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1 Espaços educativos e ensino de História 02 Abril SUMÁRIOSUMÁRIO PROPOSTA PEDAGÓGICA ESPAÇOS EDUCATIVOS E ENSINO DE HISTÓRIA …............................................................................... 03 Helena Maria Marques Araújo PGM 1 OS SENTIDOS DO ENSINO DE HISTÓRIA …............................................................................................. 24 Texto: Os sentidos do ensino de História Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro PGM 2 MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA ........................................................................................................... 36 Texto: Memória e ensino de História Carmen Teresa Gabriel PGM 3 LUGARES DE MEMÓRIA …......................................................................................................................... 54 Texto: Produção de Saberes nos lugares de memória Helena Maria Marques Araújo PGM 4 ESPAÇOS PÚBLICOS DE MEMÓRIA …...................................................................................................... 61 Texto: Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira Mônica Lima PGM 5 ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO-FORMAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES ....................................... 76 Texto: Para além de formar professores, dialogar com as experiências vividas Elison Antonio Paim 2 PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICA ESPAÇOS EDUCATIVOS E ENSINO DE HISTÓRIAESPAÇOS EDUCATIVOS E ENSINO DE HISTÓRIA O O SENTIDOSENTIDO DODO ENSINOENSINO DEDE H HISTÓRIAISTÓRIA NANA ESCOLAESCOLA Helena Maria Marques Araújo 1 O ensino de História no Ensino Fundamental, e também no Ensino Médio, tem como objetivo fundamental proporcionar a nossos(as) alunos(as) as condições para que eles(as) consigam se identificar enquanto sujeitos históricos, participando de um grupo social, ao mesmo tempo único e diverso. Talvez este seja o nosso maior desafio, como professores: ensinar primeiramente a pensar, criticar, propor! Despertar em nossos estudantes o desejo de conhecer, de participar ativamente da sociedade em que vivem de forma crítica, reflexiva e transformadora. Mais essencial do que ensinar conteúdos específicos, que também são importantes, o ensino de História na Educação Básica possui o sentido maior de construção do cidadão crítico, que tenha a capacidade de participar ativamente da sociedade em que vive e de se indignar com os acontecimentos do cotidiano. Um trabalho sobre o ensino de História deve estabelecer o encontro ou, pelo menos, a junção de três vertentes do conhecimento humano: a ciência histórica, o saber histórico escolar e as ciências da Educação. Assim sendo, o objetivo do ensino de História é compreender mudanças e permanências, continuidades e descontinuidades, para que o aluno aprenda a captar e valorizar a diversidade e participe de forma mais crítica da construção da História. Faz parte, então, do procedimento histórico a preocupação com a construção, a historicidade dos conceitos e a contextualização temporal. “Considero que um currículo adequado para o segmento do Primeiro Grau deve ser aquele que, na 5 a série, por exemplo, antes de abordar especificamente os conteúdos ligados a esta ou aquela sociedade ou grupo humano, possa privilegiar a construção de conceitos fundamentais para a compreensão da História, ou seja, é importante que o aluno domine alguns conceitos-chave” (PACHECO, 1995, p. 49). 3 Escola, memória e espaços educativos não-formais Na perspectiva dos Estudos Culturais, segundo Tomaz Tadeu da Silva (1999), a cultura é pedagógica e a pedagogia é cultural. Diversos programas de televisão, mesmo que não tenham o objetivo explícito de ensinar, educam. Por outro lado, toda a pedagogia está inserida num contexto histórico e cultural. Todo conhecimento se constrói, portanto, num sistema de significados. A escola não é o único “lugar de conhecimento” e, portanto, de transformação de subjetividades, como nos afirma o autor. Existem outros espaços de saber que também educam – espaços não- formais de educação –, como museus, arquivos, programas de televisão e/ou rádio (educativos ou apenas de lazer), filmes, peças de teatro, músicas, espaços de exposições etc. Os museus, arquivos, locais de exposições e outros lugares de memória possuem cultura própria, ritos e códigos específicos. Por outro lado, as escolas apresentam universos particulares, também com lógica própria. Faz-se necessária, então, a busca de caminhos para a construção de uma pedagogia de museus, como nos afirma Marandino (2000). Esta autora nos alerta para a necessidade da construção de uma pedagogia de museus, levando em consideração a especificidade pedagógica dos museus para otimizar as visitas escolares. Não se trata, segundo a autora, de opor o museu à escola, mas de definir as especificidades relacionadas ao lugar, ao tempo e aos objetos no espaço do museu, o que é essencial e deve ser incluído na formação de educadores numa didática de museu. Nesse sentido, poderíamos ampliar esse entendimento não só para museus, como também para outros espaços educativos: exposições, arquivos públicos, centros culturais, arquitetura de ruas antigas, monumentos etc. Vários motivos levam os professores a buscar os espaços educativos não-formais como lugares alternativos de aprendizagem. Dentre tais objetivos, estariam a apresentação interdisciplinar dos temas, a interação com o cotidiano dos estudantes e, por fim, a possibilidade de ampliação cultural proporcionada pela visita. Assim, as visitas teriam o objetivo de fazer uma alfabetização científica do cidadão. Para isso, trabalha-se com elementos de relevância social que informam os indivíduos e os conscientizam de problemas político-sociais. 4 Nas últimas décadas, a questão educacional passou a ser um dos alicerces dessa nova museologia. Crescem pesquisas que analisam o processo de ensino, ou divulgam o conhecimento nesses espaços, na perspectiva dos estudos sobre transposição didática ou museográfica. O incentivo à participação e à interatividade que acontece nos museus de ciência e técnica se estende aos museus como os de história, arqueologia, etnografia e ciências naturais através, sobretudo, do advento de novas tecnologias. A base filosófica dessas mudanças reside na democratização do acesso ao saber que está “depositado” nos museus. Em contrapartida, a escola deve permitir a influência desses espaços educativos alternativos, incentivando as visitas pedagógicas e as ações de parcerias. “Há esperança de que a escola possa imbuir-se de uma nova função, a de ser um lugar de análises críticas, de atribuição de significado às informações e reconstrução do conhecimento, para que possa preservar seu status e função de formadora de sujeitos sociais e na qual o professor garanta seu espaço de ação” (NOGARO, 1999, p. 29). Para os gregos antigos, memória significava vidência e êxtase. É com tal alegria e êxtase que esperamos que nossos alunos e alunas consigam perceber e apreender nossa memória através de vivências extramuros escolares. A preservação da memória torna-se fundamental na ampliação de vivências pedagógicas diferenciadas para nossos estudantes. Espaços educativos não-formais Como já foi dito anteriormente, faz-se necessário desvelar o horizonte universitário e pedagógico para a utilização dos espaços educativos alternativos. Como exemplo de um espaço educativo não- formal temos o “Espaço da Ciência de Olinda”, em Pernambuco, criado em 1994, que desenvolve capacitação de professores através de centrosde referência criados em 21 escolas da rede pública. Também há o MAST/ CNP, que em 1997 estabeleceu um projeto denominado “Formação continuada de professores de ciências e os espaços não-formais de Educação” para produzir material didático junto às escolas públicas municipais. Desta forma, em tais visitas pedagógicas seria oferecido aos nossos alunos e alunas diferentes 5 leituras da ciência e do mundo. É essencial, cada vez mais, a parceria dos museus com as universidades, secretarias municipais e estaduais para a realização de cursos de formação de professores em todos os níveis. Além disso, é muito importante a implantação de pesquisas nos museus e investigações sobre a relação museus/espaços culturais e escola. Esses estudos darão subsídios maiores aos programas educativos e culturais desenvolvidos nessas instituições. Em última instância, entender história é entender o tempo em movimento em múltiplos espaços. Se entendemos que o ensino de História tem o sentido de formação da cidadania no Ensino Fundamental e Médio, devemos ter o compromisso de proporcionar oportunidades para que os(as) alunos(as) transportem esse conhecimento aprendido para suas vidas cotidianas, para que possam participar de forma mais consciente da construção de um mundo mais justo e solidário. “Contudo, a busca da cidadania nos países da periferia esbarra na falta de cumprimento de direitos universais básicos, embora muitas vezes suas populações tenham esses direitos consagrados em lei. Além disso, num mundo em constante transformação podem surgir novos direitos, frutos de novas lutas e reivindicações. E é exatamente esse movimento que caracteriza a cidadania.” (CANDAU, 2002, p. 37) Temas que serão debatidos na série Espaços educativos e ensino de História , que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 3 a 7 de abril de 2006: PGM 1- Os sentidos do ensino de História No primeiro programa da série, vamos debater estes temas, entre outros: o papel da escola e a importância do ensino de História para a formação da cidadania; o respeito pelo saber do educando; o encontro entre saberes escolares e não-escolares, entre cultura erudita e popular; a construção do conhecimento de forma dialógica, participativa, entre alunos e professores, a favor de uma educação emancipatória; as concepções teóricas no ensino de História e na Educação que permeiam tais opções