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37 julho / setem bro de 2012 37 julho / setem bro de 2012 A relação entre desigualdade de renda e crescimento econômico no Brasil Paulo Henrique Mendes Leandro Beserra 1 - Introdução O debate sobre a distribuição de renda no Brasil voltou a ser foco dos noticiários e do meio acadêmico nos últimos 5 anos, depois de longos anos no ostracismo. Com a melhora dos indicadores nos anos recentes, houve uma retomada do interesse pelo tema. Muitos economistas argumentam que essa queda é resultado de um processo natural de desenvolvimento econômico, e citam que a desigualdade tende a aumentar nos estágios iniciais do desenvolvimento e diminuir posteriormente, como mostrou Kuznets em artigo publicado em 1955, com dados dos EUA, Inglaterra e Alemanha. Outros dizem que não há relação clara entre desigualdade e crescimento, pois em diversos outros estudos posteriores ficou comprovado que houve aumento no crescimento sem afetar a desigualdade. Afinal, os dados brasileiros corroboram ou não a teoria de Kuznets? Quais são as causas para que esses dados comprovem ou não essa teoria? E quais as conseqüências? Essas questões são o foco deste trabalho. 2 - Kuznets e a Teoria do U-Invertido A ideia de que a desigualdade aumentaria nos primeiros estágios do desenvolvimento, seguida de uma queda, formando assim uma curva similar à letra “U”, porém invertida, foi elaborada pelo economista Simon Kuznets em seu artigo seminal “Economic Growth and Income Inequality”, de 1955. O artigo encontrou respaldo empírico em dados dos EUA, da Inglaterra e da Alemanha. Contudo, como o próprio autor define, essa relação surgiu de um estudo que contém 5% de informações empíricas e 95% de especulações. Com a utilização de um modelo com dois setores, elaborou uma análise que supunha que a migração de pessoas do setor agrícola para o setor industrial geraria um aumento na concentração de renda, pois este setor é mais dinâmico e, consequentemente, mais rico que o primeiro. Assim, a concentração inicial se daria devido à acumulação de ativos pelos mais ricos, que possuem uma capacidade de poupar superior à dos demais. Posteriormente, com o aumento dos níveis educacio- nais médios, a tendência de alta nos salários dos pro- fissionais qualificados seria revertida, pois haveria um aumento na oferta de mão-de-obra qualificada, o que geraria uma desconcentração. É importante frisar que a análise é feita para o lon- go prazo, pois mesmo as economias hoje desenvolvi- das enfrentaram uma queda na renda per capita nos anos de crise do capitalismo, como a quebra da bolsa de Nova Iorque e as duas Grandes Guerras. Portanto, o processo de crescimento e os efeitos na desigualdade não podem ser analisados no curto prazo, pois para esses períodos citados, poderia não ser encontrada a correlação. Apesar da falta de dados mais precisos para uma análise mais robusta, Kuznets acredita que havia indí- cios de que a desigualdade aumentou nos estágios ini- ciais e diminuiu posteriormente, apesar de não ser fácil 1 Resumo da monografia premiada no XVIII Prêmio Corecon-DF de Economia e no Prêmio Brasil de Economia do Cofecon. R ev is ta d e Co nj un tu ra datar esses períodos. Como dados para países pobres são escassos, e eram ainda mais à época, foi difícil ten- tar traçar uma regra geral para todos os países. A única conclusão a que ele chegou sobre isso foi a de que a desigualdade nos países subdesenvolvidos, como Ín- dia, Ceilão (atual Sri Lanka) e Porto Rico é maior do que a apresentada por países desenvolvidos no período pós-Segunda Guerra. A pergunta que o próprio autor fez em seu artigo foi se esse padrão se repetiria nos pa- íses que ainda não haviam se desenvolvido. Ficou sem resposta. 3 - A evolução histórica da distribuição de ren- da no Brasil Os primeiros dados sobre a desigualdade de ren- da no Brasil apareceram com o censo de 1960, mas só com o censo de 1970 surgiram os primeiros dados comparáveis. Junto com eles, vieram os primeiros de- bates, bastante acirrados e com viés político-ideoló- gico acentuados. Estes debates ficaram conhecidos como “a controvérsia dos anos 1970”, que será exposta com mais detalhes a seguir. 