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Coleção Linguagem e Educação ORGANIZADORAS Maria de Fátima Cardoso Gomes Maria das Graças de Castro Sena DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO 2 ª edição, 3 reimpressões 3 ª edição Apresentação Desde a primeira edição deste livro no ano 2000, já afirmávamos (professores e pesquisadores) que desejávamos entrar no século XXI olhando com outros olhos para o fenômeno do “fracasso escolar”, os olhos da possibilidade de erradicá-lo. Passados 11 anos, avançamos muito neste aspecto, muitas pesquisas na área da alfabetização e letramento já foram realizadas, muitas mudanças nas práticas pedagógicas já foram concretizadas, mas permanece a preocupação de não se excluir meninos e meninas das camadas populares dos processos de ensino- aprendizagem. Nossos olhos de professores e pesquisadores na área da educação estão voltados, no século XXI, tanto para o fracasso quanto para o sucesso escolar das pessoas mais pobres da população brasileira, público alvo das pesquisas que apresentamos neste livro. Estamos atentos em compreender os fenômenos do fracasso e do sucesso escolares sem naturalizá-los e, portanto sem legitimar a exclusão de muitos alunos a partir do uso dos conhecimentos científicos sejam eles da medicina, da psicologia ou de qualquer outra área do conhecimento. Os artigos que fazem parte deste livro foram elaborados com base numa pesquisa do Programa Iniciação Científica da UFMG, financiada pelo CNpQ, em dissertações de mestrado e uma tese de doutorado defendidas no período de 1990 a 1996, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, respectivamente. Eles tratam basicamente do sucesso e do fracasso escolar na aprendizagem da leitura e da escrita, e não apenas do fracasso de alguns alunos de camadas populares que estudam em escolas públicas de Belo Horizonte, Ibirité, Brumadinho e Sabará, com a perspectiva de “desnaturalizar” o fenômeno do “fracasso escolar” daqueles aprendizes. Muitas perguntas orientaram a condução das pesquisas que são apresentadas neste livro, como: apesar das dificuldades dos alunos, o que eles são capazes de aprender, dentro e fora da escola? Por que alguns aprendem a ler e a escrever e outros não? Que processos de ensino e aprendizagem os divide e separa em “bons” e “maus” alunos? Como seus familiares se relacionam com essa divisão? Como encaram o sucesso e/ou fracasso de seus filhos? Como as próprias crianças lidam com o sucesso e o fracasso escolar? Como a escola lida com a subjetividade e a individualidade de seus alunos? Nesta publicação, os autores abordam a questão do sucesso e do fracasso escolar de uma forma relacional, ou seja, buscam discuti-la sob a lógica do “e” e não do “ou”. Sendo assim, tanto os fatores relativos às crianças e suas famílias quanto os fatores relativos às escolas, à sociedade e ao sistema de ensino estarão fazendo parte das análises dos estudos de casos. Não se trata portanto, de “culpar” um ou outro segmento, mas, sim, de discutir a questão da forma mais ampla e aprofundada que nos foi possível fazer. Os artigos mostram a necessidade de se trabalhar com as potencialidades das crianças, a partir de seus conhecimentos prévios, numa perspectiva de letramento, de maneira que os usos e funções da leitura e da escrita estejam presentes no processo de alfabetização. Todos eles apontam a necessidade de se reverem práticas pedagógicas calcadas na memorização excessiva e de a escola abrir-se para a escuta dos problemas de seus alunos com a perspectiva de promovê-los, e não de usar seus problemas como justificativa de fracassos escolares. Portanto, esperamos que esta publicação sirva de instrumento para os educadores refletirem sobre as suas práticas de alfabetização, leitura e escrita com os alunos que obtêm sucesso e com aqueles que fracassam nessa área. Maria de Fátima Cardoso Gomes Capítulo 1 LEITURA E ESCRITA: A PRODUÇÃO DOS “MAUS” E “BONS” ALUNOS Maria de Fátima Cardoso Gomes 1 Várias pesquisas sobre a escola pública, como, por exemplo, Silva (1995), Gomes (1995), Maciel (1994), Griffo (1994), Rezende (1994), Oliveira (1994), Carvalho (1993), Sena (1990), têm demonstrado que a grande maioria dos educadores tenta remediar os efeitos de práticas pedagógicas que fracassam buscando na psicologia, na sociologia e na medicina justificativas científicas tanto para o fracasso quanto para o sucesso escolar de crianças de camadas populares. Esses educadores adotam mecanismos variados para separar os “bons” dos “maus” alunos, desde critérios de avaliação que norteiam os processos de enturmação, o remanejamento, a fixação de normas disciplinares e higiênicas até o encaminhamento dos “maus” alunos para clínicas ou escolas especializadas. Acabam depositando no aluno toda a “culpa” pela não aprendizagem da leitura e da escrita sem que o processo escolar e social em que estas são produzidas seja levado em conta pelos educadores, sobretudo das escolas públicas. Este trabalho focalizou as causas do “fracasso escolar” nos primeiros ciclos do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Na tentativa de explicação do fracasso, foram analisados os aspectos sociais, escolares e psicolinguísticos. Tentou-se avaliar o peso do ambiente escolar com suas normas explícitas e implícitas de conduta, construídas pela professora, pelos alunos e pela própria escola. Tentou-se mostrar também que o desempenho linguístico dos “bons” e dos “maus” alunos está vinculado às representações sobre esses e desses mesmos alunos. A metodologia usada na pesquisa foi a de um estudo de caso etnográfico. O que me interessou investigar foi o processo de produção de “maus” e de “bons” alunos inseridos num contexto escolar e suas representações sobre esse processo. Foi feita uma investigação sistemática procurando retratar o idiossincrático e descobrir elementos importantes que pudessem emergir durante o estudo. O material base desta pesquisa foi colhido durante o ano de 1993, em uma escola pública da rede municipal de Belo Horizonte. Foi escolhida uma sala de aula de 1ª série, composta por alunos novatos, de camadas populares, sendo que a maioria não havia frequentado o pré-escolar. O meu interesse, portanto, voltou-se para o dia a dia da escola, para as questões rotineiras que compõem os significados construídos pelos educadores e alunos nos rituais que celebram no interior da sala de aula. Isso implicou apreender as “teias de significados” que alunos, professora e demais profissionais da escola teceram, na sua complexidade, irregularidade, opacidade, estranheza e incoerência, a fim de buscar uma “ciência interpretativa” à procura de significados (GEERTZ,1978, p. 15) e não leis gerais que explicassem a produção do “fracasso escolar”. Três questões nortearam a condução da pesquisa: 1- Que relações de poder estabelecidas no contexto escolar e fora dele estarão influenciando a exclusão dos “maus” alunos do processo de alfabetização? 2- Que objeto pré-construído está presente nas representações dos educadores para justificar a exclusão? 3- Em que condições as dificuldades de ensino e aprendizagem se manifestam? A partir dessas questões, o estudo pretendeu romper com as explicações naturalistas, biologistas e individuais do senso comum para o “fracasso escolar” presentes, inclusive, nas práticas científicas. Trata-se, pois, de romper com o “etnocentrismo” dos pesquisadores e considerar que a “neutralidade” é falsa e a “objetividade inexiste” (THIOLLENT, 1987, p. 28). O convívio do pesquisador com os pesquisados consiste na tentativa de explicitar o que não é dito e de revelar o que está oculto no discurso, permitindo que os sintomas que mantêm intocável e inflexível o modelo teórico dos educadores se revelem. Isso é possível apenas no movimento de estranhamento entre pessoas e de aproximação, quando se pode desvelar o que está ocultoe explicitar relações de que não se tem conhecimento. Os sujeitos da pesquisa Trabalhei com um grupo de seis crianças. Três delas (Lauro, Fernanda e Gustavo) foram consideradas pela escola como “maus” alunos e as outras três (Neide, Glória e Francisco), “bons” alunos. Segundo a professora, “os ‘bons’ alunos fazem o para- casa do jeito que ela gosta, decoram as sílabas e aprendem a ler, têm hábitos de higiene, têm cadernos limpos e caprichados, vão para a escola de uniforme e calçados limpos, sabem ouvir, têm atenção, olham para o quadro, têm letra linda e seus pais comparecem às reuniões e atendem imediatamente a qualquer chamado da escola”. A qualidade maior do “bom” aluno é a atenção. Àqueles que não correspondem às expectativas de aprendizagem da leitura e da escrita, por parte das educadoras da escola pesquisada, restam os rótulos de “preguiçosos”, “malandros”, “desinteressados”, “sujos”, “lambões”, “infrequentes”, “molezas”, “lerdos”, imaturos”. São os “maus” alunos, que, de acordo com a professora, não decoram as sílabas e não aprendem a ler, não têm hábitos de higiene, têm piolhos, usam uniforme, calçados e material escolar sujos, não têm ajuda em casa e seus pais não comparecem às reuniões nem atendem aos chamados da escola. A desqualificação maior do “mau” aluno é a falta de atenção e a preguiça. Como se deu o processo de produção dos “bons” e dos “maus” alunos? Durante todo o ano de 1993, em que estive dentro da sala de aula — lugar onde se manifestam e se entrelaçam as contradições e, portanto, o lugar concreto onde se produzem as dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita e também onde as interações sociais acontecem dinâmica e contraditoriamente —, foram se revelando os mecanismos seletivos e a diferença de tratamento da escola com relação aos “bons” e aos “maus” alunos. Dentro da sala de aula formaram-se duas redes de comunicação: principal e paralela (SIROTA,1988). 