educacionais; alternativas metodológicas ao método tradicional. PGM 2 – Memória e ensino de História O segundo programa tem como proposta discutir: o conceito de memória; a relação memória, tempo e História; o tempo histórico e suas principais características: sucessão, duração e simultaneidade; a 6 perpetuação dos povos através da memória ou do “esquecimento”; o que se quer lembrar e o que se quer esquecer nas sociedades; o jovem e a sociedade presentista; a necessidade de se impor a “ausência” de memória nas sociedades contemporâneas; mudanças e permanências nas sociedades. PGM 3 – Lugares de memória O terceiro programa vai enfocar estes temas: lugares de memória; a relação entre cultura e pedagogia na perspectiva dos Estudos Culturais; a educação transformando subjetividades; a escola não é o único lugar que educa; os espaços educativos não-formais, especialmente os museus e exposições; os lugares de memória e suas culturas próprias, seus ritos e códigos específicos; a democratização do acesso ao saber “depositado” nos museus; a busca pela construção de uma pedagogia de museus; os espaços educativos não-formais como lugares alternativos de aprendizagem. PGM 4 – Espaços públicos de memória Neste quarto programa, permanece a discussão sobre os espaços educativos não formais, analisando estes temas, entre outros: a paisagem como algo socialmente transformado pelo tempo e depositária de diferentes temporalidades; o espaço e o tempo-mundo fundidos na cidade; a necessidade de o professor ensinar História fora dos muros da escola, utilizando excursões pedagógicas pelas ruas de sua cidade, por exemplo; a análise das “migalhas” deixadas pelo tempo nas marcas da arquitetura, monumentos, transportes etc. de uma cidade; o processo de ensino-aprendizagem nesses espaços alternativos, na perspectiva dos estudos sobre transposição didática ou museográfica. PGM 5 – Espaços educativos não-formais e formação de professores O quinto programa vai abordar: a importância de se incorporar, nos estágios curriculares dos cursos de Licenciatura, esses espaços educativos não-formais; a necessidade de se estreitar laços entre as práticas curriculares nos cursos de formação de professores e os lugares de preservação da memória; a urgência de se estabelecer políticas públicas de formação de professores que se comprometam em reinventar a escola, visando à construção de uma cidadania participativa e 7 democrática. BIBLIOGRAFIA: BETANCOURT, Nilda de Barros e GISSI, Jorge. El taller: integración de teoria y práctica. Buenos Aires, Argentina: Editorial Humanitas, 1987. BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979. CANDAU, Vera Maria. Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. CANDAU, Vera Maria. 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Consultora desta série. 9 PROGRAMA 1PROGRAMA 1 OS SENTIDOS DO ENSINO DE HISTÓRIA Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro1 A constituição da história como disciplina escolar ao longo do século XIX, no Ocidente, implicou um processo de seleção cultural e didatização necessário para tornar ensináveis os saberes entãoselecionados para serem aprendidos pelas novas gerações. As narrativas produzidas revelavam o espírito do povo, a alma das nações e o germe da identidade nacional, expressos como histórias nacionais que contribuíam para afirmar poderes instituídos. Essa operação cultural e política, de forte conteúdo simbólico, nos possibilita compreender dimensões presentes no ensino de História, enquanto espaço/tempo no currículo escolar (ainda) privilegiado nas sociedades contemporâneas, destinado à construção de significados necessários à leitura e à compreensão do mundo, nacionalmente ou globalmente organizado. Esses são alguns dos desafios do ensino de História: 1) Tornar acessível aos alunos o conhecimento constituído sobre as sociedades e ações humanas do passado, passado recomposto pelos historiadores a partir de documentos tomados como fontes; 2) Possibilitar a leitura de textos e imagens, a escrita de suas apropriações-aprendizagens, a (re)construção de representações; 3) Selecionar quais saberes, quais narrativas, quais poderes legitimar ou questionar. Esse texto tem por objetivo discutir esses desafios e também as questões que se apresentam nos processos inerentes ao ensino de História (e à sua pesquisa) que envolve não apenas o domínio de saberes referentes ao passado mas, também, a compreensão da historicidade da vida social e do diálogo com os diferentes saberes que circulam e se difundem nas sociedades. Este processo implica um trabalho que auxilie os alunos a atribuir sentido às ações humanas e aos atores sociais, em perspectiva sincrônica e diacrônica, e a aprofundar o pensamento crítico em face dos poderes instituídos através da análise, e possível desmistificação, de rituais, atores, imagens e processos de 10 participação, atribuição e questionamento do poder nas sociedades 2 . 1. Renovação teórica no campo do currículo e do ensino: o conceito de saber escolar Nas três últimas décadas do século XX, os estudos e pesquisas voltados para as questões relativas ao currículo escolar voltaram-se para a investigação das relações entre escola e cultura, buscando melhor compreender o papel desempenhado pela escola na produção da memória coletiva, das identidades sociais e da reprodução (ou transformação) das relações de poder. Os saberes ensinados, na maior parte do século XX, não foram objeto de maior questionamento ou reflexão. Eram definidos e apresentados nos currículos e programas como aqueles a ensinar, oriundos de base científica e cultural ampla, através de meios e procedimentos adequados, escolhidos num “receituário ou arsenal” construído e fundamentado cientificamente nos conhecimentos oferecidos pela psicologia, pela psicopedagogia e pela didática. Esta perspectiva racionalista, cientificista, que contém críticas ao modelo espontaneísta e empirista até então dominante, é, por sua vez, atualmente, objeto de críticas que apontam a simplificação inerente à concepção que a fundamenta. Pesquisas confirmam que o currículo é campo de criação simbólica e cultural, permeado por conflitos e contradições, de constituição complexa e híbrida, com diferentes instâncias de realização: currículo formal, real, oculto (Moreira, 1997). No campo da epistemologia, discutem-se a historicidade e a relatividade do conhecimento científico, questionando-se a idéia de que a ciência produz a única forma de conhecimento válido e verdadeiro, reconhecendo-se a diversidade das formas de conhecimento, com diferentes racionalidades e formas de validação. No meio educacional, os estudos reconhecem as características, cada vez mais evidentes, dos fenômenos práticos: complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflitos de valores. Os diferentes sujeitos, com visões de mundo e interesses diferenciados, estabelecem relações entre si 11 com múltiplas possibilidades de apropriação e interpretação. Essas novas perspectivas permitem avançar em relação a estudos e análises que, ao não reconhecerem a especificidade da cultura escolar, buscavam a melhoria do ensino através da maior aproximação com o conhecimento científico. O ensino seria aperfeiçoado na medida em que mais semelhante, coerente e atualizado fosse em relação à produção científica. Essa orientação induzia, por exemplo, pesquisadores a identificar erros no ensino realizado nas escolas, na medida em que sua atualização se faz mais lentamente, e também porque um processo de síncrese é realizado, com a utilização de contribuições de diferentes autores, alguns deles com pressupostos teóricos distintos, para configurar explicações ou exemplificações. Ao ser radicalizada, esta crítica levou muitos a considerar o saber escolar um saber “de segunda classe”, inferior ao conhecimento científico, porque resultante de simplificações necessárias para o ensino a crianças e adolescentes, ou adultos em processo de aprendizagem 3 . Não podemos negar que o diálogo com o conhecimento científico é absolutamente fundamental. Mas é preciso compreender melhor como se dá a construção do saber escolar, que envolve a interlocução com o conhecimento científico, mas também com outros saberes que circulam no contexto cultural de referência. Nesse sentido, o conceito de saber escolar, referenciado em pesquisadores do campo educacional da área do currículo e da história das disciplinas escolares, oferece contribuição importante para a melhor compreensão dos processos educativos. Entre os primeiros podemos citar, na tradição francesa: Forquin, 1992, 1993, 1996; Moniot, 1993; Develay, 1994; 1996; Allieu, 1995; Lautier, 1997 e, no Brasil, Santos, 1990; Moreira, 1997; Silva, 1999; Lopes, 1999; Monteiro, 2002, 2003. Na história das disciplinas escolares, temos o trabalho de Chervel (1990) e, na vertente inglesa, temos os trabalhos de Goodson (1995), que utiliza uma abordagem sócio-histórica para análise da 12 construção curricular. A perspectiva com a qual eu trabalho reconhece a especificidade epistemológica desta construção que tem na escola o locus por excelência, escola que deixa de ser considerada apenas local de instrução e transmissão de saberes, para ser compreendida como espaço educacional, configurado e configurador de uma cultura escolar, na qual se confrontam diferentes forças e interesses sociais, econômicos, políticos, culturais. Filia-se mais diretamente aos autores franceses que estudam os processos de transposição didática. Nesta perspectiva, os saberes escolares, antes inquestionáveis e universais, passam a ser objeto de indagações que se voltam para aspectos relacionados à seleção cultural – quais saberes, motivos de opção, implicações culturais e repercussões sociais e políticas das opções, negações, ocultamentos, ênfases. Mas não basta selecionar. É preciso tornar os saberes possíveis de serem aprendidos. Nesse sentido, os estudos voltados para os processos de organização destes saberes investigam os processos de didatização, buscando superar a perspectiva instrumental e técnica, utilizando o conceito de transposição didática (Chevallard, 1991; Develay, 1992) ou mediação didática (Lopes, 1999) para analisar os processos realizados para viabilizar aprendizagens. (Forquin, 1992; Lopes, 1997) 4 . Por último, e não menos importante, é preciso lembrar que o saber escolar, em sua constituição, passa por um processo de axiologização (Develay, 1992), ou seja, ele é veículo de transmissão e formação de valores entre os estudantes. A dimensão educativa, portanto, é estruturante deste saber, não sob a forma de proselitismo, mas atravésda seleção e didatização realizada: saberes negados ou afirmados; formas democráticas ou autoritárias de ensinar, métodos baseados na repetição e memorização, ou baseados no desenvolvimento do raciocínio e pensamento crítico. Cabe indagar como essas questões se expressam na história escolar, uma vez que a própria área/disciplina História já traz, em sua constituição, a dimensão pedagógica. 