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"~.·- :.r.:-.. -~- -~- .;~ :!""'"\1 ~ J44/IE · : ~II II 1111 I IIIII 111111 II IIIII 1010794444 330.122 W156c IE "0 capitalismo e, em primeiro lugar e prin- cipalmente, urn sistema social hist6rico. Pa- ra entender suas origens, formac;:ao e pers- pectivas atuais, precisamos examinar sua configurac;:ao real. ( ... ) Tentarei descrever o que o capitalismo tern sido na pnitica, co- mo tern funcionado como sistema, por que se desenvolveu das maneiras como se de- senvolveu e qual e seu rumo atual:' Assim Immanuel Wallerstein inicia este livro acessivel e claro, que resume as ideias centrais de sua obra monumental, The Modern World-System. Sua amHise nao e es- sencialmente l6gico-dedutiva, mas hist6ri- ca. Realiza uma anatomia do capitalismo ao Iongo de cinco seculos, enfatizando a formac;:ao e o desenvolvimeni:o de uma eco- nomia-mundo, voltada para a acumulac;:ao de capital e articulada em torno de cadeias mercantis hierarquicamente organizadas. Entre outros temas, Wallerstein analisa a integrac;:ao de populac;:oes ao sistema, os processos de proletarizatyao, a dinamica da concorrencia entre empresas, a relac;:ao en- tre a economia-mundo e os Estados nacio- nais territorialmente definidos, o papel das lutas de classes, do sexismo e do racismo, a incorporac;:ao da ciencia a produc;:ao e a ideologia autojustificada do progresso. "Longe de ser urn sistema natural': diz Wallerstein, "o capitalismo hist6rico e urn sistema patentemente absurdo. Acumula-se capital para que se possa acumular mais ca- pital. Os' capitalistas sao como ratos bran- cos em uma roda de gaiola, correndo cada vez mais nipido para poder correr cada vez mais nipido. Nesse processo, algumas pes- soas vivem bern, mas outras vivem mise- ravelmente. ( ... ) Quanto mais refleti sobre esse sistema, mais absurdo ele me pareceu." Immanuel Wallerstein CAPITALISMO / HISTORICO e -CIVILIZA9AO CAPITALISTA TRADU<;:AO Renato Aguiar REVISAO DE TRADU<;:AO Cesar Benjamin Immanuel Wallerstein B1BLIOTECA · IE ~ UNlCAMP (00TRAPODTO Titulo original: Historical Capitalism and Capitalist Civilization ©Immanuel Wallerstein, 1995 Direitos adquiridos para o Brasil por CONTRAPONTO EDITORA LTDA. Caixa Postal 56066 - CEP 22292-970 Rio de janeiro, RJ- Brasil Telefax: (21) 2544-0206/2215-6148 Site: www.contrapontoeditora.com.br E-mail: contrapontoeditora@gmail.com Vedada, nos termos da lei, a reprodu~ao total ou parcial deste livro sern autoriza~lio da editora. Revislio tipognlfica: Tereza da Rocha Projeto gnifico: Regina Ferraz I • edi-;:ao: mar-;:o de 200 I 1• reirnpresslio: maio de 2007 Tiragem: 2.000 exemplares CATALOGA<;:AO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO Wl98c Wallerstein, Immanuel. UNIDADB:.:. . .....••••....... CLASSIF.::::Lj;,;.LJ2 .. ;;?. .. ,hI::.<< .. AUTOR ............... t. ••••••••••. RD.: ............ V.: ............... . PA TllUMONIOtq.¥.f~ PRoc.<k.~~lf.f.. .. tQ:. c-7?. ......... '0: ................. . PREf;O:!f!l.. ?/!:.~(!. .. .. D AT A.£.0.. ... R.l. .. i/f.(}. ID:2'f...i;!.',.~ ......... . Capitalismo hist6rico e Civiliza<;ao capitalista I Immanuel Wallerstein ; tradu~ao Renato Aguiar ; revisao de tradu-;:ao Cesar Benjamin e Immanuel Wallerstein.- Rio de janeiro: Contraponto, 2001. 144 p. ISBN 85-85910-38-0 Tradu~lio de: Historical Capitalism and Capi- talist Civilization 1. Capitalismo. I. Titulo. CDD-330.122 SUMARIO CAPITALISMO HISTORICO Introdu<;:ao ... 9 A mercantiliza<;:ao de tudo: produc;:ao de capital... 13 A politica de acumulac;:ao: luta pelo lucro ... 41 A verdade como 6pio: racionalidade e racionalizac;:ao ... 65 Conclusao: sobre progresso e transic;:oes ... 83 CIVILIZA<(AO CAPITALISTA Urn balanc;:o ... 97 Perspectivas ... 121 CAPITALISMO / HISTORICO INTRODU<(AO D01s PEDIDos sucessivos contribuiram diretamente para que este livro viesse a luz. No outono de 1980, fui convidado por Thierry Paquot a escrever urn pequeno texto para uma cole~ao que ele estava editando em Paris. 0 tema sugerido era "capita- lismo': Respondi que desejava faze-lo em principia, mas gosta- ria que o assunto fosse "capitalismo hist6rico". Marxistas e outros autores de esquerda haviam escrito bas- tante sobre o capitalismo, mas a maioria desses livros sofria .de carencias que podiam ser agrupadas em dais tipos. Parte deles consistia basicamente em analises 16gico-dedutivas; adotavam- se como ponto de partida defini~oes do que se pensava ser o ca- pitalismo em essencia e entao se observava como ele se de- senvolveu em diferentes tempos e lugares. 0 segundo grupo centrava suas analises em supostas transforma~oes fundamen- tais do sistema capitalista, tendo como referenda urn momenta recente, definidor de uma realidade empirica presente que pas- sava a ser comparada com urn tempo anterior descrito de for- ma mitica. Parecia-me urgente ver o capitalismo como sistema hist6ri- co, abrangendo o conjunto de sua hist6ria como realidade con- creta e unica. E a tarefa para a qual, em certo sentido, se dirige todo o corpus do meu trabalho recente. Assumi entao o desafio de descrever essa realidade, tentap.do delinear o que sempre es- teve mudando e o que nao mudou (de modo que pudessemos abranger toda a ~ealidade sob urn s6 nome). Como outros autores, acredito que essa realidade seja urn todo integrado. Mas muitos usam este ponto de vista para ata- car terceiros, por seu suposto "economicismo" ou "idealismo" cultural, ou por sua enfase exagerada em fatores politicos "vo- 9 CAPITALISMO HISTORICO luntaristas': Tais criticas, quase por sua propria natureza, ten- dem a cair por ricochete no pecado oposto. Por isso, tentei apresentar de forma mais direta e integrada a realidade global, tratando sucessivamente suas expressoes nas esferas economica, politica e cultural-ideol6gica. Pouco depois deter concordado em fazer este livro, fui con- vidado a dar uma serie de palestras no Departamento de Cien- cia Politica da Universidade do Havai. Agarrei entao a opor- tunidade para escreve-lo, agora tendo em vista as palestras, realizadas na primavera de 1982. A primeira versao dos tres pri- meiros capitulos foi apresentada no Havai. Sou grato aos co- mentarios e criticas feitos. por minha animada plateia, que me permitiram melhorar consideravelmente a apresenta<;:ao. 0 quarto capitulo - acrescentado depois - foi urn desses aperfeis;oamentos. Ao Iongo das palestras, percebi urn problema recorrente: a enorme fors;a subterranea da cren<;:a no progresso inevitavel. Esta cren<;:a viciava nossa capacidade de compreen- der as reais alternativas hist6ricas. Decidi, pais, abordar direta- mente a questao. Finalmente, permitam-me uma palavra sobre Karl Marx. Ele foi uma figura monumental na hist6ria intelectual e politica moderna. Deixou urn enorme legado, rico do ponto de vista conceitual e inspirador do ponto de vista moral. Contudo, de- vemos levar a serio o fato de ele ter dito que nao era marxista, e nao descartar sua frase como urn bon mot. Ele sabia- e muitos dos seus autoproclamados disdpu- los freqtientemente nao sabem - que era urn homem do se- culo XIX e que sua visao estava inevitavelmente circunscrita pela realidade social de sua epoca. Sabia, como muitos nao sa- bern, que uma constru<;:ao te6rica s6 e compreensivel quando observada em rela<;:ao a construs;ao alternativa com a qual se confronta, implicita ou explicitamente; ela e inteiramente irre- levante quando comparada a construs;oes sabre outros proble- 1 0 INTRODUyAO mas, baseadas em outras premissas. Sabia, como muitos nao sa- bern, que seu trabalho continha uma tensao entre a descri~ao do capitalismo como urn sistema ideal (que nunca existiu de fato na hist6ria) e a amilise da realidade concreta do dia-a-dia do mundo capitalista. Usemos, pois, seus escritos da unica maneira sensata, tra- tando-o como urn camarada de lutas que sabia tanto quanto ele sabia.A MERCANTILIZA<;AO DE TUDO: PRODU<;AO DE CAPITAL 0 CAPITALISMO £, em primeiro Iugar e principalmente, urn sis- tema social hist6rico. Para entender suas origens, forma(j=aO e perspectivas atuais, precisamos examinar sua configura(j=ao real. Podemos tentar capta-la por meio de urn conjunto de afirma- ~oes abstratas, mas seria tolo usa-las para avaliar e dassificar a realidade. Por isso, tentarei descrever o que o capitalismo tern sido na pratica, como tern funcionado como sistema, por que se desenvolveu das maneiras como se desenvolveu e qual e seu rumo atual. A palavra capitalismo vern de capital. E legitimo, pois, presu- mir que o capital seja o elemento-chave do capitalismo. Mas o que e capital? Em certa acepc;:ao, e riqueza acumulada. Porem, quando usado no contexto do capitalismo hist6rico, o conceito tern uma definic;:ao mais espedfica. Nao e somente o estoque de hens consumiveis, de maquinas ou de demandas reconhecidas (ou seja, que se expressam sob forma de dinheiro) de coisas materiais. E claro que o capital continua a referir-se, no capita- lismo hist6rico, a acumula(j=iiO dos resultados do trabalho passa- do, ainda nao consumidos; mas se isto fosse tudo, poder-se-ia dizer que todos os sistemas, desde o do homem de Neanderthal, teriam sido capitalistas; todos possuiam, em algum grau, esto- ques que materializavam o trabalho passado. Algo distingue o sistema social que estamos chamando de capitalismo hist6rico: nele, o capital passou a ser usado (inves- tido) de maneira especial, tendo como objetivo, ou intenc;:ao primordial, a auto-expansao. Nesse sistema, o que se acumulou no passado s6 e "capital" na medida em que seja usado para acumular mais da mesma coisa. Trata-se de urn processo com- plexo, ate sinuoso, como veremos. Usamos a expressao "capi- I 3 CAPITALISMO HIST6RICO talistas" para nomear essa meta persistente e autocentrada do detentor de capital (a acumula<;:lio de mais capital) e as rela<;:6es que ele tern de estabelecer corn outras pessoas para alcan<;:a-la. E clara que esse objetivo nunca foi