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Dificuldades De Aprendizagem Na Alfabetizacao

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Prévia do material em texto

Coleção Linguagem e Educação
ORGANIZADORAS
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Maria das Graças de Castro Sena
DIFICULDADES DE
APRENDIZAGEM NA
ALFABETIZAÇÃO
2
ª
 edição, 3 reimpressões
3
ª
 edição
Apresentação
Desde a primeira edição deste livro no ano 2000, já
afirmávamos (professores e pesquisadores) que
desejávamos entrar no século XXI olhando com outros olhos
para o fenômeno do “fracasso escolar”, os olhos da
possibilidade de erradicá-lo. Passados 11 anos, avançamos
muito neste aspecto, muitas pesquisas na área da
alfabetização e letramento já foram realizadas, muitas
mudanças nas práticas pedagógicas já foram concretizadas,
mas permanece a preocupação de não se excluir meninos e
meninas das camadas populares dos processos de ensino-
aprendizagem. Nossos olhos de professores e pesquisadores
na área da educação estão voltados, no século XXI, tanto
para o fracasso quanto para o sucesso escolar das pessoas
mais pobres da população brasileira, público alvo das
pesquisas que apresentamos neste livro. Estamos atentos
em compreender os fenômenos do fracasso e do sucesso
escolares sem naturalizá-los e, portanto sem legitimar a
exclusão de muitos alunos a partir do uso dos
conhecimentos científicos sejam eles da medicina, da
psicologia ou de qualquer outra área do conhecimento.
Os artigos que fazem parte deste livro foram elaborados
com base numa pesquisa do Programa Iniciação Científica
da UFMG, financiada pelo CNpQ, em dissertações de
mestrado e uma tese de doutorado defendidas no período
de 1990 a 1996, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais e no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, respectivamente. Eles tratam
basicamente do sucesso e do fracasso escolar na
aprendizagem da leitura e da escrita, e não apenas do
fracasso de alguns alunos de camadas populares que
estudam em escolas públicas de Belo Horizonte, Ibirité,
Brumadinho e Sabará, com a perspectiva de
“desnaturalizar” o fenômeno do “fracasso escolar” daqueles
aprendizes.
Muitas perguntas orientaram a condução das pesquisas
que são apresentadas neste livro, como: apesar das
dificuldades dos alunos, o que eles são capazes de
aprender, dentro e fora da escola? Por que alguns aprendem
a ler e a escrever e outros não? Que processos de ensino e
aprendizagem os divide e separa em “bons” e “maus”
alunos? Como seus familiares se relacionam com essa
divisão? Como encaram o sucesso e/ou fracasso de seus
filhos? Como as próprias crianças lidam com o sucesso e o
fracasso escolar? Como a escola lida com a subjetividade e
a individualidade de seus alunos?
Nesta publicação, os autores abordam a questão do
sucesso e do fracasso escolar de uma forma relacional, ou
seja, buscam discuti-la sob a lógica do “e” e não do “ou”.
Sendo assim, tanto os fatores relativos às crianças e suas
famílias quanto os fatores relativos às escolas, à sociedade
e ao sistema de ensino estarão fazendo parte das análises
dos estudos de casos. Não se trata portanto, de “culpar” um
ou outro segmento, mas, sim, de discutir a questão da
forma mais ampla e aprofundada que nos foi possível fazer.
Os artigos mostram a necessidade de se trabalhar com
as potencialidades das crianças, a partir de seus
conhecimentos prévios, numa perspectiva de letramento,
de maneira que os usos e funções da leitura e da escrita
estejam presentes no processo de alfabetização. Todos eles
apontam a necessidade de se reverem práticas pedagógicas
calcadas na memorização excessiva e de a escola abrir-se
para a escuta dos problemas de seus alunos com a
perspectiva de promovê-los, e não de usar seus problemas
como justificativa de fracassos escolares. Portanto,
esperamos que esta publicação sirva de instrumento para
os educadores refletirem sobre as suas práticas de
alfabetização, leitura e escrita com os alunos que obtêm
sucesso e com aqueles que fracassam nessa área.
 
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Capítulo 1
LEITURA E ESCRITA: A PRODUÇÃO
DOS “MAUS” E “BONS” ALUNOS
Maria de Fátima Cardoso Gomes
1
 
Várias pesquisas sobre a escola pública, como, por
exemplo, Silva (1995), Gomes (1995), Maciel (1994), Griffo
(1994), Rezende (1994), Oliveira (1994), Carvalho (1993),
Sena (1990), têm demonstrado que a grande maioria dos
educadores tenta remediar os efeitos de práticas
pedagógicas que fracassam buscando na psicologia, na
sociologia e na medicina justificativas científicas tanto para
o fracasso quanto para o sucesso escolar de crianças de
camadas populares.
Esses educadores adotam mecanismos variados para
separar os “bons” dos “maus” alunos, desde critérios de
avaliação que norteiam os processos de enturmação, o
remanejamento, a fixação de normas disciplinares e
higiênicas até o encaminhamento dos “maus” alunos para
clínicas ou escolas especializadas. Acabam depositando no
aluno toda a “culpa” pela não aprendizagem da leitura e da
escrita sem que o processo escolar e social em que estas
são produzidas seja levado em conta pelos educadores,
sobretudo das escolas públicas.
Este trabalho focalizou as causas do “fracasso escolar”
nos primeiros ciclos do processo de ensino e aprendizagem
da leitura e da escrita. Na tentativa de explicação do
fracasso, foram analisados os aspectos sociais, escolares e
psicolinguísticos.
Tentou-se avaliar o peso do ambiente escolar com suas
normas explícitas e implícitas de conduta, construídas pela
professora, pelos alunos e pela própria escola. Tentou-se
mostrar também que o desempenho linguístico dos “bons”
e dos “maus” alunos está vinculado às representações
sobre esses e desses mesmos alunos.
A metodologia usada na pesquisa foi a de um estudo de
caso etnográfico. O que me interessou investigar foi o
processo de produção de “maus” e de “bons” alunos
inseridos num contexto escolar e suas representações sobre
esse processo.
Foi feita uma investigação sistemática procurando
retratar o idiossincrático e descobrir elementos importantes
que pudessem emergir durante o estudo.
O material base desta pesquisa foi colhido durante o ano
de 1993, em uma escola pública da rede municipal de Belo
Horizonte. Foi escolhida uma sala de aula de 1ª série,
composta por alunos novatos, de camadas populares, sendo
que a maioria não havia frequentado o pré-escolar.
O meu interesse, portanto, voltou-se para o dia a dia da
escola, para as questões rotineiras que compõem os
significados construídos pelos educadores e alunos nos
rituais que celebram no interior da sala de aula. Isso
implicou apreender as “teias de significados” que alunos,
professora e demais profissionais da escola teceram, na sua
complexidade, irregularidade, opacidade, estranheza e
incoerência, a fim de buscar uma “ciência interpretativa” à
procura de significados (GEERTZ,1978, p. 15) e não leis gerais
que explicassem a produção do “fracasso escolar”.
 