13 3. A História como saber escolar A possibilidade de utilização dos conceitos de saber escolar e de transposição didática no campo da História precisa ser discutida de forma a considerar problemas e características específicos aos processos de sua constituição, que envolvem aspectos distintos daqueles relacionados à Matemática, por exemplo. É importante avaliar possibilidades e limites dos conceitos quando eles são transplantados do seu contexto de produção original e utilizados como instrumentos de inteligibilidade em diferentes campos disciplinares 5 . Esse trabalho tem sido realizado por alguns autores franceses que pesquisam a didática da História, e que têm procurado incorporar e avaliar a potencialidade teórica das proposições de Chevallard 6 . Entre eles, Moniot (1993) faz algumas ponderações importantes, ao discutir e contextualizar a transposição didática no processo de elaboração da História em sua versão escolar. Inicialmente, ele concorda com Chevallard sobre a anterioridade do saber acadêmico em relação ao saber escolar, ao lembrar que, por exemplo, na França, a História dos historiadores precede a História escolar, constituída num processo que se desenvolveu ao longo do século XIX (Furet, 1978). Mas, por outro lado, como o autor destaca, a História escolar também fez a fortuna da História universitária, havendo uma conivência entre uma e outra, de forma que até hoje uma legitima a outra. “Não há dúvida de que, no século XX, a história escolar tem características próprias, numa configuração com sua força instalada. Se, por um lado, ela depende moralmente da história acadêmica, ela produz, para esta, uma reverência e uma segurança pública, pela cultura e pelos sentimentos que ela destila: de fato, há uma troca de legitimações reais entre duas entidades específicas” (Moniot, 1993, p. 26) 7 . No Brasil, podemos dizer que um processo semelhante ocorreu. A constituição de uma História do Brasil, pautada em princípios definidos com base em metodologia científica, se deu em meados do século XIX, no contexto de uma instituição acadêmica que era o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Guimarães, 1988). A elaboração da História Geral do Brasil em 1854, por Francisco Adolfo de Varnhagen, constituiu a primeira versão que atendia aos princípios de uma História “científica” escrita a partir de documentos e que serviu de base para a elaboração de livros didáticos, entre eles aquele intitulado Brasil em Lições, de Joaquim Manuel de Macedo, usado 14 durante décadas no Colégio Pedro II e que serviu de referência para a História do Brasil ensinada em todo o país (Mattos, 2000) 8 . Já a diferença entre o saber acadêmico e o saber escolar em História constitui, para Moniot, um “segredo de polichinelo”. A História, diferentemente das matemáticas, que possuem uma definição acadêmica muito clara, apresenta diferentes perspectivas de inteligibilidade – História positivista, dos Annales, marxista e das análises macroeconômicas, Nova História, e de composições, que se complementam freqüentemente, a partir de diferentes formas de definição e de organização dos eixos de análise: temática – História política, História social, História econômica, História cultural; geopolítica – História do Brasil, História da América, História da Europa, História do Extremo Oriente, etc.; cronológica – Antigüidade, Idade Média, Idade Moderna, Idade Contemporânea, Tempo Presente, etc.; espacial – global, nacional e regional. Essa característica suscita, de imediato, uma questão de alguma complexidade: qual História utilizar como referência acadêmica para se contrastar com o saber a ensinar? Outra questão refere-se ao movimento que articula os saberes e que, para Chevallard, é prioritariamente descendente: do saber acadêmico ao saber escolar. Allieu (1995, p. 152), ao discutir a transposição didática no âmbito da História, questiona essa visão, afirmando que “a relação entre o saber ensinado e as noções ‘científicas' correspondentes produzidas na academia é mais ascendente do que descendente: mais do que uma transposição, nós preferimos falar de uma interpelação.” Citando Audigier, Crémieu, Tutiaux-Guillon (1994, p. 6) ela complementa: “as ciências históricas (...) são a referência para não dizer o falso.” Quem é responsável por essa atribuição de sentido na história escolar? O professor de História que, para isso, não segue um modelo predefinido, geral ou estrutural que oriente a transposição: a história escolar é reinventada em cada aula, no contexto de situações de ensino específicas, onde interagem as características do professor (e onde também são expressas as disposições oriundas de uma cultura profissional), dos alunos e aquelas da instituição (aí podendo ser considerada tanto a escola como o campo disciplinar), características essas que criam um campo de onde emerge a disciplina escolar. Esses atores estão imersos no mundo, ou seja, numa sociedade dada, numa época dada, em que as subjetividades expressam e configuram representações que, por sua vez, interferem 15 na definição das opções que orientam os sentidos atribuídos aos acontecimentos (Allieu, 1995, p. 153-4). Assim, Allieu prefere falar em interpelação, e não transposição, porque para atribuir sentido ao que ensina, o professor recorre ao saber acadêmico, em suas diferentes escolas e matrizes teóricas, para buscar subsídios que lhe permitam produzir versões coerentes com seus pontos de vista, e que tenham uma base de legitimidade dentro do campo. Aliás, no saber escolar encontramos muito mais uma síncrese de diferentes matrizes teóricas do que filiações definidas a determinadas correntes 9 . Além do mais, lembra Moniot, diferentemente da Matemática e da Biologia, a História tem como principal aplicação ser comunicada, divulgada, questão essa que tem ressonância tanto na referência como na transposição. A História é fonte de referência e está presente em várias dimensões e espaços da vida social atual, as chamadas “práticas sociais de referência” (Martinand, 1986). Ela não é apenas um objeto, um relato do passado dos homens, ela é uma linguagem partilhada e uma prática. Para tantos usos e finalidades contribui a história acadêmica, ou as práticas sociais de referência, ou a história escolar? Ou todas contribuem? Se estas finalidades não são explicitadas nos objetivos do seu ensino, que muitas vezes apresentam formulações mais “nobres” e “politicamente corretas”, elas estão presentes assim mesmo. Elas permitem compreender, então, como a História escolar tem diferentes referências muito reais. Para Moniot, a história escolar não precisa buscar nenhuma prática social de referência: ela própria, no sentido de História vivida, é a primeira dessas práticas sociais. Mas, além disso, a História escolar dialoga com as visões, os textos e as expressões históricas presentes em diferentes e específicas “práticas sociais de referência”: a dos autores, diretores e narrativas de filmes históricos, documentários, programas de televisão, novelas ou peças teatrais; na prática social de curadores de exposições museológicas, artísticas,científicas; dos jornalistas e comentaristas políticos; dos guias de atividades de turismo; nas práticas e discursos das diferentes religiões; nas práticas cotidianas dos diferentes grupos sociais, entre eles o familiar, e que servem de referência e dialogam com o saber acadêmico na constituição do saber escolar, chegando à escola através dos diferentes meios de comunicação, dos alunos, dos professores e de seus pais. 16 Além disso, as dimensões axiológica e política têm uma importância significativa na constituição da História escolar que não pode ser desconsiderada. Perspectivas diferentes implicam ênfases, negações, ocultamentos ou denúncias que têm profundas implicações na versão efetivamente ensinada. Esse autor reconhece, portanto, a existência de uma história escolar que possui três principais referências, e não apenas a História acadêmica: • a história acadêmica , da qual ela toma problemas e inteligibilidades e de onde retira sua legitimidade; • um conjunto de valores que dá sentido à vida coletiva e que inspira a socialização pela escola; ninguém ensina publicamente a História sem motivo, não se contam as coisas simplesmente porque elas pertencem ao passado. Mesmo aqueles que denunciam uma mitologia ou ideologia possuem outra proposta para a substituir; • a cultura que é transmitida pela História, em três sentidos: o que ela transmite faz parte do senso comum e da experiência geral das relações humanas, com seu vocabulário e categorias, o código semântico e referências sociais correntes; ela é portadora de uma cultura política, no sentido mais amplo, e de uma cultura cultivada, constituída a partir de uma freqüentação qualitativa de lugares do passado (Moniot, 1993, p. 24-33). Assim, para Moniot, “a História escolar é uma enorme e polivalente lição de coisas sociais, morais e intelectuais. Ela pode insuflar tanto a conformidade como o distanciamento, a continuidade e a reavaliação. Terreno complexo para a definição