exclusivo. Outras conside- ra<;:6es se intrornetem no processo de produ<;:lio. Contudo, a questao e identificar que considera<;:6es tendem a prevalecer em caso de conflito. Onde a acumula<;:ao de capital tenha tido prio- ridade sabre objetivos alternatives ao longo do tempo, pode- rnos dizer que estamos em presen<;:a de urn sistema capitalista em opera<;:ao. Urn individuo ( ou grupo de individuos) pode decidir em qualquer tempo que gostaria de investir capital com o objetivo de adquirir mais capital. Porem, antes de urn certo momenta na hist6ria, esses individuos nao tinham nenhuma facilidade em conseguir isso. Nos sistemas anteriores, o longo e complexo processo de acumula<;:ao do capital era quase sempre bloqueado num ou noutro ponto, mesmo nos casas em que a condi<;:ao inicial estava presente: a propriedade, ou concentra<;:ao, de urn estoque de hens nao consumidos nas maos de poucos. Nosso capitalista hipotetico sempre precisou usar trabalho; logo, tinha de encontrar pessoas que pudessem ser atraidas, ou compelidas, ' a realizar esse trabalho. Uma vez reunidos os trabalhadores e J realizada a produ<;:ao, era necessaria comercializar os hens; pre- / cisavam existir urn sistema de distribui<;:ao e urn grupo de pes- "- soas dotadas dos meios necessaries para efetuar compras. Os bens tinham de ser vendidos a urn pre<;:o maior do que os cus- tos totais desembolsados pelo vendedor (incluindo os custos de coloca-los no ponto de venda) e, alern disso, a margem (ou diferen<;:a) precisava ultrapassar as necessidades de subsisten- cia do vendedor. Em linguagem moderna, tinha de haver lucro. 0 agente que se apoderava do Iuera tinha de ser capaz de rete- lo ate surgir uma oportunidade razoavel de investi-lo, retornan- do-se assim ao ponto em que todo o processo recome<;:ava, des- de a produ<;:ao. 14 PRODU<;AO DE CAPITAL Antes dos tempos modernos, esse encadeamento de pro- cessos (as vezes denominado circuito do capital) raramente se completou. Nos sistemas sociais hist6ricos anteriores, as deten- tores da autoridade politica e moral consideravam irracionais e/ou imorais muitos dos elos dessa corrente. Mesmo quando os que detinham o poder se abstinham de interferir, o processo era geralmente abortado par causa da nao-disponibilidade de urn au mais elementos: estoque de dinheiro acumulado, mao-de- obra disponivel para ser utilizada pelo produtor, rede de distri- buidores, consumidores com poder de compra. Urn au mais elementos faltavam, porque nos sistemas sociais hist6ricos anteriores tais elementos nao haviam sido transfor- mados em mercadoria, au entao essa transforma~ao ainda e·ra incipiente. Nao se considerava que os processos descritos pu- dessem ou devessem resultar de transa~oes realizadas em mer- cados. Par isso, o capitalismo hist6rico incluiu a ampla mercan- tiliza~ao de processos - nao s6 os de troca, mas tambem os de produ~ao e de investimento - antes conduzidos par vias r1ao mercantis. No anseio de acumular cada vez mais capital, os ca- pitalistas buscaram mercantilizar cada vez mais esses processos sociais presentes em todas as esferas da vida economica.iComo o capitalismo e centrado em si mesmo, nenhuma relas;ao social permaneceu intrinsecamente isenta de uma possivel inclusao. 0 desenvolvimento hist6rico do capitalismo envolveu o impul- · so de mercantilizar tudo. Nao bastava mercantilizar os processos sociais. Os processos de produ~ao se vinculavam uns aos outros atraves de cadeias mercantis complexas. Consideremos, por exemplo, urn item de vestmirio, urn bern amplamente produzido e vendido ao Iongo da experiencia hist6rica do capitalismo. Para produzi-lo, sao necessarios, no minima, tecido, linha, algum tipo de maquina e for~a de trabalho. Cada urn desses itens, par sua vez, tern de ser · produzido, e o mesmo ocorre com os itens que entram na sua produs;ao. Nao era inevitavel - e nem sequer comum - que l 5 CAPITALISMO HIST6RICO todos os subprocesses dessa cadeia estivessern disponiveis sob a forma de rnercadorias. Sern duvida, como verernos, o lucro e frequenternente rnaior quando nern todos os elos da cadeia es- tao de fato rnercantilizados. Ern cadeias assirn, ha urn grande e disperso conjunto de trabalhadores que recebern algurn tipo de rernunera(j:iiO, lan(j:ada como custo ern urn registro contabil. Ha tarnbern urn conjunto de pessoas, rnuito rnenor mas tarnbern disperso, que divide de algurn modo o excedente criado - ao longo da cadeia rnercantil - pela diferen<;:a entre os custos to- tais de prodw;ao e a renda total decorrente da venda do produ- to final. Estas pessoas operarn como agentes econornicos distin- tos e nao se reconhecern como parceiros. Considerando que as cadeias rnercantis vincularn rnuitos processos de produc;ao, a taxa de acurnulacrao para todos os "ca- pitalistas'~ vistos ern conjunto, dependia do tamanho da rnargern que podia ser criada, rnargern que podia flutuar considera- velrnente. Porern, a taxa de acurnulac;ao obtida individualrnen- te por cada capitalista dependia de urn processo de "cornpeti- crao': corn recornpensas rnaiores para aqueles que possuiarn rnais perspicacia, maior habilidade no controle de sua forc;a de tra- balho e rnaior acesso as decisoes politicas que regularnentavarn operac;oes rnercantis especificas ( conhecidas ern geral como "monop6lios"). Isso criou a primeira contradic;ao elernentar do sistema. 0 interesse de todos os capitalistas, vistos como classe, seria re- duzir todos os custos de producrao, mas na verdade essas redu- c;oes favoreciam capitalistas espedficos, em detrimento de ou- tros. Conseqtienternente, eles preferiam agir para aumentar sua participac;ao em urna rnargern global menor, ern vez de aceitar uma participac;ao rnenor ern uma margern global rnaior. Havia uma segunda contradic;ao fundamental no sistema. Na medida ern que rnais capital se acumulava, mais os processos se torna- vam mercantilizadose rnais mercadorias eram produzidas, para manter o fluxo era necessaria garantir urn nurnero crescente de 1 6 PRODU<;AO DE CAPITAL compradores. Contudo, os esforc;:os para reduzir os custos de produc;:ao freqiientemente reduziam tambem a distribuic;:ao e circulac;:ao do dinheiro, inibindo a expansao estavel do numero de compradores, necessaries para completar o processo de acu- mulac;:ao. Por outro lado, as redistribuic;:oes do lucro global, que poderiam expandir a rede de compradores, freqiientemente re- duziam a margem global de lucro. Por isso, em seus empreen- dimentos, os empresarios individuais tiveram de agir em uma mesma direc;:ao (por exemplo, reduzindo o custo da mao-de-, . obra); ao mesmo tempo, como membros de uma classe, pres- sionavam no sentido de aumentar a rede global de compra- dores ( o que exigia aumentar o custo da mao-de-obra, pelo menos para alguns produtores). · Assim, a economia capitalista tern sido governada pela in- tenc;:ao racional de maximizar a acumulac;:ao. Mas o que era ra- cional para os empresarios nao o era necessariamente para os trabalhadores. Mais importante: o que era racional para todos os empresarios, vistos como urn conjunto, nao o era necessa- riamente para urn empresario individual, vista isoladamente. Portanto, nao basta dizer que todos perseguiam seus interesses. Com freqiiencia, o interesse particular levava cada urn a reali- zar, racionalmente, atividades contradit6rias com as realizadas pelos outros. Mesmo se ignorarmos o quanto a percepc;:ao do interesse individual estava obscurecida e distorcida por veus ideol6gicos, e preciso levar em conta que a avaliac;:ao dos reais interesses de Iongo prazo se torna, nesses contextos, muito complexa. Ate aqui, estou supondo provisoriamente que o capi- talismo hist6rico tenha de fato criado urn homo economicus, mas estou acrescentando que a posic;:ao de cada urn era inevita- velmente confusa. Uma restric;:ao "objetiva" limitou essa confusao. Se urn in- dividuo comete freqiientes erros de julgamento economico - por ignorancia, estupidez ou preconceito ideol6gico -,esse in- divfduo (empresa) tende a nao sobreviver no mercado. As fa- 1 7 CAPITALISMO HISTORICO lencias tern sido o duro purgante do sistema capitalista, foryan- do constantemente os atores economicos a se manter mais ou menos nos caminhos demarcados e pressionando-os a agir co- letivamente de modo a gerar mais acumulayao de capital. Assim, o capitalismo hist6rico e o locus concreto - integra- doe delimitado no tempo e no espayo- de atividades produ- tivas cujo objetivo economico tern sido a acumulayao incessan- te de capital; esta acumulayao e a "lei" que tern governado a atividade economica fundamental, ou tern prevalecido nela. E o sistema social no qual aqueles que operaram segundo essas re- gras produziram urn impacto tao grande sabre o conjunto que acabaram criando condiy6es as quais os outros foram foryados a se adaptar ou cujas conseqtiencias passaram a sofrer. E o siste- ma social em que o alcance dessas regras (a lei do valor) seam- pliou cada vez mais, em que sua imposiyao se tornou cada vez mais firme e sua penetrayao no tecido social cada vez maior, mesmo quando teve de enfrentar uma oposiyao social mais en- fatica e organizada. Usando essa descriyao do que queremos dizer com capita- lismo hist6rico, cada urn de n6s pode determinar a que locus concreto, integrado e delimitado no tempo e no espayo, ela se refere. Minha opiniao e de que a genese desse sistema social se situa na Europa no final do seculo XV; que, de la para ca, ele se expandiu no espayo ate cobrir todo o planeta no final do seculo XIX; e que ainda engloba a Terra inteira. Compreendo que essa apressada delimitayao das fronteiras espayo-temporais provoque duvidas de dois tipos. Em primeiro lugar, duvidas empfricas. Estava a Russia dentro ou fora da economia-mundo europeia no seculo XVI? Quando exatamente o Imperio Oto- mano foi incorporado ao sistema-mundo capitalista? Podemos considerar uma determinada area situada no interior de urn