Três questões nortearam a condução da pesquisa:
1- Que relações de poder estabelecidas no contexto escolar
e fora dele estarão influenciando a exclusão dos “maus”
alunos do processo de alfabetização?
2- Que objeto pré-construído está presente nas
representações dos educadores para justificar a exclusão?
3- Em que condições as dificuldades de ensino e
aprendizagem se manifestam?
A partir dessas questões, o estudo pretendeu romper
com as explicações naturalistas, biologistas e individuais do
senso comum para o “fracasso escolar” presentes,
inclusive, nas práticas científicas. Trata-se, pois, de romper
com o “etnocentrismo” dos pesquisadores e considerar que
a “neutralidade” é falsa e a “objetividade inexiste”
(THIOLLENT, 1987, p. 28). O convívio do pesquisador com os
pesquisados consiste na tentativa de explicitar o que não é
dito e de revelar o que está oculto no discurso, permitindo
que os sintomas que mantêm intocável e inflexível o modelo
teórico dos educadores se revelem. Isso é possível apenas
no movimento de estranhamento entre pessoas e de
aproximação, quando se pode desvelar o que está ocultoe
explicitar relações de que não se tem conhecimento.
Os sujeitos da pesquisa
Trabalhei com um grupo de seis crianças. Três delas
(Lauro, Fernanda e Gustavo) foram consideradas pela escola
como “maus” alunos e as outras três (Neide, Glória e
Francisco), “bons” alunos.
Segundo a professora, “os ‘bons’ alunos fazem o para-
casa do jeito que ela gosta, decoram as sílabas e aprendem
a ler, têm hábitos de higiene, têm cadernos limpos e
caprichados, vão para a escola de uniforme e calçados
limpos, sabem ouvir, têm atenção, olham para o quadro,
têm letra linda e seus pais comparecem às reuniões e
atendem imediatamente a qualquer chamado da escola”. A
qualidade maior do “bom” aluno é a atenção.
Àqueles que não correspondem às expectativas de
aprendizagem da leitura e da escrita, por parte das
educadoras da escola pesquisada, restam os rótulos de
“preguiçosos”, “malandros”, “desinteressados”, “sujos”,
“lambões”, “infrequentes”, “molezas”, “lerdos”, imaturos”.
São os “maus” alunos, que, de acordo com a professora,
não decoram as sílabas e não aprendem a ler, não têm
hábitos de higiene, têm piolhos, usam uniforme, calçados e
material escolar sujos, não têm ajuda em casa e seus pais
não comparecem às reuniões nem atendem aos chamados
da escola. A desqualificação maior do “mau” aluno é a falta
de atenção e a preguiça.
Como se deu o processo de produção
dos “bons” e dos “maus” alunos?
Durante todo o ano de 1993, em que estive dentro da
sala de aula — lugar onde se manifestam e se entrelaçam
as contradições e, portanto, o lugar concreto onde se
produzem as dificuldades de aprendizagem da leitura e da
escrita e também onde as interações sociais acontecem
dinâmica e contraditoriamente —, foram se revelando os
mecanismos seletivos e a diferença de tratamento da escola
com relação aos “bons” e aos “maus” alunos.
Dentro da sala de aula formaram-se duas redes de
comunicação: principal e paralela (SIROTA,1988).
2
A rede de comunicação principal é aquela constituída
pelos alunos que são sujeitos da comunicação, porque
participam e são interessados, valorizados, têm coisas a
dizer porque a situação de aprendizagem faz sentido para
eles.
A rede de comunicação paralela é aquela constituída
pelos alunos que ocupam uma posição exterior à rede de
comunicação principal na medida em que não são nem
interessados, nem valorizados e desenvolvem condutas
escolares ilegais e desviantes, ou são apáticos.
Geralmente, os “bons” alunos, mesmo não produzindo
discursos conformes à norma esperada (falam a qualquer
momento, contam casos pessoais), permanecem na rede de
comunicação principal, pois quando utilizam as regras
explícitas (atenção, falar na hora certa, levantar o dedo
para falar, etc.) de tomada da palavra tentam transpô-las
para um registro implícito, negando e reconhecendo,
concomitantemente, a norma escolar e, portanto,
demonstrando que nesse jogo uma das regras é a exceção.
Assim, o que distingue os alunos é a negociação da norma
escolar que conseguem estabelecer em sua relação com a
professora, quer seja pelo exagero, pela adesão, pelo
retraimento ou pela oposição a ela.
Os “bons” alunos estiveram, predominantemente, na
rede principal de comunicação, embora, transitassem pela
rede paralela. Corresponderam às expectativas de
aprendizagem da leitura e escrita da escola e nem sempre
corresponderam às expectativas de conduta. Glória foi a
surpresa. No início do ano, esperava-se dela que não
aprendesse a ler e escrever, assim como seus irmãos.
Possivelmente, o reforço escolar recebido fora da escola, no
Centro Estudantil da Lagoinha, tenha sido fundamental para
o seu sucesso, pois ela aprendeu a ler e escrever ainda no
1º semestre.
Os “maus” alunos estiveram, predominantemente, na
rede paralela de comunicação, embora transitassem
(raramente) pela rede principal. De um lado foram
“guerreiros”, enfrentando a discriminação e o preconceito,
tanto por parte dos colegas quanto da própria escola, por
serem negros, pardos, pobres e favelados. Tentaram
aprender e participar das aulas apesar dos rótulos e
expectativas negativas da escola com relação a eles. Por
outro lado, corresponderam às expectativas negativas
quanto à aprendizagem da leitura e da escrita, pois
Fernanda e Lauro não passaram de ano e aprenderam
pouco a ler e escrever. Gustavo não correspondeu às
expectativas iniciais da escola quanto a sua aprendizagem
da leitura e da escrita, pois no início do ano, apesar de ter
sido considerado um aluno fraco, aprendeu a ler e escrever.
O que se enfatizava era o seu “mau” comportamento e não
as suas dificuldades de aprendizagem, diferentemente de
Lauro e Fernanda, que desde o início do ano foram
considerados “com dificuldades mesmo” para a leitura e a
escrita.
Outro mecanismo de seleção presenciado foi a ação do
poder disciplinar
3 
(FOUCAULT, 1989) na constituição de “bons”
e de “maus” alunos. Quem se encaixou nas regras do jogo
escolar avançou na aprendizagem, mesmo que muitas
vezes as negassem. O contrário ocorreu com aqueles alunos
que não iam para a escola com os cabelos limpos e
penteados, que não levavam material escolar e nem
cuidavam deles com capricho, que não prestavam atenção
às aulas, que brigavam com os colegas, que eram
“imaturos”, “bloqueados” e cujas famílias não compareciam
à escola nem ajudavam os filhos a fazerem o para-casa, ou
seja que rompiam com as regras escolares explícitas. Esses
aspectos como vimos, caracterizam os “maus” alunos e
foram usados para explicar suas dificuldades na leitura e na
escrita. Assim, a “culpa” das dificuldades recaiu sobre as
crianças e seus familiares, revelando que a escola ainda
está presa às teorias do “handicap sociocultural”
4 
, assim
como às teorias “cognitivistas”
5 
e “organicistas”
6 
para
explicar a não aprendizagem dos “maus” alunos. Revela
também que a escola ainda não percebe que as dificuldades
são de ensino e de aprendizagem, que entre crianças de
camadas populares e escola existe uma relação que não
está sendo questionada. Trata-se de uma relação arbitrária,
cultural: apenas aqueles alunos cujo habitus
7 
se aproxima
do habitus que a escola valoriza se saem bem na
aprendizagem da leitura e da escrita.
Os “bons” alunos, apesar de chegarem à escola com
habitus diferentes daqueles valorizados pela escola, logo se
adaptaram, estabelecendo-se, assim, uma relação positiva
entre ambos.
Os “maus” alunos não se adaptaram tão facilmente ao
que a escola valoriza, sendo, portanto, discriminados e
desvalorizados por ela.
Todas as crianças demonstraram perfeito conhecimento
das regras escolares quanto ao comportamento no pátio, na
cantina e na sala de aula. Se não agem de acordo com elas,
não é por desconhecimento. O que se percebeu é que os
“bons” alunos acatam mais as ordens disciplinares, embora
intervenham mais vezes e com mais intensidade na sala de
aula do que os “maus” alunos. Tanto os “bons” quanto os
“maus” alunos assumiram o discurso da escola para
explicarem suas medidas punitivas (ora de ordem simbólica,
ora de ordem física) com relação à bagunça dos “maus”
alunos, ou seja, utilizaram a palavra “preguiça”, a mais
usada na sala de aula, para explicar a razão da não
aprendizagem e do mau comportamento de algumas
crianças.
Outro mecanismo de seleção de alunos diz respeito à
aprendizagem da leitura e da escrita. Em nossa pesquisa, os
“bons” alunos demonstraram maior conhecimento
linguístico que os “maus” alunos, como se pode ver nos
exemplos seguintes:
1- Numa conversa informal e individual com Lauro
apresentei-lhe uns toquinhos de madeira com letras
vermelhas, de imprensa, maiúsculas, em relevo. Pedi que
formasse palavras com eles.
Lau. Vou formar “lata” e formou: DACIXA.
Pesq. O que você formou?
Lau. DA.
Pesq. DA é letra, é sílaba ou nome de pessoa?
Lau. É nome de pessoa.
Pesq. Lê o que você formou.
Lau. DAQUIXA.
Pesq. O que é DAQUIXA?
Lau. Num sei.
Logo depois começou a formar a palavra RITO e leu-a.Depois formou BOFL e leu BOELA. Formou VLA e leu VELA.
Formou TUFA e leu TATU (disse que usou a letra F no lugar
da letra T porque estava faltando).
Esse aluno apresentou palavras treinadas na escola, com
produções variadas, tornando-se difícil determinar seu nível
de elaboração conceitual da língua escrita, pois os dados
pesquisados foram insuficientes para afirmar em que nível
ele se encontra. Vê-se um esforço mental para compreender
a língua escrita e não erros aleatórios ou esquecimentos.
Fernanda, por sua vez, diante dos toquinhos de madeira
formou: IAFP e não soube dizer o que formou. Mas apontou
as letras A,U,S e F corretamente e reafirmou que o F era de
Fernanda. Depois formou EIAO e disse ter formado MISAEL,
nome de seu irmão. Formou também EIO e disse que a letra
E seria a letra M, pois tinha formado MARLENE, nome de sua
irmã (hipótese silábica). Formou POAIA e disse que era o
nome de seu irmão PEDRO. Não soube dizer o nome da letra
P e disse ser T.
Essa aluna procura dar significado ao que escreve por
meio de nomes de pessoas ligadas a ela afetivamente, não
se restringindo às palavras com sílabas simples e treinadas
na escola. Indica que sabe que deve usar letras variadas
para escrever palavras diferentes, mas não tem o domínio,
o conhecimento específico das letras que formam as
palavras. Aparece na sua produção a hipótese silábica.
Num encontro com Neide, Francisco e Glória procurei
saber quais conhecimentos linguísticos esses alunos haviam
acumulado.
Pesq. O que vocês aprendem na sala?
Nei. Nóis aprende a ler, aprende sílaba.
Fer. As sílabas.
Glo. Hoje mesmo, a tia passou sílabas novas e amanhã
vai dar o ditado das sílabas.
Pesq. O que é sílaba?
Nei. Sílaba é ba,be,bi,bo,bu; ma,me,mi,mo,mu; é as
letrinhas dos nome que nós vamo aprender.
Pesq. O que é palavra?
Glo. Palavra é juntar as sílabas uma com a outra - o “la”e
o “ta” dá lata.
Pesq. O que é frase?
Nei. É nóis fazer assim: A vaca é do papai.
Pesq. O que é composição?
Todos - Ah! Isso eu num sei não.
Pesq. O que é escrita?
Nei. Escrita é nome que fica na roupa, igual este aqui.
Pesq. O que está escrito na sua roupa?
Todos. Escola Municipal.......
Pesq. O que é leitura?
Nei. Leitura é assim ó:
Glo. É a gente...
Nei. A bola rola... rola...
A bola rola na rua.
A rola voa... voa...
Todos- A rola voa no espaço.
A lua rola... rola...
A lua rola no céu.
Pesq. Vocês sabem de cor?
Nei. É do livro.
Essas crianças sabem diferenciar sílaba de palavra e de
frase. Possivelmente o termo composição esteja fora de
moda e por isso não souberam defini-lo. O termo usado na
escola é redação ou produção de texto. A definição de
escrita desses alunos não faz relação com o que eles
aprenderam na escola. Provavelmente porque no processo
de ensino e aprendizagem, a escrita tenha sido
transformada em mera cópia, não permitindo, portanto, a
essas crianças fazerem a relação de sua aprendizagem com
a escrita. A definição de leitura dada por eles ficou reduzida
ao escolarmente aprendido, não se relacionando com o que
estava escrito na camisa de uniforme, por exemplo. Vimos
que o fato de decorarem o “texto” da cartilha que elas
chamam de livro se configura como aprendizagem de
leitura. O aprendizado se fez de forma descontextualizada,
com ênfase na memorização de letras, sílabas, frases e
“textos”. No entanto, alguns alunos obtêm sucesso.
O que se observou também foi que ambos (“bons” e
“maus”) esperam, com a mediação da escola, uma
promoção social e a possibilidade de melhores empregos e
salários do que os de seus pais.Por exemplo, quando lhes
perguntei para que aprendem a ler e escrever disseram:
Ig. Pra ter uma profissão. Quem sabe ler e escrever
ganha mais.
Glo. Pra gente ter um serviço, num fazer nada errado,
prestar atenção.
Gus. A gente cresce, aprende tudo, arranja um serviço e
vai a mãe tá cansada e o filho fica trabalhando. E a mãe fica
arrumando a casa.
Tanto os “bons” quanto os “maus confrontaram o
discurso da escola com seus discursos, como por exemplo:
“A gente não fala nada, ela que quer fazer”. A escola diz
que combina regras com os alunos e eles dizem que não.
Outro exemplo: “Nu, a tia encheu o quadro”! Era cópia do
começo ao fim do ano, mesmo querendo fazer uma prática
agradável e inovadora. Ainda: — “A tia chamou a Neide”. —
“Chamou!!?? Chamou!!?? As crianças percebem as
diferenças de tratamento dentro da escola mesmo que o
discurso dos educadores seja elaborado em torno de
questões de igualdade: “aqui todos são iguais e
irmãozinhos”. Percebem as negociações implícitas e as
explícitas que são feitas entre a professora e os “bons”
alunos, principalmente.
Todas as crianças demonstraram grande capacidade de
reflexão sobre a língua escrita através das variações
ortográficas
8 
. Variações que foram consideradas pela escola
como aquilo que as crianças “não” aprenderam. Entretanto,
elas ocorreram nos pontos de instabilidade estrutural da
língua, indicando reflexão das crianças e não algo aleatório,
gratuito.
Tanto os “bons” quanto os “maus” alunos produziram
variações no sentido de se regularizar a escrita das
palavras. Ou seja, produziram variações ortográficas tanto
no plano acentual quanto silábico, em direção ao acento
mais canônico da língua portuguesa, o “paroxítono”, e em
direção à sílaba mais canônica da língua portuguesa, a
“CV”. Os exemplos dão visibilidade ao que foi dito:
Variações ortográficas, no nível da sílaba, produzidas nos
pontos de instabilidade da língua:
1- “cademilha” no lugar de academia — as variações
ocorreram nas sílabas não canônicas — cai o “a” inicial e
acrescenta-se “lh” na sílaba CVV tentando transformá-la em
CV.
2- “dinadica” no lugar de ginástica — variações de
diversas naturezas ocorrem nesta grafia, todas elas ligadas
à percepção auditiva; ou seja, os sons são muito parecidos,
mas ou se distinguem em relação às cordas vovais (“t” é
consoante surda e “d” a sonora correspondente) ou em
relação ao ponto de articulação (g é palatal e “d” é
linguodental). As trocas de consoantes indicam problemas
na articulação ou inversão no momento de representar
distinções feitas na fala. É interessante observar a tentativa
de transformar a única sílaba não canônica em sílaba
canônica: “nás” em “na”.
 