de aprendizagens específicas” (1993, p. 35). Essas considerações, baseadas no texto de Moniot (1993) e de Allieu (1995) oferecem uma perspectiva bastante interessante e fértil para a análise da história escolar. No Brasil, rompida a tradição da história oficial tradicional, oriunda do século XIX, e com uma acentuada vertente nacionalista e integracionista, que ocultava ou negava as contradições sociais na busca de uma imagem pacifista e legitimadora de formas de dominação seculares, vivemos, nas três últimas 17 décadas do século XX, um processo de renovação da pesquisa histórica extremamente rico, que propiciou o rompimento de verdades estabelecidas e iluminou aspectos desconhecidos de nosso passado. Essa renovação se comunicou ao ensino, expressando-se no movimento de reforma curricular que sacudiu e mobilizou professores dos diferentes estados e depois do país, nos últimos quinze anos. No contexto do processo de abertura política, após vinte anos de ditadura militar, as propostas para o ensino de História foram, inicialmente, muito marcadas por uma militância que, de uma fase inicial de ataque aos aspectos reprodutivistas da escola, passou a vê-la e ao seu ensino como os instrumentos da transformação social, senão da revolução. Com isso, o ensino assumiu uma perspectiva quase proselitista, em que a denúncia das situações de exploração ocupava grande espaço nas aulas, com o objetivo de “conscientizar o cidadão” através da superação de concepções de mundo ideologicamente configuradas, ideologia considerada na concepção marxista de falsa consciência. Muitas vezes esta postura gerou, por parte dos professores, atitudes voluntaristas e autoritárias voltadas para a afirmação de determinadas verdades e rejeição de saberes e práticas dos alunos, vistos como expressão de alienação. Sem perder a dimensão política e de formação da cidadania, fundamental para o ensino de História, e presente em qualquer ato educativo, cabe considerar as reflexões de Moniot quanto à relação complexa e profunda do ensino de História com a cultura, de forma ampla, e com a memória coletiva. Elas nos fazem perceber que a relação da educação realizada em espaços formais com aquela efetivada em espaços não formais, que acontece de forma difusa, independentemente da ação docente, é uma possibilidade de diálogo fértil e enriquecedor para professores e alunos. Acredito que estas considerações nos ajudam a melhor compreender tantas dificuldades vividas por alunos e professores, no dia-a-dia do seu trabalho. Ao mesmo tempo, abrem novas perspectivas para pensar, com mais humildade, alternativas para o nosso fazer, e para que estejamos mais abertos para 18 ouvir os alunos e seus saberes, para que juntos possamos avançar na superação do senso comum 10 . Se o trabalho for realizado com abertura para ouvir o outro e desenvolvendo a razão crítica, estaremos contribuindo para auxiliar nossos alunos a compreender a historicidade da vida social, com os seus riscos e suas possibilidades. Referências bibliográficas: ALLIEU, N. “De l'Histoire des chercheurs à l'Histoire scolaire”. In: DEVELAY, M. Savoirs scolaires et didactique des disciplines: une encyclopédie pour aujourd'hui. Paris: ESF Editeur, 1995. ANHORN, C. T. G. “O saber histórico escolar: entre o universal e o particular.” Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999. AUDIGIER, F., CREMIEUX, C., TUTIAUX-GUILLON, N. “La place des savoirs scientifiques dans les didactiques de l'histoire et de la geographie”. In: Revue Française de Pedagogie , nº 106, janvier-février-mars, 1994, p. 11-23. BOUTIER, J. e JULIA, D. (org .) Passados recompostos. Campos e canteiros da História. 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Currículo e política de identidade. v. 21, nº 1, Porto Alegre: UFRGS/Faculdade de Educação, 1996. p. 187-198. 19 FURET, F. “O nascimento da História”. In: FURET, F. A oficina da História. Lisboa: Gradiva, s.d. GUIMARÃES, M. L. S. “Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. In: Estudos Históricos 1- Caminhos da historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 1988, p. 5-27. GOODSON, I. “Tornando-se uma matéria acadêmica: padrões de explicação e evolução”. In: Teoria & Educação nº 2. Porto Alegre: Pannonica Editora, 1990, p. 230-54. _________. Currículo: teoria e história. 2. ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1998. LAUTIER, N. Enseigner l'Histoire au Lycée. Formation des enseignants. Professeurs des lycées. Paris:Armand Colin, 1997. LE GOFF, J. História e memória. Campinas, Editora da Unicamp, 1996. LOPES, A. R. C. “Conhecimento escolar: processos de seleção cultural e mediação didática”. 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Mestre em História pela UFF e Doutora em Educação pela PUC-Rio. 2 Este texto é uma adaptação de artigo publicado com o título “Ensino de História e História Cultural: diálogos possíveis” na obra: SOIHET,R. e outras. Culturas políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história . Rio de Janeiro: Mauad, 2005. 3 Não defendo aqui que todo ensino escolar é bem desenvolvido e imune a erros. A crítica, apoiada em autores que ignoram a especificidade da cultura e do saber escolar, tem, no entanto, dificultado avanços para sua melhor realização. 4 Por transposição didática, Chevallard denomina o processo que transforma um saber acadêmico em saber a ensinar e , este, em saber ensinado. Para analisar as diferenças entre os autores que operam com estes conceitos, ver Monteiro 2002 e Monteiro, 2003. 5 Uma crítica à teoria da transposição didática, conforme formulada por Chevallard com base no ensino da Matemática, é feita por Caillot (1996), que discute se esta teoria é ela mesma transponível para outros campos disciplinares que não a Matemática. Ele questiona fortemente o fato de Chevallard considerar o saber acadêmico, científico, como a única referência para o saber ensinado, apoiando-se na sociologia do currículo que tem mostrado a complexa rede de influências, interesses e saberes que entram em jogo na sua formulação. Para ele, a teoria da transposição didática tem uma validade limitada ao campo da Matemática (Caillot,1996, p. 22-3). 6 Audigier, 1988; Develay,1992; Tutiaux-Guillon (1993); Audigier, Crémieux, Tutiaux- Guillon (1994); Allieu (1995); Lautier (1997) são outros autores que, juntamente com Moniot (1993), têm procurado incorporar e reelaborar as contribuições da teoria da transposição didática ao campo da História. 7 Esta observação de Moniot vem ao encontro da perspectiva de Develay, no que diz respeito aos fluxos simultaneamente ascendentes e descendentes entre o saber escolar e o acadêmico. 8 Uma excelente análise desse processo é aquela feita por Guimarães, em artigo intitulado “Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos Históricos 1 - Caminhos da Historiografia . Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.5-27. 9 Na primeira metade da década de 1990, observamos a realização de um conjunto de pesquisas que buscavam identificar as concepções de História presentes no seu ensino. Discordo deste enfoque que supõe a identidade entre o saber acadêmico e o escolar e, por causa disso, identifica como problemas ou erros aspectos que são construções tipicamente escolares. Uma nova abordagem que reconhece a especificidade da cultura escolar pode ser encontrada em Anhorn, 1999 e Monteiro, 2002 . 10 Acredito que a maior clareza sobre características do conhecimento histórico e da história escolar permitem que os professores possam superar visões 21 excessivamente otimistas, e de certo modo ingênuas, sobre as potencialidades do ensino de História para a transformação social e que deixam transparecer resquícios do historicismo. 22 PROGRAMA 2PROGRAMA 2 MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA Carmen Teresa Gabriel 1 Um novo olhar sobre o passado e o futuro se elabora sob as pressões do presente vivido. A partir do presente, a visão do passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro. (Reis, 1994) Como em toda discussão sobre um determinado tema, existem diferentes “portas de entrada” para participar do debate em torno da relação que pode ser estabelecida entre Memória e ensino de História. Essas entradas dependem do lugar do qual falamos, dos nossos olhares, dos nossos interesses, das nossas escolhas políticas, das utopias pelas quais lutamos. É, pois, do lugar de professora de História, tendo que muitas vezes, na sala de aula, “agir na urgência e decidir na incerteza” (Perrenoud, 2001), apostando, ainda, na potencialidade desta disciplina para pensar a possibilidade de mudança e na viabilidade da construção de um projeto de sociedade menos dogmático e mais justo que me proponho a entrar neste debate Optei começar este texto enunciando a questão que serviu de eixo em torno do qual desenvolvi minhas argumentações. O que ensinamos nas aulas de História tem alguma relação com Memória? Aparentemente simples e mesmo óbvia, essa questão exige, portanto, algumas reflexões e posicionamentos prévios. Reflexão, em primeiro lugar, sobre a própria razão de ser deste tipo de questionamento isto é, sobre o próprio contexto histórico no qual essa questão é formulada, que permite explicar a centralidade, nas últimas duas décadas, da temática da memória e sua relação com a história, e, conseqüentemente, também com o seu ensino. Esse esforço de contextualização é importante, na medida em que nos leva a explicitar o que estamos chamando de memória e como percebemos sua articulação com essa área de conhecimento. Em seguida, trata-se de pensar sobre o papel desempenhado pela memória no processo de construção dos saberes históricos escolares e na relação que os sujeitos envolvidos – professores/as e alunos/as – estabelecem com esses saberes ensinados e aprendidos. As breves considerações que se seguem são apenas um ponto de partida para futuras reflexões mais aprofundadas, sem a menor 23 pretensão de serem exaustivas. A memória na berlinda Aceleração da história (...). Fala-se tanto de memória somente porque ela não existe mais.