de- terminado Estado num determinado momenta como verdadei- ramente "iritegrada" a economia-mundo capitalista? Sao ques- toes importantes, tanto em si mesmas quanta porque, ao tentar 1 8 PRODUyAO DE CAPITAL responde-las, somas obrigados a tornar mais precisas noss~s analises dos processos do capitalismo hist6rico. Mas nao e hora nem Iugar de tratar dessas numerosas indaga~6es empiricas, su- jeitas a debate e elabora~ao continuos. As duvidas do segundo tipo questionam a propria utilidade da classifica~ao indutiva que acabo de sugerir. Ha os que con- sideram que s6 existe capitalismo se existir uma forma espedfi- ca de rela~ao social no local de trabalho, com urn empresario privado empregando trabalhadores assalariados. Ha os que di- zem que quando urn Estado nacionaliza as industrias e procla- ma seu compromisso com doutrinas socialistas, atraves desses atos e de suas conseqiiencias ele rompe sua participa~ao no sis- tema-mundo capitalista. Estas nao sao indaga~6es empiricas, mas te6ricas. Vamos aborda-las ao longo da nossa discussao. Mas trata-las dedutivamente seria irrelevante, pois nos levaria a urn confronto de cren~as, e nao a urn debate racional. Devemos trata-las heuristicamente, argumentando que nossa classifica- ~ao indutiva e mais util que as alternativas, pois abrange mais facil e elegantemente o que todos conhecemos sabre a realidade hist6rica e permite uma interpreta~ao que nos habilita a proce- der de modo mais eficaz no presente. Observemos como o sistema capitalista funcionou realmen- te. Dizer que o objetivo de urn produtor e acumular capital e dizer que ele vai buscar produzir a maior quantidade possivel de determinado bern, com a maior margem de lucro para si. Porem, agira submetido a uma serie de restric;:6es econ6micas existentes, como dizemos, "no mercado". Sua produc;:ao total e limitada pela disponibilidade (relativamente imediata) de in- sumas materiais, mao-de-obra, clientes e acesso a dinheiro vivo para expandir os investimentos. A quantidade que ele pode produzir com lucro e a margem de lucro que pode obter tam- bern sao limitados pela habilidade de seus "competidores" em oferecer o mesmo bern a pre~os menores; neste caso, nao se tra- ta dos competidores existentes no mercado mundial, mas aque- 19 CAPITALISMO HIST6RICO les situados nos mesmos mercados locais e mais delimitados, nos quais ele de fato atua (nao importa como seja definido esse mercado). A expansao da sua prodw;:ao tambem sera restrin- gida pelo efeito de redu.;ao de pre.;os que ela podeni gerar no mercado "local", amea.;ando reduzir o lucro total obtido. Todas essas restri.;oes sao objetivas, ou seja, independem de qualquer conjunto particular de decisoes tomadas par urn de- terminado produtor ou por outros igurumente ativos no merca- do. Decorrem do processo social total que existe em urn tempo e Iugar concretes. Alem delas, e clara que sempre ha outras res- tri.;oes, mais suscetiveis de manipula<;:ao. Governos podem vir a adotar, au podem ter adotado, regras que de algum modo influenciam as op.;oes econ6micas e as calculos sabre lucros; determinado produtor pode ser beneficiario ou vitima dessas regras existentes; tambem pode tentar persuadir as autoridades politicas locais a mudar as regras para favorecer-se. Como operaram os produtores para aumentar sua capacida- de de acumular capital? A for.;a de trabalho sempre foi urn ele- mento central e quantitativamente significative do processo de produ.;ao. Para acumular, o produtor se preocupa com dais as- pectos da for.;a de trabalho: disponibilidade e custo. 0 proble- ma da disponibilidade tern sido colocado da seguinte maneira: rela.;oes sociais de produ.;ao fiXas ( ou seja, uma for<;:a de traba- lho estavel para urn determinado produtor) podem ter baixo custo se o mercado for estavel e a quantidade de for.;a de traba- lho for 6tima em urn momenta dado. Mas, se o mercado para o produto declinar,uma for.;a de trabalho estavel aumenta o cus- to real do produtor; e se esse mercado crescer, uma for.;a de tra- balho estavel impossibilita o produtor de aproveitar a oportu- nidade de lucro. Uma for.;a de trabalho variavel tambem apresenta desvanta- gens para os capitalistas. Por defini.;ao, ela nao trabalha neces- saria e continuamente para o mesmo produtor. Para sobreviver, esses trabalhadores devem preocupar-se com sua remunera<;:ao 20 PRODU<(AO DE CAPITAL durante urn periodo Iongo o bastante para nivelar as varia<;:oes de sua renda real. Eles tern de ser capazes de ganhar o suficien- te, quando empregados, para cobrir os periodos em que nao recebam remunera<;:ao. Logo, uma for<;:a de trabalho variavel freqiientemente custa mais (por hora e por individuo) do que uma que seja fixa. Uma contradi<;:ao - e aqui temos uma - no cora<;:ao do processo de produ<;:ao capitalista sempre resulta em urn com- promisso historicamente desconfortavel. Revisemos o que de fato aconteceu. Nos sistemas hist6ricos anteriores ao capitalis- mo, a maior parte da for<;:a de trabalho (em bora nao toda) era fixa. Em alguns casas, a for<;:a de trabalho do produtor era so- mente ele mesmo ou seu grupo domiciliar; portanto, por defi- ni<;:ao, era fixa. Em outros, uma for<;:a de trabalho de natureza nao domiciliar ligava-se a urn produtor por meio de diferentes tipos de regula<;:oes legais e/ ou tradicionais ( varias formas de escravidao, sujei<;:ao par dividas, servidao, acordos permanentes de arrendamento etc.). Algumas vezes a sujei<;:ao era vitalicia. Em outras, valia par periodos limitados, com possibilidade de renova<;:ao; e clara que tais limita<;:oes de tempo s6 fariam senti- do se existissem alternativas realistas no momenta da renova- <;:ao. Ora, o carater fixo desses arranjos colocava problemas nao s6 para os produtores particulates, aos quais a for<;:a de trabalho estava sujeita, mas para todos os outros produtores, ja que eles s6 podiam expandir suas pr6prias atividades na medida em que existisse for<;:a de trabalho disponivel, ou seja, nao fixada. Como foi freqiientemente descrito, essas considera<;:oes des- crevem as condi<;:oes para a ascensao do trabalho assalariado. Nessa situa<;:ao, existe urn grupo de pessoas permanentemente disponivel para urn emprego, mais ou menos segundo a melhor oferta. E assim que opera o mercado de trabalho, e as pessoas que vendem sua for<;:a de trabalho sao proletarios. _!io C'!P.i!~Jis mo hist6rico houve uma proletariza<;:ao crescente da for<;:a de trabalho- constata<;:ao q~~--~ao-~n-ov-;-~~m surpreendente. As 2 1 CAPITALISMO HISTORICO vantagens do processo de proletariza<;ao, para os produtores, foram amplamente documentadas. 0 que surpreende nao e que tenha havido tanta proletariza<;ao, mas sim que ela tenha sido tao pequena. Tal sistema social hist6rico existe ha pelo menos quatrocentos anos. Apesar disso, nao se pode dizer que a for<;a de trabalho realmente proletarizada na economia-mundo capi- talista ultrapasse a metade do total. Essa estatistica depende, e claro, de como e o que medimos. Se usarmos as estatisticas oficiais dos governos sobre a chama- cia populas;ao economicamente ativa, principalmente homens adultos que ficam formalmente disponiveis para o trabalho re- munerado, a percentag~m de trabalhadores assalariados parece- ra hoje razoavelmente alta (mesmo assim, quando calculada em escala mundial, e inferior as previstas pelas postulas;oes mais te6ricas). No entanto, se considerarmos todas as pessoas cujo trabalho foi incorporado de uma maneira ou de outra as cadeias mercantis- abrangendo virtualmente todas as mulheres adul- tas e uma propor<;ao muito grande de pessoas nas faixas etarias da adolescencia e da maturidade - entao nossa percentagem de proletarios cai drasticamente. Vamos dar um passo adicional, antes de fazer nossa ava- lias:ao. Do ponto de vista conceitual, sera proveitoso aplicar o r6tulo de "proletario" a urn individuo? Eu duvido. Sob o capi- talismo hist6rico, assim como sob os sistemas hist6ricos ante- riores, os individuos tenderam a viver suas vidas no interior de estruturas relativamente estaveis - que podemos chamar de unidades domiciliares - que partilhavam urn fundo com urn de renda corrente e de capital acumulado. As fronteiras desses es- pa<;os mudavam constantemente por entradas e saidas de pes- soas, mas eles nao deixavam de ser a unidade de calculo ra- cional para efeito de remunera<;ao e de gasto. Para viver, as pessoas consideram toda a sua renda potencial, nao importa de que fontes, e a avaliam comparando-a com os gastos reais que 22 PRODU<;:AO DE CAPITAL tern pela frente. Buscam, pelo menos, sobreviver; aqueles com renda maior buscam desfrutar urn estilo de vida que julgam sa- tisfat6rio; por ultimo, os que tern ainda mais entram no jogo capitalista, tendo em vista acumular capital. Para todos os fins reais, a unidade domiciliar foi a celula econ6mica engajada nes- sas atividades, geralmente- mas nem sempre, ou nao exclusi- vamente - a partir de urn grupo formado por la<;:os de paren- tesco. Ela envolvia tambem, na maioria dos casos, a coabita<;:ao, mas essa caracteristica tornou-se menos importante na medida em que a mercantiliza<;:ao progrediu. Poi no contexto dessa estrutura domiciliar que a distin<;:ao social entre trabalho produtivo e improdutivo come<;:ou a ser imposta as classes trabalhadoras. 0 trabalho produtivo passou a ser definido como aquele que recebe remunera<;:ao em dinhei- ro (principalmente, trabalho assalariado) e o nao produtivo co- mo aquele que, embora necessaria, constitui uma atividade de mera "subsistencia': sem produzir urn "excedente" que possa ser apropriado por alguem. Esse trabalho podia estar totalmen- te fora da esfera mercantil ou envolver uma produ<;:iio mercantil simples (entao verdadeiramente simples). A diferencia<;:ao entre tipos de trabalho se ancorou na cria<;:ao de papeis espedficos a eles vinculados. 0 trabalho produtivo ( assalariado) se tornou tarefa principalmente do homem/pai adulto e secundariamente de outros homens adultos mais jovens. 