 
Variações ortográficas, no nível do acento:
 
1- “frenti” no lugar de frente, “tei” no lugar de tem, “ti”
no lugar de te: as sílabas fracas mostram maior ponto de
instabilidade (sílabas não acentuadas e aquelas com acento
na última e antepenúltima sílaba). As vogais átonas /e/ e /o/
sofrem um processo de alçamento, passando a /i/ e /u/
respectivamente.
Ainda no nível acentual ocorre a formação de palavras
fonológicas e grupos de força:
Ex. de palavras fonológicas: “nacasa”/na casa,
“uminino”/o menino. Isto se explica porque palavras que
não têm acento próprio, como o artigo ou a preposição,
serão sempre ligadas, do ponto de vista fonológico, a uma
outra palavra portadora de acento. O artigo ou preposição
passa a fazer parte da palavra seguinte.
Ex. de grupos de força: “lateto”/lá dentro, “latei”/lá tem,
“jalicontei”/já lhe contei. Aqui, a explicação se encontra no
fato de que palavras que têm acento próprio quando
isoladas (adjetivo, advérbio) podem ter seu acento
rebaixado devido à presença de outra palavra portadora de
acento principal no grupo. No exemplo, “lá” tem acento
enquanto isolada e é rebaixado em função do acento
principal, formando um só grupo de força.
 
 
 
As crianças da pesquisa produziram mais variações de
fusão do que de cisão (CARVALHO,1994), demonstrando que
estavam ainda se valendo de critérios fonológicos, mais do
que de critérios semânticos e sintáticos para escreverem —
escrita que é própria dos principiantes na aprendizagem da
leitura e da escrita. Exemplo de fusões: “jalicontei”,
“omenino”, “nacasa”. Exemplos de cisões: “a codado”, “mu
le pelada”, “um lepelada”, “mu lepe lada”.
 
