritura. De maneira geral, a oralidade mista pro- cede de cultura oral e a segunda, de uma cultura letrada. Observando a coletânea de obras de Cancão , vemos que 2 grande parte de sua obra tem registros na escritura. Ao todo o registro escrito é composto pelos livros Musa Sertaneja (1967), Flores do Pajeú (1969) e Meu Lugarejo (1979). Além da cole- tânea recentemente organizada por Lindoaldo Vieira Campos, Palavras ao Plenilúnio (2007). Contudo, a importância do ins- trumento escrito não é crucial para a vida e obra do poeta, os versos que impulsionam sua criação vibraram dos presságios das chuvas da poesia oral, das vivências e expressões da tra- dição sertaneja, “pajeuzeira”, das paixões e desilusões da vida vivida e nunca encontrada nas páginas dos livros. Seus escritos são provenientes de manuscritos, de registros fonográficos. Hoje podem ser lidos ao infinito, mas reverberam das recitações diárias. Os versos de Cancão, que ainda ensaiou ser um repentista, convivem com os versos da tradição oral que alimenta a memória dos poetas de ontem e de hoje. As sutile- zas desse canto começaram a ser moldadas nas ruas, nas mesas de bares, nas conversas com os amigos, e foi de lá que saiu para a boca e os hálitos que perfumam e encantam o Pajeú. Em vez de ruptura, a obra de Cancão resguarda a passagem Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 94 do oral para o escrito e manifesta de forma primorosa os dois modos de comunicação. Nossa civilização tecnológica, assim como a cultura acadêmica, dominada pelos mitos da cultura escrita, tendem a desconhecer essa relação e ocultar os valores da voz, como se a cultura oral estivesse condenada ao inacaba- mento, ao isolamento e aos limites da comunicação de peque- nos grupos. A poesia de Cancão está baseada na coexistência da oralidade e da escrita, de uma longa onda sonora de poemas orais que a antecederam e, um terreno profícuo que, apesar da escrita, sobrevivera na voz de declamadores de qualquer oca- sião. De modo profundo, o que deve ter favorecido a sua escrita foi a relação estreita que ele mantinha com os livros e com as vozes: as vozes de seus ancestrais, as vozes de seus conterrâne- os, a sua própria voz interior, as vozes da natureza. 5. Poeta Pássaro do Saber DIAS DE OUTONO3 (...) Canta contente o carão Na fronde do cajueiro Depois faz voo ligeiro Pra longínqua região Grita alto o gavião Do sol gozando o afago Que do firmamento vago Envia pomos de luz Dourando as asas azuis Das borboletas do lago (...) Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 95 Através de seus versos, constatamos que Cancão tem uma convivência íntima com outros sistemas leitores do mundo. As- sim compreendemos que seu exercício de escuta não se reduz à linguagem da cultura expressa por meio de palavras. Nota-se que o poeta fazia uma leitura sensível e uma escuta apurada da linguagem da natureza. De acordo com Maria da Conceição Almeida (2010) existem três níveis de conhecimento do mundo. O primeiro é o anterior ao homem, antecede-o a existência material do planeta e está organicamente ligado à natureza. O segundo, é humano e opera por meio deuma escala próxima com o meio ambiente. Aqui estariam localizados os conhecimentos tradicionais “sabedorias edificadas longe dos bancos escolares e da educação formal”4. Num terceiro nível, estariam os saberes científicos que se cons- tituem enquanto projeto civilizacional marcado pela exclusão dos saberes milenares da tradição. A proposta da autora consis- te num apelo à construção de um modelo de compreensão do mundo que religue, integre a universalidade da condição huma- na. Nesse sentido, os intelectuais da tradição teriam privilégio de dialogar com essa lógica do saber integrador: Por conviver com intimidade com outros sistemas leitores do mundo, por desen- volver uma escuta e uma visão apurada dos fenômenos físicos do comportamen- to dos animais, das plantas e das dinâmi- cas climáticas, os intelectuais da tradição parecem perceber com mais facilidade e nitidez dialógica entre a diversidade da natureza e a unidade do padrão que in- terliga (ALMEIDA, 2010, p.75). Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 96 Esse novo padrão de conhecimento pode ser denominado de ecologia do conhecimento (ALMEIDA), ecologia da ação (MORIN) que promove uma crítica à ciência e um apelo a uma concepção solidária à diversidade epistemológica do mundo. Nesta perspectiva, todos os conhecimentos são resultados de práticas socialmente organizadas envolvendo recursos intelec- tuais de diferentes tipos e vinculados a contextos e situações. A partir dessa definição convém reconhecer o poeta Cancão como um intelectual da natureza e da cultura, subvertendo a ideia de intelectual como sinônimo de cientista ou acadêmico. Nos versos a seguir podemos ver o intelectual como observa- dor atento do mundo a sua volta: TEMPESTADE5 Pairava ainda nas ramas Do sol o clarão dourado Como as derradeiras chamas Dum vulcão ensanguentado A ventania arrojada Rugia desesperada Com uma fúria espantosa Os relâmpagos chispavam E qual lâminas cortavam A nuvem tempestuosa As nuvens surgiam densas Por todo lado da serra Como montanhas suspensas Com fímbrias da cor da terra Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 97 A terrível saraivada Caía tão arrojada Parecia um desespero O zigue-zague em seu jogo Fingia cobras de fogo Brigando no nevoeiro (...) O poeta enquanto intelectual é um artista do pensamen- to. Por sua vez, enquanto intelectual da tradição transforma as vivências cotidianas inserindo-as num campo maior de trans- missão/persuasão. A beleza estética, visual e sonora dos versos de Cancão torna-os capazes de dialogar com outros contextos, próximos e distantes, transformando o barro bruto da natureza em matéria lapidada. Ao contrário, em seu diálogo com o mundo, a ciência sempre viu a natureza como lugar da exterioridade (SANTOS, 2004). Do mesmo modo, foram classificadas as culturas locais, e os saberes tradicionais. Em ambos os casos, o exterior é também inferior. Essa estratégia de conhecimento é basicamente uma es- tratégia de poder e dominação. Por este motivo o conhecimento científico nem sempre detém o essencial imanente à sabedoria. Por seu turno, as imagens metafóricas e metafísicas criadas nos versos de Cancão, legitimam-no enquanto sensível leitor/ ouvinte da natureza/cultura. A polifonia de seus versos tornam vivos os quadros da natureza enquanto elementos ativos das forças de reflexão e percepção do mundo, da vida e da cultura. No poema Terreiro da Fazenda, Cancão está atento para o zunir da terra e da oralidade, fazendo dialogar fenômenos físicos e sistema de valores: Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 98 NO TERREIRO DA FAZENDA6 Grata zona sertaneja Meiga, pura e benfazeja Salve a brisa que beija Terra nossa, nossa prenda Pajeú, os teus encantos Sugerem poemas santos Risos, emoções e prantos No terreiro da fazenda Que belas filosofias Douradas de fantasias Um recita poesias Já outro, conta uma lenda Tudo traz tranquilidade, União, felicidade, Amor e fraternidade No terreiro da fazenda Quando a noite vai baixando Vênus vai se apresentando Parece que vem sonhando Num leito de seda e renda A Lua conta uma história Ao registrar sua glória Tem que ficar por memória No terreiro da fazenda (...) Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:47:40 99 Em suas entrâncias, o sistema leitor do poeta perpassa a ana- logia do mundo natural como explicação e percepção do mundo da cultura. Assim o Pajeú tem uma brisa que o beija e é também terra pura, meiga e benfazeja, é no meio desses encantos que surgem os poemas. Num terreiro de fazenda tudo traz união e tranquilidade, porque nele são contadas lendas, recitadas poe- sias e também as douradas fantasias de belas filosofias. Lá tam- bém a lua conta uma história e por isso ela é gloriosa e ficará para memória, nas lembranças sensíveis do terreiro da fazenda. Nos versos citados, os bichos e os boatos correm nos terrei- ros. Com mesma ressonância, o conto de um ancião exerce o estalo comparável ao canto de um galo, a correria de um cavalo e um atrito de moenda, qual se os sons da natureza e da voz humana obedecessem às mesmas leis da física. Almeida (2010) chama atenção para o fato de que os mo- delos de correspondência usados pelos saberes não científicos usam abundantemente as analogia e caracterizam estratégias de pensar o mundo que interconectam atributos advindos de domínios diferentes, ao mesmo tempo que permitem “cons- telar semelhanças entre domínios expressamente desseme- lhantes”7. Para a autora esse é um método de pensamento que estabelece como procedimento cognitivo a religação que dis- tingue, mas não opõe. Ademais, a autora defende que o uso de analogias é consequência de um estado de espírito atento a tudo o que vê. Assim a analogia deixa de ser apenas um recurso da linguagem poética e passa a ser um dos modos de construção dos conhecimentos das tradições, sendo os seus portadores o poeta e o intelectual, respectiva e simultanea- mente. Com Cancão, o poeta pássaro, aprendemos a escuta e a lógica do sensível: Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. 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