2 A rede de comunicação principal é aquela constituída pelos alunos que são sujeitos da comunicação, porque participam e são interessados, valorizados, têm coisas a dizer porque a situação de aprendizagem faz sentido para eles. A rede de comunicação paralela é aquela constituída pelos alunos que ocupam uma posição exterior à rede de comunicação principal na medida em que não são nem interessados, nem valorizados e desenvolvem condutas escolares ilegais e desviantes, ou são apáticos. Geralmente, os “bons” alunos, mesmo não produzindo discursos conformes à norma esperada (falam a qualquer momento, contam casos pessoais), permanecem na rede de comunicação principal, pois quando utilizam as regras explícitas (atenção, falar na hora certa, levantar o dedo para falar, etc.) de tomada da palavra tentam transpô-las para um registro implícito, negando e reconhecendo, concomitantemente, a norma escolar e, portanto, demonstrando que nesse jogo uma das regras é a exceção. Assim, o que distingue os alunos é a negociação da norma escolar que conseguem estabelecer em sua relação com a professora, quer seja pelo exagero, pela adesão, pelo retraimento ou pela oposição a ela. Os “bons” alunos estiveram, predominantemente, na rede principal de comunicação, embora, transitassem pela rede paralela. Corresponderam às expectativas de aprendizagem da leitura e escrita da escola e nem sempre corresponderam às expectativas de conduta. Glória foi a surpresa. No início do ano, esperava-se dela que não aprendesse a ler e escrever, assim como seus irmãos. Possivelmente, o reforço escolar recebido fora da escola, no Centro Estudantil da Lagoinha, tenha sido fundamental para o seu sucesso, pois ela aprendeu a ler e escrever ainda no 1º semestre. Os “maus” alunos estiveram, predominantemente, na rede paralela de comunicação, embora transitassem (raramente) pela rede principal. De um lado foram “guerreiros”, enfrentando a discriminação e o preconceito, tanto por parte dos colegas quanto da própria escola, por serem negros, pardos, pobres e favelados. Tentaram aprender e participar das aulas apesar dos rótulos e expectativas negativas da escola com relação a eles. Por outro lado, corresponderam às expectativas negativas quanto à aprendizagem da leitura e da escrita, pois Fernanda e Lauro não passaram de ano e aprenderam pouco a ler e escrever. Gustavo não correspondeu às expectativas iniciais da escola quanto a sua aprendizagem da leitura e da escrita, pois no início do ano, apesar de ter sido considerado um aluno fraco, aprendeu a ler e escrever. O que se enfatizava era o seu “mau” comportamento e não as suas dificuldades de aprendizagem, diferentemente de Lauro e Fernanda, que desde o início do ano foram considerados “com dificuldades mesmo” para a leitura e a escrita. Outro mecanismo de seleção presenciado foi a ação do poder disciplinar 3 (FOUCAULT, 1989) na constituição de “bons” e de “maus” alunos. Quem se encaixou nas regras do jogo escolar avançou na aprendizagem, mesmo que muitas vezes as negassem. O contrário ocorreu com aqueles alunos que não iam para a escola com os cabelos limpos e penteados, que não levavam material escolar e nem cuidavam deles com capricho, que não prestavam atenção às aulas, que brigavam com os colegas, que eram “imaturos”, “bloqueados” e cujas famílias não compareciam à escola nem ajudavam os filhos a fazerem o para-casa, ou seja que rompiam com as regras escolares explícitas. Esses aspectos como vimos, caracterizam os “maus” alunos e foram usados para explicar suas dificuldades na leitura e na escrita. Assim, a “culpa” das dificuldades recaiu sobre as crianças e seus familiares, revelando que a escola ainda está presa às teorias do “handicap sociocultural” 4 , assim como às teorias “cognitivistas” 5 e “organicistas” 6 para explicar a não aprendizagem dos “maus” alunos. Revela também que a escola ainda não percebe que as dificuldades são de ensino e de aprendizagem, que entre crianças de camadas populares e escola existe uma relação que não está sendo questionada. Trata-se de uma relação arbitrária, cultural: apenas aqueles alunos cujo habitus 7 se aproxima do habitus que a escola valoriza se saem bem na aprendizagem da leitura e da escrita. Os “bons” alunos, apesar de chegarem à escola com habitus diferentes daqueles valorizados pela escola, logo se adaptaram, estabelecendo-se, assim, uma relação positiva entre ambos. Os “maus” alunos não se adaptaram tão facilmente ao que a escola valoriza, sendo, portanto, discriminados e desvalorizados por ela. Todas as crianças demonstraram perfeito conhecimento das regras escolares quanto ao comportamento no pátio, na cantina e na sala de aula. Se não agem de acordo com elas, não é por desconhecimento. O que se percebeu é que os “bons” alunos acatam mais as ordens disciplinares, embora intervenham mais vezes e com mais intensidade na sala de aula do que os “maus” alunos. Tanto os “bons” quanto os “maus” alunos assumiram o discurso da escola para explicarem suas medidas punitivas (ora de ordem simbólica, ora de ordem física) com relação à bagunça dos “maus” alunos, ou seja, utilizaram a palavra “preguiça”, a mais usada na sala de aula, para explicar a razão da não aprendizagem e do mau comportamento de algumas crianças. Outro mecanismo de seleção de alunos diz respeito à aprendizagem da leitura e da escrita. Em nossa pesquisa, os “bons” alunos demonstraram maior conhecimento linguístico que os “maus” alunos, como se pode ver nos exemplos seguintes: 1- Numa conversa informal e individual com Lauro apresentei-lhe uns toquinhos de madeira com letras vermelhas, de imprensa, maiúsculas, em relevo. Pedi que formasse palavras com eles. Lau. Vou formar “lata” e formou: DACIXA. Pesq. O que você formou? Lau. DA. Pesq. DA é letra, é sílaba ou nome de pessoa? Lau. É nome de pessoa. Pesq. Lê o que você formou. Lau. DAQUIXA. Pesq. O que é DAQUIXA? Lau. Num sei. Logo depois começou a formar a palavra RITO e leu-a.Depois formou BOFL e leu BOELA. Formou VLA e leu VELA. Formou TUFA e leu TATU (disse que usou a letra F no lugar da letra T porque estava faltando). Esse aluno apresentou palavras treinadas na escola, com produções variadas, tornando-se difícil determinar seu nível de elaboração conceitual da língua escrita, pois os dados pesquisados foram insuficientes para afirmar em que nível ele se encontra. Vê-se um esforço mental para compreender a língua escrita e não erros aleatórios ou esquecimentos. Fernanda, por sua vez, diante dos toquinhos de madeira formou: IAFP e não soube dizer o que formou. Mas apontou as letras A,U,S e F corretamente e reafirmou que o F era de Fernanda. Depois formou EIAO e disse ter formado MISAEL, nome de seu irmão. Formou também EIO e disse que a letra E seria a letra M, pois tinha formado MARLENE, nome de sua irmã (hipótese silábica). Formou POAIA e disse que era o nome de seu irmão PEDRO. Não soube dizer o nome da letra P e disse ser T. Essa aluna procura dar significado ao que escreve por meio de nomes de pessoas ligadas a ela afetivamente, não se restringindo às palavras com sílabas simples e treinadas na escola. Indica que sabe que deve usar letras variadas para escrever palavras diferentes, mas não tem o domínio, o conhecimento específico das letras que formam as palavras. Aparece na sua produção a hipótese silábica. Num encontro com Neide, Francisco e Glória procurei saber quais conhecimentos linguísticos esses alunos haviam acumulado. Pesq. O que vocês aprendem na sala? Nei. Nóis aprende a ler, aprende sílaba. Fer. As sílabas. Glo. Hoje mesmo, a tia passou sílabas novas e amanhã vai dar o ditado das sílabas. Pesq. O que é sílaba? Nei. Sílaba é ba,be,bi,bo,bu; ma,me,mi,mo,mu; é as letrinhas dos nome que nós vamo aprender. Pesq. O que é palavra? Glo. Palavra é juntar as sílabas uma com a outra - o “la”e o “ta” dá lata. Pesq. O que é frase? Nei. É nóis fazer assim: A vaca é do papai. Pesq. O que é composição? Todos - Ah! Isso eu num sei não. Pesq. O que é escrita? Nei. Escrita é nome que fica na roupa, igual este aqui. Pesq. O que está escrito na sua roupa? Todos. Escola Municipal....... Pesq. O que é leitura? Nei. Leitura é assim ó: Glo. É a gente... Nei. A bola rola... rola... A bola rola na rua. A rola voa... voa... Todos- A rola voa no espaço. A lua rola... rola... A lua rola no céu. Pesq. Vocês sabem de cor? Nei. É do livro. Essas crianças sabem diferenciar sílaba de palavra e de frase. Possivelmente o termo composição esteja fora de moda e por isso não souberam defini-lo. O termo usado na escola é redação ou produção de texto. A definição de escrita desses alunos não faz relação com o que eles aprenderam na escola. Provavelmente porque no processo de ensino e aprendizagem, a escrita tenha sido transformada em mera cópia, não permitindo, portanto, a essas crianças fazerem a relação de sua aprendizagem com a escrita. A definição de leitura dada por eles ficou reduzida ao escolarmente aprendido, não se relacionando com o que estava escrito na camisa de uniforme, por exemplo. Vimos que o fato de decorarem o “texto” da cartilha que elas chamam de livro se configura como aprendizagem de leitura. O aprendizado se fez de forma descontextualizada, com ênfase na memorização de letras, sílabas, frases e “textos”. No entanto, alguns alunos obtêm sucesso. O que se observou também foi que ambos (“bons” e “maus”) esperam, com a mediação da escola, uma promoção social e a possibilidade de melhores empregos e salários do que os de seus pais.Por exemplo, quando lhes perguntei para que aprendem a ler e escrever disseram: Ig. Pra ter uma profissão. Quem sabe ler e escrever ganha mais. Glo. Pra gente ter um serviço, num fazer nada errado, prestar atenção. Gus. A gente cresce, aprende tudo, arranja um serviço