 
As crianças que já segmentavam as palavrasproduziram
escritas alfabéticas, e as crianças que ainda não
segmentavam produziram escritas pré-silábicas, silábicas e
silábico-alfabéticas.
O que se verificou foi uma enorme vontade e capacidade
de aprendizagem tanto dos “bons” quanto dos “maus”
alunos. Se estes não avançaram mais, foi porque não lhes
foram dadas as condições necessárias e suficientes para tal
por parte da escola e de suas famílias.
O que se viu também foi que a profecia que se
autocumpre e o efeito Mateu
9 
direcionaram a prática
pedagógica observada. Deu-se às crianças o que elas
conseguiriam fazer sozinhas, pois segundo a professora,
“não adianta dar coisas muito difíceis porque eles não
conseguem fazer sozinhos e eu tenho que fazer junto com
eles. Eles (sistema de ensino) tinham que fazer uma coisa
mais simples que isso que já vem pronto pra você dar.
Porque os bons pegam, mas e os outros? Eu acho que tem
muito valor dar coisas que eles sabem fazer sozinhos”.
Esta fala mostra o desconhecimento, por parte da
professora, do conceito de “Zona de desenvolvimento
proximal”
10
, de Vygotsky, que pode ser um instrumento
valioso de intervenção dos professores no processo de
ensino e aprendizagem porque proporciona tanto às
crianças quanto aos adultos a construção e reconstrução de
conhecimentos, pois parte do pressuposto de que é na
interação social que se aprende e se desenvolve. Ou seja, o
que já vem pronto pode e deve ser questionado e
reformulado em função das necessidades e interesses tanto
dos alunos quanto dos professores.
Segundo Vygotsky (1989), não se pode ensinar às
crianças através de explicações artificiais, por memorização
compulsiva e repetição apenas. O que uma criança
necessita é de adquirir novos conceitos e palavras para
atribuir sentido e significado ao que aprende. E um conceito
não é apenas a soma de certas ligações associativas
formadas pela memória, assim como não é, também,
apenas um simples hábito mental; é um complexo e
genuíno ato de pensamento, um ato de generalização, que
envolve a atenção deliberada, a lógica, a abstração e a
capacidade de comparar e diferenciar. Esses processos
psicológicos não são adquiridos por simples repetição ou
rotina pedagógica, mas por um grande e longo esforço
mental por parte da criança, em interação com adultos e
outras crianças.
Assim sendo, aprender a ler e escrever, por exemplo, é
muito mais de que adquirir habilidades básicas. É
principalmente construir, obter e atribuir sentido e
significado à aprendizagem. Ou seja, em lugar das
habilidades básicas, devemos considerar as atividades
básicas, nas quais o que se percebe são os usos funcionais
da linguagem, que sejam relevantes e significativos, o que
implica ver a linguagem como uma totalidade. Portanto, no
processo de ensino e aprendizagem, o que se recusa é a
abordagem mecânica e a redução da leitura e escrita a
sequências de habilidades ensinadas isoladamente ou sob a
forma de estágios sucessivos. Para isso, enfatiza-se a
criação de contextos sociais (zonas de desenvolvimento
proximal) nos quais as crianças aprendam ativamente a
usar, provar e manipular a linguagem, colocando-a a serviço
da atribuição de sentido ou da criação de significado (GOMES
& FARIA FILHO, 1997).
Se por um lado o efeito Mateus e a profecia que se
autocumpre direcionaram a prática pedagógica observada,
por outro, há que se questionar a estrutura política e social
que a sustenta e alimenta. Há que se questionar e
relacionar essa prática com a organização das escolas
públicas, com os sistemas de avaliação dessas escolas, com
os baixos salários e com as condições de trabalho dos
profissionais que nelas estão. Há que se questionar a
formação desses profissionais nos cursos de magistério e
universidades.
Assim não cabe “culpar” a escola ou os professores e
especialistas ou os alunos e seus familiares pelo “fracasso
escolar” de determinados alunos (os mais pobres). Cabe,
sim, fazer relações entre a prática pedagógica mencionada
e as estruturas que a sustentam, fazer relações entre
crianças de camadas populares e escola pública. Assim,
estaremos dando um passo à frente para a democratização
do ensino no Brasil.
Notas
1
 Professora de Psicologia da Educação da FaE/UFMG e
pesquisadora do CEALE/FaE/UFMG.
2
 Sirota parte da hipótese de que no interior de um jogo de
igualdade formal entre alunos e professores, o discurso do
professor e seu comportamento produzem um arbitrário
cultural ou norma que define o interior da sala de aula. E
é com base nesta norma implícita e subjacente ao
funcionamento da sala que se produz um mecanismo de
valorização e desvalorização do discurso e do
comportamento de alunos, porque os alunos e professores
comparam, diferenciam, hierarquizam e se espelham ou
não no discurso e no comportamento do professor.
Entretanto, diz Sirota, não se joga o mesmo jogo com o
conjunto da sala. É aí que se pode distinguir duas redes
de comunicação: uma rede de comunicação principal e
uma rede de comunicação paralela.
3
 Segundo Foucault (1989), foi no século XVIII que se
inventaram as técnicas disciplinares e o exame, com o
objetivo de transformar os homens em força de trabalho
produtiva, proporcionando-lhes o sentimento de utilidade
máxima e diminuindo sua capacidade de revolta, de
resistência, de luta, de insurreição contra o poder
instituído. Em outras palavras, o poder disciplinar tem o
objetivo de tornar os homens dóceis politicamente. A
disciplina é um tipo de organização do espaço, é um
controle do tempo e a vigilância é um dos principais
instrumentos de controle. Ela deve ser contínua, ser vista
por todos, mas com discrição da parte de quem vigia.
Assim “o poder disciplinar é uma técnica, um dispositivo,
um mecanismo, um instrumento de poder. São métodos
que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças
e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”
(FOUCAULT, 1993, p. XVII). No século XIX as relações de
poder ganham positividade porque produzem saber. É um
poder característico de nossa época, de nossa sociedade,
que ocorre pela vigilância, por separações, por medidas
comparativas, e que tem a norma como modelo.
4
 Teoria do handicap sociocultural - surge nos anos 60, nos
E.U.A. e defende uma “superioridade” do controle cultural
das classes dominantes, em confronto com a “pobreza
cultural” do contexto em que vivem as classes
dominadas. O contexto é que é responsável pelos
“déficits” das crianças de camadas populares que se
veem privadas de alimentação, de atenção, de cultura,
apresentando “carências”, sobretudo no campo
intelectual.
5
 Teoria cognitivista - aparece e se desenvolve na França,
nos E.U.A. e na Grã-Bretanha, logo depois da 2ª guerra
mundial (FIJALKOW, 1989). Nasceu da psicologia e
pretendeu fazer a crítica à concepção organicista. Busca
as origens das dificuldades de aprendizagem da leitura e
da escrita na inteligência, na percepção, nas imagens, na
integração de sentidos auditivos e visuais, na memória
imediata, na atenção seletiva e na linguagem, ou seja,
naquilo que ela denomina de déficits cognitivos.
6
 Teoria organicista - surge na França, no século XIX, da
medicina: os médicos localizavam as causas das
dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita no
cérebro. Alguns estudiosos defendem que tais dificuldades
são inatas, outros que são adquiridas e ainda há aqueles
que não entram na polêmica do inato/adquirido e
localizam-nas na não maturação do sistema nervoso
central.
7
 Habitus - O habitus (BOURDIEU, 1983) produz
comportamentos, linguagens, posturas, gestos, valores,
costumes. Não é uma “espécie de essência a-histórica,
cuja existência seria o seu desenvolvimento, enfim um
destino definido de uma vez por todas” (p. 106). Ele indica
não só as regras de comportamento aprendidas em casa,
como também as maneiras de falar, de ser, ou seja, a
subjetividade das crianças, que por sua vez denuncia suas
origensde classe. Assim, o habitus é produto das relações
sociais. Ele tende a assegurar a reprodução dessas
mesmas relações e não possui o domínio consciente das
ações, pois ultrapassa sempre as intenções conscientes. É
um processo de internalização da objetividade que ocorre
de forma subjetiva, mas que não é apenas individual, é
também social.
8
 Variações ortográficas - Alvarenga (1995) utiliza o termo
variação ortográfica no lugar de erro ortográfico, pois
segundo esse autor, a palavra erro se define em
referência a um quadro teórico que admite a existência de
uma norma social definida previamente, como único
referencial “correto”, tudo o mais sendo considerado
como incorreto. Neste quadro, a língua é estudada como
um objeto fechado, pronto e acabado. A aprendizagem é
vista como apreensão ou assimilação de normas
linguísticas impostas pelo sistema social. A avaliação é
vista como a medida dos resultados e nunca do
desenvolvimento dos mecanismos com os quais operam
os alunos. Assim, as construções ortográficas dos
educandos, que diferem da norma padrão, são rejeitadas,
riscadas, desvalorizadas e consideradas como erros.
O termo variação ortográfica parte do ponto de vista de que
a língua é um objeto de conhecimento aberto, em
construção. Que a aprendizagem é uma tarefa de
conceitualização, caracterizando-se como a compreensão
dos princípios organizadores da língua, por parte dos
aprendizes. Assim, eles não violam as regras, as normas,
mas suas construções são o produto de uma elaboração
intensa, produtiva e dinâmica, o resultado da aplicação de
numerosas hipóteses implícitas.
9
 Efeito Mateus - descrito por Stanovich (1986, 1988); citado
por Lecocq (1992). Segundo este autor, o efeito Mateus se
refere à expressão tirada do Evangelho segundo São
Mateus: “os ricos se enriquecem e os pobres se
empobrecem” (p. 170).
10
 Zona de desenvolvimento proximal - Ela é a distância
entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de
problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1989, p. 97).
Referências
ALVARENGA, Daniel. Análise de Variações Ortográficas. Rev.
Presença Pedagógica, v. 2, ano 1, mar./abr., 1995.
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1983.
CARVALHO, Gilcinei T. O processo de segmentação da
escrita. Faculdade de Letras, UFMG, 1994. (Dissertação de
mestrado.)
CARVALHO, Mauro Giffoni de. Os “bons” e os “maus”:
interação verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte:
FaE/UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado.)
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua
escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
FIJALKOW, Jacques. ¿Malos Lectores por qué? Madrid:
Biblioteca del libro, 1989.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas
prisões. Petrópolis: Vozes, 1989.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
GOMES, Maria de Fátima Cardoso. Chico Bento na escola:
um confronto entre o processo de produção de “maus” e de
“bons” alunos e suas representações. Belo Horizonte:
FaE/UFMG, 1995. (Dissertação de mestrado.)
GOMES, Maria de Fátima Cardoso & FARIA FILHO, Luciano
Mendes. Memória e aprendizagem: uma perspectiva sócio-
histórica. Rev. Presença Pedagógica, v.3, n.15, mai./jun.
1997.
GRIFFO, Clenice. Dificuldade de aprendizagem na
alfabetização: perspectivas do aprendiz. Belo Horizonte:
FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.)
LECOCQ, P. (org.). Accessibilité à l’écrit et apprentissage de
la lecture. In: La lecture: processus, apprentissage, troubles.
Lilles: Ed. Presses Universitaires, 1992.
MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Pais e filhos diante do
fracasso na alfabetização. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994.
(Dissertação de mestrado.)
RESENDE, Valéria Barbosa de. Fracasso e sucesso escolar os
dois lados da moeda. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994.
(Dissertação de mestrado.)
SENA, Maria das Graças de Castro. A educação de crianças:
representações de pais e mães das camadas populares. São
Paulo: USP, 1990. (Tese de Doutorado em Psicologia
Escolar.)
SILVA, Maria Cristina da. Fracasso escolar: a subjetividade
em questão. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1996. (Dissertação
de mestrado.)
SIROTA, Regine. A escola primária no cotidiano. Porto
Alegre: Artes Médicas,1994.
THIOLLENT, M.J.M. Crítica metodológica, investigação social
e enquete operária. São Paulo: Ed. Polis, 1987.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
Capítulo I1
QUATRO HISTÓRIAS E DOIS DESTINOS
Mauro Giffoni de Carvalho
1
 
Dos “bons” e dos “maus”
Quatro crianças, com pais cuja condição socioeconômica
se assemelha à da maioria dos subproletariados brasileiros,
foram estudar, no primeiro semestre de 1992, numa escola
municipal localizada entre a favela onde moravam e um
grande bairro da cidade. Quatro histórias de vida, de
convivências, de acessos e de experiências muito parecidas
até ingressarem na escola. Quatro histórias e dois destinos.
Assim começam as histórias dos “bons” e dos “maus”.
Essas quatro crianças e mais outras vinte e seis
encontraram-se pela primeira vez com a professora. Era o
primeiro dia de aula de uma turma de alunos novatos.
Parecia que ali ninguém conhecia nada de ninguém. Tudo
era novidade: a grande sala chamada de “laranja”, as
carteiras enfileiradas, o quadro negro ladeado por cartazes
que desejavam “boas vindas”, uma grande janela que
cortava toda a lateral da sala e os novos colegas. A
professora, sorrindo, distribuía pelas carteiras folhas usadas
de computador. Hora da chamada: “escrevam seus
nomes!”. Todos sentados e calados atendem à solicitação
feita.
De repente, o silêncio é quebrado por um aluno, José
2
,
que se diz o mais rico da sala. Desencadeia-se, nesse
momento, uma série de falas comparativas por toda a sala:
 
— Olha, professora – diz Ana – meu pai dá som no
DCE!
— E o meu, professora – diz Pedro – tem um carro!
— Meu pai ganha muito dinheiro, “nó” – exclama –
tem um bolão assim de dinheiro lá em casa!
— Mas o meu é o mais rico – retruca José.
 
