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5 DO TORÉ AO OURICURI RELIGIÃO, TRADIÇÃO E CURA ENTRE OS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI

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1 
 
 
 
DO TORÉ AO OURICURI: religião, tradição e cura entre os índios 
Xucuru-Kariri 
José Adelson Lopes Peixoto
1
 
 
Resumo: este artigo tem por objetivo discutir sobre as concepções de religião, ritual e cura 
entre os índios Xucuru-Kariri de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, procurando 
apresentar as construções e as manifestações que aquele povo faz nas práticas ritualísticas da 
dança do toré e na realização de cura no seu ritual sagrado denominado de Ouricuri. 
Apresenta uma descrição dos significados da dança no ritual embalado pelo som dos maracás 
e batida forte dos pés no chão como manifestação estética e discurso construído no contexto 
histórico de resgate e afirmação cultural dos povos indígenas do nordeste brasileiro e faz uma 
abordagem acerca do segredo que normatiza a crença religiosa na ação de espíritos 
encantados enquanto força que se materializa no ritual e ordena a vida e as ações dos nativos. 
Tal estudo está ancorado nos pressupostos de Le Breton, Robert Hertz, Evans Pritchard, 
Herbert Baldus, Viveiros de Castro e João Pacheco de Oliveira, associado à pesquisas de 
campo realizadas na aldeia indígena Mata da Cafurna. 
 
Palavras-Chave: Ritual. Encantados. Sagrado. 
 
A cidade de Palmeira dos Índios, distante 130 km da capital do Estado – Maceió, tem 
sua origem centrada nos povos indígenas Xucuru e Kariri que ali se estabeleceram por volta 
de 1740 fugindo do processo de colonização do interior do Brasil. Vieram respectivamente de 
Cimbres (atual Pesqueira – Pernambuco) e das margens do Rio Opara – São Francisco (na 
divisa de Alagoas com Sergipe). 
Em terras palmeirenses, se encontram divididos em 09 aldeamentos, sendo um deles 
ainda não reconhecido legalmente, nem pelos seus pares. Apesar da divisão física, são unidos 
pelos laços do sagrado, nas suas práticas ritualísticas de caráter espiritual e curativo 
denominada de Ouricuri ou nas práticas festivas da dança do toré. 
Cada aldeia tem um líder espiritual (o pajé ou na sua ausência, outro membro da 
comunidade, praticante da cultura e do ritual) que preside as cerimônias religiosas que 
acontecem periodicamente. Em algumas datas festivas nos meses de abril e dezembro (por 
serem festas mais significativas, ligadas ao mês do índio é ao ano novo, respectivamente) os 
rituais congregam os povos Xucuru-Kariri e outros povos de estados vizinhos como 
Pernambuco, Bahia e Sergipe, além de índios de outras regiões de Alagoas. Nesses rituais não 
é permitida a entrada de não índios, mesmo que esses tenham estabelecido vínculos através 
dos casamentos exogâmicos. 
 
1
 Antropólogo e Historiador. Professor Assistente na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Campus III – 
Palmeira dos Índios. E-mail: adelsonlopes@hotmail.com 
2 
 
 
 
O ritual, ponto alto da religiosidade indígena do agreste alagoano, é tido nas aldeias 
como a principal atividade que congrega aquele povo e estabelece elos com o sagrado, com as 
suas divindades denominadas de encantados, é também elemento importantíssimo na 
identidade étnica pelo fato de ser um dos poucos elementos intocados pelo colonizador no 
passado e pela sociedade envolvente, no presente. 
Com o processo de colonização do Brasil, movido pela cobiça do europeu, deu-se o 
aniquilamento de vários grupos indígenas do nordeste do Brasil, notadamente aqueles mais 
próximos do litoral, com os quais o contato foi mais rápido e brutal. Nesse contexto, foram 
várias as transformações culturais, destacando-se o idioma, perdido devido às proibições do 
uso da língua e dos dialetos nativos; poucas palavras do vocabulário indígena sobreviveram. 
A exceção no nordeste é o povo Fulni-ô do município pernambucano de Águas Belas, falante 
da língua iatê. Da mesma forma, houve o silenciamento da religião, com a imposição do 
Cristianismo. Os deuses nativos foram substituídos pelo deus do colonizador que sob o manto 
do catolicismo doutrinou os índios convertendo-os em mão de obra barata e às vezes escrava. 
Por medo dos castigos impostos, os rituais deixaram de ser praticados com frequência, 
sendo-lhes reservados momentos de cultos clandestinos e longe dos olhos do conquistador. 
Por esse motivo e por ter suas divindades encantadas ligadas a natureza, o terreiro onde 
realizam o Ouricuri passou a ocupar um espaço afastado das aldeias, num terreno privilegiado 
na mata, longe dos olhos de qualquer visitante. 
A expressão ouricuri é originária do nome de uma planta nativa da região, pertencente 
à família das palmáceas (Cocos coronata). Dela se extrai a palha que serve como matéria 
prima para confecção de adornos, roupas e utensílios. Assim como as vestes servem de 
cobertura para o corpo, o ritual serve de cobertura para o espírito. A sua prática envolve uma 
preparação que exige jejum por um ou vários dias, abstinência sexual e do álcool, nos dias 
que antecedem a cerimônia, para evitar enfraquecimentos que podem deixar o indivíduo 
suscetível a doenças, males ou incorporações de espíritos manipuláveis por pessoas de má 
índole. 
Entre outras atividades, os assuntos referentes à necessidade de tomada de decisões 
sobre problemas sérios da aldeia são discutidos e solucionados com inspiração divina. Trata-
se, pois de uma atividade ancorada em profunda religiosidade e respeito, cercada de segredos 
e de regras socialmente construídas e compreendidas pelo grupo. É também no Ouricuri que 
se celebram a vida e a morte. Trata-se de um momento de retiro onde o canto e a dança dos 
3 
 