0 trabalho nao produti- vo (de subsistencia) se tornou tarefa principalmente da mulher/ mae adulta e secundariamente de outras mulheres, alem das crians:as e dos idosos. 0 trabalho produtivo era feito fora da unidade domiciliar, no "local de trabalho': 0 trabalho nao pro- dutivo era feito dentro da unidade domiciliar. As linhas de separa<;:ao certamente nao eram absolutas, mas sob o capitalismo hist6rico se tornaram muito claras e coerci- tivas. A divisao do trabalho por genera e idade nao foi, e cla- ro, uma inven<;:ao do capitalismo hist6rico. E provavel que sem- pre tenha existido, ate mesmo pelo fato de que ha requisitos 23 CAPITALISMO HISTORICO e lirnita<yoes biol6gicos (de genera e de ida de) para certas .tare- fas. Tampouco o grupo hienirquico e/ou a estrutura da unidade domiciliar foram uma inven<yao do capitalismo. Eles tambem ja existiam. No capitalismo hist6rico, o que houve de novo foi a correla- <yao entre divisao de trabalho e valoriza<yao do trabalho. Homens e mulheres (assim como adultos, crian<yas e velhos) freqiiente- mente realizaram trabalhos diferentes, mas sob o capitalismo hist6rico houve uma desvaloriza<;:ao do trabalho das mulheres ( e dos jovens e velhos) e uma enfase correspondente no trabalho masculine adulto. Enquanto, em outros sistemas, homens e mu- lheres realizavam tarefas espedficas (mas normalmente compa- raveis), sob o capitalismo hist6rico o homem adulto assalariado foi classificado como "arrimo" do grupo, aquele que ganha o pao, e a mulher adulta trabalhadora domestica como "dona de casa". Assim, quando as estatisticas nacionais- elas mesmas urn produto do sistema capitalista - come<yaram a ser produzidas, todos os arrimos foram considerados membros da popula<yao economicamente ativa, mas o mesmo nao ocorreu com as donas de casa. 0 sexismo foi institucionalizado. 0 aparato legal epara- legal de diferencia<yao e discrirnina<yao de genero foi quase uma decorrencia l6gica dessa valoriza<yao diferencial do trabalho. Os conceitos de infancia/adolescencia estendida e de "apo- sentadoria" nao vinculada a doen<yas ou a deficiencias da for<ya de trabalho tambem foram concomitantes as estruturas das unidades domiciliares emergentes no capitalismo hist6rico. Fo- ram freqiientemente encarados como isen<yoes "progressistas" do trabalho. Mas podem ser considerados, com maior precisao, como redefini<yoes do nao-trabalho. A injuria acrescentou-se o insulto, quando a atividade infantil nos teares e a miscelanea de tarefas dos adultos aposentados foram rotuladas como "diverti- das"; a desvaloriza<yao desse trabalho aparecia como uma con- trapartida razoavel da ideia de que estavam liberados do "fardo" do trabalho "de verdade". 24 PRODUyAO DE CAPITAL Como ideologia, essas distins:oes ajudaram a garantir que a mercantilizas:ao do trabalho se estendesse mas, ao mesmo tem- po, permanecesse limitada. Se, na economia-mundo, calculasse- mos quantas unidades domiciliares obtiveram do trabalho assa- lariado, realizado fora de casa, mais da metade de seus ganhos reais (ou de sua renda sob todas as formas), acho que ficariamos espantados com o baixo percentual; nao me refiro apenas aos se- culos passados, mas tambem ao mundo de hoje, embora essa percentagem venha crescendo regularmente ao longo da hist6ria da economia-mundo capitalista. Como explicar isso? Nao creio que seja muito difkil. Supon- do-se que, sempre e em toda parte, urn produtor que empregue trabalho assalariado prefira pagar menos do que mais, o nivel salarial mais baixo que os trabalhadores podem aceitar depende do tipo de unidade domiciliar em que eles se inserem. Dito de maneira simples: para trabalhos identicos, com niveis identicos de eficiencia, o trabalhador assalariado inserido em uma uni- dade domiciliar muito dependente da renda de salarios ( vamos chama-la unidade domiciliar prolet<hia) tendeu a buscar urn patamar monetario mais alto (abaixo do qual seria irracional que ele realizasse o trabalho assalariado) do que o trabalhador assalariado oriundo de uma unidade domiciliar pouco depen- dente da renda salarial (vamos chama-la unidade domiciliar se- miproletaria). Essa diferens:a no que podemos chamar de patamar salarial minimo aceitavel tern a ver com a economia da sobrevivencia. Nas situas:oes em que uma unidade domiciliar proletaria de- pendia principalmente de renda salarial, o salario precisava co- brir os custos minimos de sobrevivencia e reprodus:ao. Porem, quando os salarios participavam com uma parte menos impor- tante da renda domiciliar total, tornava-se freqiientemente ra- cional que o individuo aceitasse urn emprego que aumentava sua renda real total em propors:ao menor do que o aumento de suas horas trabalhadas, desde que isso resultasse no recebimen- 25 CAPITALISMO HISTOR!CO to do dinheiro vivo de que necessitava (sendo essa necessidade, as vezes, imposta por lei) ou permitisse substituir trabalhos que teriam remunera«yao ainda menor. Nas unidades domiciliares semiproletarias, aqueles que pro- duziam outras formas de renda real (basicamente na produ«yao domiciliar para consumo, para venda no mercado local ou para ambos), fossem o proprio assalariado (em suas horas livres) ou outras pessoas (de qualquer sexo ou idade), criavam excedentes que contribuiam para baixar o patamar salarial minima acei- tavel. 0 trabalho nao assalariado permitia que alguns produ- tores diminuissem a remunera«yao da fors;a de trabalho, redu- zindo assim o custo de produ«yao e aumentando a margem de lucro. Por isso, como regra geral, OS empregadores de trabalho assalariado preferiam recrutar trabalhadores assalariados em unidades domiciliares semiproletarias, em vez de proletarias. A realidade empfrica global ao Iongo de todo o capitalismo his- t6rico mostra uma regularidade estatistica surpreendente: os trabalhadores assalariados vinculam-se mais a unidades semi- proletarias, e nao a unidades proletarias. Nossa questao virou subitamente de cabe«ya para baixo: partindo da busca de expli- ca«yoes para a existencia da proletarizas:ao, tivemos de explicar por que o processo foi tao incomplete. Agora, porem, temos de ir ainda mais Ionge: por que houve proletariza«yao? E muito duvidoso que a crescente proletariza~ao mundial possa ser atribuida principalmente a pressoes sociopoliticas das camadas empresariais. Bern ao contrario. Parece que elas tive- ram muitas razoes para frear o passo. Antes de tudo, como aca- bamos de argumentar, a transforma«yao de urn numero signifi- cative de unidades semiproletarias em unidades proletarias em determinada area tendeu a aumentar o nivel do salario minima real pago pelos empregadores de trabalho assalariado. Em se- gundo lugar, como veremos depois, o aumento da proletariza- c;:ao teve, para os empregadores, conseqtiencias politicas negati- vas e, alem disso, cumulativas, terminando por aumentar ainda 26 PRODUyAO DB CAPITAL mais os niveis dos salarios em certas areas. Os empregadores eram tao pouco entusiastas da proletarizac;:ao que, alem de pro- moverem a divisao de trabalho por genero/idade, tambem esti- mularam, nos padroes de emprego e atraves da sua influenda na politica, a identificac;:ao de grupos etnicos defi.nidos, buscan- do vincula-los a papeis especificos na distribuic;:ao da forc;:a de trabalho, com niveis diferenciados de remunerac;:ao real. A etni- cidade criou uma moldura cultural que consolidou os padroes estruturais das unidades semiproletarias. 0 fato de que o ad- vento dessa etnicidade tambem tenha contribuido para dividir as classes trabalhadoras foi urn bonus politico para os emprega- dores, mas nao foi, creio, o primeiro motor do processo. Porem, antes de poder compree?der como, ao Iongo do tem- po, a proletarizac;:ao aumentou no · capitalismo hist6rico, temos de retornar a questao das cadeias mercantis que abrigam as multiplas atividades produtivas. Precisamos nos livrar da ima- gem simplista de que o "mercado" e urn lugar onde se encon- tram o produtor inicial e o consumidor final. Sem duvida, tais mercados locais existem e sempre existiram. Porem, no capita- lismo hist6rico, as transac;oes realizadas nesses mercados locais constituiram uma pequena percentagem do total. A maioria das transac;:oes envolveu trocas entre dois produtores inter- mediaries situados no interior de uma longa cadeia mercantil. 0 comprador estava comprando urn "insumo" para seu pro- cesso de produc;:ao. 0 vendedor estava vendendo urn "produto semi-acabado" (nao destinado ao uso final no consumo indivi- dual direto). A luta pelos prec;:os nesses "mercados intermediaries" exigia urn esforc;o, por parte do comprador, para arrancar do ven- dedor uma parte do lucro realizado pelos processes de trabalho ao Iongo da cadeia mercantil. Nas conexoes espac;:o-temporais particulares, oferta e procura determinaram essa luta, mas nun- ca sozinhas. Em primeiro Iugar, oferta e procura podem ser ma- nipuladas atraves de praticas monopolistas, muito comuns e. 27 CAPITALISMO HIST6RICO nada excepcionais. Em segundo lugar, realizando uma integra- <;:ao vertical, o vendedor pode influir sabre o pre<;:o que se prati- ca no interior da conexao em que esta. Sempre que, em Ultima analise, "vendedor" e "comprador" fossem a mesma empresa, o pre<;:o podia ser arbitrariamente manipulado para efeito de con- sidera<;:6es fiscais e outras; nunca representava a intera<;:ao da oferta e da procura. A integra<;:ao vertical, assim como o "mo- nop6lio horizontal", nao foi urn fato raro. Conhecemos bern os casas mais espetaculares: as companhias privilegiadas dos se- culos XVI ao XVII, os grandes comerciantes do seculo XIX, as corpora<;:6es transnacionais do seculo XX - estruturas globais que buscavam abranger tantos elos de uma dada cadeia mer- cantil quanta possivel. · Exemplos men ores de integra<yao ver- tical, que cobriam poucos elos(as vezes, dois) de uma cadeia, foram ainda mais