Com um sorriso terno, a professora Nádia interrompe a
disputa de notoriedades e todos se voltam para a realização
das atividades programadas.
Que razões teriam levado esses alunos a interromper o
silêncio dos primeiros dias de aula, com afirmações que
pareciam despropositadas para aquele momento? Num
ambiente onde todos eram economicamente carentes, por
que comunicar uma suposta riqueza? Poderiam essas falas
constituir um ingente esforço de reconhecimento social que
aproximasse esses alunos da professora e os distinguisse
dos demais colegas? E o sorriso, um “já sei”, indicaria que a
professora já possuía uma leitura prévia desses discursos?
Ao verbalizarem essa condição, esses alunos pareciam
tentar, ainda que de forma inapropriada, buscar,
forçadamente, um reconhecimento social que os
aproximasse da professora e da cultura escolar. A suspeita
de que a professora poderia valorizar mais os alunos que
possuíssem um maior capital econômico era o primeiro
passo da negociação para ser considerado um “bom” aluno
e, consequentemente, para obter aprovação.
O diálogo desses alunos parece comprovar a visão
estigmatizada que a clientela, geralmente, recebe das
instituições escolares públicas. O preconceito maior da
escola, via de regra, está voltado para as condições de vida
de seus alunos e para a chamada assistência em casa. A
respeito da classificação dos alunos segundo suas condições
de vida, ela pode ser resumida conforme descreve Teves
(1989):
 
As condições de vida do aluno passam a servir de
critérios a sua própria identificação: ele é morador de
uma favela, seus pais, quando conhecidos, vivem
separados. Ele convive com péssimas condições de
higiene, o vocabuláriofamiliar é bastante restrito, sua
alimentação é bastante precária, enfim, é possível
identificá-lo mediante uma metodologia específica
classificatória. O resultado desse tipo de tratamento
do aluno é confundi-lo com as suas condições de
existência. Identifica-se nele mais o que lhe falta do
que ele tem, sem se discutir por que lhe falta ou o
sentido que têm para ele aquelas faltas. Elabora-se,
com isso, o discurso descritivo da carência. (p. 29)
 
Quais seriam, então, as vias, os discursos que podem
causar o reconhecimento do “bom” aluno? O que poderia a
professora valorizar nesses alunos? Estaria condicionado o
reconhecimento dos considerados “bons” a um tipo de
estrutura familiar que se aproxima da estrutura familiar da
professora, isto é, de acordo com os padrões de organização
das famílias de classe média?
As previsões sobre o futuro escolar desses alunos
pareciam relacionar-se, porém, muito mais à prática
discursiva (re)construída e negociada por eles e pela
professora, a partir de seus contextos culturais do que às
diferenças econômicas. A cultura escolar, em geral
hegemônica e rotuladora, se confrontaria diretamente com
as outras formas de interação social e discursivas trazidas
pelos alunos. Estes, quando chegaram à escola, trouxeram
consigo uma identidade, um mundo real particular, já
categorizado e referenciado a um conjunto de relações
sociais abrangentes, construídas através de vivências
variadas no seu cotidiano. O desafio era explicar em que se
baseavam e como eram construídos os conceitos de “bom”
e de “mau” numa sala de aula.
A constituição do sentido do “bom” e do “mau” aluno se
realizaria, nos primeiros dias de aula, durante a interação
verbal entre os alunos e a professora. Na sala de aula,
sentidos e significações, produzidos no jogo social mais
amplo, se confrontariam à luz dos interesses pessoais de
seus interlocutores.
A maioria das situações de interação verbal observadas
na sala de aula estava conformada à dinâmica de
funcionamento das escolas públicas. A apropriação da
cultura escolar implícita nas ações pedagógicas do
professor expressava-se através de uma postura na sala de
aula coerente com a lógica autoritária/assistencialista da
burocracia do sistema de educação pública brasileiro
3
.
Essa característica das instituições escolares evidenciava
o quanto são assimétricas e divergentes as interações social
e discursiva entre professores e alunos, inclusive no tocante
à produção e à recepção de formas simbólicas relacionadas
ao sucesso ou fracasso escolar. Nessa interação alguns
alunos iriam adquirir o reconhecimento e a identidade de
“bons”, indicativos do sucesso escolar, enquanto outros, os
“maus”, não teriam o conhecimento nem o reconhecimento
da professora e de seus pares, não sendo merecedores da
aprovação escolar.
Para a realização de um “bom negócio”, o domínio da
linguagem escolar era fundamental para o alcance da
aprovação. O estudante capaz de apresentar uma
linguagem mais próxima da linguagem escolar tenderia a
obter maior simpatia e aceitação da professora, tendo mais
chance de ser considerado um “bom” aluno. Em
contrapartida, os considerados “maus”, por utilizarem
menos eficientemente a linguagem e as formas de
pensamento preexistentes na cultura escolar, sobretudo nos
primeiros dias de aula, pouco a pouco ingressavam no bloco
monolítico dos estudantes tidos como “fracos”, como
demonstra a situação ocorrida.
Os alunos foram desafiados a disputar quais eram os
melhores da sala: os meninos ou as meninas? A professora
explicou que iria mostrar várias fichas e depois eles
deveriam reconhecer a mesma palavra escrita no quadro-
negro e ligá-las com um traço.
 
RODINHA
BOA TARDE
ATENÇÃO
MERENDA
POR FAVOR
ATENÇÃO
RODINHA
POR FAVOR
ATENÇÃO
SILÊNCIO
 
(fig. 1: quadro-negro)
 
Era a vez de Paulo. A professora lhe mostrou a ficha
MERENDA. Paulo foi até o quadro e colocou a ponta do giz
na palavra MERENDA e ficou um grande tempo procurando
a outra palavra que deveria ligar. A professora interveio:
 
— Tem crianças que ficam brincando na sala e é por
isso que alguns aprendem mais depressa do que
outros!
Nesse momento, ao meu lado, Milena suspirou:
— Ai que sono...
 
Finalmente, Paulo resolveu ligar a palavra MERENDA com
RODINHA. A professora, olhando para a turma e para ele
perguntou:
 
— A resposta está correta, gente?
— Está erraaaada! Responderam todos num tom bem
alto e prolongado.
 
A professora, então, mostrou a diferença das duas
palavras pelo significado e pelas letras, uma a uma. A
atividade foi concluída pela leitura coletiva de todas as
fichas.
Supus que tal situação não poderia ter acontecido senão
com Paulo. Ele era uma criança que demonstrava ser muito
calada na sala e que, quando falava, mal se ouvia sua voz.
Utilizando-se de um exercício que expunha o aluno a todos
os colegas, a professora, consciente ou não, pôde confirmar
suas hipóteses, representações e expectativas em relação
aos seus “bons” e “maus” alunos na sala de aula. Talvez,
com esse tipo de atividade, houvesse nela muito mais a
intenção de identificar os “bons” e os “maus” e muito
menos o propósito de ensinar ao Paulo, nesse exercício, as
regras da língua escrita, a partir da lógica contida no seu
erro.
Em nossa sociedade, a escola não só legitima uma
seleção meritocrática dos mais capazes para o desempenho
das funções mais relevantes, associado às maiores
recompensas econômicas e políticas, como também
constitui-se num importante veículo da transmissão de
valores morais, atitudes e comportamentos da cultura que
se afirma como hegemônica.
Entre nós é costume separar o bem do mal, o céu do
inferno, a virtude do pecado, o normal do anormal, o
apropriado do inapropriado, o certo do errado e assim por
diante. Nossa tradição judaico-cristã (mais cristã do que
judaica) é a principal incentivadora dessa divisão. Esse
procedimento, que é frequentemente utilizado pela Igreja,
foi também adotado pela educação, não somente em sua
didática, mas também como meio de justificar as injustiças
sociais e a sua própria incapacidade de ensinar os que se
confrontam com os programas de ensino preestabelecidos,
muito semelhantes às liturgias. O mito do “bom” versus o
“mau” sustenta a crença da cultura escolar de que a
repetência é boa para o aluno e que, por sua vez, é de boa
qualidade a escola que muito reprova.
Compreender a dinâmica das interações verbais na sala
de aula implicaria, também, conhecer o cotidiano desses
alunos na escola e na família. Participar do dia a dia escolar
e de suas rotinas, que são pano de fundo do processo de
ensino-aprendizagem, possibilitaria identificar as
contradições mais específicas do processo de interação
verbal.
Nem “bom” nem “mau”
No final do primeiro semestre daquele ano, escolhemos
uma amostra constituída por quatro alunos: dois com
“melhor” rendimento e dois com “pior”, segundo os
critérios da professora.
4 
Procuramos observar as interações
verbais desses quatro personagens dentro e fora da sala de
aula.
Cena 1 - Sala de aula. Numa tarde de junho, a professora
perguntava a cada um dos alunos o nome das letras e das
sílabas escritas no quadro. O que parecia ser básico para a
leitura e a escrita, numa determinada concepção de
aprendizagem, na verdade se traduziu, para o primeiro
desses dois alunos considerados fracos, numa novidade.
Quando arguido, respondeu com um tom de voz quase
inaudível, revelando um desconhecimento das vogais, o que
causou um olhar de espanto na professora. O seu lugar
social na sala de aula se configurava, a cada dia que
passava, no discurso do silêncio: não entendia o que a
professora lhe dizia nem se fazia entender.
Cena 2 - Fora da sala de aula. Numa sala de artes da
escola, os quatro alunos da amostra foram jogar um tipo de
jogo da memória (Bingo Educativo — série animais). Fiz para
todos a leitura das regras do jogo, que consistia em
completar as cartelas com figuras deanimais, como na
regra do jogo de memória. Apesar de toda a atenção (ou
tensão) causada pela situação de jogo, todos tiveram seus
momentos de erro e de acerto. Nessa partida, um dos
“bons” foi o vencedor, o segundo lugar coube a um dos
“maus”, seguido por um “mau” e um “bom”,
respectivamente.
Cena 3 - Fora da escola. Numa das raras atividades
extraclasse promovidas pela escola, fomos ao Parque
Municipal de Belo Horizonte. Ficamos nesse local uma
grande parte da tarde brincando, andando, conversando e
contando histórias. No final da tarde, depois do lanche, a
professora convidou-nos para observar os peixes que
estavam na margem do lago. O segundo aluno considerado
fraco, levantando os braços e gesticulando, disse-me:
 
— “Mauro, é muito melhor essa aula do que a outra, a
nossa mão fica livre!”. E continuou:
— “Todas as aulas podiam ser assim, não é?”
 
