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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Paper O pensamento etnográfico e as teorias da cultura: debates sobre o relativismo cultural FRANK MARCON Florianópolis Agosto de 2002 O pensamento etnográfico e as teorias da cultura: debates sobre o relativismo cultural As convicções políticas, ideológicas, religiosas, resultados também das suas condições de classe, gênero, grupo étnico etc. são parte fundamental da visão que depositamos sobre o campo e do relato que desta visão fazemos aos nossos leitores. Essas relações intersubjetivas, portanto, dentro do trabalho de campo ultrapassam a perspectiva proposta pela observação participante como técnica de pesquisa1. São muitas as noções e múltiplas as possibilidades contemporâneas assumidas pelo discurso científico sobre o conceito de cultura. Relativismo cultural, aculturação, transculturação, cultura popular, crítica cultural e tradução cultural são apenas algumas das facetas que de forma geral a sociologia, a crítica literária, a história, a educação, a filosofia e a psicanálise vêm incorporando do debate antropológico e muitas vezes, contribuindo para que este tome outras direções e dimensões. Para a Antropologia o conceito de cultura tem caráter ontológico e instrumental por representar e justificar a própria existência de seu lugar no conjunto das ciências e de toda a epistémê. É como se a Antropologia estivesse alojada no interior de uma relação singular que a razão ocidental estabelece com todas as formas de expressão simbólica, pois ela procura traçar o contorno das representações que os homens se podem dar de si mesmos, de sua vida de suas necessidades, das significações depositadas em sua linguagem, sua religiosidade e seu comportamento, onde o próprio pensamento científico pode ser colocado em questão como expressão da cultura. Com o surgimento do trabalho de campo e da etnografia nos últimos anos do século XIX e início do século XX, aparece a noção de relativismo cultural, que ora com maior ênfase e subjetividade para alguns, ora com mais reservas e objetividade para outros, se resume no princípio de que toda a análise cultural deve ser realizada no âmbito da experiência vivida pelos grupos humanos e ser considerada na totalidade do contexto em que ocorre. 1 SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: 2001. p. 182 2 Para o antropólogo Clifford Geertz, foram os próprios dados como os “costumes, crânios, vestígios arqueológicos e léxicos”2, que fizeram “nosso campo de investigação parecer um argumento poderoso contra o absolutismo no pensamento, na moral e no juízo estético”3. A inclinação relativista ou, mais exatamente, aquela a que a antropologia comumente induz os que lidam com seus materiais, “está, portanto, em certo sentido, implícita no campo antropológico como tal”, não só na chamada antropologia cultural, mas também “em boa parte da arqueologia, da lingüística antropológica e da antropologia física”4. A inclinação relativista se consolida na antropologia, de um lado a partir das elaborações mais totalitárias e objetivas das teorias da cultura, representadas por um vocabulário que justifica a sua positividade científica pela neutralidade e transparência e, de outro, a partir das concepções que definem a cultura como uma totalidade subjetiva e específica, mas ainda assim autêntica, seja na visão dos etnógrafos ou dos nativos. Tanto numa perspectiva como na outra, a antropologia se vê investida de legitimidade e autoridade científica, o que, para James Clifford, emerge de um arcabouço mais amplo das concepções do pensamento ocidental moderno5. Nas últimas décadas do século XX, no âmago do próprio pensamento antropológico relativista, o conceito de cultura sofrerá transformações significativas. Para James Clifford6, George Marcus7, Clifford Geertz8, Paul Rabinow9 e outros10, o cientificismo e a autoridade etnográfica passam a ser questionados em nome de uma plurivolalidade e intersubjetividade cultural. “Nesta visão, ´cultura´ é sempre algo relacional, uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente, entre 2 GEERTZ, Clifford. Anti anti-relativismo. In: Nova Luz sobre a Antropologia.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. p. 49 3 GEERTZ, C. Anti anti-relativismo. 