comuns. Parece razoavel argumentar que, no capitalismo hist6rico, a norma nas cadeias mercantis foi a inte- gra<yao vertical, e nao conex6es "de mercado" em que vendedor e comprador fossem de fato distintos e antagonicos. Mas as dire<y6es geognificas das cadeias mercantis nao se es- tabeleceram de forma aleat6ria. Se as tra<;:assemos todas em urn mapa, perceberiamos que assumiram uma forma centripeta. Seus pontos de origem foram multiplos, mas seus pontos de destino tenderam a convergir para poucas areas. Vale dizer, elas tenderam a se deslocar das periferias da economia-mundo ca- pitalista para seus centros ou nucleos. E difkil contestar isso como observa<yao empirica. A verdadeira questao e saber por que foi assim. Falar de cadeias mercantis significa falar de uma divisao social estendida do trabalho, a qual, ao longo do desen- volvimento do capitalismo hist6rico, tornou-se cada vez mais funcional e mais ampliada geograficamente, e ao mesmo tempo cada vez mais hierarquica. Essa hierarquiza<yao do espa<;:o na es- trutura dos processos produtivos levou a uma crescente polari- za<yao entre as areas centrais e perifericas da economia-mundo, nao s6 em termos de criterios distributivos (niveis de renda 28 PRODUyAO DE CAPITAL real, qualidade de vida), mas tambem, de modo ainda mais im- portante, nos loci da acumulac;:ao de capital. Quando esse processo comec;:ou, as diferenc;:as espaciais eram de fato pequenas eo grau de especializac;ao espacial era limita- do. No sistema capitalista, contudo, fossem quais fossem os di- ferenciais existentes (por razoes ecol6gicas ou hist6ricas), eles foram aumentados, reforc;:ados e cristalizados. 0 usa da forr;:a na determinac;:ao do prec;:o foi crucial nesse processo. E clara que o usa da forc;:a par uma das partes (para aumentar seu pre- c;:o em urn a transac;:ao de mercado) nao foi uma invenc;:ao do ca- pitalismo. A troca desigual e uma pratica antiga. 0 que e nota- vel no capitalismo como sistema hist6rico e a maneira como essa troca desigual pode ser escondida; foi tao bern escondida que ate mesmo os oponentes confessos do sistema s6 comec;:a- ram a desvehi-la, de forma sistematica, quinhentos anos depois. A chave para esconder esse mecanismo central esta na pro- pria estrutura da economia-mundo capitalista, na aparente separac;:ao, nesse sistema, entre o espar;:o da economia (uma di- visao social mundial do trabalho com processes produtivos in- tegrados, todos operando em nome da acumulac;:ao incessante de capital) e o espar;:o da politica ( organizado ostensivamente em torno de Estados soberanos e separados, cada qual com res- ponsabilidade autonoma por decisoes politicas no interior da sua jurisdic;:ao, todos dispondo de forcras armadas para susten- tar sua autoridade). No mundo real do capitalismo hist6rico, quase todas as cadeias mercantis de alguma import:lncia atra- vessaram as fronteiras dos Estados. Essa nao e uma inovac;:ao re- cente. Aparece nos prim6rdios do capitalismo hist6rico. Alem disso, a transnacionalidade das cadeias mercantis descreve tanto o mundo capitalista do seculo XVI quanta o do seculo XX. Como funciona essa troca desigual? A partir de qualquer di- ferencial real no mercado, por causa da escas.sez (temporaria) de urn processo de produc;:ao complexo ou por uma eventual escassez artificial criada manu militari, as mercadorias se deslo- 29 CAPITALISMO HIST6RICO cam atraves das regioes de tal modo que a regiao dotada do. ar- tigo menos escasso vende seus bens para outra regiao a urn pre- s:o que in corpore mais insumo real ( custo) do que urn bern de pres;o igual que se desloque na dires;ao oposta. Parte do lucro total (ou do excedente) produzido numa area transfere-se entao para outra. E a relas;ao que se estabelece entre centro e periferia. Podemos chamar a area perdedora de "periferia" e a area ga- nhadora de "centro", names que na verdade refletern a estrutura geografica dos fluxos economicos. Logo descobrirnos varios mecanismos que historicamente aumentararn essa disparidade. Sempre que ocorreu uma "in- tegras;ao vertical" de quaisquer dois elos de uma cadeia mer- cantil foi possivel deslocar na dires;ao do centro urna parte maior do excedente total, quando comparado com o que ocor- ria antes. Alem disso, o deslocamento de excedentes para o cen- tro concentrou nele o capital, tornando disponiveis enormes quantidades de recursos para aumentar o grau de mecanizas;ao. Isso permitia que OS produtores das areas centrais ganhassem novas vantagens competitivas nos produtos existentes e crias- sem novas produtos, com os quais podiam recolocar o processo emmarcha. A concentras;ao de capital nas areas ,centrais criou tanto a base fiscal quanta a motivas;ao politica para a formas;ao de apa- ratos estatais relativamente fortes, dotados da capacidade, entre outras, de assegurar que os aparatos estatais das areas perife- ricas permanecessem ou se tornassem mais fracos. Por isso, os aparatos centrais puderam pressionar os perifericos a aceitar (e mesmo promover) em suas jurisdis;oes uma maior especiali- zas;ao em tarefas inferiores da cadeia mercantil, utilizando fors;a de trabalho com menor remuneras;ao e criando (refon;:ando) as estruturas domiciliares que permitiam a sobrevida dessa fors;a de trabalho. Assim, o capitalismo hist6rico criou diferentes nf- veis de salario, os quais se tornaram dramaticamente divergen- tes nas diferentes regioes do sistema-mundo. 30 PRODUC(AO DE CAPITAL Dissemos que esse processo tern sido oculto. Com isso que- remos dizer que, aparentemente, os prec;:os reais sempre foram negociados em urn mercado mundial, com base em fon;:as eco- nomicas impessoais. 0 aparato de forc;:as, enorme mas dissimu- lado, esporadicamente usado de maneira aberta em guerras e na colonizac;:ao, nao teve que ser evocado em cada transac;:ao se- parada para garantir que a troca fosse desigual. A forc;:a s6 foi acionada quando determinado nivel de troca desigual foi ques- tionado de modo significativo. Ultrapassado o conflito politico · agudo, as classes empreendedoras do mundo podiam voltar a fingir que a economia se movia exclusivamente por considera- s;oes de oferta e procura. Nao precisavam desvendar como a economia-mundo tinha chegado a uma configuras;ao partictilar de oferta e procura, nem reconhecer que relas;oes de fon;:a sus- tentavam em cada memento os diferenciais "costumeiros" nos niveis de salario e na real qualidade de vida da fors;a de trabalho em escala mundial. /1 _, Podemos agora retornar a questao de saber por que houve alguma proletarizac;:ao. Recordemos a contradic;:ao fundamental entre o interesse individual de cada empreendedor e o interesse coletivo de todas as classes capitalistas. A troca desigual serve, por definis;ao, aos interesses coletivos, mas nao a muitos inte- resses individuais. Aqueles cujo interesse nao era imed_iatamen- te contemplado em qualquer memento dado (porque ganha- vam menos que seus competidores) tentavam alterar as coisas em beneficio proprio. Em outras palavras, tentavam competir em melhores condic;:6es no mercado, tornando sua propria pro- dus;ao mais eficiente ou usando a influencia politica para criar novas vantagens monopolistas para si. A competis;ao acirrada entre capitalistas sempre foi uma das differentia specifica do capitalismo hist6rico. Mesmo quando ela pareceu estar voluntariamente restrita (por arranjos formado- res de cartel), isso se deveu principalmente ao fato de que cada competidor percebeu que tal restric;:ao otimizava seus pr6prios 3 1 CAPITALISMO HIST6RICO ganhos. Em urn sistema caracterizado pela acumulacyao inces- sante de capital, nenhum participante pode se dar ao luxo de abandonar o impulso na direcyao da lucratividade de Iongo pra- zo, sob risco de autodestruir-se. Assim, pniticas rnonopolistas e motivacyao competitiva sao realidades que andam lado a lado no capitalismo hist6rico. Em tais circunstancias,e evidente que nenhum padrao espedfico de ligacyao dos processos produtivos pode ser estavel. Pelo contra- rio: muitos empreendedores em competicyao deveriam ter in- teresse em alterar o padrao espedfico vigente em urn tempo- lugar determinado, sem se preocupar com os impactos globais desse comportamento. Sem duvida, a "mao invisivel" de Adam Smith age para que o "inercado" estabelecra restri<;:6es aos com- portamentos individuais. Mas esta seria uma leitura curiosa do capitalismo hist6rico; o resultado dela seria a harmonia. Em vez disso, o resultado, mais uma vez como observacrao empirica, parece ser urn ciclo alternado de expans6es e estag- na<;:6es no sistema como urn todo. Esses ciclos envolveram flu- tuacroes de tal magnitude e regularidade, que fica dificil nao consideni-las intrinsecas ao funcionamento do sistema. Se me permitem a analogia, elas parecem ser o aparelho respirat6rio do organismo capitalista, inalando o oxigenio purificador e exalando o refugo venenoso. Analogias sao sempre perigosas, mas esta parece ser pertinente. Os refugos acumulados seriam as ineficiencias economicas que, atraves dos processos de troca desigual, acima descritos, em geral se enrijecem em estruturas politicas. 0 oxigenio purificador seria uma alocacyao mais efi- ciente de recursos (mais eficiente no sentido de propiciar maior acumulacrao de capital) do que aquela permitida pela reestru- turacrao normal das cadeias mercantis. 