 
 
torés são utilizados como elos do homem com o seu Ei-u-Ká (criador). Para o não índio sua 
compreensão vai além dos limites do explicável. Segundo Junqueira e Pagliaro (2009, p. 451) 
 
Para entender o complexo conjunto de concepções que as envolve, é preciso seguir 
até o universo imaginário que lhes dá fundamento, em que são muitos os fenômenos 
que se cruzam, sendo difícil estabelecer domínios separados, limites claramente 
demarcados para manifestações da prática social, de conhecimentos técnicos, de 
saberes espirituais e de procedimentos mágicos. De um modo ou de outro, todos 
concorrem para explicar, justificar ou legitimar regras do convívio social, 
desempenhos rituais e intervenções práticas. 
 
 Pouco se divulga do ritual, uma vez que é reservado aos membros do grupo, mas 
sabe-se que ele acontece em vários momentos durante o ano e pode se estender de alguns dias 
até semanas. No terreiro, existe uma área reservada para o ritual onde os índios se reúnem 
sem qualquer aparato da vida moderna e sem interferências externas. Mesmo entre os povos 
indígenas existem momentos que são exclusivos do homem, da mulher e da criança. Essa 
separação ratifica a ideia de segredo, pois até entre os membros da mesma etnia existem 
eventos que são interditados para um gênero ou grupo etário, constituindo-se em um 
mecanismo de defesa e de preservação dos costumes. 
No terreiro, o grupo usa adornos de palha e penas, pinturas corporais, porém não há 
obrigatoriedade e muitos usam roupas de tecido produzidas pelos não índios. Trata-se, pois, 
de um momento de encontro do índio com suas raízes. Segundo Torres (1984, p. 36) 
“atualmente, os Xucuru-Kariri reúnem-se quase que semanalmente para o exercício religioso, 
no terreiro (poró)”. Essa atividade não obedece a um calendário específico, pode acontecer 
mediante a necessidade do grupo. Além de congregar a comunidade, o ritual serve de 
comunicação entre o humano e sagrado, por isso a necessidade de cumprir algumas 
obrigações antes de sua prática. É um momento sublime e especial para o grupo, conforme se 
observa nos relatos de Nhenety Korã
2
, 
O ouricuri (palavra sagrada) quenão podemos revelar muita coisa, lá é onde buscamos força, 
alegria, amor, paz, saúde e coragem para enfrentarmos esse mundo aqui fora. Frequentamos 
nosso ouricuri quinzenalmente, mensalmente ou quando sentimos necessidade. Os padres ao 
chegar para catequizar os índios queriam nos obrigar a seguir a religião deles, mas para nós 
índios religião é só um rótulo, porque nosso pai Badzér não deixou religião para ninguém, nos 
deixou sim a nossa mãe natureza onde emite para nós força através do trovão, do ar que 
respiramos, da chuva que nos molha, da lua que nos clareia a noite e o sol que nos ilumina. E é 
lá no nosso ouricuri que nós conseguimos entrar em contato com tudo isso da natureza numa 
maneira especial. 
 
 
2
 É liderança na aldeia e professora na escola indígena. Profunda conhecedora da história da sua comunidade é 
ela que geralmente recebe os visitantes e pesquisadores. Concedeu-me várias entrevistas entre junho/2007 e 
fevereiro/2008, quando da pesquisa para produção do livro sobre a Mata da Cafurna e depois disso, temos 
conversado com certa frequência, pois desenvolvemos laços de amizade. 
4 
 
 
 
