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As formas elementares da vida religiosa (o sistema totêmico na Austrália) - Emile Durkheim

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As formas elementares da vida religiosa (o sistema totêmico na Austrália) - Émile Durkheim
Ele vai estudar a religião mais primitiva (deve-se buscar meios de explicá-la sem
tomar elementos de religiões anteriores) e mais simples que se conhece na época. Ele tenta
descrever a economia desse sistema, por meio de um método positivista, para revelar um
aspecto essencial e permanente da natureza religiosa da humanidade. Um postulado
essencial da sociologia, é que uma instituição humana não poderia repousar sobre o erro e
a mentira, se não não duraria. Sob o símbolo, é preciso saber atingir a realidade que
representa e que lhe dá sua significação verdadeira. Os ritos mais bárbaros ou mais
extravagantes, mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto
da vida individual ou social. As religiões são verdadeiras à sua maneira, mas todas
respondem diferentemente a determinadas condições da vida humana. Sempre que se
empreende a explicação de uma coisa humana tomada em determinado momento do tempo
é preciso remontar até sua forma mais primitiva e simples, ver os caracteres pelos quais ela
se define nesse período da sua existência, depois demonstrar como, pouco a pouco ela se
desenvolveu e se tornou complexa. Um princípio cartesiano é que na cadeia das verdades
científicas, o primeiro elo desempenha um papel preponderante. O que precisamos é
encontrar uma realidade concreta que somente a observação histórica e etnográfica pode
nos revelar.
A particularidade dos fatos religiosos é explicada diferentemente conforme se ponha
na origem da evolução o naturismo, o animismo ou qualquer outra forma religiosa. Como o
naturismo ou o animismo, foram levados a assumir, aqui ou ali, tal aspecto particular, a
enriquecer-se ou empobrecer-se desta ou daquela maneira? Se é útil saber em que consiste
esta ou aquela religião particular, mais importante ainda é pesquisar o que vem a ser religião
no geral. Todas as religiões são comparáveis, já que são espécies do mesmo gênero, e
necessariamente têm elementos essenciais que lhe são comuns: um certo número de
representações fundamentais e atitudes rituais, que apresentem por toda parte, o mesmo
significado objetivo e exerçam as mesmas funções. As religiões do Egito, Índia ou da
antiguidade clássica são um denso emaranhado de cultos múltiplos, variáveis de acordo
com as localidades, os templos, as gerações, as dinastias, as invasões etc. As superstições
populares encontram-se misturadas com os mais refinados dogmas. Nesses grupos, há uma
regularidade e uniformidade intelectual e moral: Tudo é comum a todos e o tipo individual se
confunde com o genérico. A imaginação popular/sacerdotal ainda não teve tempo ou meios
de refinar e transformar a matéria-prima das ideias e práticas religiosas. Tudo está reduzido
ao indispensável, àquilo sem o qual não poderia haver religião, o que importa conhecermos
antes de tudo. A religião que estudaremos é estranha a toda ideia de divindade. As religiões
primitivas apresentam a vantagem de facilitar sua explicação: com fatos simples, as
relações entre os fatos são também transparentes. O que queremos é encontrar um meio de
discernir as causas, de que dependem as formas mais essenciais do pensamento e da
prática religiosa. Os primeiros sistemas de representações que a humanidade produziu de si
mesma e do mundo são de origem religiosa. A religião é ao mesmo tempo cosmologia e
especulação sobre o divino. Ela contribuiu para formar o espírito humano, e os homens
devem a ela grande parte de seus conhecimentos e como estes são elaborados.
Na raiz de nossos julgamentos existe um certo número de noções essenciais que
dominam nossa vida intelectual: tempo, espaço, gênero, número, causa, substância,
personalidade etc. São como molduras sólidas que cravam o pensamento, este não
consegue pensar objetos que não estejam no espaço-tempo, que não sejam contáveis etc.