3.1 A década de 1960 e a controvérsia dos anos 1970 O censo de 1970 trouxe uma constatação inequívoca: a desigualdade de renda no Brasil havia aumentado na década de 1960. A comparação dos dados dos censos de 1960 e 1970 mostrava um aumento significativo da participação dos mais ricos no total da renda. Mesmo apresentando dados divergentes, todas as pesquisas apontaram para esse aumento. Langoni (1973), que divulgou o trabalho em que a desigualdade cresceu em menor intensidade, mostrou um aumento na participação dos 5% mais ricos no período de 27,69% para 34,86% e uma queda de 11,57% para 10,00% entre os 40% mais pobres da renda total no período. Na mesma obra, aponta que o índice de Gini era de 0,4999 em 1960 e 0,5684 em 1970. Portanto, a questão não era discutir se houve ou não uma piora no perfil distributivo, mas sim quais foram as causas para que ela tivesse ocorrido. O debate tinha cunho nitidamente ideológico. Após a publicação do livro de Langoni ter sido escolhida pelo governo militar como a que apresentava os dados oficiais sobre a desigualdade, diversos outros autores criticaram o trabalho, apresentando as mais diversas possíveis causas para o ocorrido, como Albert Fishlow, Paul Singer, Edmar Bacha, Rodolfo Hoffmann e José Serra. Outros ainda defenderam a posição dos militares, como Antônio Delfim Neto e Mario Henrique Simonsen. A obra de Langoni pode ser considerada como o marco inicial do debate sobre a distribuição de renda no Brasil. Apesar de alguns artigos serem anteriores a este trabalho, foi com sua publicação que a questão tornou-se central. Introduz a Teoria do Capital Humano como explicação para o diferencial de salários entre indivíduos. Vale ressaltar que o autor utiliza o mercado de trabalho para explicar a desigualdade na distribuição de renda, e deixa em segundo plano outros fatores, como propriedade de terras, riqueza dos antepassados, entre outros. O autor ainda deixa claro que explica os diferenciais de rendas individuais e que teve acesso a dados que nenhum outro pesquisador teve (o que acaba o tornando alvo de críticas, pois seu trabalho não pode ser replicado para testar sua validade empírica). A tese central da obra é que o aumento da desigualdade advém das profundas mudanças no processo de desenvolvimento econômico no período. A ideia é mostrar que grande parcela desse aumento na concentração se deveu a mudanças no nível de educação e na migração para o setor urbano (moderno) dos trabalhadores que antes estavam no setor rural (tradicional), abordagem importada de Kuznets. O fato de a força de trabalho do setor primário, de baixa produtividade e com renda pouco concentrada, migrar para os setores secundário e terciário, de alta produtividade e renda mais concentrada, aumentaria a concentração de renda como um todo. Em seu modelo, a educação seria a variável com maior impacto sobre os diferencias de salários, seguida pela idade, que é tratada como uma proxy de experiência, portanto relacionada também ao capital humano. Mais adiante, chega à conclusão de que a desigualdade aumenta devido à possibilidade de exploração de ganhos extras de renda durante o processo de desenvolvimento, mas que esse problema é autocorrigível no longo prazo, o que confirma mais uma vez que sua teoria está de acordo com a de Kuznets. 38 39 julho / setem bro de 2012 A crítica mais contundente ao trabalho de Langoni foi apresentada por Fishlow (1975). Ao analisar o modelo econométrico apresentado por Langoni, afirma: Se muito da desigualdade é explicada pela educação, também muito pouco o é, na medida em que a idade e a educaçãojuntas não correspondiam a um terço da variação nas rendas individuais (...) a conclusão de que a desigualdade é influenciada pela taxa de retorno e pelo número de anos de escolaridade é em parte um ato de fé. Neste artigo, aparece também a tese da compressão salarial, na qual o autor transfere a responsabilidade pelo aumento da concentração de renda nos efeitos que Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) exerceu sobre o salário mínimo. Argumenta que as políticas de tal programa, que restringiram os salários nominais e simultaneamente aplicaram uma inflação corretiva, fizeram o salário mínimo cair 20%, ao passo que a renda per capita cresceu 22%. Desse modo, uma parcela da população havia se beneficiado não apenas absolutamente, mas relativamente também. Fishlow crê que esse ganho tenha se concentrado no setor urbano principalmente. Ainda