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Livro Cancão _ Passei Direto10

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tes, define-se pela duração. Enquanto a transmissão se define 
pelo presente do ato da Performance. Nas longas durações a tra-
dição constitui-se um ato de memória em que toda palavra tem 
haver com algo que já foi dito. A transmissão tem a ver com as 
circunstâncias que dependem do orador e do seu ouvinte, em 
que o algo já dito parece uma frase primeira, saída da cabeça e 
do coração de uma mente única e insubstituível.
De acordo com o esquema de Paul Zumthor o ciclo entre 
tradição e transmissão obedece à sistemática de cinco fases in-
terligadas: 1-Produção; 2- Comunicação; 3- Recepção; 4- Con-
servação; 5- Repetição. Dentro desse ciclo, a tradição fica res-
ponsável pela produção, pela conservação e pelos ritos e atos da 
repetição, que por sua vez retroalimentam a tradição. Os atos 
de comunicação e recepção se encarregam mais diretamente da 
transmissão, embora todas as fases estejam interconectadas, 
visto que a recepção depende de uma repetição, a comunicação 
de uma produção e assim recursivamente.
Os congressos e as cantorias de Violeiros de Itapetim, as 
rodas de prosa, as rodas de glosa, até mesmo as conversas de 
rua estão banhadas por essa difusão vocal e poética. Conse-
quentemente, o evento de comemoração ao Centenário de 
Cancão1 assegurou a mesma lógica de Produção, Comunicação, 
Recepção, Conservação e Recepção, que contribuiu para imor-
talizar a grandeza de uma cultura e de um dos seus expoentes, 
Cancão: “Homem modesto e cheio de poesia [que] construiu em si elos 
e abrangências que o norteavam no mundo encantado do verso, o tor-
naram figura amada, respeitada, dada a introspecções e circunspecções 
ampla” (LEÃO, 2012, p.12). Em uma palavra, o homem que 
realizou em si o elo da tradição, da poesia, da oralidade e da 
imortalidade. 
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4. Tipos de Oralidade
Amiúde, a oralidade é vista como inferior à escritura. Em sua 
acepção mais comum, a oralidade é classificada por uma ausên-
cia, ela é negativamente conceituada como ausência de escrita. 
De fato, em algum momento da história da humanidade a orali-
dade precedeu o uso de códigos escritos. No entanto, a própria 
racionalidade é devedora do surgimento da linguagem oral. Nos 
dias de hoje, oralidade e escritura estão presentes uma na outra, 
e não somente a tradição como a própria ciência tem se benefi-
ciado dessa interdependência. Aliás, esse é um dos laços onde 
ciência e tradição podem se cruzarem e se reconhecerem.
Maria da Conceição de Almeida que estudou a complexida-
de entre os saberes da tradição e os saberes científicos alerta 
para esse diálogo fundamental entre as duas matrizes que pre-
sidem o nosso modo de conhecer o mundo:
De fato, grande parte da história da ciên-
cia e da técnica se beneficiou desse diálogo 
que pode ser fecundo até os dias de hoje. A 
fertilidade desse diálogo requer, entretan-
to, que não se reduza um saber ao outro, 
que não se valide um, por critérios estipu-
lados pelo outro, uma vez que tratam de 
estratégias distintas de pensar o mundo 
(ALMEIDA, 2010, p. 120-121).
 