São como a ossatura da inteligência. A religião é coisa eminentemente social. As
representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas;
os ritos surgem no seio de grupos reunidos e se destinam a suscitar, manter, ou refazer
certos estados mentais desses grupos. A noção de tempo não é organizada individualmente,
mas é pensada por todos os homens de uma mesma civilização. Esses pontos de
referência em relação aos quais todas as coisas são classificadas temporalmente, são
tomados da vida social. O calendário exprime o ritmo da atividade coletiva ao mesmo tempo
que assegura sua regularidade. Como demonstrou Hamelin, A representação espacial
consiste em uma primeira coordenação introduzida entre os dados da experiência sensível.
Essa coordenação seria impossível se as partes dos espaços fossem iguais, pois para
dispor espacialmente é preciso situá-las diferentemente: à direita e esquerda, acima e
abaixo. O espaço assim como o tempo, não seriam os mesmos se não fossem diferenciados
e divididos. Existem tribos na Austrália e América do Norte em que o espaço é concebido
sob a forma de um círculo imenso, uma vez que o próprio campo tem forma circular. A
organização social serviu de modelo para a organização espacial. Nas mitologias vemos
seres com poderes contraditórios: ao mesmo tempo, uns e vários, materiais e espirituais,
que podem se subdividir sem perder nada do que os constitui.
A razão versus o empírico: o empirismo é o ponto em comum onde todos os espíritos
se encontram (exprimem o estado momentâneo de uma consciência particular: individual e
subjetiva). A razão é o conjunto das categorias fundamentais, da qual não podemos escapar
livremente. Reduzir a razão à experiência é fazê-la desfalecer, pois reduz a universalidade e
a necessidade que a caracterizam a não ser nada. Consequentemente, nega-se qualquer
realidade objetiva a vida lógica que as categorias têm por função regular e organizar (o
irracionalismo). Os aprioristas respeitam mais os fatos, pois não admitem como verdade
evidente que as categorias sejam constituídas dos mesmos elementos que nossas
representações sensíveis. São os racionalistas: acreditam que o mundo tem um aspecto
lógico expresso pela razão. Mas devem atribuir ao espírito certo poder de ir além da
experiência. Trata-se de saber por que a experiência não se basta, mas supõe condições
exteriores e anteriores, e como é possível que essas condições se verifiquem quando e
como convém. Se a razão é apenas uma forma de experiência individual, não existe mais
razão. Se lhe reconhecemos os poderes que ela se atribui, sem os explicar, parece que a
colocamos fora da natureza e da ciência. As representações que exprimem a sociedade,
tem um conteúdo completamente diferente do individual, mas as primeiras acrescentam
alguma coisa às segundas. As representações coletivas são o produto de uma imensa
cooperação que se estende no tempo e no espaço: para produzi-las, vários espíritos se
associaram, misturaram, combinaram suas idéias e sentimentos.
O ser humano é duplo: possui um ser individual com base no organismo
estreitamente limitado, e um ser social, a mais alta realidade, na ordem intelectual e moral.
As categorias são necessárias, pois se os homens não estivessem de acordo sobre essas
ideias essenciais, todo acordo entre as inteligências, torna-se impossível. Para que a
sociedade exista, há que se ter um conformismo moral e lógico suficiente. Uma ideia
necessária, impõe-se ao espírito sem ser acompanhada de provas. Há algo nela que
conquista adesão, sem exame prévio, dominam todo o pormenor da nossa vida intelectual.
Se os homens não estivessem de acordo sobre as ideias do tempo, espaço, causa, número
etc, o acordo entre as inteligências, se tornaria impossível, tornando impossível a vida
comum. A sociedade necessita de suficiente conformismo moral e lógico. Por isso ela pesa
com sua autoridade sobre seus membros a fim de prevenir as dissidências. Se um indivíduo
infringe, além do julgamento exterior, há também um interior. Essa parece ser a origem da
autoridade da razão e que faz com que aceitemos suas sugestões. A necessidadecom que
as categorias se impõem em nós, é uma espécie de necessidade moral. As relações
fundamentais que existem entre as coisas - que as categorias tem por função exprimir- não
poderiam ser essencialmente dissemelhantes de acordo com os reinos. As ideias de tempo,
espaço, gênero, causa, personalidades são construídas com elementos sociais, e essa
origem social presume que não deixam de ter fundamento na natureza das coisas.