(Nora, 1993) É nos momentos de ruptura da continuidade histórica que as alterações mais se voltam para a memória e a duração. (Duvignaud. Apud D'Aléssio, 1992) Memória e História são formas de “visitar” o passado, que durante muito tempo, no âmbito da trajetória de construção desta disciplina – seja na sua versão acadêmica, seja na versão escolar e, em particular, no que se refere à História Nacional – tenderam a serem confundidas. Essa (con)fusão já estava presente no momento da própria emergência deste campo disciplinar no século XIX, na medida em que a sua constituição pode ser explicada e justificada pela necessidade de elaboração de uma memória nacional que pudesse garantir e legitimar a consolidação dos Estados nacionais modernos. Tratava-se de inventar naquele presente um passado comum, isto é, de fazer esquecer e de fazer lembrar as experiências passadas que interessavam à construção dos projetos de sociedade estruturados em torno de cada um dos Estados-Nação reconhecidos como tais, no cenário político daquela época. Com efeito, o período que vai do século XIX até as primeiras décadas do século XX correspondeu ao apogeu da História-memória , da História Nacional, na qual memória, nação e história eram percebidas através de uma relação de "circularidade complementar, uma simbiose em todos os níveis: científicos, pedagógico, teórico e prático" (Nora, 1993). Essa história-memória, a despeito das particularidades de cada contexto, desempenhou um papel central na constituição do nacional e, por conseguinte, da construção do sentimento de pertencimento a essa marca identitária. A história e o seu ensino se apresentavam, dessa forma, como guardiãs importantes da identidade nacional concebida até então como um elemento unificador e homogeneizador das diferenças regionais, políticas, sociais e culturais consideradas indispensáveis para a construção e manutenção dos Estados-Nacionais modernos. Até época relativamente recente não havia, pois, espaço para o questionamento ou problematização desta forma de significar esse tipo de relação. 24 Como entender, então, as citações acima? Em que momento e por que razão essas duas formas de se relacionar com o passado se distanciaram e tenderam a se opor de tal maneira que hoje alguns estudiosos chegam a afirmar não apenas o distanciamento mas o próprio desaparecimento de um desses pólos? Expressões como “apagamento da memória” ou “enfraquecimento da historicidade” (Jameson, 1997) são comuns nos dias de hoje, indicando uma mudança considerável na forma de conceber essa relação. Essas novas formas de percepção de passado, presente e futuro e da relação entre memória e história não podem ser naturalizadas. Ao contrário, elas foram sendo construídas historicamente. Estudos tendem a mostrar que momentos de simbiose, de autonomia e de (re)fusão aparecem como fases neste processo de construção permanente da relação entre história e memória e refletem uma faceta do equacionamento buscado nos diferentes presentes entre os campos de experiência (passado) e os horizontes de expectativa (futuro). O processo de distanciamento entre memória e história se fez de forma gradativa. A aceleração do ritmo das mudanças geradas a partir do advento da modernidade só fez acirrar este processo de distanciamento, fazendo-o chegar ao ponto convulsivo que marca esta passagem de século, onde o esgarçamento dos fios das tramas que se tecem entre passado e futuro situa-nos em um presente que se apresenta como um mero simulacro, no qual memórias e projetos, tradição e utopia perdem o sentido. Basta pensarmos na problemática da(s) identidade(s) tão em voga, igualmente, na atualidade, para melhor compreendermos as implicações no nosso cotidiano dessa perda de sentido. O ritmo desenfreado das transformações acarretou um intenso movimento de presentificação em detrimento tanto do passado como também do futuro. De um lado, estas mudanças incessantes e cada vez mais aceleradas passam a ameaçar a legitimidade da própria concepção monolítica, estática e essencialista de identidade tal como estava na base da concepção de identidade nacional nos moldes descritos acima. A concepção de identidade passa a ser vista como lealdades construídas em contextos específicos, sendo pois considerada necessariamente como relacional, dinâmica e processual. Essa mudança de concepção coloca em xeque diferentes marcas identitárias de graus variados de generalização, como, por exemplo, a que define o pertencimento da idéia de Nação moderna. De outro lado essa aceleração do processo de mudanças obscurece igualmente o horizonte 25 de espera. O fim da crença no progresso e na credibilidade das grandes narrativas, que caracteriza também este final de século, faz com que o presente não desempenhe mais o papel de mediador entre passado e futuro: a certeza trazida pela idéia de um futuro de sentido predeterminado é substituída pela incerteza e a insegurança frente à imprecisão e ao descrédito da possibilidade de qualquer forma de utopia. Todavia, e de forma aparentemente paradoxal, é esta insegurança que levaria também à necessidade de tudo reciclar em objeto memorial. Com efeito, essa mesma crise identítária que, apesar de vivida de forma diferenciada nos diversos países, configura a experiência coletiva nas sociedades industrializadas deste final de século e reafirma o apego aos traços, aos vestígios, à história e à memória, tornando-se responsável pela emergência de um verdadeiro “culto da memória” nas sociedades pós-industriais, tradutor de uma vontade de se contrapor a esta crise através da reafirmação da necessidade de um enraizamento, como bem analisa Rousso na citação abaixo: Esta vontade de conservar, de preservar de "colocar no museu" o passado, concomitantemente à valorização atual da memória, parece mais uma forma de resistência ao sentimento vivido da alteridade do tempo, uma resposta à incerteza atual do presente e do futuro do que a vontade de estabelecer um laço dinâmico entre passado, presente e futuro (Rousso, 1998). No campo político, esta preocupação pode ser identificada com a implementação, em diversos Estados industrializados, de uma política pública da memória que pode ser percebida, por exemplo, pela extensão da noção de "patrimônio" ou pelas novas direções assumidas pelas políticas públicas de comemoração (no sentido de "rememorar juntos"), visando reunir a comunidade nacional. Esta gestão pública do passado estaria, senão de forma exclusiva, fortemente guiada por esta vontade de superar o sentimento de desenraizamento, de perda, marca da nossa contemporaneidade. Ela emerge, pois, de uma interrogação atual cada vez mais angustiada sobre a identidade coletiva. Uma breve incursão na trajetória da construção da História Nacional nos oferece algumas chaves de leitura para a compreensão desse processo, no qual História-nação, memória nacional e identidade nacional passam a serem vistas, elas próprias, como objetos de investigação para o historiador. A história deixa de se confundir com a história da nação, a memória nacional passa a ser apenas uma modalidade de memória entre outras tantas memórias coletivas. 26 Por volta dos anos 30 do século passado, no campo da historiografia, em particular da historiografia francesa, a nação deixa de ser o quadro unitário que encerraria a consciência da coletividade, libertando-se dessa forma de sua identificação nacional. Memória, História e Nação assumem uma autonomia em relação ao períodoprecedente. O objeto de investigação privilegiado pelos historiadores deixa de ser o passado glorioso da nação e centra-se sobre a própria sociedade, abrindo espaço para a emergência de outras memórias particulares e coletivas. Este movimento de passagem da memória para a história obriga cada grupo a redefinir a sua identidade pela revitalização da sua própria história. É como se ocorresse uma verdadeira implosão da história nacional, da história-memória, dando origem a uma pluralidade de memórias particulares que reclamam a sua própria história. Em síntese, esta fase poderia ser resumida pela dilatação, democratização, descentralização e multiplicação da memória e se insere num contexto histórico específico marcado pelas crises do nosso presente. Todavia, se de um lado este momento é apresentado como um momento de agudização do processo de distanciamento de história e memória, de outro, é nele também que emerge, a partir dos anos 80, a possibilidade do novo, de uma nova síntese – os lugares de memória – cuja proposta é a (re) aproximação destes dois conceitos a partir de novas bases. O conceito de lugares de memória cumpriria justamente esta função mediadora entre o mundo dos mortos e o mundo do vivos. Eles nascem e vivem do sentimento de que não há mais memória espontânea, defendem algo ameaçado e pertencem a dois domínios: o da memória espontânea e o da memória alcançada pela história. Nesta perspectiva os lugares de memória são "restos", "rituais de uma sociedade sem rituais”, "sinais de reconhecimento e de pertencimento de um grupo numa sociedade que só tende a conhecer indivíduos", "um vai e vem entre memória e história" "um jogo de memória e história" (Nora, 1993) no qual esses usos sociais do passado são considerados diferentes, mas nem por isso dicotômicos. A memória como fonte e/ou objeto de pesquisa permanece um conceito central para o campo da História, exigindo tomadas de posição frente a essas diferentes concepções. A construção da história nacional e o seu ensino não podem deixar de enfrentar, hoje, as tensões entre memória e história. Sem confundi-las nem tampouco ignorá-las, surgem leituras plurais do passado nacional orientadas pelos interesses em disputa. A memória não é mais monopólio de um grupo e sim um campo de lutas política e cultural, onde lembrar e esquecer depende de quem 27 comemora e memoriza e dos interesses que estão em jogo no presente em que a relação com o passado é estabelecida. Saberes históricos escolares: entre o dever de memória e a