em consonância com o argumento anterior, o autor aponta como principal responsável pela perda no poder de compra dos salários – e consequentemente pela perda na participação dos trabalhadores na renda total – a subestimação da inflação prevista pela regra de reajustes salariais, que corroíam a remuneração dos trabalhadores ao longo do tempo. Por não repassar integralmente os ganhos de produtividade aos salários, as classes mais ricas elevavam sua participação relativa na renda total. Fica claro que o único consenso de toda a controvérsia dos anos 1970 é o de que a desigualdade aumentou consideravelmente na década de 1960. As causas e as consequências desse aumento têm inúmeras explicações diferentes e, quase sempre, divergentes. 3.2 A década de 1970 e o “Milagre Econômico” Em 1967, foram feitos os primeiros levantamentos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Nos três primeiros anos, os levantamentos eram feitos semestralmente e só abrangiam as regiões Nordeste, Sudeste e Sul (além do Distrito Federal). Em 1971, passaram a ser realizadas anualmente (em 1970 não houve PNAD, pois era ano de recenseamento). São incorporados dados referentes ao rendimento mensal normalmente recebido do trabalho principal e dos outros trabalhos, aposentadoria, pensão, abono de permanência, aluguel e outros rendimentos. Esses dados mudaram o panorama das análises sobre desigualdade de renda, pois passaram a ser apresentados num intervalo muito mais curto, o que deixou o processo mais dinâmico. Se observarmos dos extremos, a década de 1970 mostra um pequeno aumento na desigualdade, com o coeficiente de Gini passando de 0,565 em 1970 para 0,592 em 1980, considerados os censos dos dois anos e apenas para dados sobre o rendimento da população economicamente ativa com rendimento. Este aumento na desigualdade pode estar subestimado, dado que o censo de 1980 considera rendimentos em espécie – que são mais importantes nas classes mais baixas – e o de 1970 não. Portanto, é bastante provável que a distribuição de 1980 seja significativamente mais concentrada do que a de 1970. Ao compararmos com a década de 1960, podemos notar uma diferença significativa no perfil da concentração. Segundo Bonelli e Sedlacek: Nos anos 1960 o processo de concentração de renda caracterizou-se por aumentos do rendimento médio dos estratos mais ricos mais rápido do que os demais (...) nos anos 1970 notou-se um abrandamento deste processo de concentração na distribuição de renda, processo que se definiu claramente em 1976 quando as classes de renda baixa e média conseguiram obter ganhos reais enquanto as de renda mais alta sofreram perdas reais”. 3.3 Os anos 1980: a “Década Perdida” A chagada dos anos 1980 marca o abandono definitivo do debate sobre distribuição de renda nos moldes dos anos anteriores. O começo da grande crise brasileira deu início ao período que ficou conhecido na literatura econômica como “a década perdida”, devido ao baixo crescimento econômico e à crescente inflação. Quando se trata de distribuição de renda, não é diferente: o período apresenta um aumento na concentração, seguindo o que já havia sido apresentado nas duas décadas anteriores. R ev is ta d e Co nj un tu ra Quando tratamos do desempenho econômico da década de 1980, fica claro o motivo da troca de foco do debate. O crescimento médio da economia foi de 2,9% ao ano entre 1980 e 1989, segundo Pinheiro et al. (1999), e a renda per capita se manteve constante durante toda a década. Apenas em 1980 o PIB cresceu acima da média dos anos 1970, e chegou a decrescer em 1981, 1983 e 1988. Desse modo, a queda na renda per capita no início da década, associado com as altas taxas de inflação e o aumento do desemprego, geraram o aumento na concentração da renda. Os anos 1980 apresentam uma novidade em relação às duas décadas anteriores: um nível de crescimento mais baixo. Isso caracteriza o período como uma fase de desaceleração do ritmo de desenvolvimento do país, que deveria mostrar uma queda na desigualdade de renda caso fosse seguido o padrão definido por Kuznets. Todavia, pode-se verificar um aumento do índice de Gini de 5% na década de 1970 e de 8% na década de 1980. Como este foi um período bastante turbulento, a análise fica um pouco comprometida. Não é possível afirmar com segurança, apenas com esses dados, se