A teoria do conhecimento, afirma como real a dualidade da nossa vida intelectual,
mas a explica mediante causas naturais. As categorias aparecem como instrumentos
científicos de pensamento que os grupos humanos forjaram ao longo dos séculos e onde
acumularam o melhor de seu capital intelectual. Uma parte da história da humanidade está
resumida aí. Para saber do que são constituídas essas concepções que não foram forjadas
por nós, devemos olhar a história. Se entre determinados povos, as ideias de sagrado, de
alma, de deuses, explicam-se sociologicamente, cientificamente deve-se presumir que a
mesma explicação vale para todos os povos onde essas ideias encontram as mesmas
características essenciais. Os teóricos que buscaram expressar a religião em termos
racionais viram as crenças e representações, como sendo consideradas o elemento
essencial da religião. Os ritos apareciam como expressão indeterminada e material, desses
estados internos que, únicos, passam a ter valor intrínseco. Mas os que vivem a vida
religiosa, falam que essa maneira de ver não corresponde à experiência cotidiana. Sentem
que a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento,
mas nos fazer agir, nos ajuda a viver. O fiel que comungou com o seu deus, sente em si
força maior para suportar as dificuldades da existência e vencê-las. Está elevado acima de
sua condição de homem; acredita-se salvo do mal. O primeiro artigo de qualquer fé é a
crença na salvação pela fé. Do fato de representarmos um objeto como digno de ser amado
e procurado não segue que nos sintamos mais fortes; é preciso que dele emane energias
superiores às que dispomos e que tenhamos um meio de fazê-las penetrar em nós e
integrá-las a nossa vida interior. Para isso é indispensável que ajamos e repitamos os atos
toda vez que for útil para renovar os seus efeitos. O culto é a coleção de meios pelos quais a
fé se cria e se recria periodicamente.As experiências religiosas repousam sobre uma
experiência específica, cujo valor demonstrativo não é inferior ao das experiências
científicas, mesmo sendo diferente. O fato de uma experiência religiosa existir, só porque
assim se quer, e porque de alguma maneira é fundada, não se conclui absolutamente que a
realidade que a funda esteja objetivamente conforme à ideia que os crentes têm dela.
Vimos que a realidade, que as mitologias representaram sob formas tão diversas,
mas que é a causa objetiva universal e eterna dessas sensações de seu próprio gênero, de
que é constituída a experiência religiosa, é a sociedade. Porque o que faz o homem é
aquele conjunto de bens intelectuais que constitui a civilização, e a civilização é obra da
sociedade. A sociedade só pode fazer sentir sua influência, se ela for ato, e ela só é ato se
os indivíduos que a compõem estão reunidos e agem em comum. É pela ação que ela toma
consciência de si e se impõe; ela é antes de tudo uma cooperação ativa. Estabelecemos
que as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, a ciência, têm origens
religiosas. Até um momento relativamente avançado da evolução, as regras da moral e do
direito eram indistintas das prescrições rituais. Se a religião gerou tudo o que existe de
essencial na sociedade, é porque a ideia da sociedade é a alma da religião.
As forças religiosas são forças morais. Os sentimentos coletivos só podem tomar
consciência de si próprios fixando-se sobre objetos exteriores, para se constituírem elas
adquiriram uma espécie de natureza física, que se misturou a vida do mundo material, para
se explicar o que ocorre. Mas na realidade, é da consciência que são extraídos os
elementos essenciais que a constituem. Seu caráter são sentimentos objetivados. Todas as
religiões, até as mais grosseiras, são espiritualistas, agindo sobretudo sobre a vida moral. A
sociedade é uma ideia que vem traduzir na consciência nossas aspirações mais ou menos
obscuras pelo bem, o belo, o ideal. O anti deus, é um deus inferior e subordinado, dotado de
vários poderes e objeto de ritos negativos. A religião reflete a imagem da sociedade real, até
em seus aspectos mais vulgares e repelentes, mas aí ela encontra-se aumentada,
transformada, idealizada.