Pode-se observar no relato acima o quanto a natureza é importante para o índio, sendo 
considerada fonte de energia para continuar vivo. Mesmo não tendo calendário fixo, há um 
momento de encontro anual entre vários povos, nos rituais de entrada em um ano novo, 
ocasião em que o grupo leva os pedidos dos não índios que são proibidos de entrar no terreiro. 
É semelhante a um renovar de forças para enfrentar os desafios do ano seguinte. Dificilmente 
sua essência seria entendida pela sociedade envolvente, daí a necessidade de mantê-lo 
fechado, longe do nosso olhar e da nossa interferência, como uma forma de preservação 
cultural. 
No passado, durante os séculos XVIII e XIX, com a chegada do colonizador a 
Palmeira dos Índios, o Ouricuri teve sua prática reduzida, passando a ser praticado as 
escondidas da população não índia e, principalmente, dos que representavam o poder religioso 
do catolicismo ou dos donatários da Capitania. O silenciamento foi estratégia para 
preservação do grupo e do próprio ritual enquanto elemento identitário. Atualmente, é 
consenso na aldeia, segundo Lenoir Tibiriçá
3
 que “foi graças à força recebida no ritual que os 
índios conseguiram retomar suas terras e voltar à visibilidade”. 
Enquanto o Ouricuri se reveste do segredo, o toré é executado fora do ritual, aberto ao 
público na aldeia ou fora dela, em apresentações públicas. Tem servido também como 
elemento identitário que caracteriza o povo indígena. Existe um significado especial, variando 
conforme os sentimentos do momento. É através da dança e do canto que se exprimem 
sentimentos de louvor, gratidão, preces e comemorações, também é executado em rituais 
fúnebres. Alguns torés são apresentados em público e marcam a participação do índio em 
vários momentos festivos da sociedade envolvente, porém outros são reservados para 
momentos íntimos como o Ouricuri. Nas performances, o corpo assume o papel da fala e 
apenas o canto e som dos maracás (chocalhos) fazem o papel de interlocutores com o público. 
Não há, nesses momentos, outro discurso se não o do corpo, o que segundo Le Breton (2007, 
p. 7) 
Os usos físicos do homem dependem de um conjunto de sistemas simbólicos. Do 
corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência 
individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos 
quais a existência toma forma através da fisionomia de um ator. Através do corpo, o 
homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-
se de sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade. 
 
 De acordo com o momento, o toré recebe denominação e significação específica, mas 
não muda a forma de execução, sendo sempre em forma de círculo giratório onde o som dos 
 
3
 Exerceu a função de pajé na Aldeia Indígena Mata da Cafurna durante vários anos, sendo afastado das funções 
por questões internas. 
5 
 
 
 
maracás e a pisada forte no chão vão marcando a cadência de um bailado envolvente e 
ritualístico. A expressão facial dos participantes denota a religiosidade que envolve o 
momento. Durante a coreografia, o círculo gira sempre para o lado direito para evocar as 
forças positivas sobre os seus participantes. As mulheres e crianças dançam fora do círculo 
principal composto por homens, podendo, em alguns torés, haver formação de pares que 
desenvolvem um bailado diferente da dança circular do grupo. Nesses momentos, os casais 
giram para frente e para trás, porém nunca para a esquerda. Sobre a questão da 
preponderância da direita sobre a esquerda e sua separação enquanto forças opostas, Hertz 
(1980, p 7) afirma que 
Certos objetos ou seres, por força de sua natureza ou por meio de representação de 
rituais, são como que impregnados com uma essência especial que os consagra, os 
separa e lhes outorga poderes extraordinários, mas que então os sujeita a uma série 
de regras e estritas restrições. Coisas e pessoas às quais se nega esta qualidade 
mística não têm poder, nem dignidade: são comuns e, afora a interdição absoluta de 
entrar em contato com o que é sagrado, livres. Qualquer contato ou confusão entre 
seres e coisas pertencendo às classes opostas seria funesto para ambas. Daí a 
variedade de proibições e tabus que, por mantê-los separados, protege ambos os 
mundos a um só tempo. 
 
 De acordo com Hertz, o coletivo ou o espiritual se sobrepõe ao orgânico ou individual. 
A preponderância da direita não seria algo natural e sim o resultado de significações culturais 
que caracterizam divisões e hierarquias sociais. Tais hierarquias são visíveis no toré, pois o 
puxador ou cantador de toantes assume um papel predominante sobre os demais membros da 
performance e esse papel é alternado entre alguns no grupo. 
Para a dança do toré, os participantes se vestem com saias de palha do coqueiro 
ouricuri, fabricadas artesanalmente na aldeia, se enfeitam com colares, pulseiras e brincos de 
penas ou de sementes e usam cocás de penas coloridas ou tranças de palha na cabeça. Os 
corpos recebem pintura com formas geométricas distribuídas de forma simétrica por todo o 
corpo com tinta produzida a base de jenipapo e carvão. A dança é circular e executada com os 
pés descalços em um claro sinal da importância dada ao contato com a terra. Outro elemento 
importante a ser destacado é o amplo consumo de fumo, em cachimbos ou chanducas de 
madeira. 
Dentre os tipos de toré, pode-se citar: 
 Toré de roda que significa união do grupo entre si e com os outros. Os índios demonstram 
que independente da situação ser de dor ou de alegria, eles estão juntos e firmes nos seus 
ideais. É um bailado circular, marcado pela pisada forte com o pé direito, pelo som dos 
maracás e gritos frenéticos dos seus participantes. É muito executado nas apresentações 
públicas 
6 
 
 
 