e vai a mãe tá cansada e o filho fica trabalhando. E a mãe fica arrumando a casa. Tanto os “bons” quanto os “maus confrontaram o discurso da escola com seus discursos, como por exemplo: “A gente não fala nada, ela que quer fazer”. A escola diz que combina regras com os alunos e eles dizem que não. Outro exemplo: “Nu, a tia encheu o quadro”! Era cópia do começo ao fim do ano, mesmo querendo fazer uma prática agradável e inovadora. Ainda: — “A tia chamou a Neide”. — “Chamou!!?? Chamou!!?? As crianças percebem as diferenças de tratamento dentro da escola mesmo que o discurso dos educadores seja elaborado em torno de questões de igualdade: “aqui todos são iguais e irmãozinhos”. Percebem as negociações implícitas e as explícitas que são feitas entre a professora e os “bons” alunos, principalmente. Todas as crianças demonstraram grande capacidade de reflexão sobre a língua escrita através das variações ortográficas 8 . Variações que foram consideradas pela escola como aquilo que as crianças “não” aprenderam. Entretanto, elas ocorreram nos pontos de instabilidade estrutural da língua, indicando reflexão das crianças e não algo aleatório, gratuito. Tanto os “bons” quanto os “maus” alunos produziram variações no sentido de se regularizar a escrita das palavras. Ou seja, produziram variações ortográficas tanto no plano acentual quanto silábico, em direção ao acento mais canônico da língua portuguesa, o “paroxítono”, e em direção à sílaba mais canônica da língua portuguesa, a “CV”. Os exemplos dão visibilidade ao que foi dito: Variações ortográficas, no nível da sílaba, produzidas nos pontos de instabilidade da língua: 1- “cademilha” no lugar de academia — as variações ocorreram nas sílabas não canônicas — cai o “a” inicial e acrescenta-se “lh” na sílaba CVV tentando transformá-la em CV. 2- “dinadica” no lugar de ginástica — variações de diversas naturezas ocorrem nesta grafia, todas elas ligadas à percepção auditiva; ou seja, os sons são muito parecidos, mas ou se distinguem em relação às cordas vovais (“t” é consoante surda e “d” a sonora correspondente) ou em relação ao ponto de articulação (g é palatal e “d” é linguodental). As trocas de consoantes indicam problemas na articulação ou inversão no momento de representar distinções feitas na fala. É interessante observar a tentativa de transformar a única sílaba não canônica em sílaba canônica: “nás” em “na”. Variações ortográficas, no nível do acento: 1- “frenti” no lugar de frente, “tei” no lugar de tem, “ti” no lugar de te: as sílabas fracas mostram maior ponto de instabilidade (sílabas não acentuadas e aquelas com acento na última e antepenúltima sílaba). As vogais átonas /e/ e /o/ sofrem um processo de alçamento, passando a /i/ e /u/ respectivamente. Ainda no nível acentual ocorre a formação de palavras fonológicas e grupos de força: Ex. de palavras fonológicas: “nacasa”/na casa, “uminino”/o menino. Isto se explica porque palavras que não têm acento próprio, como o artigo ou a preposição, serão sempre ligadas, do ponto de vista fonológico, a uma outra palavra portadora de acento. O artigo ou preposição passa a fazer parte da palavra seguinte. Ex. de grupos de força: “lateto”/lá dentro, “latei”/lá tem, “jalicontei”/já lhe contei. Aqui, a explicação se encontra no fato de que palavras que têm acento próprio quando isoladas (adjetivo, advérbio) podem ter seu acento rebaixado devido à presença de outra palavra portadora de acento principal no grupo. No exemplo, “lá” tem acento enquanto isolada e é rebaixado em função do acento principal, formando um só grupo de força. As crianças da pesquisa produziram mais variações de fusão do que de cisão (CARVALHO,1994), demonstrando que estavam ainda se valendo de critérios fonológicos, mais do que de critérios semânticos e sintáticos para escreverem — escrita que é própria dos principiantes na aprendizagem da leitura e da escrita. Exemplo de fusões: “jalicontei”, “omenino”, “nacasa”. Exemplos de cisões: “a codado”, “mu le pelada”, “um lepelada”, “mu lepe lada”. As crianças que já segmentavam as palavrasproduziram escritas alfabéticas, e as crianças que ainda não segmentavam produziram escritas pré-silábicas, silábicas e silábico-alfabéticas. O que se verificou foi uma enorme vontade e capacidade de aprendizagem tanto dos “bons” quanto dos “maus” alunos. Se estes não avançaram mais, foi porque não lhes foram dadas as condições necessárias e suficientes para tal por parte da escola e de suas famílias. O que se viu também foi que a profecia que se autocumpre e o efeito Mateu 9 direcionaram a prática pedagógica observada. Deu-se às crianças o que elas conseguiriam fazer sozinhas, pois segundo a professora, “não adianta dar coisas muito difíceis porque eles não conseguem fazer sozinhos e eu tenho que fazer junto com eles. Eles (sistema de ensino) tinham que fazer uma coisa mais simples que isso que já vem pronto pra você dar. Porque os bons pegam, mas e os outros? Eu acho que tem muito valor dar coisas que eles sabem fazer sozinhos”. Esta fala mostra o desconhecimento, por parte da professora, do conceito de “Zona de desenvolvimento proximal” 10 , de Vygotsky, que pode ser um instrumento valioso de intervenção dos professores no processo de ensino e aprendizagem porque proporciona tanto às crianças quanto aos adultos a construção e reconstrução de conhecimentos, pois parte do pressuposto de que é na interação social que se aprende e se desenvolve. Ou seja, o que já vem pronto pode e deve ser questionado e reformulado em função das necessidades e interesses tanto dos alunos quanto dos professores. Segundo Vygotsky (1989), não se pode ensinar às crianças através de explicações artificiais, por memorização compulsiva e repetição apenas. O que uma criança necessita é de adquirir novos conceitos e palavras para atribuir sentido e significado ao que aprende. E um conceito não é apenas a soma de certas ligações associativas formadas pela memória, assim como não é, também, apenas um simples hábito mental; é um complexo e genuíno ato de pensamento, um ato de generalização, que envolve a atenção deliberada, a lógica, a abstração e a capacidade de comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos não são adquiridos por simples repetição ou rotina pedagógica, mas por um grande e longo esforço mental por parte da criança, em interação com adultos e outras crianças. Assim sendo, aprender a ler e escrever, por exemplo, é muito mais de que adquirir habilidades básicas. É principalmente construir, obter e atribuir sentido e significado à aprendizagem. Ou seja, em lugar das habilidades básicas, devemos considerar as atividades básicas, nas quais o que se percebe são os usos funcionais da linguagem, que sejam relevantes e significativos, o que implica ver a linguagem como uma totalidade. Portanto, no processo de ensino e aprendizagem, o que se recusa é a abordagem mecânica e a redução da leitura e escrita a sequências de habilidades ensinadas isoladamente ou sob a forma de estágios sucessivos. Para isso, enfatiza-se a criação de contextos sociais (zonas de desenvolvimento proximal) nos quais as crianças aprendam ativamente a usar, provar e manipular a linguagem, colocando-a a serviço da atribuição de sentido ou da criação de significado (GOMES & FARIA FILHO, 1997). Se por um lado o efeito Mateus e a profecia que se autocumpre direcionaram a prática pedagógica observada, por outro, há que se questionar a estrutura política e social que a sustenta e alimenta. Há que se questionar e relacionar essa prática com a organização das escolas públicas, com os sistemas de avaliação dessas escolas, com os baixos salários e com as condições de trabalho dos profissionais que nelas estão. Há que se questionar a formação desses profissionais nos cursos de magistério e universidades. Assim não cabe “culpar” a escola ou os professores e especialistas ou os alunos e seus familiares pelo “fracasso escolar” de determinados alunos (os mais pobres). Cabe, sim, fazer relações entre a prática pedagógica mencionada e as estruturas que a sustentam, fazer relações entre crianças de camadas populares e escola pública. Assim, estaremos dando um passo à frente para a democratização do ensino no Brasil. Notas 1 Professora de Psicologia da Educação da FaE/UFMG e pesquisadora do CEALE/FaE/UFMG. 2 Sirota parte da hipótese de que no interior de um jogo de igualdade formal entre alunos e professores, o discurso do professor e seu comportamento produzem um arbitrário cultural ou norma que define o interior da sala de aula. E é com base nesta norma implícita e subjacente ao funcionamento da sala que se produz um mecanismo de valorização e desvalorização do discurso e do comportamento de alunos, porque os alunos e professores comparam, diferenciam, hierarquizam e se espelham ou não no discurso e no comportamento do professor. Entretanto, diz Sirota, não se joga o mesmo jogo com o conjunto da sala. É aí que se pode distinguir duas redes de comunicação: uma rede de comunicação principal e uma rede de comunicação paralela. 3 Segundo Foucault (1989), foi no século XVIII que se inventaram as técnicas disciplinares e o exame, com o objetivo de transformar os homens em força de trabalho produtiva, proporcionando-lhes o sentimento de utilidade máxima e diminuindo sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra o poder instituído. Em outras palavras, o poder disciplinar tem o objetivo de tornar os homens dóceis politicamente. A disciplina é um tipo de organização do espaço, é um controle do tempo e a vigilância é um dos principais instrumentos de controle. Ela deve ser contínua, ser vista por todos, mas com discrição da parte de quem vigia. Assim “o poder disciplinar é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder. São métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1993, p. XVII). No século XIX as relações de poder ganham positividade porque produzem saber. É um poder característico de nossa época, de nossa sociedade, que ocorre pela vigilância, por separações, por medidas comparativas, e que tem a norma como modelo. 