Restaria reduzir esta oposição e entender os meandros que 
entrelaçam essas duas estratégias de leitura e produção de sa-
beres. Recorrendo, mais uma vez, ao estudioso Paul Zumthor 
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(2010; 1993) entendemos que a oralidade se subdivide em di-
ferentes tipos, conforme seu diálogo com a escrita. Apenas um 
primeiro tipo de oralidade que é primária e imediata não por-
taria contato com as escrituras, essa poderia ser identificada 
na linguagem primitiva, infantil ou de alguns grupos sociais 
em que predominaria o analfabetismo. Um segundo tipo, mais 
complexo, seria o da oralidade mista, quando há influência do 
escrito. E, por fim, a oralidade segunda, que seria uma recom-
posição da escritura. De maneira geral, a oralidade mista pro-
cede de cultura oral e a segunda, de uma cultura letrada.
Observando a coletânea de obras de Cancão , vemos que 2
grande parte de sua obra tem registros na escritura. Ao todo o 
registro escrito é composto pelos livros Musa Sertaneja (1967), 
Flores do Pajeú (1969) e Meu Lugarejo (1979). Além da cole-
tânea recentemente organizada por Lindoaldo Vieira Campos, 
Palavras ao Plenilúnio (2007). Contudo, a importância do ins-
trumento escrito não é crucial para a vida e obra do poeta, os 
versos que impulsionam sua criação vibraram dos presságios 
das chuvas da poesia oral, das vivências e expressões da tra-
dição sertaneja, “pajeuzeira”, das paixões e desilusões da vida 
vivida e nunca encontrada nas páginas dos livros.
Seus escritos são provenientes de manuscritos, de registros 
fonográficos. Hoje podem ser lidos ao infinito, mas reverberam 
das recitações diárias. Os versos de Cancão, que ainda ensaiou 
ser um repentista, convivem com os versos da tradição oral que 
alimenta a memória dos poetas de ontem e de hoje. As sutile-
zas desse canto começaram a ser moldadas nas ruas, nas mesas 
de bares, nas conversas com os amigos, e foi de lá que saiu para 
a boca e os hálitos que perfumam e encantam o Pajeú.
Em vez de ruptura, a obra de Cancão resguarda a passagem 
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do oral para o escrito e manifesta de forma primorosa os dois 
modos de comunicação. Nossa civilização tecnológica, assim 
como a cultura acadêmica, dominada pelos mitos da cultura 
escrita, tendem a desconhecer essa relação e ocultar os valores 
da voz, como se a cultura oral estivesse condenada ao inacaba-
mento, ao isolamento e aos limites da comunicação de peque-
nos grupos. A poesia de Cancão está baseada na coexistência 
da oralidade e da escrita, de uma longa onda sonora de poemas 
orais que a antecederam e, um terreno profícuo que, apesar da 
escrita, sobrevivera na voz de declamadores de qualquer oca-
sião. De modo profundo, o que deve ter favorecido a sua escrita 
foi a relação estreita que ele mantinha com os livros e com as 
vozes: as vozes de seus ancestrais, as vozes de seus conterrâne-
os, a sua própria voz interior, as vozes da natureza.
5. Poeta Pássaro do Saber
DIAS DE OUTONO3
(...)
Canta contente o carão
Na fronde do cajueiro
Depois faz voo ligeiro
Pra longínqua região
Grita alto o gavião
Do sol gozando o afago
Que do firmamento vago
Envia pomos de luz
Dourando as asas azuis
Das borboletas do lago
(...)
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Através de seus versos, constatamos que Cancão tem uma 
convivência íntima com outros sistemas leitores do mundo. As-
sim compreendemos que seu exercício de escuta não se reduz 
à linguagem da cultura expressa por meio de palavras. Nota-se 
que o poeta fazia uma leitura sensível e uma escuta apurada da 
linguagem da natureza.
De acordo com Maria da Conceição Almeida (2010) existem 
três níveis de conhecimento do mundo. O primeiro é o anterior 
ao homem, antecede-o a existência material do planeta e está 
organicamente ligado à natureza. O segundo, é humano e opera 
por meio deuma escala próxima com o meio ambiente. Aqui 
estariam localizados os conhecimentos tradicionais “sabedorias 
edificadas longe dos bancos escolares e da educação formal”4. 
Num terceiro nível, estariam os saberes científicos que se cons-
tituem enquanto projeto civilizacional marcado pela exclusão 
dos saberes milenares da tradição. A proposta da autora consis-
te num apelo à construção de um modelo de compreensão do 
mundo que religue, integre a universalidade da condição huma-
na. Nesse sentido, os intelectuais da tradição teriam privilégio 
de dialogar com essa lógica do saber integrador:
Por conviver com intimidade com outros 
sistemas leitores do mundo, por desen-
volver uma escuta e uma visão apurada 
dos fenômenos físicos do comportamen-
to dos animais, das plantas e das dinâmi-
cas climáticas, os intelectuais da tradição 
parecem perceber com mais facilidade e 
nitidez dialógica entre a diversidade da 
natureza e a unidade do padrão que in-
terliga (ALMEIDA, 2010, p.75).
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Esse novo padrão de conhecimento pode ser denominado 
de ecologia do conhecimento (ALMEIDA), ecologia da ação 
(MORIN) que promove uma crítica à ciência e um apelo a uma 
concepção solidária à diversidade epistemológica do mundo. 
Nesta perspectiva, todos os conhecimentos são resultados de 
práticas socialmente organizadas envolvendo recursos intelec-
tuais de diferentes tipos e vinculados a contextos e situações. 
A partir dessa definição convém reconhecer o poeta Cancão 
como um intelectual da natureza e da cultura, subvertendo a 
ideia de intelectual como sinônimo de cientista ou acadêmico. 
Nos versos a seguir podemos ver o intelectual como observa-
dor atento do mundo a sua volta:
 
TEMPESTADE5
Pairava ainda nas ramas
Do sol o clarão dourado
Como as derradeiras chamas
Dum vulcão ensanguentado
A ventania arrojada
Rugia desesperada
Com uma fúria espantosa
Os relâmpagos chispavam
E qual lâminas cortavam
A nuvem tempestuosa
As nuvens surgiam densas
Por todo lado da serra
Como montanhas suspensas
Com fímbrias da cor da terra
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A terrível saraivada
Caía tão arrojada
Parecia um desespero
O zigue-zague em seu jogo
Fingia cobras de fogo
Brigando no nevoeiro
(...)
 