 Toré cruzado representa o amor em todos os seus sentidos. Para a comunidade não índia, 
é visto como uma espécie de ritual que antecede a prática do sexo. É executado por casais 
que se alternam no centro do terreiro, dentro do círculo principal. A formação dos casais 
pode ser entre pai e filha, mãe e filho, marido e mulher ou qualquer outra composição 
entre sexos opostos, o que descontrói o discurso do não índio de que é um toré de 
acasalamento. 
 Toré da lança significa guerra e é executado em momentos conflituosos como forma de 
buscar ajuda das divindades para conseguir êxito em batalhas. É salutar destacar que além 
da dança, os índiosdão um valor especial aos sonhos tidos na noite que antecede guerras, 
conflitos ou tomadas de decisões importantes. Nesse toré, dois guerreiros se encontram no 
centro do círculo e vão cruzando suas lanças, simulando uma batalha. É visto como uma 
invocação aos espíritos guerreiros dos antepassados que morreram em combate e que são 
chamados para exercer influência na formação de novos guerreiros. Os pares se alternam 
no círculo sempre ao som dos maracás e dos cantos e gritos do grupo. 
 Toré do búzio é um momento muito introspectivo, pois significa um profundo contato 
com suas entidades espirituais. Nesse momento observa-se que alguns participantes tem 
suas performances alteradas, seus olhares fixam-se no infinito e outros chegam a emitir 
sons altos, agudos e enrouquecidos. O som dos maracas é menos intenso, sendo 
substituído pelo som emitido por longos canos de bambu soprados por dois dançadores. 
 Toré da corrente simboliza as alianças firmadas com aqueles que valorizam e respeitam a 
cultura indígena e que auxiliam nas suas reivindicações. Segue a mesma ordem circular 
das exibições, porém visitantes não índios são convidados para participar, formando par 
com um nativo. 
 Toré de passarinho representa um dos maiores valores do ser humano, a liberdade. No 
caso específico do índio, simboliza tudo aquilo que o colonizador tirou dessa nação 
(cultura, costumes, propriedade e vida livre). O bailado é executado imitando, com os 
braços abertos, o movimento das asas de um pássaro. Um par se dirige ao centro do 
círculo e faz a coreografia onde um apóia o pé direito sobre o pé direito do outro e se 
firmam apenas com os pés esquerdos no chão. 
 Toré da chuva significa a grandeza de Deus, o seu poder de gerar e manter a vida, de 
renovar a paisagem e de renovar o espírito do ser humano. É executado no círculo, 
girando sempre para a direita, porém um dirigente se coloca ao centro e pode girar 
também para esquerda. Segundo relatos, girar para esquerda em oposição ao grupo 
7 
 
 
 
significa combater as forças negativas que podem estar no ambiente ou pairando sobre a 
aldeia. 
À dança do toré, acrescentam-se gestos e ações ritualizadas, compondo uma 
performance que compreende ainda a manipulação de objetos, o uso do espaço e a 
ornamentação corporal. Este conjunto de elementos coordenados sob uma ordenação própria, 
uma estrutura, uma forma e um estilo, permitem a experiência estética necessária à 
convivência com os espíritos, com o outro, em outra dimensão da realidade. A experiência 
estética nos rituais Xucuru-Kariri consiste em vivenciar a relação de alteridade, estabelecida 
na cosmologia e é, em síntese, a incorporação de personagens que confere o caráter de 
atividade performática ao ritual. 
 
Os encantados e os rituais de cura 
Os encantados, segundo relatos frequentes na aldeia, são antepassados que enquanto 
estavam vivos se transformaram e se tornaram parte da natureza. Muitos, inclusive, estão 
associados a algum elemento natural e estão intimamente ligados ao sistema medicinal 
atuando na prevenção, diagnóstico e cura de doenças, entre outras coisas. 
Existe a crença de que alguns índios se encantaram na época do dilúvio e vivem como 
espíritos junto ao seu povo. São espíritos de luz que alguns índios considerados abençoados
4
 
incorporam. Esses espíritos dominam um poderoso conhecimento religioso que é utilizado 
para ajudar os outros, para realizar curas e manipular ervas medicinais. Tal conhecimento é 
mantido em relativo segredo e usado durante o ritual sagrado do Ouricuri. Segundo Lenoir 
Tibiriçá
5
 
Deus deu a força para a realização de cura de doenças e de espíritos que atingem o índio e o não 
índio. Usar essas forças é seguir uma vontade divina. Essa força foi dada ao profeta, ao pastor, ao 
índio, enfim, em várias religiões e povos, mas alguns se desviam da religião, da cultura e passam a 
ser chamados de bruxos. 
 
O índio é procurado pelo encantado através do sonho ou durante uma consulta 
espiritual onde a divindade surge na forma humana, de um animal ou de uma ave nativa. 
Geralmente atuam em consultas espirituais (quando invocados) ou apenas zelam pela 
comunidade durante os torés. Cada encantado tem um número específico de músicas. Quanto 
 
4
 Esse termo é utilizado para designar os indígenas que tem o dom de incorporar os espíritos dos encantados. 
5
 Entrevista concedida na aldeia Mata da Cafurna em 12/08/2007. 
8 
 
 
 
mais cânticos possuir, mais forte ele é. A força encantada
6
 decorre da presença e atuação dos 
encantados no terreiro. Esta força, segundo Amorim
7
 (2011) 
Atua em três níveis: no toré, quando a partir do canto, os encantados apenas 
observam o evento; no praiá (forma genérica para identificar os encantados, que em 
si são espíritos ancestrais indígenas representados ou materializados em vestes 
elaboradas de fibra de caroá), quando a “força encantada” chega ao terreiro e é 
compartilhada com todos os dançadores; e no serviço de chão, quando é incorporada 
pelo puxador do toré e, dessa forma, o encantado fala diretamente com os presentes. 
 