4 Teoria do handicap sociocultural - surge nos anos 60, nos E.U.A. e defende uma “superioridade” do controle cultural das classes dominantes, em confronto com a “pobreza cultural” do contexto em que vivem as classes dominadas. O contexto é que é responsável pelos “déficits” das crianças de camadas populares que se veem privadas de alimentação, de atenção, de cultura, apresentando “carências”, sobretudo no campo intelectual. 5 Teoria cognitivista - aparece e se desenvolve na França, nos E.U.A. e na Grã-Bretanha, logo depois da 2ª guerra mundial (FIJALKOW, 1989). Nasceu da psicologia e pretendeu fazer a crítica à concepção organicista. Busca as origens das dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita na inteligência, na percepção, nas imagens, na integração de sentidos auditivos e visuais, na memória imediata, na atenção seletiva e na linguagem, ou seja, naquilo que ela denomina de déficits cognitivos. 6 Teoria organicista - surge na França, no século XIX, da medicina: os médicos localizavam as causas das dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita no cérebro. Alguns estudiosos defendem que tais dificuldades são inatas, outros que são adquiridas e ainda há aqueles que não entram na polêmica do inato/adquirido e localizam-nas na não maturação do sistema nervoso central. 7 Habitus - O habitus (BOURDIEU, 1983) produz comportamentos, linguagens, posturas, gestos, valores, costumes. Não é uma “espécie de essência a-histórica, cuja existência seria o seu desenvolvimento, enfim um destino definido de uma vez por todas” (p. 106). Ele indica não só as regras de comportamento aprendidas em casa, como também as maneiras de falar, de ser, ou seja, a subjetividade das crianças, que por sua vez denuncia suas origensde classe. Assim, o habitus é produto das relações sociais. Ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações e não possui o domínio consciente das ações, pois ultrapassa sempre as intenções conscientes. É um processo de internalização da objetividade que ocorre de forma subjetiva, mas que não é apenas individual, é também social. 8 Variações ortográficas - Alvarenga (1995) utiliza o termo variação ortográfica no lugar de erro ortográfico, pois segundo esse autor, a palavra erro se define em referência a um quadro teórico que admite a existência de uma norma social definida previamente, como único referencial “correto”, tudo o mais sendo considerado como incorreto. Neste quadro, a língua é estudada como um objeto fechado, pronto e acabado. A aprendizagem é vista como apreensão ou assimilação de normas linguísticas impostas pelo sistema social. A avaliação é vista como a medida dos resultados e nunca do desenvolvimento dos mecanismos com os quais operam os alunos. Assim, as construções ortográficas dos educandos, que diferem da norma padrão, são rejeitadas, riscadas, desvalorizadas e consideradas como erros. O termo variação ortográfica parte do ponto de vista de que a língua é um objeto de conhecimento aberto, em construção. Que a aprendizagem é uma tarefa de conceitualização, caracterizando-se como a compreensão dos princípios organizadores da língua, por parte dos aprendizes. Assim, eles não violam as regras, as normas, mas suas construções são o produto de uma elaboração intensa, produtiva e dinâmica, o resultado da aplicação de numerosas hipóteses implícitas. 9 Efeito Mateus - descrito por Stanovich (1986, 1988); citado por Lecocq (1992). Segundo este autor, o efeito Mateus se refere à expressão tirada do Evangelho segundo São Mateus: “os ricos se enriquecem e os pobres se empobrecem” (p. 170). 10 Zona de desenvolvimento proximal - Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1989, p. 97). Referências ALVARENGA, Daniel. Análise de Variações Ortográficas. Rev. Presença Pedagógica, v. 2, ano 1, mar./abr., 1995. BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. CARVALHO, Gilcinei T. O processo de segmentação da escrita. Faculdade de Letras, UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.) CARVALHO, Mauro Giffoni de. Os “bons” e os “maus”: interação verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado.) FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. FIJALKOW, Jacques. ¿Malos Lectores por qué? Madrid: Biblioteca del libro, 1989. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1989. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GOMES, Maria de Fátima Cardoso. Chico Bento na escola: um confronto entre o processo de produção de “maus” e de “bons” alunos e suas representações. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1995. (Dissertação de mestrado.) GOMES, Maria de Fátima Cardoso & FARIA FILHO, Luciano Mendes. Memória e aprendizagem: uma perspectiva sócio- histórica. Rev. Presença Pedagógica, v.3, n.15, mai./jun. 1997. GRIFFO, Clenice. Dificuldade de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.) LECOCQ, P. (org.). Accessibilité à l’écrit et apprentissage de la lecture. In: La lecture: processus, apprentissage, troubles. Lilles: Ed. Presses Universitaires, 1992. MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Pais e filhos diante do fracasso na alfabetização. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.) RESENDE, Valéria Barbosa de. Fracasso e sucesso escolar os dois lados da moeda. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.) SENA, Maria das Graças de Castro. A educação de crianças: representações de pais e mães das camadas populares. São Paulo: USP, 1990. (Tese de Doutorado em Psicologia Escolar.) SILVA, Maria Cristina da. Fracasso escolar: a subjetividade em questão. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1996. (Dissertação de mestrado.) SIROTA, Regine. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas,1994. THIOLLENT, M.J.M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Ed. Polis, 1987. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Capítulo I1 QUATRO HISTÓRIAS E DOIS DESTINOS Mauro Giffoni de Carvalho 1 Dos “bons” e dos “maus” Quatro crianças, com pais cuja condição socioeconômica se assemelha à da maioria dos subproletariados brasileiros, foram estudar, no primeiro semestre de 1992, numa escola municipal localizada entre a favela onde moravam e um grande bairro da cidade. Quatro histórias de vida, de convivências, de acessos e de experiências muito parecidas até ingressarem na escola. Quatro histórias e dois destinos. Assim começam as histórias dos “bons” e dos “maus”. Essas quatro crianças e mais outras vinte e seis encontraram-se pela primeira vez com a professora. Era o primeiro dia de aula de uma turma de alunos novatos. Parecia que ali ninguém conhecia nada de ninguém. Tudo era novidade: a grande sala chamada de “laranja”, as carteiras enfileiradas, o quadro negro ladeado por cartazes que desejavam “boas vindas”, uma grande janela que cortava toda a lateral da sala e os novos colegas. A professora, sorrindo, distribuía pelas carteiras folhas usadas de computador. Hora da chamada: “escrevam seus nomes!”. Todos sentados e calados atendem à solicitação feita. De repente, o silêncio é quebrado por um aluno, José 2 , que se diz o mais rico da sala. Desencadeia-se, nesse momento, uma série de falas comparativas por toda a sala: — Olha, professora – diz Ana – meu pai dá som no DCE! — E o meu, professora – diz Pedro – tem um carro! — Meu pai ganha muito dinheiro, “nó” – exclama – tem um bolão assim de dinheiro lá em casa! — Mas o meu é o mais rico – retruca José. Com um sorriso terno, a professora Nádia interrompe a disputa de notoriedades e todos se voltam para a realização das atividades programadas. Que razões teriam levado esses alunos a interromper o silêncio dos primeiros dias de aula, com afirmações que pareciam despropositadas para aquele momento? Num ambiente onde todos eram economicamente carentes, por que comunicar uma suposta riqueza? Poderiam essas falas constituir um ingente esforço de reconhecimento social que aproximasse esses alunos da professora e os distinguisse dos demais colegas? E o sorriso, um “já sei”, indicaria que a professora já possuía uma leitura prévia desses discursos? Ao verbalizarem essa condição, esses alunos pareciam tentar, ainda que de forma inapropriada, buscar, forçadamente, um reconhecimento social que os aproximasse da professora e da cultura escolar. A suspeita de que a professora poderia valorizar mais os alunos que possuíssem um maior capital econômico era o primeiro passo da negociação para ser considerado um “bom” aluno e, consequentemente, para obter aprovação. O diálogo desses alunos parece comprovar a visão estigmatizada que a clientela, geralmente, recebe das instituições escolares públicas. O preconceito maior da escola, via de regra, está voltado para as condições de vida de seus alunos e para a chamada assistência em casa. A respeito da classificação dos alunos segundo suas condições de vida, ela pode ser resumida conforme descreve Teves (1989): As condições de vida do aluno passam a servir de critérios a sua própria identificação: ele é morador de uma favela, seus pais, quando conhecidos, vivem separados. Ele convive com péssimas condições de higiene, o vocabuláriofamiliar é bastante restrito, sua alimentação é bastante precária, enfim, é possível identificá-lo mediante uma metodologia específica classificatória. O resultado desse tipo de tratamento do aluno é confundi-lo com as suas condições de existência. Identifica-se nele mais o que lhe falta do que ele tem, sem se discutir por