2001. p. 49 4 GEERTZ, C. Op cit. 2001. p. 49 5 James Clifford trabalha a noção de “antropologia moderna”, como aquela praticada a partir do reconhecimento da etnografia e do trabalho de campo, nas primeiras décadas do século XX, que institucionalizaram um rigor teórico e metodológico próprio para antropologia. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998. José Reginaldo do Santos, no prefácio da mesma obra diz, ao comentar a obra de Clifford, que “a etnografia, tal como veio a ser concebida no século XX, é por um lado, parte integrante do universo cultural e estético modernista.”. p. 10 6 |CLIFFORD, James. Op cit. p. 87 7 MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes. Revista de Antropologia. São Paulo, USP, n.34, 1991, pp 197-221. 8 GEERTZ, Clifford. El antropólogo como autor. Barcelona: Paidós, 1997. 9 RABINOW, Paul. Reflections on Fieldwork in Marroco. Berkeley: University of Califórnia Press, 1977. 10 Que se inserem dentro do paradigma hermêutico da antropologia, conforme será tratado mais adiante. 3 sujeitos em relações de poder.”11 Nesse sentido, o antropólogo perde poder e autoridade para descrever culturas e passa a inscrever processos de comunicação em seus textos. Isto irá transformar profundamente nossas noções sobre cultura. Vivemos um momento em que as fronteiras culturais se dilaceram, e nele o texto etnográfico não pode mais ser entendido como a descrição de uma cultura, pois “independente de tantas outras funções que possa ter uma etnografia, o que ela faz é traduzir uma experiência em forma de texto”12 e os modos de faze-la trazem significativas conseqüências éticas e políticas13. Para Clifford, tanto o informante como o pesquisador se tornaram leitores e “re-writers de uma invenção cultural”14. E, se em tal perspectiva o texto cultural se transforma em intertexto, o texto etnográfico passa a ser entendido como uma tradução cultural.15 O antropólogo brasileiro Vagner Gonçalves da Silva, autor da obra “O antropólogo e sua magia”,16 faz uma importante reflexão sobre como pensar a pesquisa etnográfica quando o antropólogo escreve sobre e para a cultura da qual ambos fazem parte. Implicações éticas, políticas, epistemológicas e metodológicas são o teor deste tipo de reflexão, onde cada vez mais reconhecemos que somos todos nativos. Nesta perspectiva o conceito de cultura não é mais apenas utilizado para analisar sociedades delimitadas, mas para criticar amplamente as teorias globais do comportamento humano. Mas, antes de insistir mais enfaticamente sobre a relação entre relativismo cultural, intersubjetividade e etnografia contemporânea, creio que se faz necessário apontar algumas distinções sobre as teorias da cultura na tradição do pensamento antropológico. A preocupação com um conceito científico de cultura surge com a antropologia 11 CALDERA, Teresa Pires do Rio. A presença do autor e após-modernidade em Antropologia. Novos Estudos CEBRAP. n. 21, julho de 1998. p. 142. 12 CLIFFORD, James.Op cit. p. 90 13 Esta discussão contribui também para uma reflexão ética do exercício do trabalho antropológico. Cf. GEERTZ, Clifford.O pensamento como ato moral. In: Nova Luz sobre a Antropologia.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. 14 CLIFFORD, James. Op cit. 15 O crítico cultural Hommi Bhabha tem uma importante contribuição para esta discussão.BHABHA, Homi.O compromisso com a Teoria. In: O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2000. Diz ele: “o processo de tradução é a abertura de um outro lugar cultural e político de enfrentamento.” P. 62 16 No referido trabalho: SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: 2001. O autor discute a presença do antropólogo no campo, as diferentes dimensões de relacionamento entre ele e os grupos estudados, o modo pelo qual esses relacionamentos se refletem na pesquisa e como se dá a passagem da observação de campo para o texto etnográfico. O recorte de seu trabalho são as pesquisas etnográficas realizadas em comunidades religiosas afro-brasileiras. 