Nas atividades extraclasse promovidas pela escola, os
alunos pareciam estar mais interessados em fazer o que era
proposto pela professora e mais solidários com os seus
colegas. Por outro lado, fora do contexto escolar, a
professora mostrou-se mais próxima dos alunos,
estabelecendo com eles mais situações de interação verbal.
Um comportamento (rendimento) diferente do
encontrado na sala de aula pôde ser observado quando
foram criadas novas situações fora da sala. A mudança de
contexto das interações como, por exemplo, nos jogos, nas
dramatizações, nos desenhos, nas conversas informais,
mostrou que o grupo dos “bons” e dos “maus” se
comunicava mais e melhor, pois ali as regras da cultura
escolar estavam diluídas e poderiam ser estabelecidas
outras regras, conforme as suas próprias referências
culturais. Como consequência, os alunos tidos como “maus”
apresentaram, frequentemente, um rendimento
equivalente, ou até mesmo superior, ao dos alunos tidos
como “bons”.
Ser dos “bons” ou ser dos “maus” é muito relativo, assim
como são relativos os conceitos de certo e errado, de
normal e anormal, de verdade e falsidade etc. Na vida, isso
depende de muitos fatores e contextos. Segundo Orlandi
(1988), o lugar da constituição do sentido e da identificação
do sujeito se realiza durante sua formação discursiva. Dessa
forma, é na interação verbal que o aluno-sujeito se
reconhece e é reconhecido por seus pares e pela professora
como um dos “bons” ou como um dos “maus”. Para se
buscar uma melhor compreensão das diferenças de
rendimento dos alunos das camadas populares, numa
mesma sala de aula, há que se levar em conta as relações
discursivas — a intertextualidade — que são produzidas no
processo de interação, as quais, por sua vez, são
apropriações de referências culturais distintas.
Na escola, as diferenças de interação verbal entre os
“bons” e os “maus” alunos poderiam advir da trajetória
percorrida pela família, da origem rural ou urbana, dos
deslocamentos ou do enraizamento no espaço geográfico,
ou explica-se pela presença de interação com parentes
escolarizados e pelo contato com outros modelos
socioculturais.
Os resultados de nossa pesquisa, de certa maneira,
confirmam a tendência da escola em atribuir a seus
usuários a responsabilidade por todos os defeitos e
dificuldades de sua aprendizagem e de seu ajustamento
escolar. Um contato mais prolongado e direto com os alunos
e com suas respectivas famílias mostrou-nos a
heterogeneidade do corpo discente, no tocante às formas
de falar, de responder às perguntas, ao estilo de
pensamento, a valores, hábitos, crenças, aceitação ou
recusa de normas disciplinares, vestimentas etc. Seria
impróprio, portanto, fazer uma generalização do aluno
“pobre”. Os alunos das camadas populares não constituem,
culturalmente, um bloco monolítico e homogêneo. (Para
maiores informações sobre o tema, ver o texto de Maria
Cristina da Silva que faz parte deste livro.)
Em suma, o “sinal distintivo”, que diferencia os alunos
entre si, está na relação que cada um estabelece com a
cultura escolar. A relação que eles mantêm com o contexto
sociocultural do ambiente familiar impregna todas as suas
atividades escolares e todas as suas formas de interação
verbal.
Nossa história termina acenando para a possibilidade de
se criarem, na escola, situações de interação, de
aprendizagem e de avaliação condizentes com o contexto
cultural de sua clientela e propiciadoras da aquisição do
conhecimento indispensável ao sucesso escolar. Tratar
igualmente os diferentes ou generalizar os alunos em
“bons” e “maus” pode constituir-se em fonte de injustiças e
de mal-entendidos, quando não são compreendidas as suas
diferentes histórias e suas diversidades culturais, na
interação escolar.
Notas
1
 Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e
professor-pesquisador do UNICENTRO-BH.
2
 Os nomes dos alunos e da professora, neste artigo, são
fictícios.
3
 Nesse sentido, seria impróprio, além de um equívoco de
graves repercussões, apontar a professora como
responsável pelo fracasso escolar de seus alunos. As
ações pedagógicas da professora, bem como seu discurso
na interação verbal com seus alunos mostram que elas se
explicam na lógica do sistema escolar, que a leva a
apropriar-se de concepções de ensino-aprendizagem
mecanicistas e de práticas disciplinares, constituindo,
assim, “verdadeiras estratégias de sobrevivência”. (Para
maiores informações sobre esse tema, ver texto de
Gomes que faz parte deste livro.)
4
 No que concerne à avaliação e ao rendimento escolar, as
decisões do professor, quanto ao sucesso ou ao fracasso
de seus alunos, valeram-se muito mais de critérios
estribados em hábitos, valores, estilos de linguagem e
pensamento do que da qualidade e produtividade
intelectual deles.
Referências
CARVALHO, Mauro Giffoni. Os “bons” e os “maus”. Interação
verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte: FaE/UFMG,
1993. (Dissertação de mestrado.)
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo:
Cortez, 1988.
TEVES, Nilda. Imaginário social e educação. Rio de Janeiro:
Gryphus, FaE/UFRJ, 1992.
Capítulo 1II
DIFICULDADES DE
APRENDIZAGEM
NA ALFABETIZAÇÃO:
PERSPECTIVAS DO APRENDIZ
Clenice Griffo
1
 