A força encantada é fonte de coragem e proteção, mas nem todas as pessoas 
conseguem recebê-la, pois o corpo precisa ser forte e está em dia com as obrigações que lhe 
são impostas. Geralmente, essas obrigações são encruzar e defumar o elemento (o índio). O 
maracá é “encruzado8” de dois em dois dias. As obrigações também estão ligadas aos 
cuidados com o corpo. Devem tomar banhos de ervas especiais antes do ritual. Ao acordar, 
fazem o sinal da cruz, que é novamente feito antes de dormir. Fumam a xanduca ou cachimbo 
diariamente e este é encruzado duas vezes ao dia, além de abstinência de álcool e de sexo por 
alguns dias, além de algumas interdições alimentares. 
Entre os Xucuru-Kariri existem aqueles que dominam a técnica da manipulação de 
ervas medicamentosas, são pessoas que afirmam receber orientação dos espíritos dos 
antepassados e que passam a ser usados como instrumentos dos encantados para que 
produzam determinado remédio. Há uma crença de que a manipulação das substâncias ou 
ervas sem a intervenção do antepassado resulta num remédio que não produz efeito. Trata-se 
da teoria de que não é só o controle da técnica de manipulação das substâncias que faz alguém 
se tornar curandeiro, mas essa habilidade somada à ação espiritual. Tal atividade é executada 
associando orações, ingestão de bebida típica e consumo de tabaco que também é utilizado 
como incenso sobre o doente num ritual onde o pajé ou o curandeiro realiza uma espécie de 
metamorfose dos corpos, o que não acontece sem a administração de certas substâncias que 
são incluídas ou excluídas dos corpos. Essa prática é observada em vários outros povos 
indígenas, como relata Fassheber (2001, p.120), 
O tabaco é considerado uma substância central na iniciação xamanística. O tabaco é 
para os indígenas, uma dádiva divina que permite os transes extáticos capazes de 
transportá-los ao próprio mundo dos deuses. Então, entre os Warao da Venezuela, o 
consumo de tabaco se justifica no cumprimento da promessa aos deuses de que 
jamais poderá faltá-lo. Os Warao são iluminados pelo tabaco que se aloja em cada 
peito durante sua formação xamanística. 
 
 
6
 Refere-se ao poder que os índios atribuem aos espíritos encantados. 
7
 Siloé Soares de Amorim, Antropólogo, pesquisador e professor lotado na UFAL, é estudioso dos povos 
indígenas do sertão alagoano. Concedeu entrevista em 14 de junho de 2011. 
8
 Por maracá encruzado entende-se atravessar o terreiro em sentido de cruz como forma simbólica de benzimentodo instrumento. 
9 
 
 
 
 Ainda sobre essa prática, Viveiros de Castro (1987, p.38) afirma ser o tabaco, na 
sociedade xinguana, “a substância xamanística por excelência”, mediando o mundo real com 
o espiritual, abrindo-lhes ou fechando-lhes tal porta de contato entre os dois mundos. 
Observa-se que assim como na sociedade xinguana, o tabaco assume um papel extremamente 
significativo entre os povos indígenas de Alagoas e seu consumo é observado tanto por 
adultos quanto por crianças. 
 Há um cuidado para que os índios dotados da sabedoria milenar de manipular as ervas 
medicinais não se afastem da tradição e da religião, pois assim como o conhecimento é 
utilizado para a cura pode ser utilizado para prejudicar os outros. Assim, esses especialistas 
são revestidos de um dom que ao tempo em que os coloca em um lugar especial, os 
transforma em alvos da maldade e da cobiça de várias pessoas dentro e fora da comunidade. 
 Na aldeia, as áreas de mata são preservadas, inclusive com a proibição da retirada de 
madeira verde. Para o índio, a mata é tida como o pulmão da terra, fonte de alimento e de 
medicamento, além de ser seu espaço ritualístico. Sua devastação aniquila a essência da vida, 
do seu espaço sagrado para o ritual e extingue a sua cultura. Segundo Ribeiro (2010, p.42) 
“Cada comunidade étnica domina e transmite um corpo de saberes e técnicas, através dos 
quais ela se relaciona com a natureza circundante para tirar dela o que necessita para se nutrir 
e viver”. Essa é a síntese do sentido da natureza como espaço de nutrição física e espiritual. 
Um conceito distante das práticas exploratórias e predadoras do mundo dito civilizado. 
 Apesar da consciência de que é salutar preservar a herança fitoterápica, observa-se um 
número cada vez menor de jovens que demonstram interesse ou habilidade para aprender as 
artes da pajelança. A modernização dos costumes e praticidade advinda da ciência médica, 
com a implantação de postos de saúde na cidade e na aldeia faz crescer o número de índios 
adeptos da medicação industrializada, como também se registra uma diminuição da procura 
dos trabalhos das parteiras, das benzedeiras e das pajelanças. Os mais firmes nos costumes 
tribais temem que a globalização e os fortes atrativos do capitalismo comercial, que imperam 
na sociedade do branco, venham a acarretar mais um golpe contra o resgate, manutenção e 
aplicabilidade da tradição dos antepassados. 
 