4 evolucionista de Edward Burnett Tylor17, na Inglaterra, para quem a cultura é adquirida, não depende da hereditariedade biológica e significa a expressão da totalidade da vida social do homem18. De forma geral, é possível enquadrar as idéias de Tylor sobre cultura dentro de algumas características do pensamento evolucionista. Entre elas, a de que as sociedades humanas deveriam ser comparadas entre si, por meio de seus costumes; a noção de que os costumes têm uma origem, uma individualidade e um fim; a visão que as sociedades desenvolvem-se de modo linear, com eventos podendo ser tomados como causas e outros como efeitos; e ainda, a noção de que as sociedades evoluem progressivamente com o passar dos anos, como se em outras culturas contemporâneas pudessem ser reconhecidos estágios passados da cultura do pesquisador, vistos como naturais à evolução de todas as sociedades19. O trabalho de Tylor é um dos grandes responsáveis pelo nascimento da antropologia e influenciou, ao lado de outros, muitos dos que se enveredaram por estes estudos nas últimas décadas do século XIX. Também na Inglaterra, durante os primeiros anos do século XX, Bronislaw Malinowski renova o trabalho antropológico e o seu entendimento sobre cultura, com a noção de que existem várias culturas e de que cada sociedade forma um sistema cultural, onde cada costume, cada ato, cada objeto, idéia ou crença exercem uma tarefa vital para o conjunto deste sistema20. Portanto, a cultura só pode ser entendida na sua totalidade e a partir dela própria. Para Malinowiski, todos os elementos de um dado sistema cultural se harmonizam uns aos outros, o que torna o conjunto destes elementos equilibrados e funcionais em seu próprio sistema.21 É com sua obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”22, que antropologia inglesa passa a 17 Segundo Tylor, “Cultures ou civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morals, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society.” TYLOR, Edward Burnett. The origins of Culture. New York: Harper & Brothers, 1958. p. 01. O texto foi originalmente publicado em 1871, na obra do mesmo autor Primitive Culture. 18 Dizer que Tylor foi o primeiro antropólogo a elaborar o conceito, não significa dizer que tenha sido ele o primeiro a utilizar a palavra cultura entre os etnólogos. 19 Apesar de distinguir entre a esfera cultural e a esfera natural da vida humana, o conceito evolucionista de cultura está carregado de determinismos raciais e geográficos. Sobre algumas das características do evolucionismo ver, por exemplo, o estudo de STOCKING, G. Race, Culture e Evolution. University of Chicago Press, 1968. 20 Ver, por exemplo: MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção os Pensadores). Pgs. 73, 77, 369 e 370. 21 MALINOWSKI, B. Uma Teoria Científica da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Publicado originalmente em 1939. 22 A obra de MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção os Pensadores). Foi publicada originalmente em 1922. 5 considerar o trabalho etnográfico como fundamental para o entendimento das culturas e muda o rumo em direção a um certo relativismo antropológico. No entendimento de Malinowski, o etnógrafo que esteve lá, no campo, onde um dado sistema cultural está em funcionamento, que o viu e o estudou, é quem terá legitimidade para descrevê-lo e explicá-lo. O trabalho de campo e a etnografia são justificados, então, pelo realismo, pela verdade e pela pretensa neutralidade e autoridade científica23. Com os trabalhos de Franz Boas na América do Norte, ainda nos últimos anos do século XIX, surgem algumas divergências fundamentais em relação à prática e à teoria do trabalho antropológico, principalmente no que diz respeito à concepção de cultura. Para Boas, a antropologia é cultural e o comportamento dos grupos humanos é definido pela especificidade de um dado contexto vivido, ou seja, pelo conjunto de seus elementos geográficos, psicológicos e históricos. Em sua obra, Boas procura se afastar de qualquer tipo de determinismo evolucionista seja ele o de caráter biológico, geográfico ou historicista, pois para ele não existe progresso absoluto24. Seguindo o raciocínio de Boas, as diferentes características anatômicas e biológicas dos grupos humanos não determinam o seu nível de evolução ou de seu comportamento. Na humanidade, há uma grande diversidade de pessoas diferentes na aparência, na linguagem e em sua vida cultural. São os modos peculiares da vida de cada grupo, caracterizado por tais peculiaridades biológicas, psicológicas, lingüísticas e culturais, que o definem enquanto grupo cultural distinto. Esta definição de diferença não significa uma distinção hierárquica entre os grupos, seja ela cronologicamente historicizada ou determinada pelo seu grau de desenvolvimento biológico. Para Boas, cada aspecto de uma cultura deve ser considerado na totalidade do contexto em que ocorreu. 