O sagrado é sobreposto ao real, o ideal também. Ao mundo real, onde se desenrola
sua vida profana, o homem sobrepõe outro que só existe no seu pensamento, mas que ele
atribui em relação ao primeiro, uma espécie de dignidade mais alta (mundo ideal). O ideal é
produto natural da vida social. Para A SOCIEDADE TOMAR CONSCIÊNCIA DE SI e se
manter, é necessário que se ajunte e se concentre. Essa concentração exalta a vida moral
que se traduz em um conjunto de ideais onde se esboça a nova vida despertada. Essas
forças psíquicas se acrescentam às que dispomos para a tarefas cotidianas. Quando
opomos a sociedade ideal à sociedade real, como antagonistas, realizamos abstrações.
Uma sociedade não se constitui só pela massa de indivíduos, pelo solo que ocupa, pelas
coisas de que se serve, pelos movimentos, mas antes de tudo, pela ideia que faz de si
mesma. O ideal coletivo expresso pela religião, foi antes idealizado pelo indivíduo com base
nas exigências da vida coletiva. Foi a sociedade que atraindo-o para sua esfera de ação, o
fez sentir necessidade de se elevar acima do mundo da experiência e forneceu-lhe os meios
para conceber outro. A idealização é uma condição para a existência humana. O ideal
pessoal, origina-se do ideal social, à medida que a personalidade individual se desenvolve e
se torna fonte autônoma de ação. A consciência coletiva é mais que um simples acessório
de sua base morfológica. Para que ela apareça, é preciso uma síntese única das
consciências particulares. Essa síntese libera um mundo de sensações, ideias, imagens que
obedecem a leis próprias, e se atraem, repelem, se fundem, se segmentam, proliferam, sem
serem exigidas diretamente pelo estado da realidade abaixo. A vida criada assim, tem
independência grande o suficiente para se empenhar em manifestações sem
objetivo/utilidade, apenas para se afirmar. Esse é o caso dos rituais e do pensamento
mitológico.
A consciência coletiva ao se encarnar nas consciências particulares, também se
particulariza, formando seres sagrados secundários; feitos à sua imagem, associados à vida
íntima, solidários com seu destino individual (alma, antepassado protetor, o totem individual
etc.). Estes tratam de uma primeira forma de culto individual. Como se atribuía pouco valor à
personalidade individual, não havia um culto que a exprime bem desenvolvido. À medida
que os indivíduos se diferenciavam e o valor da pessoa aumentou, o culto também assumiu
maior espaço na vida religiosa e se fechou completamente para o exterior (formas
individualizadas de forças coletivas). Uma filosofia pode elaborar-se no silêncio da
meditação interior, mas uma fé não, pois ela é calor, vida, entusiasmo, exaltação da
atividade mental, transporte do indivíduo acima de si mesmo. Para nos reaquecermos
moralmente precisamos dos nossos semelhantes; as forças morais com as quais nos
sustentamos e aumentamos as nossas são as emprestadas por outrem. Se existirem seres
mitológicos, para que exerçam ação útil sobre as almas, é preciso que se acredite neles. O
homem que tem fé, sente a necessidade de difundi-la, para isso sai de seu isolamento e
aproxima-se dos outros para convencê-los, e o ardor de suas convicções reforçam sua fé.
Além do comércio rudimentar, os casamentos internacionais na Austrália unem tribos
vizinhas e de mesma civilização. Os homens tomam consciência do parentesco moral que
os une: as mesmas classes matrimoniais,clãs,divisão em fratrias, organização social, ritos
de iniciação ou outros similares. As personagens mitológicas apresentam o mesmo caráter;
são deuses internacionais. Não existe vida nacional sem ser dominada por uma vida coletiva
internacional. Não pode haver sociedade que não sinta a necessidade de conservar e
reafirmar, em intervalos regulares, os sentimentos e ideias coletivas que constituem sua
unidade e personalidade. Isso é feito em reuniões, assembleias, congregações onde
indivíduos próximos reafirmam em comum seus sentimentos comuns, daí as cerimônias não
divergirem, quanto a natureza, das cerimônias religiosas. A religião não é só um sistema de
práticas, é um sistema de ideias cujo objetivo é exprimir o mundo através de cosmologias.