As práticas do mundo sagrado: força, fé e tradição 
A comunicação do índio com o sagrado, com o sobrenatural, com os encantados, 
também exerce um papel regulador na vida do grupo e é orientada pela tradição, passada de 
geração a geração e mantida a distância do não índio como forma de preservação cultural e 
10 
 
 
 
como meio de evitar comparações com outras religiões presentes no país. É, segundo Herbert 
Baldus (1977, p? ), 
uma instituição social, cujos representantes, através do êxtase produzido segundo 
padrões tribais, entram em contato com o sobrenatural, a fim de defender a 
comunidade de acordo com suas respectivas ideologias religiosas, seja por viagens a 
mundos do além, seja pela possessão por espíritos. 
 
O responsável pelas práticas - misto de sacerdote, profeta e médico, chamado pajé, 
goza de grande prestígio e respeito entre os membros do grupo, o que lhe confere um amplo 
poder político. Em certas etnias, ele usa como distintivo de seu status um bastão de madeira 
com cabeça de animal, em outras, é comum que o seu cocá de penas sobre a cabeça seja mais 
colorido e exuberante que os dos demais. Há ainda, como é o caso dos Xucuru-Kariri, aqueles 
que preferem não ostentar o poder que a pajelança lhe confere, sendo respeitado apenas pelo 
conhecimento que possui. 
Os Xucuru-Kariri foram submetidos, no processo de formação da cidade de Palmeira 
dos Índios, à catequese e ao trabalho doutrinário implantado pelas missões católicas. 
Semelhante ao que aconteceu com outros grupos do nordeste, o ritual do Ouricuri foi 
sistematicamente combatido pelos missionários, sendo praticado às escondidas antes de se 
tornar totalmente secreto. 
O processo de catequização influenciou a preferência pelo catolicismo ao ponto dos 
índios participarem dos rituais católicos, frequentarem a missa (em algumas datas festivas há 
celebração nas aldeias), batizarem seus filhos, casarem e participarem das festas religiosas. 
Nas casas, são comuns as imagens de santos populares como Padre Cícero e Frei Damião, e 
diferentes representações de Nossa Senhora são colocadas em pequenos altares ou oratórios, 
chegando, em algumas casas a ter novenas e rezas do terço durante o mês de maio. Nota-se 
essa influência, inclusive nas realizações de curas feitas pelos especialistas nativos, que 
frequentemente, “se valem” dos santos católicos. Contudo, esse sincretismo não os afastou de 
suas crenças nativas. Para os Xucuru-Kariri, não há incompatibilidade entre o catolicismo e o 
sistema vivenciado por eles. 
Existe um pequeno número de índios convertidos ao protestantismo, o que os afasta 
cada vez mais do Ouricuri e do convívio social com os seus pares. No entanto, independente 
da influência que possam ter de outras religiões, o Ouricuri continua sendo para grande 
maioria dos membros desse povo, o ápice de vivência sagrada, de onde vêm a força e a 
proteção para que nada de mal aconteça a eles. Trata-se de um ritual secreto realizado desde 
tempos imemoriais. 
11 
 
 
 
Com as retomadas territoriais, intensificadas nos anos 80 do século XX, os índios se 
empenharam em conservar parte da mata nativa, onde realizam o ritual. È um local de difícil 
acesso, o que facilita a manutenção do segredo que encerra o ritual. O pouco que se sabe está 
relacionado à ação dos encantados e ao suposto uso da jurema (Mimosa hostilis), do tabaco e 
das beberagens ali produzidas. 
Os preparativos para o Ouricuri são marcados por intensa movimentação na aldeia. 
São famílias inteiras deixando suas casas, carregadas de mantimentos que são transportados 
nas próprias costas, em carroças ou no lombo de animais. Em curto espaço de tempo o 
aglomerado habitacional vai ficando praticamente deserto e a estrada que leva ao terreiro vai 
sendo ocupada pelas famílias. Idosos, crianças e até recém-nascidos tomam parte na 
empreitada, sendo que os últimos dividem o espaço com os mantimentos, nas carroças ou no 
colo dos adultos. Desde muito cedo as crianças conhecem os caminhos do terreiro, e sua 
participação no ritual é momento que representa descobertas e intimidades com a religião e 
com a cultura do seu povo o que provoca certa euforia. Entretanto, elas só são apresentadas ao 
segredo a partir dos sete anos de idade, quando são consideradas capazes de entender o 
significado e silenciar quando inquiridas pelo não índio. 
A religião é um instrumento regulador da vida na aldeia. Para ser aceito socialmente o 
índio tem que estar em dia com as “obrigações” do Ouricuri. Aquele que descumprir as 
normas ou desrespeitar de alguma forma o ritual sofre sanções sagradas e, por parte dos 
outros nativos, sofre a pior punição que um indivíduo pode receber: a morte social, em que os 
infratores são ignorados e profundamente recriminados. 
O ritual religioso é o ponto culminante da atividade religiosa entre os Xucuru-Kariri. 
Os índios que estão se tratando de alguma enfermidade com especialistas da biomedicina, 
dizem que sua cura está condicionada a Deus e ao Ouricuri, pois, é lá que são tratadas as 
doenças mais graves, onde se encontra solução para os graves infortúnios, e também é de lá 
que, muitas vezes, vem a autorização para que se procure o tratamento biomédico. Como 
relata um nativo que pede para não ser identificado“O índio não gosta de ir ao médico do 
branco. Só vai depois que pergunta ao santo ouricuri e ele lhe autoriza. Mas, se fosse pra ir 
confiando no homem, não ia nunca... A saúde quem dá é Deus através da força do pajé e dos 
encantados. Se você tem uma „ciência‟, tem que se apegar a ela que encontra a cura”. Nesse 
caso, cabe ao Ouricuri a orientação espiritual, sem a qual a cura não se efetiva. O 
descumprimento de certas regras e normas do ritual torna a pessoa vulnerável às 
enfermidades. O lugar que a crença na força do Ouricuri ocupa entre os Xucuru-Kariri pode 
12 
 