25 23 Cf. CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998. 24 BOAS, Franz. “La mentalidad del Hombre primitivo y el progresso de la cultura”. In: Cuestiones fundamentals de Antropologia Cultural. p. 199 25 A diferença conceitual sobre cultura entre os evolucionistas e Boas, reside na idéia de que para os evolucionistas todas as sociedades contemporâneas estariam vivenciando sincronicamente um estágio de desenvolvimento cultural universal da humanidade, onde alguns povos seriam considerados mais atrasados que outros, por se comportarem como os supostos povos mais avançados culturalmente que supostamente viveram no passado, entendendo tais manifestações como manifestações primitivas do comportamento humano universal. Para Boas, cada grupo cultural tem a sua história, não existindo uma história universal, nem uma cultura universal, daí também sua idéia de relativismo cultural, entendendo que a História de um determinado grupo cultural é própria deste mesmo grupo e, portanto, que o tempo histórico é diacrônico, onde cada cultura vivencia transformações históricas próprias ao seu grupo, somadas às condições ambientais específicase fatores psicológicos particulares. Para uma reflexão mais específica sobre a relação entre história, psicologia e geografia no pensamento de Franz Boas, ver: LEAF, Murray J. Fundamentos da moderna tradição monista: o indivíduo orgânico. In: Uma História da 6 Na obra “Race, Language and Culture”, de 1938, Boas define o objeto da investigação antropológica. Diz: “it is necessary to base the investigating of the mental life of man upon a study of the history of cultural forms and of the interrelations between individual mental life and culture.”26 Para ele, o mecanismo do pensamento é que é universal nos indivíduos e a cultura se manifesta diferentemente entre os grupos humanos porque é relativamente produzida de acordo com o contexto vivenciado pelos homens. Franz Boas desvincula-se da busca por objetividades biológicas e universais para a explicação da diversidade do comportamento humano. Para ele, os indivíduos estão como que tiranizados pela sua própria cultura e é neles próprios que arbitrariamente ela se realiza, o que afasta o estudo sobre diferentes grupos culturais da possibilidade de modelos e comparações generalizantes. Sem querer atribuir a Boas a autoria sobre a expressão “relativismo cultural” é possível afirmar que a concepção antropológica desta expressão, como princípio metodológico e epistemológico, já está aí esboçada27. Alfred Kroeber, Ruth Benedict, Margareth Mead e Edward Sapir podem ser considerados alguns dos herdeiros do pensamento da antropologia de Boas. Mas, para além dele, ampliaram os estudos práticos e teóricos sobre cultura, acreditando terem contribuído para eliminar algumas divergências teóricas no que se refere à distinção entre cultura e natureza humana28. Este grupo é responsável pela criação dos estudos sobre “Cultura e Personalidade”, pela noção “tipos culturais” ou “padrões de cultura” 29 e aproximou um diálogo com a sociologia de Durkheim. Outra importante figura da antropologia cultural norte-americana foi Melville Herskovits, que abriu um novo campo de pesquisas com ênfase no contato entre diferentes culturas, com a teoria da aculturação30. Antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 26 BOAS, Franz. The aims of anthropological research. In: Race, language and culture. New York: The Free Press, 1966. p. 250 27 Cf. CUCHE, Dennys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. (p. 44/45). 28 Para Margaret Mead, por exemplo, a cultura é uma abstração. O que existe são indivíduos que criam a cultura, que a transmitem e que a transformam. O antropólogo jamais conseguira fazer uma observação de campo de uma cultura, o que ele poderá fazer, segundo ela, será apenas observar os comportamentos individuais de uma dada cultura. Sobre o pensamento de Mead, ver CUCHE, Dennys. O triunfo do conceito de cultura. In: A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. 