que lhe falta ou o sentido que têm para ele aquelas faltas. Elabora-se, com isso, o discurso descritivo da carência. (p. 29) Quais seriam, então, as vias, os discursos que podem causar o reconhecimento do “bom” aluno? O que poderia a professora valorizar nesses alunos? Estaria condicionado o reconhecimento dos considerados “bons” a um tipo de estrutura familiar que se aproxima da estrutura familiar da professora, isto é, de acordo com os padrões de organização das famílias de classe média? As previsões sobre o futuro escolar desses alunos pareciam relacionar-se, porém, muito mais à prática discursiva (re)construída e negociada por eles e pela professora, a partir de seus contextos culturais do que às diferenças econômicas. A cultura escolar, em geral hegemônica e rotuladora, se confrontaria diretamente com as outras formas de interação social e discursivas trazidas pelos alunos. Estes, quando chegaram à escola, trouxeram consigo uma identidade, um mundo real particular, já categorizado e referenciado a um conjunto de relações sociais abrangentes, construídas através de vivências variadas no seu cotidiano. O desafio era explicar em que se baseavam e como eram construídos os conceitos de “bom” e de “mau” numa sala de aula. A constituição do sentido do “bom” e do “mau” aluno se realizaria, nos primeiros dias de aula, durante a interação verbal entre os alunos e a professora. Na sala de aula, sentidos e significações, produzidos no jogo social mais amplo, se confrontariam à luz dos interesses pessoais de seus interlocutores. A maioria das situações de interação verbal observadas na sala de aula estava conformada à dinâmica de funcionamento das escolas públicas. A apropriação da cultura escolar implícita nas ações pedagógicas do professor expressava-se através de uma postura na sala de aula coerente com a lógica autoritária/assistencialista da burocracia do sistema de educação pública brasileiro 3 . Essa característica das instituições escolares evidenciava o quanto são assimétricas e divergentes as interações social e discursiva entre professores e alunos, inclusive no tocante à produção e à recepção de formas simbólicas relacionadas ao sucesso ou fracasso escolar. Nessa interação alguns alunos iriam adquirir o reconhecimento e a identidade de “bons”, indicativos do sucesso escolar, enquanto outros, os “maus”, não teriam o conhecimento nem o reconhecimento da professora e de seus pares, não sendo merecedores da aprovação escolar. Para a realização de um “bom negócio”, o domínio da linguagem escolar era fundamental para o alcance da aprovação. O estudante capaz de apresentar uma linguagem mais próxima da linguagem escolar tenderia a obter maior simpatia e aceitação da professora, tendo mais chance de ser considerado um “bom” aluno. Em contrapartida, os considerados “maus”, por utilizarem menos eficientemente a linguagem e as formas de pensamento preexistentes na cultura escolar, sobretudo nos primeiros dias de aula, pouco a pouco ingressavam no bloco monolítico dos estudantes tidos como “fracos”, como demonstra a situação ocorrida. Os alunos foram desafiados a disputar quais eram os melhores da sala: os meninos ou as meninas? A professora explicou que iria mostrar várias fichas e depois eles deveriam reconhecer a mesma palavra escrita no quadro- negro e ligá-las com um traço. RODINHA BOA TARDE ATENÇÃO MERENDA POR FAVOR ATENÇÃO RODINHA POR FAVOR ATENÇÃO SILÊNCIO (fig. 1: quadro-negro) Era a vez de Paulo. A professora lhe mostrou a ficha MERENDA. Paulo foi até o quadro e colocou a ponta do giz na palavra MERENDA e ficou um grande tempo procurando a outra palavra que deveria ligar. A professora interveio: — Tem crianças que ficam brincando na sala e é por isso que alguns aprendem mais depressa do que outros! Nesse momento, ao meu lado, Milena suspirou: — Ai que sono... Finalmente, Paulo resolveu ligar a palavra MERENDA com RODINHA. A professora, olhando para a turma e para ele perguntou: — A resposta está correta, gente? — Está erraaaada! Responderam todos num tom bem alto e prolongado. A professora, então, mostrou a diferença das duas palavras pelo significado e pelas letras, uma a uma. A atividade foi concluída pela leitura coletiva de todas as fichas. Supus que tal situação não poderia ter acontecido senão com Paulo. Ele era uma criança que demonstrava ser muito calada na sala e que, quando falava, mal se ouvia sua voz. Utilizando-se de um exercício que expunha o aluno a todos os colegas, a professora, consciente ou não, pôde confirmar suas hipóteses, representações e expectativas em relação aos seus “bons” e “maus” alunos na sala de aula. Talvez, com esse tipo de atividade, houvesse nela muito mais a intenção de identificar os “bons” e os “maus” e muito menos o propósito de ensinar ao Paulo, nesse exercício, as regras da língua escrita, a partir da lógica contida no seu erro. Em nossa sociedade, a escola não só legitima uma seleção meritocrática dos mais capazes para o desempenho das funções mais relevantes, associado às maiores recompensas econômicas e políticas, como também constitui-se num importante veículo da transmissão de valores morais, atitudes e comportamentos da cultura que se afirma como hegemônica. Entre nós é costume separar o bem do mal, o céu do inferno, a virtude do pecado, o normal do anormal, o apropriado do inapropriado, o certo do errado e assim por diante. Nossa tradição judaico-cristã (mais cristã do que judaica) é a principal incentivadora dessa divisão. Esse procedimento, que é frequentemente utilizado pela Igreja, foi também adotado pela educação, não somente em sua didática, mas também como meio de justificar as injustiças sociais e a sua própria incapacidade de ensinar os que se confrontam com os programas de ensino preestabelecidos, muito semelhantes às liturgias. O mito do “bom” versus o “mau” sustenta a crença da cultura escolar de que a repetência é boa para o aluno e que, por sua vez, é de boa qualidade a escola que muito reprova. Compreender a dinâmica das interações verbais na sala de aula implicaria, também, conhecer o cotidiano desses alunos na escola e na família. Participar do dia a dia escolar e de suas rotinas, que são pano de fundo do processo de ensino-aprendizagem, possibilitaria identificar as contradições mais específicas do processo de interação verbal. Nem “bom” nem “mau” No final do primeiro semestre daquele ano, escolhemos uma amostra constituída por quatro alunos: dois com “melhor” rendimento e dois com “pior”, segundo os critérios da professora. 4 Procuramos observar as interações verbais desses quatro personagens dentro e fora da sala de aula. Cena 1 - Sala de aula. Numa tarde de junho, a professora perguntava a cada um dos alunos o nome das letras e das sílabas escritas no quadro. O que parecia ser básico para a leitura e a escrita, numa determinada concepção de aprendizagem, na verdade se traduziu, para o primeiro desses dois alunos considerados fracos, numa novidade. Quando arguido, respondeu com um tom de voz quase inaudível, revelando um desconhecimento das vogais, o que causou um olhar de espanto na professora. O seu lugar social na sala de aula se configurava, a cada dia que passava, no discurso do silêncio: não entendia o que a professora lhe dizia nem se fazia entender. Cena 2 - Fora da sala de aula. Numa sala de artes da escola, os quatro alunos da amostra foram jogar um tipo de jogo da memória (Bingo Educativo — série animais). Fiz para todos a leitura das regras do jogo, que consistia em completar as cartelas com figuras deanimais, como na regra do jogo de memória. Apesar de toda a atenção (ou tensão) causada pela situação de jogo, todos tiveram seus momentos de erro e de acerto. Nessa partida, um dos “bons” foi o vencedor, o segundo lugar coube a um dos “maus”, seguido por um “mau” e um “bom”, respectivamente. Cena 3 - Fora da escola. Numa das raras atividades extraclasse promovidas pela escola, fomos ao Parque Municipal de Belo Horizonte. Ficamos nesse local uma grande parte da tarde brincando, andando, conversando e contando histórias. No final da tarde, depois do lanche, a professora convidou-nos para observar os peixes que estavam na margem do lago. O segundo aluno considerado fraco, levantando os braços e gesticulando, disse-me: — “Mauro, é muito melhor essa aula do que a outra, a nossa mão fica livre!”