0 que parece ter acontecido - aproximadamente a cada cinqtienta anos - e que, pelo esforcro de urn numero cada vez maior de empreendedores para controlar mais e mais conex6es nas cadeias mercantis, ocorreram desproporcroes de investimen- 32 PRODU<;AO DE CAPITAL to, as quais chamamos, de forma urn pouco equivocada, super- prodw;:ao. A unica solu<;ao para essas despropor<;6es tern sido crises no sistema produtivo, crises que resultam em uma dis- tribui<;ao mais equilibrada. Isso parece l6gico e simples, mas suas seqiielas sempre foram enormes. Esse processo significou, a cada vez, uma concentra<;ao maior de opera<;6es nos elos mais saturados da cadeia mercantil. Ele implicou a elimina<;ao de empreendedores e de trabalhadores ( os que trabalhavam para empresarios que quebraram e tambem os que trabalhavam para aqueles que aumentaram a mecaniza<;ao para reduzir os custos de produ<;ao). Esse processo tambem permitiu que al- guns empreendedores "deslocassem" suas opera<;:6es na hie- rarquia da cadeia mercantil, aplicando recursos e esfor<;o para explorar novos elos das cadeias mercantis, os quais, por ofere- cerem inicialmente insumos "mais escassos': eram mais lucrati- vos. 0 "deslocamento" de processes particulares na escala hie- rarquica tambem levou a freqiientes transferencias geograficas, motivadas principalmente pela mudan<;a para regioes em que o custo da mao-de-obra e inferior ( embora, do ponto da vista da area que recebe a industria, a implanta<;ao desta provoque urn aumento salarial para alguns segmentos da for<;a de trabalho). Hoje, por exemplo, assistimos a uma transferencia maci<;:a, em escala mundial, das industrias automobilistica, siderurgica e eletronica. 0 fenomeno de transferencia e parte do capitalismo hist6rico desde que ele existe. Sao tres as conseqiiencias mais importantes desses rearran- jos. Uma e a permanente reestrutura<;ao geografica do sistema- mundo capitalista. Contudo, apesar de as cadeias mercantis te- rem sofrido reestrutura<;:6es significativas mais ou menos a cada cinqiienta anos, preservaram-se as cadeias hierarquicamente organizadas. Processes produtivos tern decaido na escala hienir- quica a medida que processes novos sao inseridos no topo da hierarquia. Areas geognificas especificas tern acolhido processos cujos niveis hienirquicos estao em constante altera<;ao. Deter- 33 CAPITALISMO HIST6RICO minados hens experimentaram seus "ciclos de produto'~ c()me- s:ando como centrais e acabando como perifericos. Alem disso, certos loci tiveram seus status modificados para cima e para bai- xo, em termos do bem-estar relativo dos seus habitantes. Esses rearranjos s6 poderiam ser chamados de "desenvolvimento" se fosse possivel demonstrar que se associam a uma redw;:ao da polarizas:ao global do sistema. Isso nao parece ter ocorrido; ao contrario, a polarizas:ao tern aumentado ao longo da hist6ria. Pode-se dizer, por isso, que as transferencias geograficas e de produtos tern sido ciclicas. Esses rearranjos tiveram uma segunda conseqiiencia muito diferente. A equivoca palavra "superprodu¢o" chama atens:ao para o fato de que os impasses de curto prazo sempre estiverarn ligados a ausencia de uma demanda mundial suficiente para al- guns produtos essenciais do sistema. Em situas:oes desse tipo, os interesses da fors;a de trabalho coincidiram com os interesses de uma minoria de empreendedores. A fors:a de trabalho sempre buscou aumentar sua participas:ao no excedente, e os momen- tos de colapso economico do sistema freqiientemente propor- cionaram urn incentivo e algumas oportunidades extras para levar adiante suas lutas de classes. Uma das maneiras mais efeti- vas e imediatas de a for<;:a de trabalho aumentar sua renda real tern sido desenvolver a mercantiliza¢o da sua pr6pria mao-de- obra. A fors;a de trabalho sempre buscou substituir os proces- sos produtivos domiciliares que produzem pouca renda real - particularmente os varios tipos de produs:ao de mercadorias triviais- por trabalho assalariado. Urn dos impulsos mais im- portantes a proletariza<;:ao vern das pr6prias for<;:as de traba- lho mundiais. Elas compreenderam, freqiientemente melhor do que seus autoproclamados porta-vozes, que a explorac;:ao e bern maior nas unidades domiciliares semiproletarias do que nas unidades plenamente proletarizadas. Poi nos momentos de estagnas;ao - em parte, respondendo a pressao politica das forc;:as de trabalho e, em parte, acreditan- 34 PRODU~AO DE CAPITAL do que mudanc;as estruturais nas rela-;:6es de produ.;:ao trariam beneficios diante de proprietarios-produtores competidores - que alguns proprietarios-produtores juntaram for.;:as, tanto na esfera produtiva quanta na politica, para pressionar a favor do aumento da proletariza.;:ao de urn segmento limitado da for.;:a de trabalho em algum Iugar. Esse processo nos da a indica.;:ao mais importante sobre por que a proletarizas:ao aumentou, apesar de, a Iongo prazo, ela reduzir os niveis de lucro da eco- nomia-mundo capitalista. E nesse contexto que devemos considerar o processo de mudan.;:a tecnol6gica, que tern sido menos o motor do que a conseqiiencia do capitalismo hist6rico. Cada "inova.;:ao" tec- nol6gica fundamental foi criada primariamente para fabrkar produtos novas e "escassos" - como tal, muito lucrativos -, e secundariamente para reduzir de forma mais acelerada o uso de mao-de-obra. As inova.;:oes foram respostas aos momentos de baixa nos ciclos economicos, foram maneiras de se apropriar das "inven-;:6es" para promover o processo de acumula.;:ao de capital. Elas afetaram, sem duvida, a organizas:ao da produc;ao. Historicamente, fortaleceram a centralizac;ao de muitos proces- sos de trabalho (a fabrica, a linha de montagem). Mas e facil exagerar o porte real das mudan.;:as. Processos de concentra.;:ao das tarefas fisicas da produ.;:ao foram freqiientemente investi- gados sem que se levassem em considerac;ao os processos de descentralizac;ao a eles contrapostos. Isso e especialmente verdadeiro se atentarmos para a terceira conseqiiencia dos rearranjos dclicos. Observern que, dadas as duas conseqiiencias ja mencionadas, temos urn aparente para- doxa a explicar. Por urn lado, dissernos que a hist6rica polariza- c;ao da distribuic;ao teve relac;ao com a continua concentrac;ao da acumulac;ao de capital. Ao mesmo tempo, contudo, falamos de urn processo Iento - mas estavel - de proletarizac;ao; co- mo tambem mencionamos, ele reduziu os niveis de lucro. Uma solu.;:ao f:kil seria dizer que 0 primeiro processo emaior que 0 35 CAPITALISMO HIST6RICO segundo, o que e verdade. Mas, alem disso, ate aqui, a redw;ao dos niveis de lucro ocasionada pela maior proletarizac;:ao foi mais do que compensada por urn mecanismo que se desdobra na direc;:ao oposta. Outra observac;:ao empirica f;icil de fazer sobre o capitalismo hist6rico e que seu ambito geografico cresceu regularmente ao Iongo do tempo. Mais uma vez, o ritmo do processo oferece a melhor pista para explica-lo. A incorporac;:ao de novas areas a divisao social do trabalho do capitalismo hist6rico nao ocorreu de uma s6 vez, mas em arrancos peri6dicos. Cada expansao su- cessiva parecia ter alcance limitado. Parte da explicac;:ao esta no pr6prio desenvolvimento tecnol6gico do capitalismo hist6rico. Melhoras nos transportes, nas comunicac;:oes e nos armamentos tornaram mais barato incorporar novas zonas, cada vez mais distantes das areas centrais. Esta explicac;:ao nos oferece uma condic;:ao necessaria, mas nao suficiente, do processo. Afirmou-se algumas vezes que a explicac;:ao estaria na busca constante de novas mercados aptos a realizar os lucros da pro- duc;:ao capitalista. Isso nao esta de acordo com os fatos hist6ri- cos. As areas externas ao capitalismo hist6rico sempre foram compradoras relutantes dos produtos deste, em parte porque seus pr6prios sistemas economicos nao "precisavam" deles e em parte porque freqiientemente careciam de meios para compra- los. Houve excec;:oes, e certo. Porem, no fim das contas, sempre foi o mundo capitalista que buscou os produtos das regioes ex- ternas a ele, e nao o contnirio. Sempre que urn locus particular era militarmente conquistado, os empreendedores capitalistas se queixavam da ausencia de mercados reais e operavam atraves de governos coloniais para "criar gostos". A busca de mercados nao se sustenta como explicac;:ao. Uma explicac;:ao muito mais plausivel e a busca de forc;:a de trabalho de baixo custo. As novas areas incorporadas a economia-mun- do estabeleciam niveis de remunerac;:ao real que se situavam na parte mais baixa da hierarquia salarial do sistema. Elas quase 36 PRODm;:.Ao DE CAPITAL nao tinham unidades domiciliares completamente proletarias e . nao foram estimuladas a desenvolve-las. Ao contrario: as poli- ticas dos Estados coloniais ( e dos Estados semicoloniais rees- truturados, naquelas areas incorporadas mas nao formalmente colonizadas) pareciam desenhadas para promover o surgimen- to da unidade semiproletaria, a qual, como vimos, viabiliza o patamar salarial mais baixo possivel. As politicas estatais tipi- cas envolviam a combina<;ao de mecanismos fiscais, capazes de fon;:ar todas as unidades domiciliares a se engajar em algum trabalho assalariado, e restri<;oes de movimento ou separa<;iio for<;ada dos membros das unidades, o que reduzia consideravel- mente a possibilidade de proletariza<;ao plena. 1; Se, a esta analise, acrescentarmos a observa<;ao de que as rio- vas incorpora<;oes ao sistema capitalista tenderam a ocorrer em fases de estagna<;ao da economia-mundo, torna-se clara que a expansao geografica do sistema serviu para contrabalan<;ar a queda nos lucros (provocada pelo aumento da proletarizac;ao ), atraves da incorpora<;ao de novas forc;as de trabalho destinadas a ser semiproletarizadas. 