29 A hipótese fundamental, daqueles como Sapir e Benedict, é que para a pluralidade das culturas deve corresponder uma pluralidade de tipos de personalidade. Ver, por exemplo, o trabalho de BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Edição Livros do Brasil: Lisboa. (Coleção Vida e Cultura). Bem como os comentários de CUCHE, Dennys. O triunfo do conceito de cultura. 1999. 30 HOEBEL, E. & EVERETT, L. Mudança cultural. In: Antropologia cultural e social. Editora Cultrix, 1976. Definem aculturação, citando Herskovits, “Dá-se aculturação quando uma sociedade empreende uma mudança cultural drástica sob a influência de uma cultura e de uma sociedade dominantes com as 7 Na França, a antropologia ou etnologia como lá é chamada, surge com Marcel Mauss, ligada ao trabalho teórico do fundador da sociologia Émile Durkheim31. Para Durkheim a humanidade é uma e todas as civilizações particulares contribuem para a civilização humana. Na tradição francesa do pensamento etnológico, a noção de cultura se confunde com a de civilização. Mauss nunca realizou um trabalho de campo, apesar de ser um dos sistematizadores e defensores contundentes da necessidade desta prática, só com Marcel Griaule e Michel Leiris, nos anos trinta do século XX, é que tais trabalhos passaram a ser desenvolvidos pela etnologia francesa. A noção universalista32 de “civilização” fundamenta o interesse pela busca do entendimento sobre os “fenômenos sociais”. Uma teoria geral e racionalista que procura explicar o comportamento coletivo da sociedade. Para Durkheim, por exemplo, interessam as diferentes formas de pensamento que possam levar, através da comparação entre eles, à definição de leis que caracterizem a natureza universal do comportamento social humano e expliquem seu funcionamento. Surge, então, a noção de “consciência coletiva”, entendido como o sistema das “representações coletivas” de uma dada sociedade33. Em meados do século passado, Claude Lévi-Strauss coloca o pensamento etnológico francês em evidência no debate sobre os conceitos de cultura. Sem fugir a tradição racionalista e universalista da escola sociológica francesa, Lévi-Strauss funda o estruturalismo. Segundo Kaplan e Manners, para Lévi-Strauss “a cultura é, essencialmente, um sistema simbólico ou uma configuração de sistemas simbólicos.(...) E, quando Lévi-Strauss fala dos fenômenos culturais (...), ele está interessado nos padrões formais, na forma pela qual os elementos simbólicos relacionam-se logicamente uns com os outros para formar um sistema total.”34 quais ela entra em contato.” p. 49 31 Em 1925 é criado em Paris o Instituto de Etnologia, por Marcel Mauss, Lévy-Bruhl e Paul Rivet. 32 Vários autores trabalham a questão da tradição universalista do pensamento francês. CUCHE, Denys. 1999. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna . Rio de Janero: Rocco, 1985; e ELIAS, Norbert. Sobre a sociogênese do estado. In: O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 1993. v. 2 Para ficar com alguns. 33 Diz Durkheim: “todas as vezes que se empreende explicar uma coisa humana, tomada em um momento determinado do tempo – quer se trate de uma crença religiosa, de uma regra moral, quer de um preceito jurídico, de uma técnica estética, de um regime econômico -, é preciso começar por retroceder até a sua forma mais primitiva e mais simples, procurar dar conta dos caracteres pelos quais ela se define neste período de sua existência, depois mostrar como ela se desenvolveu e se complicou pouco a pouco, como ela se tornou no momento em que é considerado.” Ele acreditava que os grupos sociais considerados “primitivos” possibilitavam o estudo sobre os fenômenos sociais e suas regras. DURKHEIM, Émile. Vida e Obra. In: Durkheim. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). p. 207. 