o Brasil segue um padrão encontrado no trabalho de Kuznets ou não. A variação da desigualdade nas décadas de 1970 e 1980 foi praticamente da mesma ordem de grandeza, porém de magnitude muito inferior da que ocorreu na década de 1960. Todavia, essa tendência de longo prazo de aumento da desigualdade não parece ter sido afetada pelo desempenho econômico nas três décadas, dado que a concentração continuou a aumentar nos anos 1980, mesmo quando a renda per capita se manteve estagnada, ao passo que nas demais décadas a concentração deu-se pari passu com um crescimento econômico. Se falarmos de ganho absoluto de renda, o cenário é diferente: nas décadas de 1960 e 1970 houve aumento absoluto em todos os extratos da renda, mesmo que os ganhos dos mais ricos tenham sido sensivelmente superiores aos dos demais, enquanto na década seguinte houve piora absoluta e relativa. O decil superior foi o único a ganhar em termos absolutos. 3.4 Os anos 1990 e a estabilização econômica Os anos 1990 foram marcados pela adequação da economia brasileira ao modelo neoliberal, trazido pelo Consenso de Washington. Esse processo foi iniciado no governo Collor e mantido nos governos seguintes. Ganhou seu mais alto grau de intensidade no governo Fernando Henrique Cardoso. As principais medidas adotadas foram: a privatização de empresas estatais, a desregulamentação dos mercados e a abertura comercial. No campo teórico, os anos 1990 não repetiram a controvérsia dos anos 1970, pois havia um modelo básico para a explicação da desigualdade, e deixou de haver grandes conflitos entre os economistas. O modelo formulado por Ricardo Paes de Barros busca a compreensão da desigualdade pessoal da renda. Tem, portanto, influência do trabalho de Langoni. A educação continua com papel crucial sobre a desigualdade de renda. As principais críticas são a ineficiência e a má focalização do gasto público em educação, geralmente viesados em favor dos mais ricos. Há ainda alguns elementos conjunturais que servem de base para explicar a parte da desigualdade ‘‘ ‘‘ A ideia é mostrar que grande parcela desse aumento na concentração se deveu a mudanças no nível de educação e na migração para o setor urbano (moderno) dos trabalhadores que antes estavam no setor rural (tradicional), abordagem importada de Kuznets. 40 41 julho / setem bro de 2012 de renda que não pode ser explicada pelos fatores estruturais (como já ocorreu durante a controvérsia dos anos 1970). A inflação, por exemplo, corroeu o poder de compra de uma parcela da sociedade que nãoconseguia proteger suas riquezas. Esse imposto inflacionário atingiu principalmente as camadas mais pobres da sociedade, pois estas não tinham acesso a contas correntes e nem a títulos públicos indexados. O salário mínimo também tem impacto significativo sobre a desigualdade de renda. Neri (2008) afirma que, a despeito de ser um raciocínio contraintuitivo, a legislação do salário mínimo tem impacto maior no setor informal da economia do que no segmento legal: 15% contra 8%, respectivamente, recebiam exatamente o mínimo em 1997. Essas variáveis são praticamente consenso entre os economistas, apesar de discordarem da magnitude de seu impacto. 3.5 Os anos 2000 e a queda da desigualdade De acordo com os dados do IBGE, o crescimento econômico no período iniciado em 2001 foi superior aos atingidos nas décadas de 1980 e 1990. Porém, esse crescimento não foi uniforme. Entre 2001 e 2003, o PIB cresceu 1,3%, 2,7% e 1,1% ao ano. Já no período de 2004 a 2008, a média de crescimento foi próxima a 5% ao ano, com o máximo de 6,1% atingido em 2007. Em 2009, após a crise financeira, o PIB decresceu em 0,6%. Ainda sim, essas taxas foram inferiores às apresentadas pelos principais países latinoamericanos. Em 2010, entretanto, a taxa de crescimento do PIB brasileiro foi de 7,5%, bastante elevada. O período traz uma novidade em relação aos anteriores: a desigualdade apresenta queda contínua e acentuada. Os dados do IPEA apontam que o coeficiente de Gini variou de 0,596 para 0,543, o menor valor da série histórica, entre 2001 e 2009. Diversos autores tentaram explicar essa queda. A principal explicação continua sendo a educação, mas agora associada a políticas de transferência de renda. Cabem, portanto, algumas perguntas. Quais as causas dessa melhora no perfil distributivo? Qual