reflexão crítica Se a disciplina “história” (matéria de ensino ou domínio de pesquisa) está particularmente exposta aos solavancos da história viva, é porque ela coloca em questão a identidade coletiva, e mais precisamente a identidade nacional (Colliot-Thélène, 1997). Em que medida essas mudanças na forma de apreensão da relação entre memória e história e suas implicações para pensar a questão das identidades podem influenciar o ensino de História? A citação acima deixa transparecer que essas influências são inevitáveis e diretamente relacionadas à função social dessa disciplina. Como já mencionado, tanto a História produzida por pesquisa acadêmica como a História ensinada nas escolas de educação básica são vistas como portadoras de uma missão formadora, pedagógica, muito forte e estreitamente relacionada com a construção de identidades individual, social e cultural dos cidadãos. Atualmente, entre os objetivos mais apontados para o estudo desta disciplina se encontram os de reconstruir memórias coletivas, sejam elas nacionais ou de um grupo social e cultural mais restrito, de formar cidadãos críticos, e de explicar ou dar um sentido ao presente em que se vive. Essa função político-cultural da disciplina de História é fundamental para entender a especificidade do saber histórico, em termos da sua capacidade de absorção das diferentes tensões como, por exemplo: afirmação de verdades versus construção de sentidos, explicação versus compreensão, objetividade versus subjetividade, universalismos versus relativismos; ciência versus consciência etc. Como professores de História, enfrentamos no cotidiano das nossas aulas as implicações decorrentes dessas tensões inerentes à natureza do conhecimento histórico e que estão diretamente vinculadas à forma privilegiada de equacionarmos memória e projeto, passado e futuro no processo de reelaboração didática. Esse processo diz respeito tanto à seleção dos conteúdos históricos a serem ensinados, das tramas a serem narradas, quanto à escolha dos sujeitos envolvidos, enfim, das 28 memórias coletivas que servem de fonte para a história contada, interpretada, ensinada nas salas de aula desta disciplina. Nesse sentido, o que ensinamos hoje nas nossas aulas está fortemente imbricado com a questão das memórias coletivas, incluindo a memória nacional, sem, no entanto, se confundir com elas. Que estratégias discursivas o ensino dessa disciplina mobiliza, contribuindo para que nos tornemos brasileiros? Que campos de experiência e que horizontes de expectativa interagem na narrativa histórica nacional da atualidade, possibilitando entrever o significado de "estar sendo" brasileiro nas diferentes práticas discursivas dos alunos e professores? Como articular – no ensino da História do Brasil, por exemplo – a necessidade tanto de garantir a transmissão de uma memória nacional legitimada como a de desenvolver a reflexão crítica sobre essa mesma memória, condição imprescindível para fazer emergir novas identidades e possibilidades de representação de brasilidade? Ou, dito de outro modo: Como articular o ensino de uma forma de pensar historicamente e de uma memória já acumulada e consagrada pelas gerações precedentes? Como reelaborar didaticamente capacidade crítica e necessidade de memória? O que está em jogo, aqui, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de História do Brasil ensinável, mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e político. Apesar de o Estado Nacional não poder ser mais considerado como o principal e único fator dos destinos dos povos e de ser necessário reconhecer o enfraquecimento dos laços de lealdade a uma cultura nacional – vista como homogênea e estável –, a “possibilidade de um ensino de História totalmente liberado do esquema nacional” (Colliot-Thélène, 1997) parece-me dificilmente concebível e muito menos desejável. Diferentes presentes históricos constroem diferentes narrativas de História nacional e do povo brasileiro. Em cada uma delas, diferentes passados são lembrados e ou esquecidos e diferentes futuros são sonhados. Caberá a cada professor de História selecionar os conteúdos a serem ensinados, ingredientes de uma intriga possível – acontecimentos, sujeitos, concepção de tempo, conceitos, etc. – de forma a permitir a emergência de uma diversidade de narrativas da brasilidade, contribuindo para a construção de um Brasil mais plural e inclusivo. O desafio é pois, saber como usar essas armas da narratividade histórica a favor da inclusão das diferenças (de posições, de 29 perspectivas, de identidades) na interpretação histórica. O desafio está posto, o enfrentamento apenas começando. Referências Bibliográficas: COLLIOT-THÉLÉNE, C. Identité nationale et enseignement de l'histoire. In: Revue Internationale d'éducation. Sèvres: n.13, mar.1997. D'ALÉSSIO, M. M. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: MarcoZero, vol.13, n.25/26, set.92/ago.93. 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Em reuniões de professores, em escolas, em universidades e em outros espaços sociais – mídia, jornais, rodas de amigos etc. – são pensados e repensados caminhos para a educação brasileira. Paralelamente, impõe-se a importância de se educar para a cidadania. Mas de que tipo de cidadania estamos falando? E que tipo de educação desejamos para se chegar a essa cidadania? Qual o papel da escola, da universidade, dos professores e dos espaços educativos não-formais nessa educação para a cidadania? A função primordial da educação é formar cidadãos capazes de gerir sua própria História, função contrária aos interesses neoliberais. Sendo assim, acreditamos que a educação deva formar cidadãos autônomos, capazes de atuar como leitores, consumidores e agentes críticos no mundo. Este texto pretende refletir sobre a produção de conhecimento nos espaços educativos não-formais, especialmente nos museus. Pretendemos enfatizar a importância de se estreitar laços entre as práticas escolares e os lugares de preservação da memória. Breve histórico sobre os museus “Os museus podem ser considerados reflexos de concepções de ciência vigentes em determinados momentos históricos.” Marandino, Museu e escola: parceiros na Educação científica do cidadão. In: CANDAU (org.). Reinventar a escola, 2000, p. 190. 31 Os estudiosos dos museus afirmam que estes possuem um caráter educacional vinculado à sua própria origem, logo desde o início se configuravam como espaços de pesquisa e ensino. Nos séculos XV e XVI, os Gabinetes de Curiosidades, por exemplo, não tinham preocupação científica ao expor os fragmentos da natureza. Apresentavam um conhecimento enciclopédico. Somente ao final do século XVIII o enciclopedismo acaba gerando uma preocupação educativa do museu. A partir do século XIX, os Gabinetes foram substituídos pelos museus científicos. Estes refletiam a necessidade de ordenação do mundo natural e de organização das coleções. O processo de mudança da relação do público com o museu foi bem devagar e até 1914 os museus não foram espaços democráticos ou em processo de democratização. Somente no século XX se proliferaram museus que queriam divulgar as coleções com base em propósitos mais populares, aumentando, assim, a popularização do saber dos museus, especialmente na França. Cabe lembrar que isto não atinge, de forma uniforme, todos os tipos de museu, sem dúvida os museus de ciência e tecnologia tiveram um papel preponderante no estreitamento das relações museu-escola. Nas últimas décadas, um dos alicerces da nova museologia é a questão educacional. Os anos 80 serão marcantes na história dos museus de ciência do Brasil, devido à preocupação e busca por uma função educativa. Por exemplo, poderíamos citar nesta linha o Museu do Instituto Butantã, em São Paulo, dentre outros. Também nos anos 80 proliferaram os chamados “museus vivos ou interativos”. Atualmente, eles sofrem críticas no Brasil e no mundo inteiro. Com certeza, os museus e Centros de Ciência ainda têm muito a ensinar aos museus de História. Porém, sabemos que, ao longo dos séculos e de forma lenta, os museus, de uma forma geral, foram alcançando um maior público e se democratizando no acesso. 32 Memória, museu e escola “Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza. Ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega, ela era vidência e êxtase .” (Bosi, Memória e sociedade, 1979, p. 89) Como nos afirma no trecho acima Ecléa Bosi, a função da memória hoje é o conhecimento do passado. Porém, conceituar memória é crucial, complexo e nos levaria a um trabalho sem fim. É importante, então, minimamente, entendermos que um dos meios de se chegar aos problemas do tempo e da história é através do estudo da memória social E são os espaços ditos de memória, onde se pretende preservar o passado para auxiliar a entender e participar do presente, que nós iremos abordar neste texto. Como já afirmamos na nossa proposta pedagógica, na perspectiva dos Estudos Culturais, segundo Tomaz Tadeu da Silva (1999), a cultura é pedagógica e a pedagogia é cultural. “Tal como a educação, as outras instâncias culturais também são pedagógicas, também têm uma ‘pedagogia', também ensinam alguma coisa. Tanto a educação quanto a cultura em geral estão envolvidas em processos de transformação da identidade e da subjetividade.” (SILVA, 1999, p.139) A escola é o espaço formal da construção/transmissão do conhecimento, existindo pois, outros espaços de saber que também educam – espaços não-formais de educação – que são os museus, arquivos, programas de televisão e/ou rádio (educativos ou apenas de lazer), filmes, peças de teatro, músicas, espaços de exposições etc. Todos esses lugares – como os museus, arquivos etc. – possuem cultura própria, ou seja, apresentam determinadas especificidades. O museu é um espaço social particularmente diferente da escola. Segundo Marandino (2000), são espaços marginais de educação, daí esta autora nos afirmar a necessidade de se construir uma pedagogia museográfica, ou seja, uma pedagogia dos museus. Estes são espaços fundamentais de educação não-formal. Cada vez mais aumentam as pesquisas que procuram entender os museus como espaços educativos. Atualmente, o público é o elemento central para a elaboração das exposições e programas culturais e educacionais oferecidos nos museus. 