 
 
ser comparada com a crença que os Azande tinham nas forças do sobrenatural para explicar 
seus infortúnios. Sobre essa crença, Evans-Pritchard (2005, p.59-60) afirma que 
Nós possuímos a noção de um mundo ordenado de acordo com o que chamamos leis 
naturais; mas algumas pessoas em nossa sociedade acreditam que pode ocorrer 
certas coisas misteriosas que não podem ser explicadas por meio dessas leis naturais; 
e que portanto essas coisas transcendem supostamente tais leis; e chamamos esses 
eventos de sobrenaturais. Para nós, sobrenatural significa o mesmo que anormal ou 
extraordinário. (...) a bruxaria representa para os Azande um evento que, embora 
infrequente, é ordinário, e não extraordinário
9
. 
 
Na mesma dimensão que bruxaria é cotidiana para os Azande, as forças encantadas 
que agem no Ouricuri são normais e ordinárias para os Xucuru-Kariri. Para nós, espectadores 
dessas culturas, falar sobre o ritual exige certo cuidado por se tratar de um tema muito 
delicado de se abordar e cercado de muita significação mística e religiosa. Os índios, quando 
inquiridos, mudam o foco da conversa e com a insistência, se aborrecem. Preferem contar 
histórias num tom que parece ameaçador a respeito das punições para quem tenta observar o 
ritual. Só quem entra na “mata” do Ouricuri e participa do ritual são os iniciados, nenhum 
“cabeça-seca”10 deve ousar entrar sem permissão, pois a morte pode vir em sua forma mais 
cruel. O mesmo ocorrendo com o índio que revela o segredo aos “de fora”. Alguns 
especialistas fazem questão de falar com riqueza de detalhes o que acontece com aquele que 
tenta desvendar o segredo, enfocando sempre um castigo, punição, morte ou infortúnio para a 
vida do transgressor. Os relatos sobre esses eventos os descrevem como reação natural do 
sobrenatural que tem sua normatização ou regulação quebrada. Mais uma vez se faz 
necessário citar Evans-Pritchard (2005, p.56) quando apresenta o pensamento dos Azande 
sobre as punições para transgressões 
Nós aceitamos explicações científicas das causas das doenças e mesmo das causas 
da loucura, mas negamos essas explicações nos casos de crime e pecado, porque 
aqui elas entram em conflito com a lei e a moral, que são axiomáticas. O Azande 
aceita uma explicação mística das causas de infortúnios, doenças e mortes, mas 
recusa essa explicação se ela se choca com as exigências sociais expressas na lei e 
na moral. 
 
 O que se pretende com essa comparação é mostrar que para os nativos (índios ou 
azande) a transgressão, a quebra das normas socialmente construídas, o roubo, a traição, a 
mentira são ações do humano e devem ser punidas na esfera do humano, mas não devem ser 
julgadas nessa mesma esfera, nem com os mesmos valores. Invadir o espaço sagrado do 
Ouricuri ou revelar seus segredos ritualísticos é desafiar o sobrenatural e a punição foge da 
esfera do natural, apesar de sua ação ser concreta, natural, visível. 
 
 
10
 Termo utilizado para se referir àquele que não conhece o segredo do ouricuri, por isso possui a cabeça vazia 
13 
 
 
 