o papel do aumento na renda do trabalho? E o das transferências governamentais? Em que magnitude esses fatores contribuíram para a queda da desigualdade? Ao analisar essa queda na desigualdade, constata- se que entre 2001 e 2003, quando o crescimento foi baixo, ela deu-se principalmente como resultado da transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres. Após esse período, com o PIB voltando a crescer a taxas mais altas, todos os grupos socioeconômicos tiveram ganhos, mas os mais pobres tiveram ganhos superiores aos demais. Barros, Carvalho, Franco & Mendonça (2010) analisam a renda familiar per capita e mostram a queda ocorrida entre 2001 e 2007. Destacam três fatores: demografia, renda proveniente do trabalho e renda não derivada do trabalho. Mais adiante, com simulações, mostram ainda que 52% da queda não teria ocorrido caso a renda do trabalho tivesse permanecido constante, contra 40% no caso da renda não derivada do trabalho. O fator demográfico não teve importância nesse quesito. Além disso, constatam: Ao se tomar o Gini como a medida de desigualdade, a renda do trabalho por trabalhador é sempre mais importante. Mas quando utilizamos a medida mais sensível à renda dos mais pobres, a renda não derivada do trabalho desponta sempre como o fator mais relevante. Dessa afirmação, fica claro que quanto mais pobre a família, mais ela depende da renda não derivada do trabalho, mais precisamente de transferências do governo. Quando se trata de pobreza e extrema pobreza, o fator demográfico, ou seja, a proporção de adultos nas famílias, passa a ter contribuição maior. Chega a explicar cerca de 20% da queda nesses indicadores entre 2001 e 2003. A renda não derivada do trabalho e a renda do trabalho continuam relevantes, com importâncias explicativas situando-se entre 30% e 40%. Para justificar a queda da pobreza no período de 2003 a 2007, a renda do trabalho passa a 50% e a não derivada do trabalho cai para 28%. Já para a extrema pobreza, a renda do trabalho perde um pouco da sua importância, chegando a 43%, mas ainda é mais elevada do que a renda não derivada do trabalho, com 35%. Esses aumentos da renda do trabalho de um período para o outro mostram claramente o efeito do crescimento econômico na queda da desigualdade e da pobreza. R ev is ta d e Co nj un tu ra Mercadante (2006) enfatiza que a ampliação das transferências constitucionais, o programa Bolsa- Família, a redução do desemprego e o aumento do emprego formal, juntamente com a recuperação do valor do salário mínimo, contribuíram para a redução da pobreza e da desigualdade de renda no início do governo Lula. Apesar de ser membro do governo, portanto ter opinião ideologicamente viesada, outros autores comprovaram o argumento de Mercadante, como Sergei Soares, do IPEA, e Marcelo Neri, da FGV. Sergei Soares mostra que programas como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que assiste idosos e pessoas com deficiência que tenham rendimento per capita inferior a 25% de um salário mínimo, e o Bolsa-Família, que beneficia famílias com renda mensal per capita inferior a R$140,00, são ambos bem focalizados: 74% da renda declarada do primeiro e 80% do segundo destinam-se a famílias abaixo da linha da pobreza, considerando esta equivalente a metade de um salário mínimo per capita. Em conjunto, estes programas foram responsáveis por 28% da redução do coeficiente de Gini entre 1995 e 2004 (7% BPC e 21% Bolsa-Família). Em conjunto, esses programas somavam apenas 0,82% da renda total das famílias em 2004. Além disso, a contribuição das pensões e aposentadorias, no valor de um salário mínimo, foi responsável pela queda de 32% no índice, sendo esta fonte de renda equivalente a 4,6% da renda declarada pelos domicílios na PNAD. Vê-se que esses benefícios não representam gastos públicos excessivos e obtêm resultados significativos na redução da desigualdade, o que contraria os argumentos dos críticos de que esses recursos poderiam ser investidos de forma mais eficiente no combate à pobreza. Ao tratar do Bolsa-Família, o autor argumenta que, apesar de bem focado, o programa precisa ser aprimorado no sentido de buscar “portas de saída” para que não seja gerada uma dependência dessa fonte de renda. Mostra ainda que as famílias que recebem o benefício são as que possuem uma menor participação