33 Nesses espaços educativos não-formais, percebemos que os temas são oferecidos aos alunos de forma interdisciplinar, podendo ampliar o universo cultural dos visitantes. Nos últimos anos, alguns pesquisadores estão se dedicando ao estudo das possibilidades e caminhos educacionais nos museus de ciência. Tais estudos estão se estendendo aos museus de história, antropologia e ciências afins. Em todos eles percebemos a necessidade de se construir e/ou aprimorar uma pedagogia museográfica pautada e adaptada em conceitos de transposição didática ou de recontextualização. Segundo Marandino, alguns autores têm procurado diferenciar escolas e museus frisando as particularidades de cada um desses espaços educativos. Essa autora apresenta um quadro-síntese (2000, p. 202) baseado em algumas diferenças propostas por Allard et alii (1996). Fizemos uma nova diagramação para apresentar tal quadro. Para entendê-lo, relacione-o quanto ao: - objeto: na escola, deve instruir e educar; já nos museus deve recolher, conservar, expor e estudar; - cliente: na escola ele é cativo e estável, por outro lado, no museu é livre e passageiro; - atividade: fundada no livro e na palavra na escola; já no museu, fundada no objeto;- programa: na escola é imposto, pode fazer diferentes interpretações da lei, mas deve ser fiel a ela; no museu, as exposições são próprias ou itinerantes e suas atividades pedagógicas dependem de sua coleção; - tempo: na escola, de um ano; no museu de 1 a 2 horas. Urge que cada vez mais a escola use esses espaços educativos alternativos, através das visitas pedagógicas e das ações de parcerias. É preciso que inovemos em nossas aulas, que utilizemos outros espaços além daqueles da escola. A aula reprodutiva reduz o aluno, não permite a formação de sua autonomia, já que apresenta modelos 34 prontos, repetitivos e descolados de sua vivência real. Aprender é construir e reconstruir o conhecimento, elaborando e exercendo a autonomia de sujeito histórico. Crianças e jovens devem ser partícipes ativos de sua sociedade, gerando a transformação social e política da mesma. Logo, precisamos reinventar a escola comprometida com uma cidadania participativa e democrática, ampliando e vencendo os seus próprios “muros”. Como já vimos, a escola e o museu têm diferentes propostas e são diferentes espaços educacionais. A escola é o espaço privilegiado de aquisição do saber hegemônico. É o lugar central como espaço de educação. Já no espaço do museu se produz um saber próprio, o saber museal. Logo, a relação dos sujeitos com a produção e aquisição do saber no museu também é diferente. Daí, a necessidade de serem criados modelos pedagógicos próprios. Ainda segundo Marandino, no Brasil, existem diversos programas educacionais proporcionados pelos museus de ciência, em parceria com as escolas, e poderíamos agrupá-los em: • Programas de atendimentos a visitas escolares, por exemplo: no Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/CNPq (Rio de Janeiro), no Museu da Vida da FIOCRUZ (Rio de Janeiro) e na Estação Ciência da USP (São Paulo); • Programas de Formação de Professores: no Espaço Ciência de Olinda (Pernambuco), no Museu de Ciência e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, dentre outros; • Programas de Produção de Material para Empréstimo: nos Museus de Zoologia, de Anatomia Veterinária e de Oceanografia da USP etc. Antes de finalizar, não podemos deixar de abordar rapidamente – já que teremos um outro texto que tratará especificamente desse tema – a formação de professores. Faz-se necessário desvelar o horizonte universitário e pedagógico para a utilização dos espaços educativos alternativos. Assim sendo, entendemos ser necessário uma atenção especial à formação inicial dos professores. 35 Deve-se aproveitar o preconizado pelas novas Diretrizes Curriculares para Formação de Professores, particularmente a ampliação da carga horária das práticas de ensino e estágio, para estabelecer a diversificação dos campos de estágio curricular, incluindo os campos educativos não- formais. Conclusão Segundo Marandino (2000), não se trata de opor o museu à escola, mas de definir as especificidades relacionadas ao lugar, ao tempo e aos objetos no espaço do museu, o que é essencial e que deve ser incluído na formação de educadores numa didática de museu. Nesse sentido, penso que poderíamos, com as suas devidas proporções e particularidades, ampliar esse entendimento não só para os museus, como para outros espaços educativos não-formais em geral, como o de exposições, arquivos públicos, centros culturais etc. Quando os professores procuram os museus querem e desejam encontrar um lugar alternativo à aprendizagem, além de se depararem com temas apresentados de forma interdisciplinar. Isto é fundamental para que possamos pensar que precisamos ampliar a parceria dos museus com as universidades, secretarias municipais e estaduais para a realização de cursos de formação de professores em todos os níveis. Além disso, é muito importante a implantação de pesquisas nos museus e investigações sobre a relação museus/espaços culturais e escola. Esses estudos darão subsídios maiores aos programas educativos e culturais desenvolvidos nessas instituições para que se estabeleça uma parceria museu/escola. Para que isto aconteça, há que se admitir e estudar previamente a existência de uma cultura escolar e de uma cultura museal. Marandino afirma que se encontra em construção uma pedagogia museal, que respeite as particularidades do museu e também, considere as reflexões teóricas e práticas que se acumulam há muitos anos na escola. Com certeza, os museus de ciência e Centros de Ciência, que estão com esse tipo de trabalho bem mais encaminhado, terão muito a ensinar aos museus de História no plano da dimensão educacional. 36 BIBLIOGRAFIA: ALLARD, M. et alii. La Visite au Musé. In: Réseau. Canadá, déc. 1995/jan. 1996. BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiróz, 1979. CANDAU, Vera Maria. Pluralismo cultural, cotidiano escolar e formação de professores. In: CANDAU, Vera Maria (org.). Magistério: construção cotidiana. 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Consultora dessa série. 37 PROGRAMA 4PROGRAMA 4 ESPAÇOS PÚBLICOS DE MEMÓRIA Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e afro-brasileira Mônica Lima 1 “À volta da fogueira, os mais velhos disseram vão então caçar nuvens que já fogem de nossos olhos. Nós pedimos um guia armas, munições e farnel para a longa jornada. Mas eles sorriram terão de levar apenas estes sons de tambores na memória.” (Caçadores de Nuvens , do poeta angolano João Melo) A aprovação da Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História da África e da História dos africanos nas escolas de todo o país, além de atender a uma antiga e justa reivindicação, trouxe uma série de conseqüências para o ensino desta área/disciplina em sua totalidade e para a formação dos profissionais que atuam no magistério, em especial aqueles desta área específica – a História. As mudanças ocasionadas pela citada Lei ainda estão em processo. E não influenciarão apenas os educadores. Elas podem trazer resultados para o amplo grupo que pretendem atingir. Crianças e adolescentes, jovens e adultos entrarão em contato com o tema. O alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo. E elas poderão ser aceleradas ou adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade de setores interessados intervirem no processo. O impacto da medida merecerá certamente estudos aprofundados, preferencialmente tendo como base dados vindos de diferentes partes do país, com suas diversas experiências. O ensino-aprendizagem destes conteúdosabre muitas perspectivas para o trabalho com espaços educativos não-formais. Museus, centros culturais, sítios históricos (tombados ou não) são lugares de memória e objetos de estudo e de sensibilização para a aprendizagem por excelência. Os exemplos são os mais diversos, se pensarmos em termos de Brasil: igrejas, casas de cultura, terreiros, espaços públicos de reunião e festejos também são locais para se aprender e ensinar a 38 história afro-brasileira. E, se pensarmos no nosso patrimônio imaterial, este universo se amplia ainda mais: histórias, contos populares, contos infantis de matriz africana e/ou afro-brasileira, cantigas, canções de festas religiosas populares (assim como a Congada, por exemplo) podem tornar-se um mote e o próprio objeto de estudo, trazendo viva a africanidade da cultura brasileira. Além destes de caráter mais geral, estão presentes, em diversas de nossas comunidades, os mais velhos que podem relembrar e trazer para nossos alunos muito deste patrimônio em momentos de congraçamento e aprendizagem. Só para lembrar: não importa nossa origem familiar: todos nós, brasileiros, carregamos ‘áfricas' dentro de nós. Essas ‘áfricas' (no plural, pois são múltiplas) são e foram permanentemente reinventadas aqui no Brasil, mas revelam sua profunda origem a cada momento: no vocabulário (moleque, quitanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras – vale uma pesquisa!), nos costumes, na expressão de fé, na comida. Todos estes aspectos convergem para a abertura de muitas possibilidades de trabalhar com o ensino de História em espaços não-formais e em situações não-formais. Estes lugares e momentos certamente enriquecerão nossos estudos e a aprendizagem que com eles se viabiliza. Estaremos lidando com uma matéria-prima fascinante e delicada: os diversos matizes da nossa formação cultural, a memória dos nossos ancestrais e, especialmente, suas heranças, tão longamente invisibilizadas. Todo o cuidado será sempre pouco para não resvalarmos pelas trilhas aparentemente fáceis do maniqueísmo, da simplificação e da folclorização. Vamos