. E continuou: — “Todas as aulas podiam ser assim, não é?” Nas atividades extraclasse promovidas pela escola, os alunos pareciam estar mais interessados em fazer o que era proposto pela professora e mais solidários com os seus colegas. Por outro lado, fora do contexto escolar, a professora mostrou-se mais próxima dos alunos, estabelecendo com eles mais situações de interação verbal. Um comportamento (rendimento) diferente do encontrado na sala de aula pôde ser observado quando foram criadas novas situações fora da sala. A mudança de contexto das interações como, por exemplo, nos jogos, nas dramatizações, nos desenhos, nas conversas informais, mostrou que o grupo dos “bons” e dos “maus” se comunicava mais e melhor, pois ali as regras da cultura escolar estavam diluídas e poderiam ser estabelecidas outras regras, conforme as suas próprias referências culturais. Como consequência, os alunos tidos como “maus” apresentaram, frequentemente, um rendimento equivalente, ou até mesmo superior, ao dos alunos tidos como “bons”. Ser dos “bons” ou ser dos “maus” é muito relativo, assim como são relativos os conceitos de certo e errado, de normal e anormal, de verdade e falsidade etc. Na vida, isso depende de muitos fatores e contextos. Segundo Orlandi (1988), o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito se realiza durante sua formação discursiva. Dessa forma, é na interação verbal que o aluno-sujeito se reconhece e é reconhecido por seus pares e pela professora como um dos “bons” ou como um dos “maus”. Para se buscar uma melhor compreensão das diferenças de rendimento dos alunos das camadas populares, numa mesma sala de aula, há que se levar em conta as relações discursivas — a intertextualidade — que são produzidas no processo de interação, as quais, por sua vez, são apropriações de referências culturais distintas. Na escola, as diferenças de interação verbal entre os “bons” e os “maus” alunos poderiam advir da trajetória percorrida pela família, da origem rural ou urbana, dos deslocamentos ou do enraizamento no espaço geográfico, ou explica-se pela presença de interação com parentes escolarizados e pelo contato com outros modelos socioculturais. Os resultados de nossa pesquisa, de certa maneira, confirmam a tendência da escola em atribuir a seus usuários a responsabilidade por todos os defeitos e dificuldades de sua aprendizagem e de seu ajustamento escolar. Um contato mais prolongado e direto com os alunos e com suas respectivas famílias mostrou-nos a heterogeneidade do corpo discente, no tocante às formas de falar, de responder às perguntas, ao estilo de pensamento, a valores, hábitos, crenças, aceitação ou recusa de normas disciplinares, vestimentas etc. Seria impróprio, portanto, fazer uma generalização do aluno “pobre”. Os alunos das camadas populares não constituem, culturalmente, um bloco monolítico e homogêneo. (Para maiores informações sobre o tema, ver o texto de Maria Cristina da Silva que faz parte deste livro.) Em suma, o “sinal distintivo”, que diferencia os alunos entre si, está na relação que cada um estabelece com a cultura escolar. A relação que eles mantêm com o contexto sociocultural do ambiente familiar impregna todas as suas atividades escolares e todas as suas formas de interação verbal. Nossa história termina acenando para a possibilidade de se criarem, na escola, situações de interação, de aprendizagem e de avaliação condizentes com o contexto cultural de sua clientela e propiciadoras da aquisição do conhecimento indispensável ao sucesso escolar. Tratar igualmente os diferentes ou generalizar os alunos em “bons” e “maus” pode constituir-se em fonte de injustiças e de mal-entendidos, quando não são compreendidas as suas diferentes histórias e suas diversidades culturais, na interação escolar. Notas 1 Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor-pesquisador do UNICENTRO-BH. 2 Os nomes dos alunos e da professora, neste artigo, são fictícios. 3 Nesse sentido, seria impróprio, além de um equívoco de graves repercussões, apontar a professora como responsável pelo fracasso escolar de seus alunos. As ações pedagógicas da professora, bem como seu discurso na interação verbal com seus alunos mostram que elas se explicam na lógica do sistema escolar, que a leva a apropriar-se de concepções de ensino-aprendizagem mecanicistas e de práticas disciplinares, constituindo, assim, “verdadeiras estratégias de sobrevivência”. (Para maiores informações sobre esse tema, ver texto de Gomes que faz parte deste livro.) 4 No que concerne à avaliação e ao rendimento escolar, as decisões do professor, quanto ao sucesso ou ao fracasso de seus alunos, valeram-se muito mais de critérios estribados em hábitos, valores, estilos de linguagem e pensamento do que da qualidade e produtividade intelectual deles. Referências CARVALHO, Mauro Giffoni. Os “bons” e os “maus”. Interação verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado.) ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988. TEVES, Nilda. Imaginário social e educação. Rio de Janeiro: Gryphus, FaE/UFRJ, 1992. Capítulo 1II DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO: PERSPECTIVAS DO APRENDIZ Clenice Griffo 1 Esta pesquisa, desenvolvida no programa de pós- graduação da FaE/UFMG, teve como objetivo primeiro estudar a perspectiva do aprendiz, aluno da primeira série do ensino fundamental, que, frequentador de turmas de alfabetização, não obtém sucesso na escola, sendo considerado por ela como portador de dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da linguagem escrita. Foram realizados quatro estudos de caso com meninos de uma mesma turma de uma escola da rede pública estadual de Belo Horizonte no ano de 1994. O estudo realizou-se a partir de observações em sala de aula priorizando-se as interações estabelecidas, buscando- se entender como o aluno fracassado se percebia na condição de ausência de produtividade escolar e como reagia frente aos rótulos que lhe eram atribuídos. Foram realizadas sessões coletivas e individuais, sessões com toda a turma de alunos, entrevistas com os sujeitos da pesquisa e seus familiares, com as professoras alfabetizadoras da escola, com a supervisora e com o responsável pelo acompanhamento das tarefas escolares. Buscava-se entender como cada um desses alunos era tratado e percebido no meio familiar e escolar e, sobretudo, como eles próprios se percebiam na situação em que se encontravam. Parte do trabalho compõe-se da exposição e análise das teorias que tentaram explicar o fracasso escolar dos alunos das redes públicas de ensino. Tais análises não serão, no entanto, expostas integralmente aqui, pois já constam no artigo de Gomes, que faz parte desta edição. Serão acrescentadas apenas algumas considerações desenvolvidas na referida dissertação. Todas as teorias desenvolvidas para explicação do fracasso escolar sofreram críticas pela inconsistência de seus fundamentos. Historicamente houve uma tentativa de superação de uma pela outra. Podemos verificar que, embora cada teoriacontenha suas especificidades, é possível extrair do conjunto de suas concepções alguns aspectos que, em maior ou menor escala, estão presentes em todas elas. Um primeiro aspecto é referente ao problema localizado no aprendiz. É como se as explicações se desenvolvessem no sentido de apontar um responsável, um culpado. Segundo a concepção organicista o aprendiz já nasce com essa responsabilidade instalada em seu cérebro: é um problema no nível físico. Conforme a concepção instrumental, a responsabilidade se desloca do nível físico (hereditário ou neurológico) e se estabelece no campo psicológico: a inteligência do aprendiz estará comprometida. A concepção dos transtornos afetivos da personalidade aponta como fatores determinantes da não aprendizagem as perturbações afetivas e características da personalidade, indicando que tais sintomas podem afetar o campo cognitivo do aprendiz. As explicações decorrentes das teorias do handicap sociocultural atribuem à criança que fracassa na escola deficiências, carências ou diferenças que vão desde comparações e atribuições valorativas de seus hábitos cotidianos até sua incompetência linguística. Dessa forma, percebe-se afetados o campo físico (na inabilidade de utilizar objetos que ela não conhece, por exemplo), o socioafetivo (na inabilidade de se relacionar em determinados meios) e o campo intelectual (na inabilidade de se comunicar de forma eficiente ou aprender na escola). É interessante verificar que a teoria do handicap sociocultural, em destaque a ideologia das diferenças culturais, considerada avançada no meio científico, contém em seu arcabouço teórico aspectos que são combatidos e considerados não científicos em suas teorias de origem. Mesmo quando se diz que há apenas diferenças culturais, e não deficiências nos alunos que fracassam, encontram-se embutidas nesta expressão atribuições valorativas que provocam distinção de percepção entre alunos de níveis socioculturais diferentes. Esta distinção está relacionada à maior ou menor competência e habilidade para aprender. Sendo assim, é apenas um termo de distinção, não se constituindo, portanto, um desvio de foco de responsabilidade pelo fracasso. Um segundo aspecto comum às explicações para o fracasso escolar diz respeito à maturidade. Em todas as abordagens encontramos indícios de que este seja um fator determinante nos processos de aprendizagem escolar. Na teoria organicista, a maturidade se apresenta como de natureza físioneurológica; na concepção cognitivista, é indicada como pertencendo ao campo das percepções e do intelecto; na concepção dos transtornos afetivos da personalidade, refere-se aos estados maturacionais dos aspectos afetivo-emocionais da criança fracassada; e nas diversas vertentes da teoria do handicap sociocultural aparece como ausência de requisitos indispensáveis ao processo de aquisição dos aprendizados escolares. Percebe- se que de uma teoria para outra o conceito de maturidade permanece com o mesmo conteúdo conceitual-ideológico. Outro aspecto comum a todas elas é relativo à ausência de abordagens relacionadas às especificidades da língua, linguagem oral e escrita, e consequentemente, do próprio objeto de aprendizagem. Ou seja, não se considera a escrita como objeto de conhecimento do processo de aprendizagem da mesma. A partir da análise das explicações dos problemas de aprendizagem escolar é possível perceber que as teorias se encontram vinculadas às práticas escolares, exercendo papel importante na consagração da ideologia dominante. As teorias atendem a interesses escolares e principalmente sociopolíticos. É interessante ressaltar que o preconceito linguístico presente nas práticas escolares se apresenta como grande fator de discriminação das crianças das camadas desfavorecidas da sociedade. Como aponta Soares (1985, p. 17): “é o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminação e fracasso”. As variações linguísticas funcionam como fator de discriminação e instrumento de uso de autoridade e poder dentro das escolas. No entanto, a discriminação linguística não aparece de forma clara nas abordagens sobre as dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita. A