34 KAPLAN, David; MANNERS, Robert. Teoria da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 8 A ambição da antropologia estrutural de Lévi-Strauss traz inúmeras inovações ao dialogar com a antropologia cultural norte-americana. Mas, isto não significa um afastamento da tradição do pensamento francês35. Lévi-Strauss acredita que é possível encontrar regras universais e princípios indispensáveis da vida em sociedade, traçando um inventário das culturas e localizando um repertório de invariáveis. Não será por isto que ele poderá ser acusado de anti-relativizador dentro pensamento antropológico.36 Para entender melhor a diversidade de tradições que afloram do pensamento antropológico, dois textos do antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, “Tempo e tradição: interpretando a antropologia” e “A categoriade (des)-ordem e a pós- modernidade na antropologia”, que compõe a obra “Sobre o pensamento antropológico”37, contribuem para sistematizar algumas das distinções que procurei apontar. Cardoso de Oliveira propõe realizar uma etnografia do pensamento da disciplina – mesmo que incompleta38 –, distinguindo entre o que ele chama de “matriz”39 (ou “tradição”), “perspectiva” e “paradigma” da formação histórica do pensamento antropológico. As matrizes divididas entre “intelectualista” e “empirista”, as perspectivas entre “sincrônica” e “diacrônica” e os paradigmas entre “racionalista”, “estrutural-funcionalista”, “culturalista” e “hermenêutico”. Sobre os diferentes paradigmas dominantes e suas relações com a matriz disciplinar e as perspectivas sobre a categoria “tempo” nelas predominantes, Oliveira (1988) define quatro correntes do pensamento antropológico: 1) a “Escola Francesa de Sociologia”, de tradição intelectualista, de perspectiva sincrônica e de paradigma racionalista; 2) a “Escola Britânica de Antropologia”, de tradição empirista, de perspectiva sincrônica e de paradigma “Estrutural-funcionalista”; 3) a “Escola Histórico-Cultural”, de tradição intelectualista, de perspectiva diacrônica e de paradigma culturalista; e, 4) a “Antropologia Interpretativa” de tradição intelectualista, de 35 Sobre a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, ver ainda: JÚNIOR, Celso Azzan. Antropologia e interpretação: explicação e compreensão nas antropologias de Lévi-Strauss e Geertz. Campinas/SP: UNICAMP. 36 Ver a respeito do anti anti-relativismo na antropologia. GEERTZ, C. Anti anti-relativismo. In: Nova Luz sobre a Antropologia.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. 37 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. 38 Diz o autor: “Para facilitar a realização desta minha etnografia, obviamente incompleta, das comunidades de pensamento antropológico (...)”.OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. p. 17 39 Sobre o seu entendimento das categorias “paradigma” e “matriz”, diz Oliveira. (1988): “Para mim uma matriz disciplinar é a articulação sistemática de um conjunto de paradigmas, a condição de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e relativamente eficientes”. p. 15. Ou seja, os paradigmas estão inscritos em matrizes, em tradições do pensamento. 9 perspectiva diacrônica e de paradigma hermenêutico40. Dentro de cada uma destas correntes do pensamento antropológico, noções sobre o conceito de “cultura”, de alguma forma ou em algum momento, constituem suas práticas e suas epistemologias. Antes apresentei breves exemplos de três dos quatro paradigmas definidos por Roberto Cardoso de Oliveira, com o objetivo de demonstrar algumas contradições sobre as matrizes conceituais do pensamento antropológico sobre cultura e caracterizar contextualmente o relativismo. Agora, para tratar do quarto paradigma, gostaria de amarrar algumas idéias sobre etnografia, intersubjetividade e relativismo cultural, que esboçaram o início deste ensaio. Sobre as características da influência do pensamento hermenêutico para a antropologia, resume Oliveira (1988): O quarto paradigma de nossa matriz disciplinar, que chamei de hermenêutico, abre seu espaço na antropologia primeiramente por uma negação radical daquele discurso cientificista exercitado pelos três outros paradigmas; em segundo lugar, por uma reformulação daqueles três elementos que haviam sido domesticados pelos paradigmas da ordem: a subjetividade que, liberada da coerção da objetividade, toma sua forma socializada, assumindo-se como intersubjetividade; o indivíduo, igualmente liberado das tentações do psicologismo, toma a sua forma personalizada (portanto indivíduo socializado) e teme assumir a sua individualidade; e a história, desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito cognoscente, pois dela se esperava fosse objetiva, toma a sua forma interiorizada e se assume como historicidade. Esses três elementos, assim reformulados, passam a atuar como fatores da desordem daquela antropologia que os interpretativistas tendem a chamar de “antropologia tradicional”, sustentada pelos paradigmas da ordem. O paradigma subjacente a essa “antropologia interpretativa” pode ser chamado de hermenêutico.41 A Antropologia Interpretativa surge nos EUA, com Clifford Geertz, a partir dos anos setenta, com a publicação do livro “A Interpretação das Culturas”, em 1973. Em tal obra, Geertz se torna um dos primeiros a introduzir e sistematizar a influência epistemológica da “hermenêutica” na antropologia42. Outra obra, do mesmo autor, 40 Especificamente no texto “Tempo e tradição: interpretando a antropologia”, Oliveira (1988)se detém a reflexão sobre tais correntes do pensamento antropológico. Ver, por exemplo, quadro esquemático sobre as correntes na p. 16. No outro texto, “A categoria de (des) ordem e a pós-modernidade da antropologia”, Roberto Cardoso de Oliveira (1988) define as três primeiras correntes citadas como representantes de um “paradigma da ordem”, diferentes, por sua vez, da “Antropologia Interpretativa”, que segundo ele representa o “paradigma da (des) ordem”. 41 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. p. 97. 42 Na base das fundamentações teóricas e do uso que a Antropologia Interpretativa faz da hermenêutica estão filósofos como, por exemplo, Wilhelm Dilthey, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. No entanto, é importante que se afaste qualquer idéia de univocidade sobre as influências do pensamento hermenêutico no que se refere a “antropologia interpretativa” ou à antropologia de forma geral que tenha absorvido das 10 também fundamental para a afirmação da Antropologia Interpretativa é “O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa”, uma coletânea de textos escritos entre os anos de 1974 e 1982.43 Para Geertz, o que o antropólogo faz é etnografia44 e são três as características da descrição etnográfica: “ela é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o dito.”45. No entendimento da “Antropologia Interpretativa” o que antropólogo pratica é uma etnografia de dentro do próprio fluxo deste discurso social, pois “os antropólogos não estudam as aldeias, eles estudam nas aldeias”46. Afirmação que nos remete, por exemplo, ao questionamento da noção da autoridade47 e do objetivismo do trabalho etnográfico. Pois, para Geertz, assim como os membros de um determinado agrupamento humano professam interpretações sobre suas experiências vividas, também o que os antropólogos realizam são interpretações, e “na realidade de segunda e terceira mão das culturas que estudam”48. O que resulta numa compreensão intersubjetiva da cultura, onde a subjetividade do etnógrafo e a subjetividade do grupo estudado se encontram como intérpretes dos significados de um mesmo texto ou “sistema de signos entrelaçáveis” definido como “cultura”.49 A noção de homem, de Geertz, nos remete a idéia de que a humanidade se realiza na individualidade, onde os homens diferem uns dos outros e onde a cultura se manifesta50 como um conjunto de mecanismos de controle que governam os padrões de preocupações relativas a intersubjetividade, à individualidade e à historicidade, na prática do trabalho etnográfico e da noçãointerpretativa das culturas. Independente de qualquer divergência, tais noções se tornaram fundamentais para a reflexão antropológica interpretativa. 43 Sobre o uso da hermenêutica de Dilthey diz GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998: “Saltando continuamente de uma visão da totalidade através das várias partes que a compõe, para uma visão das partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e vice-versa, com uma forma de moção intelectual perpétua, buscamos fazer com que uma seja a explicação da outra. (...) Tudo isto é, claramente, a trajetória, já bastante conhecida, do método que Dilthey chamou de círculo hermenêutico” p. 105. 44 Para Geertz o que define o empreendimento etnográfico é o tipo de esforço intelectual que o etnógrafo pratica, a “descrição densa” sobre uma hierarquia estratificada de estruturas significantes, um pensar sobre os pensamentos (1989). 