Esta pesquisa, desenvolvida no programa de pós-
graduação da FaE/UFMG, teve como objetivo primeiro
estudar a perspectiva do aprendiz, aluno da primeira série
do ensino fundamental, que, frequentador de turmas de
alfabetização, não obtém sucesso na escola, sendo
considerado por ela como portador de dificuldades de
aprendizagem no processo de aquisição da linguagem
escrita. Foram realizados quatro estudos de caso com
meninos de uma mesma turma de uma escola da rede
pública estadual de Belo Horizonte no ano de 1994.
O estudo realizou-se a partir de observações em sala de
aula priorizando-se as interações estabelecidas, buscando-
se entender como o aluno fracassado se percebia na
condição de ausência de produtividade escolar e como
reagia frente aos rótulos que lhe eram atribuídos. Foram
realizadas sessões coletivas e individuais, sessões com toda
a turma de alunos, entrevistas com os sujeitos da pesquisa
e seus familiares, com as professoras alfabetizadoras da
escola, com a supervisora e com o responsável pelo
acompanhamento das tarefas escolares. Buscava-se
entender como cada um desses alunos era tratado e
percebido no meio familiar e escolar e, sobretudo, como
eles próprios se percebiam na situação em que se
encontravam.
Parte do trabalho compõe-se da exposição e análise das
teorias que tentaram explicar o fracasso escolar dos alunos
das redes públicas de ensino. Tais análises não serão, no
entanto, expostas integralmente aqui, pois já constam no
artigo de Gomes, que faz parte desta edição. Serão
acrescentadas apenas algumas considerações
desenvolvidas na referida dissertação.
Todas as teorias desenvolvidas para explicação do
fracasso escolar sofreram críticas pela inconsistência de
seus fundamentos. Historicamente houve uma tentativa de
superação de uma pela outra. Podemos verificar que,
embora cada teoriacontenha suas especificidades, é
possível extrair do conjunto de suas concepções alguns
aspectos que, em maior ou menor escala, estão presentes
em todas elas. Um primeiro aspecto é referente ao
problema localizado no aprendiz. É como se as explicações
se desenvolvessem no sentido de apontar um responsável,
um culpado. Segundo a concepção organicista o aprendiz já
nasce com essa responsabilidade instalada em seu cérebro:
é um problema no nível físico. Conforme a concepção
instrumental, a responsabilidade se desloca do nível físico
(hereditário ou neurológico) e se estabelece no campo
psicológico: a inteligência do aprendiz estará
comprometida. A concepção dos transtornos afetivos da
personalidade aponta como fatores determinantes da não
aprendizagem as perturbações afetivas e características da
personalidade, indicando que tais sintomas podem afetar o
campo cognitivo do aprendiz. As explicações decorrentes
das teorias do handicap sociocultural atribuem à criança
que fracassa na escola deficiências, carências ou diferenças
que vão desde comparações e atribuições valorativas de
seus hábitos cotidianos até sua incompetência linguística.
Dessa forma, percebe-se afetados o campo físico (na
inabilidade de utilizar objetos que ela não conhece, por
exemplo), o socioafetivo (na inabilidade de se relacionar em
determinados meios) e o campo intelectual (na inabilidade
de se comunicar de forma eficiente ou aprender na escola).
É interessante verificar que a teoria do handicap
sociocultural, em destaque a ideologia das diferenças
culturais, considerada avançada no meio científico, contém
em seu arcabouço teórico aspectos que são combatidos e
considerados não científicos em suas teorias de origem.
Mesmo quando se diz que há apenas diferenças culturais, e
não deficiências nos alunos que fracassam, encontram-se
embutidas nesta expressão atribuições valorativas que
provocam distinção de percepção entre alunos de níveis
socioculturais diferentes. Esta distinção está relacionada à
maior ou menor competência e habilidade para aprender.
Sendo assim, é apenas um termo de distinção, não se
constituindo, portanto, um desvio de foco de
responsabilidade pelo fracasso.
Um segundo aspecto comum às explicações para o
fracasso escolar diz respeito à maturidade. Em todas as
abordagens encontramos indícios de que este seja um fator
determinante nos processos de aprendizagem escolar. Na
teoria organicista, a maturidade se apresenta como de
natureza físioneurológica; na concepção cognitivista, é
indicada como pertencendo ao campo das percepções e do
intelecto; na concepção dos transtornos afetivos da
personalidade, refere-se aos estados maturacionais dos
aspectos afetivo-emocionais da criança fracassada; e nas
diversas vertentes da teoria do handicap sociocultural
aparece como ausência de requisitos indispensáveis ao
processo de aquisição dos aprendizados escolares. Percebe-
se que de uma teoria para outra o conceito de maturidade
permanece com o mesmo conteúdo conceitual-ideológico.
Outro aspecto comum a todas elas é relativo à ausência de
abordagens relacionadas às especificidades da língua,
linguagem oral e escrita, e consequentemente, do próprio
objeto de aprendizagem. Ou seja, não se considera a escrita
como objeto de conhecimento do processo de
aprendizagem da mesma.
A partir da análise das explicações dos problemas de
aprendizagem escolar é possível perceber que as teorias se
encontram vinculadas às práticas escolares, exercendo
papel importante na consagração da ideologia dominante.
As teorias atendem a interesses escolares e principalmente
sociopolíticos. É interessante ressaltar que o preconceito
linguístico presente nas práticas escolares se apresenta
como grande fator de discriminação das crianças das
camadas desfavorecidas da sociedade. Como aponta Soares
(1985, p. 17): “é o uso da língua na escola que evidencia
mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que
gera discriminação e fracasso”. As variações linguísticas
funcionam como fator de discriminação e instrumento de
uso de autoridade e poder dentro das escolas. No entanto, a
discriminação linguística não aparece de forma clara nas
abordagens sobre as dificuldades de aprendizagem na
leitura e na escrita. A ausência de discussão sobre os
conceitos de alfabetização, língua e linguagem apresenta-se
como forma de desvio da questão central: o preconceito
para com os alunos das classes desfavorecidas.
Os casos
A opção por estudo de caso, para a concretização dos
objetivos propostos, se deu a partir das seguintes
constatações: a) não existe na produção acadêmica e
científica, estudos de casos de alunos considerados
portadores de dificuldades de aprendizagem na leitura e
escrita; b) não foram encontradas, na revisão bibliográfica
sobre o tema (pesquisa realizada por equipe do CEALE
/FaE/UFMG) pesquisas ou trabalhos que abordassem a
perspectiva do aprendiz no processo de fracasso na
aprendizagem; c) as obras sobre as dificuldades de
aprendizagem, em grande parte, estão fundamentadas em
generalizações, sem indicação e discussão de aspectos
específicos relativos às condições dos alunos a que se
referem.
Serão apresentados neste artigo apenas dois dos quatro
casos estudados, dadas as limitações desta publicação. A
seleção foi aleatória, por ser grande a dificuldade de
escolha e por conter cada um deles especificidades
significativas para a análise final. Esta, no entanto, se
referirá a todos os casos do estudo realizado.
Caso 1: Paulo — a dificuldade inventada
Paulo completou nove anos de idade em maio de 1994 e
este foi o ano de sua entrada na primeira série. Até então,
nunca havia frequentado escola. Em agosto desse mesmo
ano, quando as observações de campo se iniciaram, Paulo
se encontrava longe de sua mãe, que o deixara com
vizinhos (família adotiva, como explicava a escola, embora
fosse uma situação provisória). A mãe, prostituta e
considerada louca pelas profissionais da escola, visitava-o
esporadicamente e segundo relatou o vizinho com quem
morava o menino, ela o agredia muito. O “pai adotivo” de
Paulo o considerava “extremamente inteligente” e dizia que
o menino o ajudava na confecção de placas e faixas,
decorava textos bíblicos e até lhe dava conselhos,
mostrando-se muitas vezes carinhoso e prestativo.
Trazido pela própria mãe, Paulo foi logo encaminhado
para a turma onde se concentravam os alunos considerados
pela escola como portadores de alguma deficiência, alunos
avaliados, por meio de teste elaborado na própria
instituição, como despreparados para cursar uma primeira
série normal. A professora dessa turma não “suportou”o
menino e pediu a transferência dele para outra sala:
alegava que era muito indisciplinado, que era insuportável.
Nessa segunda turma, o menino passou a ocupar a
última carteira da última fileira da sala de aula. De estatura
baixa, ele não conseguia nem mesmo copiar as tarefas do
quadro. A professora, com a qual ficou até o final do ano
letivo, não permitia que ele fizesse as provas e só se dirigia
ao menino para criticá-lo ou castigá-lo. Seus colegas não
podiam se relacionar com ele na frente da professora, mas,
na ausência dela, alguns lhe demonstravam simpatia. Essa
professora dizia “ter dó” do menino e o aceitou na condição
de que ele não a incomodasse.
Todos na escola o viam como problemático e de difícil
convivência. Visto como má companhia, menino perigoso e
agressivo, estava impedido de aproximações e amizades.
Era tratado com indiferença e discriminação. No entanto,
seus atos de subversão dentro e fora da sala de aula eram
admirados por seus colegas. Paulo fazia inúmeras tentativas
de aproximação e reconhecimento: cantava alto,
representava personagens de desenhos animados, defendia
os colegas menores das agressões dos maiores, prestava
favores quando solicitado, contava piadas, imitava a
professora e até dava cambalhotas na sala de aula. As
risadas dos colegas eram abafadas edisfarçadas, pois
ninguém podia dar mostras de simpatia por ele.
Aluno faltoso, porém sempre presente. Até quando
faltava era lembrado várias vezes, principalmente pela
professora em chamadas como: “Deus ajuda que ele não
aparece”; “Puxa, hoje foi mais sossegado sem o Paulo. Ele
só vem pra atrapalhar”. As aulas nunca se iniciavam sem
que a professora chamasse a sua atenção ou já lhe desse
um castigo. Um dia, após longa chamada de atenção, Paulo
respondeu a ela: “Ô tia, por que você não larga de ser
professora. É ruim!”. A resposta que obteve, no entanto,
não foi de igual carinho: “Ruim não, só tem uns aluninhos
que não me dão sossego”.
Paulo parecia buscar sentido nos fatos que vivia. Parecia
não compreender muito bem a discriminação que sofria
dentro e fora da sala de aula. No entanto, esse estado de
incompreensão não o impedia de pensar, falar e levantar
hipóteses acerca das tarefas escolares e até mesmo de
duvidar do desempenho da professora. Em uma conversa
informal (entre o menino e a pesquisadora), ao ser
perguntado se estava aprendendo o que a professora lhe
ensinava, respondeu dando risadas: “Não! É porque a tia
não ensina.”
A discriminação que sofria foi expressa em vários
momentos, algumas vezes traduzida em sinais de baixa
estima, tais como: “Eu sei ler, fico pensando: como é que
vou saber ler? Eu sou muito burro.” Esta frase foi
pronunciada em um momento em que acertava a tarefa
proposta para os fins da pesquisa. Mostrou-se espantado ao
se ver acertando.
Por meio das sessões individuais e coletivas que
realizamos, foi possível constatar que Paulo tinha muito
mais conhecimento da língua escrita do que a escola
parecia supor. Conhecimentos que, com certeza, não foram
detectados no teste inicial da escola: nomeava todas as
letras, localizava palavras em textos que não conhecia,
escrevia palavras a partir de palavras já escritas.
A concepção dos transtornos afetivos da personalidade
era a mais presente no discurso das profissionais da escola
em relação ao caso de Paulo. Com referência na família,
principalmente na figura materna, a escola apontava como
causa de seu fracasso a situação afetivo-emocional que
vivia. Mesclada a essa abordagem encontramos referência
às teorias do handicap sociocultural, uma vez que a
situação econômica, cultural e, principalmente, social do
menino parecia, aos olhos da escola, ser responsável pelo
seu quadro de fracasso. A concepção instrumental ou
cognitivista influiu também na classificação do menino
como portador de problemas de aprendizagem, uma vez
que não apresentou nível satisfatório de desenvolvimento
intelectual medido pelo teste de prontidão, como
confirmado nas palavras da supervisora: “ele veio pra
escola, ele não tinha nem coordenação motora. Nada, nada,
nada!” Por fim, a abordagem organicista apresentou-se
como recurso de justificativa uma vez que se estabeleceu
relação entre a mãe e o menino, buscando-se um quadro
patológico na situação de ambos.
Mesmo tendo a escola apresentado justificativas diversas
em relação a Paulo, não foi possível percebê-lo como uma