da renda do trabalho em sua renda total. Cita ainda que embora este programa não seja a única e permanente solução para os problemas sociais do país, não há dúvida de que faz parte de qualquer proposta por uma sociedade mais justa. Neri (2008) argumenta que educação e trabalho são, nessa ordem, os determinantes mais importantes do nível de desigualdade futura de renda de um país. Afirma que a desigualdade tem impactos em várias áreas de nossas vidas, como criminalidade, saúde, mercados consumidores, entre outras. O autor traz uma análise dos dados da PNAD desde sua alteração, em 1992, até 2007. Mostra que a renda aumentou no período, e a renda do trabalho foi a que mais contribuiu para esse aumento, com 71,16% desse crescimento explicado por esse fator. Por ser a fonte de renda de maior magnitude, esse resultado já era esperado, mas mostra que está no mercado de trabalho a maior oportunidade de melhorar a renda absoluta das pessoas. A previdência, com benefícios acima de um salário mínimo, aparece como responsável por 18,85% desse aumento. Outros dados trazidos por Neri para justificar a queda: o salário mínimo cresceu 75% em termos reais de 1995 a 2004 e, se considerado o período de 1995 a 2006, o crescimento foi de 100%. Como o salário mínimo influencia os rendimentos dos trabalhadores formais e informais de baixa renda, além de ser base para os benefícios previdenciários, ele tem importância fundamental nesse processo; a criação, em 2002, do Fundo para a Erradicação da Pobreza, responsável pela transferência de dinheiro do governo central para municípios de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH);e a expansão de programas de transferência condicionada, como o Bolsa-Família. ‘‘ ‘‘ Dessa afirmação, fica claro que quanto mais pobre a família, mais ela de- pende da renda não derivada do traba- lho, mais precisamente de transferências do governo. 42 43 julho / setem bro de 2012 Há ainda, segundo Neri, uma forte correlação entre crescimento e redução da pobreza no Brasil. Todavia, essa redução depende de outros fatores, como inflação, choques externos, desemprego, salário mínimo e programas sociais. Ele argumenta ainda que a pobreza responde mais ao crescimento quando a distribuição é mais igualitária, e crê que a alta desigualdade pode estar segurando o crescimento mais rápido da economia. Fica demonstrado, dessa forma, que a renda do trabalho e a renda não proveniente do trabalho são complementares, e não concorrentes, no que diz respeito à importância na melhora do perfil distributivo do Brasil. Sem melhorar o mercado de trabalho, com geração de emprego, valorização do salário mínimo, qualificação da força de trabalho e redução das desigualdades educacionais, a desigualdade de renda não deve apresentar melhora no longo prazo. Entretanto, sem os programas de transferência de renda como Bolsa-Família, Programa Universidade para Todos (Prouni) e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ), e os benefícios constitucionais, como a previdência pública, a seguridade social e a assistência social, as famílias mais pobres ficam desamparadas e não conseguem romper a barreira da pobreza. Esses programas são, portanto, medidas de extrema importância para se tratar o problema no curto prazo. 4 - Causas do aumento e da queda na desigualdade Os dados apresentados no gráfico 1 sugerem que o Brasil segue o padrão definido por Kuznets e Langoni em seus trabalhos, apesar da escassez de dados para uma análise mais aprofundada. O que os dados não mostram, nem poderiam mostrar, são as causas desse fato. Neste capítulo, será apresentada uma análise mais detalhada de cada um dos pontos que influenciam nessa distribuição da renda. Langoni tratou a educação como fator principal para o aumento na desigualdade de renda. Ninguém discorda que a educação seja realmente fator preponderante para aumentar a renda recebida pelos indivíduos, mas concluir que a diferença no nível educacional é geradora de desigualdade é contar apenas metade da verdade. O nível de ensino Fonte: GINI - http://www.ipeadata.gov.br/ e LANGONI (1973) - Censo IBGE - 1970. PIB Per Capita - http://www.ipeadata.gov.br/. PIB Per Capita encontra-se expresso em milhares de reais (R$) de julho de 2009. é sim um gerador de desigualdade, mas é, antes de tudo, um revelador desta. Não se pode