0 aparente paradoxa desapareceu. Pelo menos ate aqui, o impacto da proletariza<;ao sobre o processo de polarizac;ao foi compensado, e talvez mais do que compensado, pelos efeitos das incorpora<;oes. E os processes de trabalho em fabrica se expandiram menos do que geralmente se diz. Ja despendemos muito tempo delineando como o capita- lismo hist6rico operou no estreito ambito da economia. Agora estamos prontos para explicar por que o capitalismo emergiu como sistema social hist6rico. Isso nao e tao facil quanta fre- qtientemente se pensou. Longe de ser urn sistema "natural", como alguns apologistas tentam argumentar, o capitalismo his- t6rico e urn sistema patentemente absurdo. Acumula-se capital para que se possa acumular mais capital. Os capitalistas sao co- mo ratos brancos em uma roda de gaiola, correndo cada vez mais rapido para poder correr cada vez mais rapido. Nesse pro- cesso, algumas pessoas vivem bern, mas outras vivem miseravel- 37 CAPITALISMO HISTORICO mente; e por quanta tempo e ate que ponto vivem bern aqueles que vivem bern? Quanta mais refleti sabre esse sistema, mais absurdo ele me pareceu. Acredito que a grande maioria das popula~oes do mundo esteja- objetiva e subjetivamente- em piores condi- ~6es materiais do que nos sistemas hist6ricos anteriores. Alem disso, como veremos, pode-se argumentar que tambem estejam politicamente menos afortunadas. Estamos tao imbuidos da ideologia autojustificada do progresso, forjada par esse sistema hist6rico, que temos dificuldade em reconhecer seus enormes malogros hist6ricos. Mesmo urn critico tao resoluto do capita- lismo hist6rico como Karl Marx deu grande enfase ao seu papel historicamente progressista. Eu nao acredito nisso, a menos que, por "progressista': queiramos dizer que ele e historicamen- te posterior e que suas origens podem ser explicadas por algo precedente. 0 balan~o do capitalismo hist6rico, ao qual devo retomar, e complexo. Mas, do meu ponto de vista, a avalia~ao inicial e muito negativa, tanto em termos de distribui~ao mate- rial de hens como de aloca~ao de energias. Se assim for, par que tal sistema surgiu? Talvez para realizar precisamente este fim. Sera plausivel a ideia de que a origem de urn sistema pode ser explicada par sua capacidade de realizar urn fim que ja foi de fato alcan~ado? Sei que a ciencia moderna tern nos desviado da busca de causas finais e de quaisquer con- sidera~6es sobre intencionalidade (haja vista o quanta sao di- ficeis de demonstrar empiricamente). Mas, como sabemos, a ciencia moderna e o capit.alismo hist6rico mantem uma alian~a estreita; portanto, devemos desconfiar da autoridade da ciencia nessa questao. Permitam-me esbo~ar uma explica~ao hist6rica das origens do capitalismo hist6rico sem tentar apresentar aqui uma base empirica para o argumento. No mundo dos seculos XIV e XV, a Europa era o locus de uma divisao do trabalho que, comparada com outras areas do mundo, fazia dela- em termos de for~as produtivas, da coesao 38 PRODU<;:AO DE CAPITAL do seu sistema hist6rico e do seu .estagio relativo de conheci- mento- uma zona intermediaria: nem tao avan'rada como al- gumas areas nem tao primitiva quanta outras. Lembremos. que Marco P6lo, oriundo de uma das sub-regi6es cultural e econo- micamente mais "avan'radas" do continente, ficou muitissimo impressionado com o que encontrou em suas viagens asiaticas. A economia da Europa feudal passava nesse periodo por uma crise interna muito profunda, que sacudia seus alicerces sociais. As classes dominantes destruiam umas as outras, em grande escala. 0 sistema de propriedade da terra, base da estru- tura economica, se desfazia, e a reorganiza'rao em curso aponta- va para uma distribui'rao muito mais igualitaria. Os pequenos camponeses demonstravam grande eficiencia como produtoies. As estruturas politicas ficavam em geral mais fracas, e a preo- cupa'rao com a luta fratricida entre os politicamente podero- sos deixava pouco tempo para reprimir a for'ra crescente das massas populares. 0 cimento ideol6gico do catolicismo estava sob grande pressao; movimentos igualitarios nasciam no seio da propria Igreja. As coisas estavam de fato desmoronando. Continuasse a Europa no caminho em que estava, e dificil acre- ditar que seus padroes medievais feudais, com seu sistema de ordens altamente estruturado, pudessem consolidar-se nova- mente. A estrutura social feudal europeia teria mais probabili- dade de evoluir na dire'riiO de urn sistema de produtores de pe- quena escala, relativamente iguais, acabando com a aristocracia e descentralizando as estruturas politicas. Se isso foi born ou ruim, e para quem, e uma questao es- peculativa e de poucointeresse. Mas e clara que a perspectiva deve ter assustado e amedrontado os estratos superiores da Eu- ropa, especialmente quando sentiram que sua armadura ideo- 16gica tambem se desintegrava. Comparando a Europa de 1650 com a Europa de 1450, podemos ver que as seguintes coisas ocorreram: em 1650, as estruturas basicas do capitalismo hist6- rico como sistema social viavel tinham se estabelecido e conso- 39 CAPITALISMO HIST6RICO lidado. A ten den cia de urn nivelamento das recompensas .fora drasticamente revertida. Os estratos superiores estavam nova- mente firmes no controle politico e ideologico. Quando consi- deramos as familias integrantes desses estratos em 1450 e em 1650, constatamos uma continuidade bastante alta. Mais ainda: se. substituissemos 1650 por 1900, descobririamos que a maio- ria das comparat;:6es com 1450 continuariam a valer. S6 no se- culo XX se manifestaram tendencias significativas em uma dire- s:ao diferente, sinal, como veremos, de que o sistema hist6rico do capitalismo finalmente entrou em uma crise estrutural, ap6s quinhentos anos de florescimento. Embora nao tenha havido intent;:ao explicita nesse sentido, a crias:ao do capitalismo · hist6rico como sistema social reverteu dramaticamente uma tendencia que preocupava os estratos su- periores, estabelecendo em seu lugar uma outra que servia mui- to melhor aos seus interesses. Isso e absurdo? S6 para aqueles que foram suas vitimas. A POLITICA DE ACUMULAyAO: LUTA PELO LUCRO A ACUMULA<(AO incessante de capital em nome da acumula~ao incessante de capital parece, prima facie, urn objetivo absurdo. Mas teve defensores. Eles geralmente alegaram que o sistema traz beneficios sociais no Iongo prazo. Vamos discutir depois ate que ponto isso e verdadeiro. Mas, a parte quaisquer even- tuais benefkios sociais, acumular capital cria a oportunidade e a ocasiao para que individuos (e/ou pequenos grupos) aumen- tem muito seu consumo. Se o consumo aumentado melhora de fato a qualidade de vida dos consumidores sao outros quinhen- tos - tambem devemos adiar essa questao. A primeira questao que devemos tratar e: quem recebe OS be- neficios individuais imediatos? A maioria das pessoas nao espera uma avalia~ao dos beneficios de Iongo prazo ou da qualidade de vida resultante desse consumo (para a coletividade e para os in- dividuos) para decidir se vale a pena tentar obter beneficios in- dividuais imediatos, visivelmente disponiveis. Esse foi o foco da luta politica no capitalismo hist6rico. Por isso dizemos que o ca- pitalismo hist6rico e uma civiliza~ao materialista. Em termos materiais, as recompensas foram grandes pa- ra os que despontaram na frente. Alem disso, em termos de recompensa material, os diferenciais entre o topo e a base tern sido grandes e crescentes ao Iongo do tempo, quando obser- vamos o sistema-mundo como urn todo. Ja discutimos os processes economicos que explicam a distribuic;ao muito de- sigual da recompensa. Devemos agora tentar ver como, no in- terior desse sistema economico, as pessoas manobram para adquirir vantagens para si e, conseqiientemente, nega-las aos demais. Tambem devemos observar como manobram os que sao vitimas dessa rna distribui~ao, em primeiro Iugar para mi- nimizar suas perdas na opera~ao do sistema, e secundariamen- 4 1 CAPITALISMO HIST6RICO te para transformar urn sistema responsavel por injusti~as tao manifestas. Como as pessoas, os grupos de pessoas conduzem suas lutas politicas no capitalismo hist6rico? Fazer politica e mudar as re- la<;6es de poder numa dires:ao mais favoravel ao pr6prio inte- resse, alterando a dires:ao dos processos sociais. Para ter ~xito, nesses casos, e preciso encontrar as alavancas de mudan<;a que permitam a maior vantagem ao menor custo. Dada a estrutura do capitalismo hist6rico, as alavancas mais efetivas de ajuste politico t~m sido as estruturas do Estado, cuja pr6pria constru- s:ao, como vimos, foi uma das realizas:oes institucionais do ca- pitalismo historico. Assim, nao e por acidente que o controle do poder estatal, a conquista do poder de Estado, tenha sido o ob- jetivo estrategico central de todos os principais atores da esfera politica ao longo da historia do capitalismo moderno. A importancia do poder estatal nos processos economicos, mesmo se estritamente definidos, e visivel quando se observa mais de perto como o sistema realmente opera. 0 primeiro e mais fundamental elemento do poder estatal e a jurisdi~ao ter-' ritorial. Estados tern fronteiras juridicamente determinadas, em parte por proclamas:ao do proprio Estado em questao, em parte por reconhecimento diplomatico por parte de outros Estados. As fronteiras, e daro, podem ser contestadas, e o foram regular- mente; isto e, os reconhecimentos juridicos oriundos das duas fontes (o proprio Estado e outros Estados) podem ser confli- tantes. Tais diferens:as sao resolvidas por tribunais ou pela fors:a (e a aquiescencia final resultante de seu uso). Muitas disputas permaneceram latentes por periodos longos, em bora poucas te- nham sobrevivido mais do que uma geras:ao. 0 crucial e a pre- sunc;:ao ideol6gica duradoura, compartilhada por todos, de que essas disputas podiam e seriam finalmente resolvidas. Pois o sistema estatal moderno nao admite o reconhecimento explki- to de jurisdi<;6es permanentes justapostas. Como conceito, a so- berania se baseia na lei aristotelica do terceiro exduido. 