As realidades a que se aplicam a especulação religiosa são aquelas que mais tarde servirão
como objetos para reflexão dos pensadores: natureza, homem e sociedade. A religião tenta
traduzir essas realidades em linguagem inteligível que não difere, quanto a natureza, da
empregada pela ciência. Trata-se de ligar as coisas entre si e estabelecer relações internas,
classificá-las, sistematizá-las. O pensamento científico é apenas uma evolução do
pensamento religioso, por isso o segundo se apaga à medida que o primeiro se torna mais
apto para cumprir a tarefa. O conflito entre religião e ciência, é uma ideia inexata. O que a
ciência contesta na religião não é o direito de ser, mas de dogmatizar sobre a natureza das
coisas. Ela é chamada a se transformar mais do que a desaparecer.
Uma coisa eterna na religião é o culto, a fé. Mas para que os homens celebrem as
cerimônias que possuam uma razão de ser, ou aceitem uma fé que compreendam, é preciso
estabelecer a sua teoria. Essa teoria é obrigada a se apoiar nas diferentes ciências, assim
que elas existem: sociais primeiro, devido às suas origens sociais; psicologia, pois a
sociedade é uma síntese de consciências humanas; ciências da natureza, já que o homem e
a sociedade são função do universo e só artificialmente podem ser retirados dele. Teorias
que se destinam a fazer agir e viver, são obrigadas a passar na frente das ciências
completando-a prematuramente. As religiões, até as mais racionais e laicizadas, não podem
dispensar uma espécie particular de especulação: as intuições obscuras da sensação e do
sentimento servem aí, como razões lógicas. Mesmo se atribuindo o direito de superar a
ciência, é preciso levá-la em conta; é dela que se deve partir. O que pode fazer da vida
social uma fonte tão importante da vida lógica? a matéria do pensamento lógico é feita de
conceitos. O conceito se põe a representações sensíveis de toda ordem - sensações,
percepções, imagens. Não temos segurança em fazer a experiência de uma percepção, tal
como da primeira vez; pois se o objeto percebido não mudou, nós é que mudamos. O
conceito parece estar fora do tempo e do devir.Não se move por si mesmo
espontaneamente. Uma maneira de pensar que é fixada e cristalizada a todo tempo. É
expresso pelo vocabulário da nossa língua materna.
Um conceito não é o meu conceito; ele é comum a mim a aos demais homens, ou
pode ser comunicado a eles. Não se pode passar uma sensação da minha consciência para
a de outrem, tudo o que posso fazer é convidar o outro a se colocar diante do mesmo objeto
que eu e abrir-se a sua ação. O diálogo, consiste na troca de conceitos, de representações
impessoais para que as inteligências se comuniquem. Portanto é uma obra da comunidade
e por isso mesmo tem mais estabilidade que as sensações ou imagens. Todas as vezes que
vemos um pensamento ou ação que se impõe uniformemente as vontades e inteligências
particulares, essa pressão revela a intervenção da coletividade. As noções que
correspondem aos diversos elementos da língua, são representações coletivas.
Na palavra condensa-se toda uma ciência mais que individual; ela me supera a ponto
de eu não conseguir me apropriar de todos os seus resultados, afinal não conhecemos
todas as palavras da língua que falamos e o significado integral de cada uma delas. Elas
correspondem à maneira pela qual a sociedade pensa as coisas de sua própria experiência.
Na maioria das vezes, os conceitos são ideias gerais, exprimem categorias e classes mais
que objetos particulares. Por força da sua extensão ela não pode ser atingida senão por
suas propriedades gerais e permanentes. O valor que o pensamento conceitual tem para
nós, vem do fato de acrescentarem a experiência pessoal o que a coletividade acumulou de
sabedoria e ciência ao longo dos séculos. Conceber uma coisa é situá-la no seu conjunto e
apreender melhor seus elementos essenciais. Mas a assimilação dessas noções é sempre
imperfeita. cada um de nós as vê à sua maneira. Daí a dificuldade de nos entendermos:
empregamos as mesmas palavras sem atribuir a ela o mesmo sentido. Pensar logicamente
é sempre pensar de maneira impessoal.