ausência de discussão sobre os conceitos de alfabetização, língua e linguagem apresenta-se como forma de desvio da questão central: o preconceito para com os alunos das classes desfavorecidas. Os casos A opção por estudo de caso, para a concretização dos objetivos propostos, se deu a partir das seguintes constatações: a) não existe na produção acadêmica e científica, estudos de casos de alunos considerados portadores de dificuldades de aprendizagem na leitura e escrita; b) não foram encontradas, na revisão bibliográfica sobre o tema (pesquisa realizada por equipe do CEALE /FaE/UFMG) pesquisas ou trabalhos que abordassem a perspectiva do aprendiz no processo de fracasso na aprendizagem; c) as obras sobre as dificuldades de aprendizagem, em grande parte, estão fundamentadas em generalizações, sem indicação e discussão de aspectos específicos relativos às condições dos alunos a que se referem. Serão apresentados neste artigo apenas dois dos quatro casos estudados, dadas as limitações desta publicação. A seleção foi aleatória, por ser grande a dificuldade de escolha e por conter cada um deles especificidades significativas para a análise final. Esta, no entanto, se referirá a todos os casos do estudo realizado. Caso 1: Paulo — a dificuldade inventada Paulo completou nove anos de idade em maio de 1994 e este foi o ano de sua entrada na primeira série. Até então, nunca havia frequentado escola. Em agosto desse mesmo ano, quando as observações de campo se iniciaram, Paulo se encontrava longe de sua mãe, que o deixara com vizinhos (família adotiva, como explicava a escola, embora fosse uma situação provisória). A mãe, prostituta e considerada louca pelas profissionais da escola, visitava-o esporadicamente e segundo relatou o vizinho com quem morava o menino, ela o agredia muito. O “pai adotivo” de Paulo o considerava “extremamente inteligente” e dizia que o menino o ajudava na confecção de placas e faixas, decorava textos bíblicos e até lhe dava conselhos, mostrando-se muitas vezes carinhoso e prestativo. Trazido pela própria mãe, Paulo foi logo encaminhado para a turma onde se concentravam os alunos considerados pela escola como portadores de alguma deficiência, alunos avaliados, por meio de teste elaborado na própria instituição, como despreparados para cursar uma primeira série normal. A professora dessa turma não “suportou”o menino e pediu a transferência dele para outra sala: alegava que era muito indisciplinado, que era insuportável. Nessa segunda turma, o menino passou a ocupar a última carteira da última fileira da sala de aula. De estatura baixa, ele não conseguia nem mesmo copiar as tarefas do quadro. A professora, com a qual ficou até o final do ano letivo, não permitia que ele fizesse as provas e só se dirigia ao menino para criticá-lo ou castigá-lo. Seus colegas não podiam se relacionar com ele na frente da professora, mas, na ausência dela, alguns lhe demonstravam simpatia. Essa professora dizia “ter dó” do menino e o aceitou na condição de que ele não a incomodasse. Todos na escola o viam como problemático e de difícil convivência. Visto como má companhia, menino perigoso e agressivo, estava impedido de aproximações e amizades. Era tratado com indiferença e discriminação. No entanto, seus atos de subversão dentro e fora da sala de aula eram admirados por seus colegas. Paulo fazia inúmeras tentativas de aproximação e reconhecimento: cantava alto, representava personagens de desenhos animados, defendia os colegas menores das agressões dos maiores, prestava favores quando solicitado, contava piadas, imitava a professora e até dava cambalhotas na sala de aula. As risadas dos colegas eram abafadas edisfarçadas, pois ninguém podia dar mostras de simpatia por ele. Aluno faltoso, porém sempre presente. Até quando faltava era lembrado várias vezes, principalmente pela professora em chamadas como: “Deus ajuda que ele não aparece”; “Puxa, hoje foi mais sossegado sem o Paulo. Ele só vem pra atrapalhar”. As aulas nunca se iniciavam sem que a professora chamasse a sua atenção ou já lhe desse um castigo. Um dia, após longa chamada de atenção, Paulo respondeu a ela: “Ô tia, por que você não larga de ser professora. É ruim!”. A resposta que obteve, no entanto, não foi de igual carinho: “Ruim não, só tem uns aluninhos que não me dão sossego”. Paulo parecia buscar sentido nos fatos que vivia. Parecia não compreender muito bem a discriminação que sofria dentro e fora da sala de aula. No entanto, esse estado de incompreensão não o impedia de pensar, falar e levantar hipóteses acerca das tarefas escolares e até mesmo de duvidar do desempenho da professora. Em uma conversa informal (entre o menino e a pesquisadora), ao ser perguntado se estava aprendendo o que a professora lhe ensinava, respondeu dando risadas: “Não! É porque a tia não ensina.” A discriminação que sofria foi expressa em vários momentos, algumas vezes traduzida em sinais de baixa estima, tais como: “Eu sei ler, fico pensando: como é que vou saber ler? Eu sou muito burro.” Esta frase foi pronunciada em um momento em que acertava a tarefa proposta para os fins da pesquisa. Mostrou-se espantado ao se ver acertando. Por meio das sessões individuais e coletivas que realizamos, foi possível constatar que Paulo tinha muito mais conhecimento da língua escrita do que a escola parecia supor. Conhecimentos que, com certeza, não foram detectados no teste inicial da escola: nomeava todas as letras, localizava palavras em textos que não conhecia, escrevia palavras a partir de palavras já escritas. A concepção dos transtornos afetivos da personalidade era a mais presente no discurso das profissionais da escola em relação ao caso de Paulo. Com referência na família, principalmente na figura materna, a escola apontava como causa de seu fracasso a situação afetivo-emocional que vivia. Mesclada a essa abordagem encontramos referência às teorias do handicap sociocultural, uma vez que a situação econômica, cultural e, principalmente, social do menino parecia, aos olhos da escola, ser responsável pelo seu quadro de fracasso. A concepção instrumental ou cognitivista influiu também na classificação do menino como portador de problemas de aprendizagem, uma vez que não apresentou nível satisfatório de desenvolvimento intelectual medido pelo teste de prontidão, como confirmado nas palavras da supervisora: “ele veio pra escola, ele não tinha nem coordenação motora. Nada, nada, nada!” Por fim, a abordagem organicista apresentou-se como recurso de justificativa uma vez que se estabeleceu relação entre a mãe e o menino, buscando-se um quadro patológico na situação de ambos. Mesmo tendo a escola apresentado justificativas diversas em relação a Paulo, não foi possível percebê-lo como uma criança portadora de dificuldades de aprendizagem visto que, durante os contatos com a pesquisadora, ele mostrou- se extremamente interessado em aprender a ler e a escrever. Notava-se que autoestima do menino estava muito abalada pelas relações estabelecidas entre ele e a escola — “Eu sou muito burro” —, mas entusiasmava-se e envolvia-se com facilidade diante das situações propostas e, até mesmo, enfrentava as barreiras impostas tais como a negação da realização das provas, insistindo por realizá-las. Caso 2: Leonardo: deficiente? Com expressão de cansaço e sofrimento, Leonardo completou quinze anos de idade em outubro de 1994. Estatura média e bastante magro. Menino quieto, parecia esconder-se de todos atrás de seu silêncio. Segundo filho de uma família de seis irmãos, vivia com a mãe em pequenos cômodos construídos pela própria família, em uma favela próxima ao bairro em que se localizava a escola. A mãe, recém-separada do pai alcoólatra, tentava sustentar seus filhos trabalhando como faxineira diarista. A família vivia em constantes dificuldades econômicas. Respondia ao apelido de “Cabeça” ou “Cabeção” com indiferença. Segundo as profissionais da escola, tal apelido devia-se ao fato de a sua cabeça ser grande por ter sofrido, ao nascer, hidrocefalia, ou como diziam: “água na cabeça”. Sua mãe, no entanto, declarou não ser real essa informação, pois os exames aos quais fora submetido quando nasceu constataram que ele não padecia de nenhuma doença desse tipo. Segundo a mãe, nenhum médico ou exame havia detectado qualquer anormalidade em Leonardo. A mãe considerava-o um menino normal e expressava não entender o motivo de seu fracasso tão prolongado. Às vezes sentia-se impelida a justificar os oito anos de repetência do filho na primeira série utilizando-se de parâmetros escolares: “... e parece assim que ele não puxa muito assim pra estudar, porque em casa eu mando. Ele não é assim bem inteligente mesmo não.” Contudo, a mãe de Leonardo insistia muito em que permanecesse na escola. Planejava para o ano seguinte que o menino aprendesse a trabalhar com um tio servente de pedreiro. Demonstrou não se dar conta da seriedade do estado de insucesso escolar de seu filho, como se o importante fosse que um dia qualquer ele pudesse sair da primeira série. Durante a entrevista com a pesquisadora, a mãe devolvia as perguntas como se tivesse encontrado uma oportunidade mais de ouvir do que de falar sobre o assunto. Leonardo recusava-se a falar de si mesmo, respondia estritamente ao que lhe era perguntado. Inúmeras vezes respondia com movimentos de cabeça e outras tantas vezes, simplesmente não respondia, mesmo após insistência de quem com ele estivesse dialogando. Não queria ser questionado sobre si e sobre a sua situação de vida. Sua mãe confirmou a recusa do menino em falar de assuntos relacionados à escola e à sua situação. A entrada de Leonardo na escola pesquisada ocorrera há oito anos, quando completara sete anos de idade. Na época da pesquisa, Leonardo estava completando