45 GEERTZ, 1989. p. 31 46 GEERTZ, 1989. p. 32 47 Duas reflexões etnográficas interessantes sobre “autor” e “autoridade” na etnografia, de autores que assumem o paradigma hermenêutico, são: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998 e GEERTZ, Clifford. El antropólogo como autor. Buenos Aires: Piados, 1997 48 GEERTZ, 1989. p. 25 49 GEERTZ, 1989. p.24 50 Sobre esta discussão em específico, sobre o conceito de homem e sua relação com a cultura, ver: GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 11 comportamento de um dado grupo social. Ou seja, ela se manifesta no indivíduo socializado e é nele que se permite apreende-la51. Os homens são naquilo que eles são, naquilo que manifestam e que, por sua vez, é sempre variado. “Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas”52. No pensamento hermenêutico, a idéia de historicidade nos remete a idéia de que a posição histórica do pesquisador jamais é anulada em relação às noções de tempo veiculadas pelos pesquisados53. Não se interpreta de nenhuma parte no tempo, mas inserido nele próprio, porque a interpretação é sempre contextual. A categoria tempo para a Antropologia Interpretativa se define como a fusão entre os horizontes conceituais do pesquisado e os do pesquisador54. Esta noção, de interiorização do tempo histórico pelo pesquisador, o remete a sua inscrição no fluxo do pensamento social que ele próprio investiga. É por tais caminhos que a intersubjetividade, a individualidade e a historicidade circunscrevem hoje a prática da Antropologia Interpretativa e a enorme pluralidade de versões que passaram a atualizá-la depois de seu surgimento, como a antropologia crítica, a antropologia alegórica, a antropologia pós-moderna e outras55. Seja como for, a proposta hermenêutica permitiu relativizar a autoridade etnográfica - talvez o abalo mais profundo causado à disciplina - destituindo-a de seu cientificismo, para pensar o homem e a cultura por outros caminhos; para pensar os homens, e aí o etnógrafo, como tradutores que tentam capturar por um momento o pensamento cultural no seu intercurso. Para finalizar, seja qual for a concepção que assuma a hermenêutica, ela trouxe o 51 “O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria obscuro.”. Cf. GEERTZ, 1989. p. 228 52 GEERTZ, Clifford. 1989. p. 64 53 Sobre a noção de “tempo” para Geertz, ver: GEERTZ, Clifford. Pessoa, tempo e conduta em Bali. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. E sobre seu entendimento em relação ao conceito de “história”, ver, por exemplo: GEERTZ, Clifford. História e antropologia. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 54 Para OLIVEIRA. 1988, em sua interpretação sobre o paradigma hermeneuta: “a interiorização do tempo não significa outra coisa que a admissão tácita pelo pesquisador hermeneuta de que sua posição histórica jamais é anulada; ao contrário, ela é resgatada como condição do conhecimento, (...) que se realiza no próprio ato de tradução [cultural]. (...) É a ´fusão de horizontes´ de que fala a filosofia Hermenêutica de Gadamer”. (p. 21). O que implica na penetração do horizonte do outro, sem abdicarmos de nosso próprio horizonte. 55 OLIVEIRA, R. 1988. p. 101. 12 exercício contínuo da suspeita para antropologia, e esta é uma de suas contribuições fundamentais, pois tornou a questão metodológica e epistemológica uma problemática de reflexão constante para qualquer praticante da disciplina. Se o relativismo cultural já não é mais o mesmo de Boas ou Malinowski, ele ainda é subjacente à antropologia e, melhor, nos possibilita pensar nas implicações práticas, políticas e éticas do fazer antropológico e etnográfico. BIBLIOFRAFIA BHABHA, Homi. O Local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A presença do autor e a pós modernidade em antropologia. Novos Estudos, CEBRAP, n.21, julho de1998, pp. 116-132. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana . vol 2 n. 2; p. 115-144. 1996. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999. DESCOLA, Philippe. Constructing natures: symbolic ecology and social practice. In: DESCOLA, Philippe & PÁLSSON, Gísli. Nature and Society. Antropological Perspectives. 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