42 LUTA PELO LUCRO Essa doutrina filos6fico-juridica definiu a responsabilidade pelo controle dos moyjmentos de entrada e saida na area dos Estados. Cada Estado tinha jurisdi(j:aO formal sabre o movi- mento de bens, dinheiro-capital e for(j:a de trabalho atraves ·de suas fronteiras. Conseqiientemente, cada urn deles podia afetar em alguma medida a diyjsao social do trabalho na economia- mundo capitalista. Alem disso, mudando as regras que gover- navam o fluxo dos fatores de produ(j:aO atraves de suas frontei- ras, os Estados podiam ajustar os mecanismos dessa divisao. Costumamos discutir esses controles de fronteira nos termos de ·uma antinomia: ausencia total de con troles ( comercio livre) ou ausencia total de movimentos livres (autarquia). Na pratica, na maioria dos paises e das epocas, as politicas dos Estados tem-se situado entre os dois extremos. Alem disso, elas tern sido diferentes para os movimentos de bens, dinheiro-capital e forc;:a de trabalho. Em geral, o moyjmento da for(j:a de trabalho tern sofrido mais restri(j:6es que o moyjmento de bens e de dinheiro- capital. Do ponto de yjsta de urn produtor situado num ponto qual- quer da cadeia mercantil, a liberdade de movimentos e dese- javel desde que ele seja - e enquanto ele for - competitivo diante de outros produtores do mesmo bern no mercado mun- dial. Quando este nao e o caso, restric;:oes de fronteira aumen- tam os custos dos produtores rivais e beneficiam urn produtor que, sem essa assistencia, seria menos eficiente. Como, por defi- nic;:ao, em urn mercado em que ha muitos produtores de deter- minado bern a maioria e menos eficiente do que a minoria, hci uma pressao constante por restric;:oes mercantilistas contra o movimento livre atraves das fronteiras. Porem, como a minoria mais eficiente e relativamente rica e poderosa, ha uma contra- pressao constante para abrir as fronteiras ou, mais especifica- mente, para abrir algumas fronteiras. Por isso, a primeira gran- de disputa - uma luta feroz e permanente - se deu em torno da politica de fronteiras dos Estados. E preciso considerar, alem 43 CAPITALISMO HISTORICO disso, que qualquer con junto de produtores ( especialmente os gran des e poderosos) e diretamente afetado pelas politicas de fronteira nao s6 dos Estados em que sua base economica esta fisicamente situada (que pode ser ou nao o Estado de que sao cidadaos) mas tambem por aquelas dos outros Estados, pois, como produtores, eles tern interesse em alcans;ar objetivos poli- ticos em varios Estados, freqiientemente em muitos. A ideia de quee preciso conter 0 envolvimento politico da pessoa dentro do que ocorre em seu proprio Estado contradiz a etica daqueles que buscam acumular capital. Uma maneira de alterar as regras que especificam o que po- de e o que nao pode cruzar as fronteiras, e sob que condis;oes, era mudar as pr6prias fronteiras - atraves da incorporas;ao de urn Estado por outro (unificas;ao, Anschluss), da tomada do seu territ6rio, de secessao ou de coloniza.yao. As mudans;as de fron- teira tiveram impactos diretos sabre a divisao social do traba- lho na economia-mundo. Este foi urn fato central para todos aqueles que foram favoraveis ou se opuseram a mudans;as espe- dficas de fronteira. Mobilizas;oes ideol6gicas em torno da defi- nis;ao de na.y6es podem tamar mais ou menos plausiveis mu- dans;as de fronteira. Isso conferiu urn conteudo economico aos movimentos nacionalistas, na medida em que seus integrantes, bern como os outros atores, passaram a presumir a probabili- dade de politicas estatais espedficas na sequencia das mudans;as de fronteira projetadas. 0 poder estatal apresenta urn segundo elemento fundamen- tal para compreendermos as operac;:oes do capitalismo hist6ri- co. Trata-se do direito legal, reservado aos Estados, de determi- nar as regras que governam as relac;:oes sociais de produc;:ao no interior de sua jurisdic;:ao territorial. Os Estados modernos se arrogaram o direito de revogar ou emendar qualquer conjunto de relac;:oes. Os Estados nao reconhecem nenhuma restric;:ao a sua liberdade legislativa, exceto aquelas que eles mesmos se im- p6em. Mesmo quando as constituic;:oes de Estados espedficos 44 LUTA PELO LUCRO afirmam uma lealdade ideol6gica insincera a restri<;oes oriun- das de religioes ou de doutrinas naturais, elas reservam para al- gum 6rgao ou pessoa constitucionalmente definidos o direito de interpretar essas doutrinas . . 0 direito de }egislar sobre OS modos de trabalho nao e teori- CO. Os Estados usaram esses direitos regularmente, e com fre- qtiencia de maneiras que implicaram transforma<;oes radicais nos padroes existentes. No capitalismo hist6rico, como era de se esperar, os Estados legislaram para aumentar a mercantiliza- c;:ao da for<;a de trabalho, abolindo varias restris:oes tradicionais que limitavam o movimento dos trabalhadores de urn tipo de emprego para outro. Alem disso, impuseram obrigac;:oes fiscais (em dinheiro) a fors:a de trabalho, as quais freqtientemente for- s:aram os trabalhadores a se engajar num trabalho assalariado. Por outro lado, a as:ao legal dos Estados muitas vezes tambem desencorajou a proletarizac;:ao plena, impondo limita<;6es resi- denciais ou insistindo em que o grupo domiciliar permanecesse responsavel por certos tipos de obrigas;oes de bem-estar social em relas:ao aos seus membros. Os Estados controlaram as relas:oes de produ<;ao. Primeiro legalizaram, depois proibiram formas particulares de trabalho fors;ado (escravidao, tarefas publicas obrigat6rias, contratos de servic;:o em pais colonial etc.). Criaram regras para as relas;oes de trabalho assalariado, incluindo garantias contratuais e obri- ga<;6es redprocas, minimas e maxi mas. Decretaram limites para a mobilidade geografica da fors:a de trabalho, nao s6 atraves das fronteiras mas tambem dentro delas. Todas essas decisoes estatais tiveram implicas:oes economicas para a acumulas:ao de capital. Pode-se verificar isso facilmente percorrendo 0 grande numero de debates, registrados a medida que foram ocorren,do, sobre alternativas e escolhas. Alem disso, os Estados despenderam energias consideraveis para impor seus regulamentos aos grupos recaldtrantes, muito particularmente as forc;:as de trabalho recalcitrantes. Raramente trabalhadores ti- 45 CAPITALISMO HIST6RICO veram liberdade para ignorar as restris;oes legais que pesavam sobre suas as;oes. Bern ao contrario: a rebeliao dos trabalhadores, individual ou coletiva, passiva ou ativa, geralmente provocou pronta resposta repressiva dos aparatos estatais. Algumas vezes, os movimentos da classe operaria organizada foram capazes de estabelecer limitas;oes para a atividade repressiva, bern como de garantir que as regras de governo fossem urn pouco modificadas a seu favor. Mas tais movimentos obtiveram esses resultados, em grande parte, por causa da sua capacidade de afetar a composi- s:ao politica dos aparatos estatais. Urn terceiro elemento do poder dos Estados tern sido o po- der de cobrar impastos. A taxas;ao nao foi uma invens;ao do ca- pitalismo hist6rico; estruturas politicas anteriores tambem a usaram como fonte de renda para os aparatos estatais. Mas o capitalismo hist6rico alterou a cobrans:a de impastos de duas maneiras diferentes. A taxas:ao se tornou a principal ( e esma- gadora) fonte regular de renda estatal, em oposis;ao a renda oriunda de requisis;oes irregulares, feitas pela fors;a, de pessoas situadas dentro ou fora da jurisdis:ao formal do Estado (in- cluindo requisis;oes contra outros Estados). Em segundo lugar, durante o desenvolvimento da economia-mundo capitalista, os impastos tiveram uma expansao constante, como percentagem do valor total criado ou acumulado. Isso quer dizer que os Esta- dos tern sido importantes quando se observam os recursos que controlam, pois esses recursos permitem promover a acumula- s:ao de capital e, sendo redistribuidos, entram direta ou indi- retamente em urn novo ciclo de acumulas:ao de capital. Cobrar impastos despertou hostilidade e resistencia dentro da propria estrutura estatal, vista como uma especie de vilao desencarnado que se apropria dos frutos do trabalho alheio. 0 que devemos ter em mente e que havia fors:as fora do gover- no pressionando para a implantas:ao de impastos especificos, pois ou bern o processo resultaria em redistribuis:ao direta para elas, ou permitiria ao governo criar economias externas que re- 46 LUTA PELO LUCRO fon;:ariam sua posicyao economica, ou penalizaria outros grupos e seria economicamente favoravel aquele primeiro. Em resumo: o poder de cobrar impastos foi urn dos meios mais imediatos atraves do qual o Estado ajudou o processo de acumulacyao de capital em favor de alguns grupos em vez de outros. Os poderes redistributivos do Estado tern sido discutidos pela maioria somente em termos do seu potencial de equaliza- cyao. Este e o terreno do Estado do bem-estar. Porem, essa redis- tribuicyao tern sido menos usada para fazer convergir as rendas reais e mais amplamente usada de modo a tornar ainda mais desigual a distribuicyao. Sao tres os mecanismos principais que aumentam essa desigualdade para acima e alem da que resulta de operacyoes correntes do mercado capitalista. Em primeiro lugar, atraves da taxa4fiio, os governos tern sido capazes de reunir grande quantidade de capital, que tern re- distribuido para pessoas ou grupos, ja grandes detentores de capital, atraves de subsidies. Os subsidies ganharam a forma de subvens:a<? ou doacyao pura e simples, em geral sob desculpas esfarrapadas de interesse publico, envolvendo pagamentos su- peravaliados. Mas tambem ganharam uma forma menos direta: o Estado banca os custos de desenvolvimento de certos pro- dutos, presumivelmente amortizaveis por meio de vendas lu- crativas posteriores. Em segundo lugar, os governos tambem foram capazes de reunir grande quantidade de capital atraves de canais de taxa- cyao formalmente legais e freqiientemente legftimos que acaba- ram se tornando urn prato cheio para a rapinagem ilegal em grande escala e de facto irrestrita de fundos publicos. Esse rou- bo, bern como seus procedimentos correlates, tern sido uma importante fonte da acumulacyao privada de capital ao longo do capitalismo hist6rico. Por ultimo, OS governos redistribuem em beneficia dos ricos quando usam o principia da socializacyao do risco e da indivi- dualizacyao do lucro. Ao longo da hist6ria do sistema capitalista, 47 CAPITALISMO HIST6RICO quanta maior o risco - e a possibilidade de perdas- mais provavel se
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