oito anos de repetência na primeira série! Contudo, não foi possível resgatar muito da sua trajetória escolar, pois sua mãe pouco soube informar sobre o assunto, não havendo, também na escola, alguém que soubesse a respeito de sua vida escolar. Sabiam apenas que frequentara a “sala especial” em anos anteriores e que “não conseguia aprender quase nada”. A supervisora foi a única profissional da escola que pôde apresentar o seu ponto de vista, embora não tenha feito uma retrospectiva da carreira escolar de Leonardo nem tenha apontado para as especificidades do seu problema. Não havia nada na escola a seu respeito além dos diários escolares marcados pela reprovação. Em 1994, ano de realização da pesquisa, Leonardo completava três anos com a mesma professora. A situação aparentava ser um tipo de pacto em que a professora deixava que o menino ficasse ali bem quietinho como era, e ele também, em estado de inércia, sem ser cobrado de nada, como se cumprissem ambos o combinado de não se incomodarem mutuamente. A condição de se comportar bem fora colocada desde o início; caso não cumprisse, estaria sujeito a voltar para a turma especial, de onde viera mais uma vez, depois de nova investida da escola para fazê-lo retornar a tal turma. Leonardo passava todo o tempo das aulas sem ao menos ser percebido por alguém. Às vezes fazia algum favor para a professora, como por exemplo, levar um recado. Sempre curvado na cadeira, parecia se esconder ou tentar diminuir de tamanho para não ser notado, pois destacava-se entre os alunos de sete, oito anos de idade. Nos dias de prova, reclinava-se em cima da carteira, preenchia o cabeçalho, o qual sabia de cor e ali permanecia quieto, escondendo as lacunas em branco. Às vezes fingia escrever, às vezes conseguia copiar alguma coisa de seus colegas e só entregavaa prova quando a professora recolhia, para, misturada entre outras, evitar os comentários em público. Mesmo sabendo que Leonardo copiara de seus colegas as poucas lacunas preenchidas, a professora considerava-as como acertos e atribuía nota a elas. Seus cadernos continham quase todo o conteúdo passado no quadro, sua letra bonita mostrava bom nível de organização. Embora copiasse bem, Leonardo não reconhecia nem mesmo as letras do seu nome. Demonstrando estar sempre aflito, parecia sofrer o decorrer de cada segundo ocioso. Abaixava a cabeça sempre que a professora falava dele, como aconteceu algumas vezes quando ela se dirigia à pesquisadora dizendo em voz alta perante toda a turma: “Eu tenho muita dó do Leonardo, ele é muito esforçado e muito bonzinho, mas ele tem muita dificuldade mesmo, sabe?” Para a professora as dificuldades de Leonardo estariam concentradas em Português, principalmente na leitura. É importante ressaltar que durante as observações para os fins da pesquisa não ocorreu na sala de aula nenhuma atividade de leitura, nem pela professora nem pelos alunos. Quase sempre parecendo estar imerso em um grande vazio, Leonardo ignorava o motivo de sua permanência há oito anos na primeira série. Ninguém lhe informava nada a respeito da situação de fracasso. Quando perguntado pela pesquisadora se conhecia o motivo de suas repetências, respondeu apenas: “Sei lá!” Fez sinal afirmativo com a cabeça reconhecendo o problema como sendo seu. Fora da sala de aula, principalmente na hora do recreio foi possível ver Leonardo brincar e conversar com seus colegas. Percebia o tratamento diferenciado que recebia: “ela (a professora) pede pra fazer coisas e uns negócios lá também... pra eu ir nas salas.” Reclamou também do tratamento dos colegas: “Eles ficam falando que eu tô muito velho pra primeira série” Durante as sessões individuais ou em grupo, Leonardo participava com mais envolvimento apenas quando se tratava de jogos ou atividades e assuntos que não se relacionavam com os conteúdos escolares. Quando se propunha alguma atividade de leitura ou apenas de identificação de letras, por exemplo, era como se ele imediatamente se desligasse ou partisse para outro lugar. Seus braços relaxavam e caíam sobre a mesa ou sobre o seu corpo e seus olhos buscavam qualquer outro objeto para divagar. Sua expressão era de extremo cansaço. Ele passava então a não responder mais. Via-se que seu esforço era enorme naqueles momentos. Algumas vezes chegou a dizer: “Eu não vou fazer esse negócio”. Recusava-se a aprender na escola. Havia se acostumado a não ser cobrado por nada e irritava-se quando solicitado a fazer algo. Demonstrava saber pouco de si e da sua situação. A ausência de vontade de aprender pode ser traduzida por uma ausência dele próprio no mundo escolar. Parecia não depender mais da escola para obter alguma realização, pensava apenas em sair da escola: “Quando eu sair daqui eu penso em trabalhar assim de fazer uns jarros de barro. Meu primo faz, de colocar flor”. Este enunciado exterioriza um desejo ao mesmo tempo em que dá um recado do menino, que pode ser traduzido como um desprezo à escola, pois o que pretende fazer não depende do que pode lhe oferecer essa instituição. A escola utilizava prioritariamente a abordagem organicista para explicar o fracasso de Leonardo, em decorrência da suposta hidrocefalia do menino. As outras abordagens aparecem como justificativas periféricas, visto que o suposto comprometimento físico e neurológico dispensa quaisquer outras explicações. Dificuldades de aprendizagem? É sabido que o preconceito cultural e linguístico é um dos grandes responsáveis pelo fracasso nos processos de aquisição da linguagem escrita. Pouco se sabe, no entanto, como o aluno que é discriminado dentro da escola pensa, sente e expressa a sua condição. Foi possível, através da realização desta pesquisa, verificar relações arbitrárias entre as características apontadas nos alunos e o suposto comprometimento dos seus processos de aprendizagem. Foi possível extrair dos depoimentos fornecidos pelas profissionais da escola em que se realizou a pesquisa enunciados carregados de preconceitos e até mesmo posturas que denunciam a ausência de reflexão quanto à sua procedência. O preconceito aparece revestido de um vocabulário técnico que aparenta ser legítimo, científico e inquestionável. A partir da previsão que faz do aluno, fundamentada numa visão preconceituosa das classes desfavorecidas, a escola confirma por um teste de prontidão, sempre marcado por vieses linguísticos, culturais e pedagógicos, as suas hipóteses, tendo assim, de antemão, as justificativas para o fracasso de determinados alunos. Estas justificativas foram encontradas em grande número no estudo dos quatro casos desta pesquisa. As mais frequentes foram quanto a: a) famílias desestruturadas, tradução da teoria dos transtornos afetivos da personalidade. Nos quatro casos estudados podemos constatar uma centralização da culpa pelo fracasso na família das crianças, principalmente na figura materna, ou melhor, na ausência da mãe do ambiente doméstico e a consequente falta de assistência no acompanhamento escolar. b) dificuldades econômicas, nível sociocultural baixo, com referência nas teorias do handicap sociocultural. Três dos quatro indivíduos da pesquisa eram moradores das favelas próximas da escola e por isso eram percebidos como portadores de déficits de aprendizagem. c) problemas cognitivos ou intelectuais partindo da teoria instrumental ou cognitivista. O teste é um dos instrumentos utilizados pela escola para atribuir aos alunos problemas dessa natureza. Os quatro alunos pesquisados foram detectados pelo teste da escola como tendo problemas de aprendizagem. Além disso, as profissionais da escola procuravam problemas dessa natureza ao falar dos alunos fracassados, utilizando-se de argumentos como: lentidão do aluno, desinteresse, incapacidade para acompanhar a turma — argumentos a indicar a ausência de suas habilidades intelectuais. d) problemas orgânicos com referência na abordagem organicista. A supervisora da escola, buscou em todos eles características que pudessem qualificá-los como portadores de algum problema de ordem física e/ou neurológica. Assim diagnosticado, e tendo a escola criado o suporte teórico para justificar os seus prognósticos, o aluno passa a receber tratamento diferenciado desde a sua entrada na instituição. Isso ocorre de várias maneiras: por meio de atividades paralelas, como trabalhos manuais, ou atividades “que não exigem atividade do pensamento”, conforme explica a supervisora; por meio da atribuição ao aluno do papel de menino de recados; pelo não reconhecimento de suas habilidades e de seus conhecimentos; finalmente, por meio de castigos e punições variadas, como utilização de apelidos, comentários em público a respeito da vida dos alunos, impedimento de que se submetam às provas. Tudo isso se desenrola no cotidiano da sala de aula sem que o aluno e sua família sejam informados sobre o que está acontecendo. A escola opera com o princípio de que o problema está nos alunos e que somente eles próprios poderão resolvê-lo. Dessa forma, faz com que se percebam como os culpados da situação, levando-os a assumir a culpa pelo fracasso. Além disso, é possível afirmar que há uma enorme dificuldade da escola em inserir determinados alunos nos processos de ensino-aprendizagem. Este fato aponta para uma necessidade emergente de se redefinirem, na escola, as concepções de aprendizagem, de alfabetização e, principalmente, de aprendiz — concepcões que já vem sendo intensivamente trabalhadas no meio acadêmico. Por sua vez, as famílias, desinformadas da situação, buscam, na escola, as explicações para o fracasso de seus filhos, deixando emergir assim uma via de mão dupla onde os dados nem sempre se cruzam. Os dados fornecidos pela escola, muitas vezes, foram desmentidos pelos
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