O ritual é realizado periodicamente, nos finais de semana. Sendo imediatamente 
adiado na ocasião da morte de algum índio. Eles geralmente vão ao Ouricuri aos sábados e 
retornam na terça-feira. Uma vez por ano ocorre um ritual mais longo, a “Festa do Ouricuri”, 
que tem a duração de quinze dias e acontece entre o final janeiro e princípio de fevereiro. A 
“festa” é um momento importante e de grande entusiasmo na aldeia. Um velho índio explicou: 
“Nós não temos nada, o Ouricuri é a nossa alegria”. Esse prazer que os índios sentem está 
relacionado com o equilíbrio encontrado na mata, espaço desvinculado do mundo profano, ou 
seja, da área onde estão localizadas as casas. Uma vez por ano ocorre também uma “meia-
festa”, entre setembro e outubro. Algumas “idas” quinzenais são mais importantes que outras 
e, por isso, poderão ter ou não um número maior de participantes. 
O Ouricuri é um espaço socialmente construído. Trata-se de um lugar onde há troca de 
conhecimentos em relação ao universo simbólico e aos processos de cura. Por se tratar de um 
espaço sagrado, devem-se respeitar algumas regras: a interdição de relações sexuais e a 
ingestão de bebidas alcoólicas em um período anterior e posterior ao ritual. As transgressões 
dessas proibições podem deixar a pessoa “fraca” e “impura” e vulnerável às doenças. 
Como relata a índia Baty (liderança e parteira na aldeia): “Durante o ritual, quando 
alguns índios sentem sono, dormem tudo numa cama só, um deita com a cabeça pra lá e outro 
dorme com a cabeça pra cá... Isso aí é um costume que vem da raiz... se não tiver limpo, fica 
em casa, se tiver emporcalhado fica...”. O fato de se estar “limpo11” é também importante para 
se prevenir contra os espíritos e outros seres que frequentemente rondam a mata. “Eles vão 
procurar os mais fracos, e desses, se aproximarão para seus propósitos, por isso devemos tá 
preparado. Lá é um ambiente bastante perseguido”, enfatiza o ex-pajé Lenoir Tibiriçá. É 
importante também que se esteja “limpo” para ir ao local sagrado mesmo em dias em que o 
ritual não está acontecendo. 
O lugar do sagrado precisa ser continuamente cercado de interditos e crenças no 
perigo de se cruzar fronteiras proibidas. Sobre a entrada de algum não índio, ele falou: “Às 
vezes, a gente vai lá sem tá limpo, mas temos a nossa garantia. Agora, a gente não pode se 
responsabilizar pelos de fora que estão sujos, de corpo aberto... Lá tem dono, pode não 
parecer, mas lá você está sendo observado.... Observado por várias pessoas”. O espaço 
sagrado na mata é composto por uma clareira, um local plano e “limpo”. Em volta, estão 
pequenos ranchos onde os índios se acomodam, na maioria feitos de tijolos batidos e cobertos 
de telhas, outros são de varas entrelaçadas com seus espaços preenchidos por barro (casa de 
 
11
 Estar limpo significa ter cumprido as regras e restrições impostas para participar do ritual: abstinência de sexo, 
álcool e alguns alimentos considerados impuros, como a carne do porco. 
14 
 
 
 
pau a pique ou de taipa como são conhecidas na região) que se estendem de forma mais ou 
menos circular em volta do terreiro. 
Algumas construções maiores se destacam, são os galpões para abrigo coletivo e a 
cozinha que também é comum a todos. Árvores se destacam em meio às pequenas casas, que 
parecem invasoras da mata em volta. O local é grande e deserto, o silêncio só é quebrado pelo 
canto dos pássaros e pelo som dos maracás. Há delimitação dos espaços onde os homens se 
reúnem, local em que mulheres e pessoas de fora não podem ter acesso. A “aldeia” do 
Ouricuri não possui energia elétrica nem a água é encanada. Até mesmo o uso de 
eletrodoméstico ou de equipamentos eletrônicos e de telefonia é evitado, pois é necessário 
manter a “mata” distante das inovações do mundo exterior para que nada externo comprometa 
a comunicação com o sagrado. 
 
Conclusões possíveis 
Os pajés ou outros membros da aldeia que tem o poder de incorporar os encantadospraticam a cura e se fortalecem para realizá-las em outras ocasiões fora do ritual, quando a 
necessidade cotidiana o exige. O ritual de cura é um espaço simbólico por excelência, onde os 
especialistas desempenham o papel de maior importância entre dois mundos, o material e o 
espiritual. São momentos de transe, de profunda religiosidade e estabelecimento e 
fortalecimentos dos laços que unem os seus participantes, onde os atores são conduzidos a 
uma reorganização das suas experiências no mundo. 
A ingestão de ervas, tidas como medicinais, a sua correta manipulação e poder de 
incorporar os encantados faz perceber a importância do ritual e sua dimensão simbólica como 
experiência religiosa, política e social nos remete ao diálogo com um mundo místico e 
cercado de uma sabedoria que se mantém durante séculos como o principal sustentáculo da 
cultura indígena local, um espaço onde o não índio não consegue penetrar. 
Pelo pouco que nos é permitido testemunhar pode-se concluir que não podemos 
dissociar as práticas terapêuticas das manifestações cosmológicas dos Xucuri-Kariri e estas 
práticas são, indiscutivelmente, momentos de fortalecimento espiritual e político que tem 
congregado aquele povo e o mantido forte no mundo que chamamos de civilizado. 
Com a colonização, o índio foi obrigado a seguir uma crença religiosa até então 
desconhecida e desacreditada; a língua falada deixou de existir à medida que foram sendo 
forçados a falar a língua do branco (muitas vezes repetindo palavras sem saber o significado), 
mas naquele momento tudo era feito ou aceito como forma de assegurar a sua sobrevivência, 
15 
 
 
 
pois era comum assistirem a castigos brutais que chegavam a provocar a morte dos seus 
irmãos o que os deixou desacreditados das verdadeiras pretensões do homem branco ou não 
índio. 
Devido o contato com o europeu, as duas culturas se transformaram, um indivíduo 
novo resultou desse contato, mas a identidade se manteve graças ao elemento religioso que foi 
preservado, afastado do branco e transmitido a cada geração, fortalecendo o sentimento de 
pertencimento étnico. Da mesma forma, a participação no ritual, às práticas de cura e a 
manipulação de ervas medicamentosas vão conferindo identidade ao grupo, à medida que a 
etnia vai se fortalecendo e ocupando seu lugar de protagonista na história local. 
 
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LE BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 
 
RIBEIRO, Darcy. Falando de Índios. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: 
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