ignorar o fato de que as pessoas com rendas mais elevadas têm acesso privilegiado ao sistema educacional, com a possibilidade de estudar em escolas melhores. Com isso, a desigualdade de renda impede as pessoas de frequentarem a escola ou as coloca em escolas de menor qualidade, e acaba por torna-las menos aptas a uma melhor remuneração no futuro. Isso faz com que seus filhos também não tenham condições de superar a pobreza, o que leva a um círculo vicioso. Como argumentou Fishlow: O próprio sistema educacional brasileiro, é lógico, constitui na prática um importante mecanismo para assegurar a manutenção da estrutura existente, racionando a diplomação não apenas em favor dos já afluentes, mas também, predominantemente, em favor daqueles com pais já educados. É também importante frisar que a impossibilidade de conciliação entre crescimento econômico e distribuição de renda, encontrada por Langoni, não analisa um fator importante: a melhoria do sistema educacional público atingiria os dois resultados simultaneamente, com a elevação da renda dos futuros integrantes do mercado de trabalho e o crescimento econômico fruto do aumento da produtividade resultante da melhoria dos recursos humanos potenciais que são desperdiçados devido à pobreza. Langoni também deixou de lado outros itens em sua explicação sobre a piora distributiva na década de 1960 (que se estende também à década posterior). Ao Gráfico 1 – Curva de Kuznets entre 1960 e 2009 R ev is ta d e Co nj un tu ra não tratar da queda real no salário mínimo ocorrida no período, o autor deixou de mostrar o impacto deste fato na diminuição da parcela da renda apropriada pelas camadas mais pobres. A queda no ano de 1964 ocorreu devido a uma inflação corretiva aplicada com o intuito de restabelecer a “verdade dos preços”, segundo argumentação do governo militar que tomou posse no referido ano. Sendo esse argumento convincente ou não, o fato é que o salário mínimo serve de base para a remuneração da população de mais baixa renda. Uma diminuição no salário mínimo fatalmente acarreta numa queda na proporção da renda recebida por quem tem sua remuneração atrelada a este. Apesar de faltar dados para calcular o tamanho deste impacto, numa população cuja parcela significativa recebe salário mínimo, este impacto dificilmente foi desprezível, sendo muito provavelmente grande. A migração do setor rural para o setor urbano, como apontada por Langoni (e, anteriormente, por Kuznets), certamente tem também impacto nessa mudança do perfil distributivo da economia brasileira observada nas décadas de 1960 e 1970. Essa migração foi praticamente constante durante o tempo. Entre 1955 e 1985 ela ocorreu a um ritmo ligeiramente superior a 10% da população a cada 10 anos. O aumento de produtividade das pessoas no setor urbano em relação ao setor rural foi importante nesse incremento da desigualdade. Essa migração tem impacto não apenas no salário, devido à maior produtividade do setor industrial urbano. Há também o efeito da marginalização de parte dos imigrantes provenientes do setor rural, considerados como mão-de-obra não qualificada e, por isso, com remuneração muito baixa – principalmente aqueles que estão no setor informal da economia – e maior probabilidade de demissão em caso de crises. Já na década de 1980, outro fator aparece para impactar no aumento da desigualdade: a inflação. Dificilmente algum economista, não importando sua orientação ideológica, irá discordar de que a inflação afeta os pobres de forma mais intensa. Pessoas mais ricas, que têm acesso ao sistema financeiro, têm formas mais eficientes de proteger seus recursos contra os efeitos da inflação, por meio de aplicações em caderneta de poupança, títulos do tesouro, ou outros produtos bancários. Dessa forma, um aumento nos preços é menos danoso para os mais ricos do que para os mais pobres, que não têm acesso sequer a uma conta corrente num banco, e não podem proteger seus recursos contra a corrosão causada pela alta dos preços. Os anos 1990 apresentaram maior estabilidade nos indicadores de desigualdade. O coeficiente de Gini variou muito pouco entre os extremos da década. Apresentou leve alta no início, provavelmente decorrente ainda do aumento do nível de preços, e baixa na mesma proporção no final, já com a inflação controlada. Como no início da década