criança portadora de dificuldades de aprendizagem visto
que, durante os contatos com a pesquisadora, ele mostrou-
se extremamente interessado em aprender a ler e a
escrever. Notava-se que autoestima do menino estava
muito abalada pelas relações estabelecidas entre ele e a
escola — “Eu sou muito burro” —, mas entusiasmava-se e
envolvia-se com facilidade diante das situações propostas e,
até mesmo, enfrentava as barreiras impostas tais como a
negação da realização das provas, insistindo por realizá-las.
Caso 2: Leonardo: deficiente?
Com expressão de cansaço e sofrimento, Leonardo
completou quinze anos de idade em outubro de 1994.
Estatura média e bastante magro. Menino quieto, parecia
esconder-se de todos atrás de seu silêncio. Segundo filho de
uma família de seis irmãos, vivia com a mãe em pequenos
cômodos construídos pela própria família, em uma favela
próxima ao bairro em que se localizava a escola. A mãe,
recém-separada do pai alcoólatra, tentava sustentar seus
filhos trabalhando como faxineira diarista. A família vivia em
constantes dificuldades econômicas.
Respondia ao apelido de “Cabeça” ou “Cabeção” com
indiferença. Segundo as profissionais da escola, tal apelido
devia-se ao fato de a sua cabeça ser grande por ter sofrido,
ao nascer, hidrocefalia, ou como diziam: “água na cabeça”.
Sua mãe, no entanto, declarou não ser real essa
informação, pois os exames aos quais fora submetido
quando nasceu constataram que ele não padecia de
nenhuma doença desse tipo. Segundo a mãe, nenhum
médico ou exame havia detectado qualquer anormalidade
em Leonardo. A mãe considerava-o um menino normal e
expressava não entender o motivo de seu fracasso tão
prolongado. Às vezes sentia-se impelida a justificar os oito
anos de repetência do filho na primeira série utilizando-se
de parâmetros escolares: “... e parece assim que ele não
puxa muito assim pra estudar, porque em casa eu mando.
Ele não é assim bem inteligente mesmo não.”
Contudo, a mãe de Leonardo insistia muito em que
permanecesse na escola. Planejava para o ano seguinte que
o menino aprendesse a trabalhar com um tio servente de
pedreiro. Demonstrou não se dar conta da seriedade do
estado de insucesso escolar de seu filho, como se o
importante fosse que um dia qualquer ele pudesse sair da
primeira série. Durante a entrevista com a pesquisadora, a
mãe devolvia as perguntas como se tivesse encontrado uma
oportunidade mais de ouvir do que de falar sobre o assunto.
Leonardo recusava-se a falar de si mesmo, respondia
estritamente ao que lhe era perguntado. Inúmeras vezes
respondia com movimentos de cabeça e outras tantas
vezes, simplesmente não respondia, mesmo após
insistência de quem com ele estivesse dialogando. Não
queria ser questionado sobre si e sobre a sua situação de
vida. Sua mãe confirmou a recusa do menino em falar de
assuntos relacionados à escola e à sua situação.
A entrada de Leonardo na escola pesquisada ocorrera há
oito anos, quando completara sete anos de idade. Na época
da pesquisa, Leonardo estava completando oito anos de
repetência na primeira série! Contudo, não foi possível
resgatar muito da sua trajetória escolar, pois sua mãe
pouco soube informar sobre o assunto, não havendo,
também na escola, alguém que soubesse a respeito de sua
vida escolar. Sabiam apenas que frequentara a “sala
especial” em anos anteriores e que “não conseguia
aprender quase nada”. A supervisora foi a única profissional
da escola que pôde apresentar o seu ponto de vista, embora
não tenha feito uma retrospectiva da carreira escolar de
Leonardo nem tenha apontado para as especificidades do
seu problema. Não havia nada na escola a seu respeito
além dos diários escolares marcados pela reprovação.
Em 1994, ano de realização da pesquisa, Leonardo
completava três anos com a mesma professora. A situação
aparentava ser um tipo de pacto em que a professora
deixava que o menino ficasse ali bem quietinho como era, e
ele também, em estado de inércia, sem ser cobrado de
nada, como se cumprissem ambos o combinado de não se
incomodarem mutuamente. A condição de se comportar
bem fora colocada desde o início; caso não cumprisse,
estaria sujeito a voltar para a turma especial, de onde viera
mais uma vez, depois de nova investida da escola para
fazê-lo retornar a tal turma.
Leonardo passava todo o tempo das aulas sem ao menos
ser percebido por alguém. Às vezes fazia algum favor para a
professora, como por exemplo, levar um recado. Sempre
curvado na cadeira, parecia se esconder ou tentar diminuir
de tamanho para não ser notado, pois destacava-se entre
os alunos de sete, oito anos de idade. Nos dias de prova,
reclinava-se em cima da carteira, preenchia o cabeçalho, o
qual sabia de cor e ali permanecia quieto, escondendo as
lacunas em branco. Às vezes fingia escrever, às vezes
conseguia copiar alguma coisa de seus colegas e só
entregavaa prova quando a professora recolhia, para,
misturada entre outras, evitar os comentários em público.
Mesmo sabendo que Leonardo copiara de seus colegas as
poucas lacunas preenchidas, a professora considerava-as
como acertos e atribuía nota a elas. Seus cadernos
continham quase todo o conteúdo passado no quadro, sua
letra bonita mostrava bom nível de organização. Embora
copiasse bem, Leonardo não reconhecia nem mesmo as
letras do seu nome.
Demonstrando estar sempre aflito, parecia sofrer o
decorrer de cada segundo ocioso. Abaixava a cabeça
sempre que a professora falava dele, como aconteceu
algumas vezes quando ela se dirigia à pesquisadora dizendo
em voz alta perante toda a turma: “Eu tenho muita dó do
Leonardo, ele é muito esforçado e muito bonzinho, mas ele
tem muita dificuldade mesmo, sabe?” Para a professora as
dificuldades de Leonardo estariam concentradas em
Português, principalmente na leitura. É importante ressaltar
que durante as observações para os fins da pesquisa não
ocorreu na sala de aula nenhuma atividade de leitura, nem
pela professora nem pelos alunos.
Quase sempre parecendo estar imerso em um grande
vazio, Leonardo ignorava o motivo de sua permanência há
oito anos na primeira série. Ninguém lhe informava nada a
respeito da situação de fracasso. Quando perguntado pela
pesquisadora se conhecia o motivo de suas repetências,
respondeu apenas: “Sei lá!” Fez sinal afirmativo com a
cabeça reconhecendo o problema como sendo seu. Fora da
sala de aula, principalmente na hora do recreio foi possível
ver Leonardo brincar e conversar com seus colegas.
Percebia o tratamento diferenciado que recebia: “ela (a
professora) pede pra fazer coisas e uns negócios lá
também... pra eu ir nas salas.” Reclamou também do
tratamento dos colegas: “Eles ficam falando que eu tô muito
velho pra primeira série”
Durante as sessões individuais ou em grupo, Leonardo
participava com mais envolvimento apenas quando se
tratava de jogos ou atividades e assuntos que não se
relacionavam com os conteúdos escolares. Quando se
propunha alguma atividade de leitura ou apenas de
identificação de letras, por exemplo, era como se ele
imediatamente se desligasse ou partisse para outro lugar.
Seus braços relaxavam e caíam sobre a mesa ou sobre o
seu corpo e seus olhos buscavam qualquer outro objeto
para divagar. Sua expressão era de extremo cansaço. Ele
passava então a não responder mais. Via-se que seu esforço
era enorme naqueles momentos. Algumas vezes chegou a
dizer: “Eu não vou fazer esse negócio”. Recusava-se a
aprender na escola. Havia se acostumado a não ser cobrado
por nada e irritava-se quando solicitado a fazer algo.
Demonstrava saber pouco de si e da sua situação. A
ausência de vontade de aprender pode ser traduzida por
uma ausência dele próprio no mundo escolar. Parecia não
depender mais da escola para obter alguma realização,
pensava apenas em sair da escola: “Quando eu sair daqui
eu penso em trabalhar assim de fazer uns jarros de barro.
Meu primo faz, de colocar flor”. Este enunciado exterioriza
um desejo ao mesmo tempo em que dá um recado do
menino, que pode ser traduzido como um desprezo à
escola, pois o que pretende fazer não depende do que pode
lhe oferecer essa instituição.
A escola utilizava prioritariamente a abordagem
organicista para explicar o fracasso de Leonardo, em
decorrência da suposta hidrocefalia do menino. As outras
abordagens aparecem como justificativas periféricas, visto
que o suposto comprometimento físico e neurológico
dispensa quaisquer outras explicações.
Dificuldades de aprendizagem?
É sabido que o preconceito cultural e linguístico é um dos
grandes responsáveis pelo fracasso nos processos de
aquisição da linguagem escrita. Pouco se sabe, no entanto,
como o aluno que é discriminado dentro da escola pensa,
sente e expressa a sua condição. Foi possível, através da
realização desta pesquisa, verificar relações arbitrárias
entre as características apontadas nos alunos e o suposto
comprometimento dos seus processos de aprendizagem.
Foi possível extrair dos depoimentos fornecidos pelas
profissionais da escola em que se realizou a pesquisa
enunciados carregados de preconceitos e até mesmo
posturas que denunciam a ausência de reflexão quanto à
sua procedência. O preconceito aparece revestido de um
vocabulário técnico que aparenta ser legítimo, científico e
inquestionável.
A partir da previsão que faz do aluno, fundamentada
numa visão preconceituosa das classes desfavorecidas, a
escola confirma por um teste de prontidão, sempre marcado
por vieses linguísticos, culturais e pedagógicos, as suas
hipóteses, tendo assim, de antemão, as justificativas para o
fracasso de determinados alunos. Estas justificativas foram
encontradas em grande número no estudo dos quatro casos
desta pesquisa. As mais frequentes foram quanto a:
a) famílias desestruturadas, tradução da teoria dos
transtornos afetivos da personalidade. Nos quatro casos
estudados podemos constatar uma centralização da culpa
pelo fracasso na família das crianças, principalmente na
figura materna, ou melhor, na ausência da mãe do
ambiente doméstico e a consequente falta de assistência no
acompanhamento escolar.
b) dificuldades econômicas, nível sociocultural baixo,
com referência nas teorias do handicap sociocultural. Três
dos quatro indivíduos da pesquisa eram moradores das
favelas próximas da escola e por isso eram percebidos como
portadores de déficits de aprendizagem.
c) problemas cognitivos ou intelectuais partindo da teoria
instrumental ou cognitivista. O teste é um dos instrumentos
utilizados pela escola para atribuir aos alunos problemas
dessa natureza. Os quatro alunos pesquisados foram
detectados pelo teste da escola como tendo problemas de
aprendizagem. Além disso, as profissionais da escola
procuravam problemas dessa natureza ao falar dos alunos
fracassados, utilizando-se de argumentos como: lentidão do
aluno, desinteresse, incapacidade para acompanhar a turma
— argumentos a indicar a ausência de suas habilidades
intelectuais.
d) problemas orgânicos com referência na abordagem
organicista. A supervisora da escola, buscou em todos eles
características que pudessem qualificá-los como portadores
de algum problema de ordem física e/ou neurológica.
Assim diagnosticado, e tendo a escola criado o suporte
teórico para justificar os seus prognósticos, o aluno passa a
receber tratamento diferenciado desde a sua entrada na
instituição. Isso ocorre de várias maneiras: por meio de
atividades paralelas, como trabalhos manuais, ou atividades
“que não exigem atividade do pensamento”, conforme
explica a supervisora; por meio da atribuição ao aluno do
papel de menino de recados; pelo não reconhecimento de
suas habilidades e de seus conhecimentos; finalmente, por
meio de castigos e punições variadas, como utilização de
apelidos, comentários em público a respeito da vida dos
alunos, impedimento de que se submetam às provas. Tudo
isso se desenrola no cotidiano da sala de aula sem que o
aluno e sua família sejam informados sobre o que está
acontecendo.
A escola opera com o princípio de que o problema está
nos alunos e que somente eles próprios poderão resolvê-lo.
Dessa forma, faz com que se percebam como os culpados
da situação, levando-os a assumir a culpa pelo fracasso.
Além disso, é possível afirmar que há uma enorme
dificuldade da escola em inserir determinados alunos nos
processos de ensino-aprendizagem. Este fato aponta para
uma necessidade emergente de se redefinirem, na escola,
as concepções de aprendizagem, de alfabetização e,
principalmente, de aprendiz — concepcões que já vem
sendo intensivamente trabalhadas no meio acadêmico.
Por sua vez, as famílias, desinformadas da situação,
buscam, na escola, as explicações para o fracasso de seus
filhos, deixando emergir assim uma via de mão dupla onde
os dados nem sempre se cruzam. Os dados fornecidos pela
escola, muitas vezes, foram desmentidos pelos

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