O poeta enquanto intelectual é um artista do pensamen-
to. Por sua vez, enquanto intelectual da tradição transforma as 
vivências cotidianas inserindo-as num campo maior de trans-
missão/persuasão. A beleza estética, visual e sonora dos versos 
de Cancão torna-os capazes de dialogar com outros contextos, 
próximos e distantes, transformando o barro bruto da natureza 
em matéria lapidada. 
Ao contrário, em seu diálogo com o mundo, a ciência sempre 
viu a natureza como lugar da exterioridade (SANTOS, 2004). 
Do mesmo modo, foram classificadas as culturas locais, e os 
saberes tradicionais. Em ambos os casos, o exterior é também 
inferior. Essa estratégia de conhecimento é basicamente uma es-
tratégia de poder e dominação. Por este motivo o conhecimento 
científico nem sempre detém o essencial imanente à sabedoria.
Por seu turno, as imagens metafóricas e metafísicas criadas 
nos versos de Cancão, legitimam-no enquanto sensível leitor/
ouvinte da natureza/cultura. A polifonia de seus versos tornam 
vivos os quadros da natureza enquanto elementos ativos das 
forças de reflexão e percepção do mundo, da vida e da cultura. 
No poema Terreiro da Fazenda, Cancão está atento para o zunir 
da terra e da oralidade, fazendo dialogar fenômenos físicos e 
sistema de valores:
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 NO TERREIRO DA FAZENDA6
Grata zona sertaneja
Meiga, pura e benfazeja
Salve a brisa que beija
Terra nossa, nossa prenda
Pajeú, os teus encantos
Sugerem poemas santos
Risos, emoções e prantos
No terreiro da fazenda
Que belas filosofias
Douradas de fantasias
Um recita poesias
Já outro, conta uma lenda
Tudo traz tranquilidade, 
União, felicidade,
Amor e fraternidade
No terreiro da fazenda
Quando a noite vai baixando
Vênus vai se apresentando
Parece que vem sonhando
Num leito de seda e renda
A Lua conta uma história
Ao registrar sua glória
Tem que ficar por memória
No terreiro da fazenda
(...)
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Em suas entrâncias, o sistema leitor do poeta perpassa a ana-
logia do mundo natural como explicação e percepção do mundo 
da cultura. Assim o Pajeú tem uma brisa que o beija e é também 
terra pura, meiga e benfazeja, é no meio desses encantos que 
surgem os poemas. Num terreiro de fazenda tudo traz união e 
tranquilidade, porque nele são contadas lendas, recitadas poe-
sias e também as douradas fantasias de belas filosofias. Lá tam-
bém a lua conta uma história e por isso ela é gloriosa e ficará 
para memória, nas lembranças sensíveis do terreiro da fazenda.
Nos versos citados, os bichos e os boatos correm nos terrei-
ros. Com mesma ressonância, o conto de um ancião exerce o 
estalo comparável ao canto de um galo, a correria de um cavalo 
e um atrito de moenda, qual se os sons da natureza e da voz 
humana obedecessem às mesmas leis da física.
Almeida (2010) chama atenção para o fato de que os mo-
delos de correspondência usados pelos saberes não científicos 
usam abundantemente as analogia e caracterizam estratégias 
de pensar o mundo que interconectam atributos advindos de 
domínios diferentes, ao mesmo tempo que permitem “cons-
telar semelhanças entre domínios expressamente desseme-
lhantes”7. Para a autora esse é um método de pensamento que 
estabelece como procedimento cognitivo a religação que dis-
tingue, mas não opõe. Ademais, a autora defende que o uso 
de analogias é consequência de um estado de espírito atento 
a tudo o que vê. Assim a analogia deixa de ser apenas um 
recurso da linguagem poética e passa a ser um dos modos de 
construção dos conhecimentos das tradições, sendo os seus 
portadores o poeta e o intelectual, respectiva e simultanea-
mente. Com Cancão, o poeta pássaro, aprendemos a escuta e 
a lógica do sensível:
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TARDES DA MINHA TERRA8
O juriti enfadonho
Geme no bosque tristonho
Um panorama risonho
Digno de um santo poema
As verdejantes ramagens
Lembram famílias selvagens
As circundantes paisagens
Onde nasceu Iracema
(...)
Canta alegre o rouxinol
No momento em que o sol
Vai tornando o arrebol
Cor-de-rosa e amarelo
A natura sacrossanta
Doce, meiga pura e santa
Chora, ri, soluça e canta
Contemplando o quadro belo
Devemos aprender com este intelectual da tradição uma re-
lação estetizadora com a natureza que deve se converter numa 
ética dos processos de conhecimento e produção de saberes. A 
obra de Cancão ressoa num apelo da poesia da oralidade, mas 
dialoga com a literatura canonizada e com a prosa da cons-
trução do conhecimento científico, dando-nos um exemplo de 
criatividade e lógica (re)integradora.

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