o maior problema era a inflação, os esforços de todos estavam centralizados na estabilização dos preços. Houve também uma queda no salário mínimo real com o Plano Real, mas ao final da década, com a economia estabilizada, esse indicador começou a recuperar- se, e foi o provável responsável pela ligeira queda na desigualdade apresentada no final da década. Os anos 2000 apresentam uma grande novidade em relação aos anos anteriores: com a economia estabilizada, é possível se pensar em melhorar o perfil ‘‘ ‘‘ A migração do setor rural para o setor urbano, como apontada por Langoni (e, anteriormente, por Kuznets), certamente tem também impacto nessa mudança do perfil distributivo da economia brasileiraobservada nas décadas de 1960 e 1970. 44 45 julho / setem bro de 2012 distributivo da economia. Alguns programas sociais tiveram início e intensificaram-se nesse período, e o impacto deles na queda da desigualdade foi bastante acentuado. Juntos, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família atingem hoje cerca de 16 milhões de beneficiários e afetam diretamente algo em torno de 50 milhões de pessoas (se considerarmos uma média de quatro pessoas por família). Indiretamente, esses benefícios ainda apresentam outras vantagens, como a elevação no nível de emprego causado pelo aumento na demanda advindo desse aumento de renda (pessoas de baixíssima renda tendem a consumir 100% de seus rendimentos em produtos de primeira necessidade, como alimentos, higiene pessoal e vestuário, o que aumenta a demanda por esses produtos) e a melhora nos indicadores educacionais e de saúde, pois os beneficiários do Bolsa-Família são condicionados a matricularem seus filhos na escola e a frequentarem os postos de saúde públicos mais próximos para manter o benefício. Sem dúvida, seguindo a linha de pensamento de Kuznets, os fatores educacionais continuam a influenciar a distribuição da renda, só que agora estão induzindo um movimento para baixo na desigualdade. Com a melhora dos indicadores educacionais, as pessoas de baixa renda têm empregos mais qualificados e recebem maior remuneração. É importante também destacar o impacto da valorização do salário mínimo real nos anos 2000. O aumento sistemático do valor real desse indicador acarretou numa valorização da ordem de 92% entre 2000 e 2010. Apesar dessa melhora recente mostrada acima, o Brasil ainda é um país que apresenta altíssimo grau de desigualdade de renda, e, embora estejamos no caminho certo, temos ainda um longo caminho a percorrer. Já mostramos que temos capacidade de apresentar um crescimento mais robusto do que o apresentado nas décadas de 1980 e 1990 e com uma distribuição de renda muito melhor do que a apresentada naqueles anos, com um aumento na renda dos mais pobres conduzindo a um crescimento maior da demanda por bens que, por sua vez irá acarretar em aumento da produção que, por sua vez, levará a um aumento da demanda por trabalhadores, o que vai melhorar ainda mais a renda. Esse círculo virtuoso de aumento da produção e da renda, um alimentando ao outro, favorece tanto as camadas mais baixas quanto as mais altas, mas sem dúvida são os mais pobres que vivem um ganho mais significativo, o que reflete na melhora do perfil distributivo. A expectativa é que esse crescimento continue ocorrendo no longo prazo, para que possamos ter uma sociedade mais equitativa e que a pobreza continue em queda. 5 - Conclusões O presente trabalho não busca refutar a tese de que a desigualdade aumentou nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico e posteriormente diminuiu, mas espera trazer à luz um debate sobre as verdadeiras causas para que tal padrão tenha ocorrido. Como resultado, é apresentado um argumento de que o crescimento econômico é responsável por explicar boa parte da variação no coeficiente de Gini, mas deixa ainda por ser explicada uma parcela significativa, sendo necessária a elaboração de uma teoria mais completa do que apenas dizer que a desigualdade é um resultado natural do crescimento. Paulo Henrique Mendes Leandro Beserra paulohmlbeserra@gmail.com Economista formado pela Universidade de Brasília. Foi premiado com o 1º lugar no XVIII Prêmio Corecon-DF de Economia (2011) e em 2º lugar no Prêmio Brasil de Economia realizado pelo Cofecon.
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