A vida lógica supõe que o homem saiba, ao menos confusamente, que existe uma
verdade, diferente das aparências sensíveis. Foi sob a forma de pensamento coletivo que o
pensamento impessoal se revelou a humanidade. Desde então o indivíduo se dá conta, que
acima de suas representações privadas existe um mundo de noções-tipos pelos quais é
obrigado a regular suas ideias. Os conceitos não serão creditados apenas por serem
verdadeiros, mas por estarem em harmonia com outras crenças, opiniões, com conjunto das
representações coletivas. a fé na ciência não difere da fé religiosa, pois, é da opinião que lhe
vêm a força necessária para agir sobre a opinião.
Os conceitos exprimem a maneira pela qual a sociedade concebe as coisas; o
pensamento conceitual é contemporâneo da humanidade. Um homem que não pensasse
por conceitos não seria ser social, e por isso, indistinto do animal. A maior parte de nossos
conceitos atuais, só são definidos em discussões e trabalhos científicos. Já que o
pensamento lógico começa com o conceito, conclui-se que ele sempre existiu. Mas a lógica
se apresentou de modo diferente ao longo da história, evoluindo como as sociedades.
Pelo menos algumas das categorias são coisas que exprimem conteúdos de
aspectos diferentes do ser social e portanto obras da coletividade. As categorias são os
quadros permanentes da vida mental. O papel das categorias é envolver todos os outros
conceitos, a categoria por excelência deve ser o conceito de totalidade, que supera
infinitamente o conteúdo de cada consciência individual isoladamente. O mundo expresso
pelo sistema total de conceitos é aquele que a sociedade se representa. O conceito de
totalidade é a forma abstrata do conceito de sociedade, por isso nas classificações primitivas
os seres de todos os reinos são situados e classificados nos quadros sociais assim como os
humanos. Além disso, as relações exprimidas pelos elementos constitutivos das categorias,
não podiam se tornar conscientes senão na e pela sociedade. A sociedade só é possível se
os indivíduos e coisas que a compõem estão repartidos em diferentes grupos (classificados),
e se esses grupos estão classificados uns em relação a outros. Essa organização
comunica-se com o espaço que ocupa: para evitar choques, cada grupo particular deve
estar em uma porção do espaço e que essas divisões e orientações sejam conhecidas por
todos os espíritos. Qualquer convocação para uma festa, caçada, expedição, implica que
datas sejam fixadas, convencionadas e que um tempo comum seja estabelecido e
concebido da mesma maneira por todos. Atribuir ao pensamento lógico origens sociais é
vinculá-lo a uma causa que o implica naturalmente. Mas essas noções nem sempre se
adequam ao objeto, pois se a sociedade é o universal em relação a um indivíduo, esse
sujeito particulariza o que pensa.
O pensamento lógico tende a se desembaraçar cada vez mais dos elementos
subjetivos e pessoais que carregam na origem, porque uma vida social de gênero novo se
desenvolveu cada vez mais: a vida internacional que tem como efeito universalizar as
crenças religiosas. A sociedade deixa de aparecer como o todo, para tornar-se parte de umtodo muito mais vasto , de fronteiras indeterminadas e suscetíveis de recuar
indefinidamente. As coisas precisam ser reorganizadas de acordo com princípios lógicos
próprios e assim a organização lógica se diferencia da organização social e torna-se
autônoma.
A ciência e a religião derivam da mesma fonte: são orientadas para o universal. A
ciência e a moral implicam que o indivíduo se eleve acima do seu ponto de vista e viva uma
vida impessoal. A razão impessoal é outro nome dado ao pensamento coletivo, pois só é
possível com agrupamento de indivíduos; esses só podem se manter agrupando-se. Há algo
de social em nós, e essa impessoalidade se estende às ideias e aos atos.
Toda criação, exceto as que escapam à ciência e à inteligência, é produto da síntese.
A sociedade é o mais forte feixe de forças físicas e morais que a natureza nos mostra.
Acima do indivíduo existe a sociedade e esta não é um ser nominal e de razão, mas um
sistema de forças operantes. Convém pesquisar se aquilo que no indivíduo, supera o
indivíduo não viria dessa realidade supra individual, mas dada na experiência que é a
sociedade.

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