pensar, então, na prevenção destes perigosos males que podem enfraquecer nossa percepção e nos distanciar dos nossos objetivos. Alguns destes cuidados podem parecer óbvios, mas muitas vezes o aparentemente óbvio merece ser re-visto e re-visitado , para refletirmos sobre ele. Vamos lá... • Os africanos e seus descendentes nascidos da diáspora no Novo Mundo (as Américas, incluindo o Brasil) eram seres humanos, dotados de personalidade, desejos, ímpetos, valores. Eram também 39 seres contraditórios, dentro da sua humanidade. Tinham seus interesses, seu olhar sobre si mesmos e sobre os outros. Tinham suas experiências de vida – vinham muitas vezes de sociedades não- igualitárias nem equânimes na África ou nasciam aqui em plena escravidão. Não há como uniformizar atitudes, condutas e posturas e idealizarmos um negro sempre ao lado da justiça e da solidariedade. O que podemos e devemos ressaltar são os exemplos destes valores de humanidade, presentes em muitos, e injustamente negados e tornados invisíveis pela sociedade dominante, durante tanto tempo. Mas sugerimos, veementemente, evitar dividir o mundo em ‘brancos maus' e ‘negros bons', o que não ajuda a percebermos o caráter complexo dos grupos humanos. A idéia é valorizar o positivo, mas sem idealizar. • O nosso desconhecimento sobre a história e a cultura dos africanos e dos seus descendentes no Brasil e nas Américas pode fazer muitas vezes com que optemos por utilizar esquemas simplificados de explicação para um fenômeno tão multifacetado quanto a construção do racismo entre nós. O racismo é um fenômeno que influiu e influi nas mentalidades, num modo de agir e de ver o mundo. E as diferentes sociedades interagiram com ele de diversas maneiras – o Brasil não tem a mesma história de relações raciais que os Estados Unidos, para usar um exemplo clássico. No entanto, durante muito tempo se defendeu a idéia de que aqui não havia discriminação e, ainda, que o que separava as pessoas era ‘apenas' sua condição social. Hoje, não só vemos pelos dados da demografia da pobreza brasileira que ela tem uma inequívoca marca de cor, como sabemos que um olhar mais atento à História e à vida dos afro-descendentes no país revela a nossa convivência permanente com o preconceito e seus efeitos perversos. Mas, para podermos enxergar isso, tivemos que ouvir relatos, ver dados e entender como foi esta História. Só assim pudemos desnaturalizar as desigualdades e ver a face hostil do nosso ‘racismo envergonhado'. O que isto quer dizer? Que devemos nos dedicar ao tema: estudar, ler, nos informar, sempre e mais. Afinal, o que está em jogo é bem mais que a nossa competência profissional, é o nosso compromisso com um país mais justo e com um mundo melhor para todos e todas. Nós nos acostumamos a ver as manifestações culturais de origem africana confinadas ao reduto do chamado ‘folclore'. Este conceito de folclore, que remete às tradições e práticas culturais populares, não tem em si nenhum aspecto que o desqualifique, mas o olhar que foi estabelecido sobre o que chamamos de ‘manifestações folclóricas', sim. E, sobretudo no mundo contemporâneo, em que a modernidade está repleta de significados positivos, o folclore e o popular se identificam não poucas 40 vezes com o atraso – algo curioso, exótico, porém de menos valor. Logo, se não problematizarmos a inserção da cultura africana neste registro, correremos o risco de não criar a identidade nem estimular o orgulho de a ela pertencermos. Podemos desmistificar a idéia de folclore presente no senso comum e, também, mostrar o quão complexa e sofisticada é a nossa cultura negra brasileira. Envolve saberes, técnicas e toda uma elaboração mental para ser construída e se expressar. E, assim como nós, está em permanente mudança e não é nada óbvia. Além destes três cuidados básicos de caráter geral, há outros dados sobre os quais devemos refletir e estar sempre atentos: • A África é um amplo continente, em que vivem e viveram desde os princípios da humanidade (afinal, segundo pesquisas, foi na região onde atualmente se localiza o Continente Africano que a humanidade surgiu), grupos humanos diferentes, com línguas, costumes, tradições, crenças e maneiras de ser próprias, construídas ao longo de sua História. Referir-se a “o africano” ou “a africana”, como uma idéia no singular é um equívoco. Podemos até utilizar estes termos quando tratarmos de processos históricos vividos por diversos nativos da África, mas sempre sabendo que não se trata de um todo homogêneo e sim de uma idéia genérica que inclui alguns indivíduos, em situações muito específicas. Por exemplo: podemos dizer “o tráfico de escravos africanos” – ou seja, estamos nos referindo à atividade econômica cujas mercadorias eram indivíduos nativos da África, conhecido nos seus anos de declínio como “o infame comércio”. Nestes tipos de caso, vale dizer, de um modo geral, ‘africanos' ou ‘negros africanos'. Mas, devemos evitar atribuir a estas pessoas qualidades comuns, como se fossem tipos característicos. • Um dos preconceitos mais comuns, quanto aos africanos e afro-descendentes, é com relação às suas práticas religiosas e um suposto caráter maligno contido nestas. Este tipo de afirmação não resiste ao confronto com nenhum dado mais consistente de pesquisa sobre as religiões africanas e sobre a maioria das religiões afro-brasileiras. Por exemplo: não há a figura do diabo nas religiões da África tradicional nem de nenhum ser ou entidade que personifiquetodo o Mal. As divindades africanas e suas derivadas no Brasil, em geral, se encolerizam se não forem cultuadas e consideradas, e podem vingar-se; mas jamais agem para o mal de forma independente dos agentes humanos que a elas demandam. O grande adversário das “forças do Bem” não existe, não há este poder em nenhum ente do sagrado africano, a não ser naquelas religiões influenciadas pelo 41 monoteísmo cristão, ou pelo monoteísmo islâmico. Não é certo considerar Elegbará, Elegbá, Exu, como um demônio ou seu representante. Exu é o mensageiro, o embaixador dos pedidos humanos aos orixás, e exige seu pagamento pelo serviço e se aborrece se não for atendido. Mas não tem nenhuma maldade congênita, como nenhuma outra divindade do panteão africano. Como vimos, toda a atenção é necessária e o exercício permanente que fazemos de ouvir pessoas e valorizar saberes não nos deve eximir de estarmos atentos às armadilhas do senso comum. E no mais, deixemo-nos encantar pela história africana e afro-brasileira, porque, como bem sabemos, a aprendizagem se dá pela rota da sensibilidade, e nada melhor que a via do afeto para (re)ver preconceitos. Esta é a perspectiva amorosa de trabalho que valorizamos: que inclui respeito à diferença, que convoca e se propõe à participação, e que atua cooperativa e solidariamente. BIBLIOGRAFIA: BÂ, Amadou Hampate. Amkouell, o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003. BELUCCI, Beluce. Introdução à História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: CEAA - UCAM/CCBB, 2003. CANEN, Ana. “Relações raciais e currículo. Reflexões a partir do multiculturalismo”. In: Cadernos Pedagógicos PENESB, n. 3, Niterói: Editora da UFF, 2001. p.65-77. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005. LIMA, Mônica. “A África na sala de aula”. 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THORNTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2004. Nota: 1 Professora de História do CAP- UFRJ, de História da África nos cursos de Pós- Graduação do Programa de Estudos sobre o Negro na Sociedade Brasileira da Universidade Federal Fluminense (PENESB/UFF) e do Centro de Estudos Afro- Asiáticos da Universidade Cândido Mendes(UCAM/RJ). Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense(UFF). 43 PROGRAMA 5PROGRAMA 5 ESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO-FORMAIS E FORMAÇÃO DEESPAÇOS EDUCATIVOS NÃO-FORMAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORESPROFESSORES Para além do formar professores, dialogar com as experiências vividasPara além do formar professores, dialogar com as experiências vividas Elison Antonio Paim 1 Acabaram almejando fazer do homem um produto objetivo, negando-lhe a historicidade e a capacidade de produção autônoma. (Manoel S. Matos). Pretendo aqui problematizar, através de historicização, como a racionalidade técnica instrumental “formou” e continua “formando” professores e professoras idealizados para um dado modelo pautado na hierarquização e na reprodução de conteúdos prontos, deslocados das experiências vividas por eles e seus alunos. Num segundo momento, pautado em minha experiência como professor da Prática de Ensino de História e formação continuada de professores, aponto algumas considerações procurando ir além da perspectiva de “formação” pensando que há um fazer-se, um construir-se dos professores e professoras de forma relacional com outros sujeitos. Parto do pressuposto de que, nós acadêmicos, precisamos deixar de olhar para ou sobre o professor e sim dialogarmos dentro das diferenças e especificidades de nossos saberes. Com o avanço da modernidade capitalista, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, a ciência e a técnica passaram a agir em conjunto, tentando controlar, racionalizar, medir, comprovar, avaliar as ações humanas. Acabaram almejando fazer do homem um produto objetivo, negando-lhe a historicidade e a capacidade de produção autônoma, gerando a racionalidade técnica instrumental. A técnica associou-se ao fazer e a ciência ao como fazer . A técnica não se resume à invenção e ao uso de instrumentos; caracteriza-se por uma intencionalidade, ou seja, há uma predeterminação na elaboração e usos da técnica, justificável a partir da necessidade de aperfeiçoamento das ações humanas. As artes de fazer, as técnicas, estão divididas em diferentes aspectos e princípios. Por um lado, estão voltadas para aqueles que explicam tudo pela técnica, as chamadas ciências exatas e, por outro, para aqueles que relativizam determinados aspectos, ou percebem que nem tudo é possível de ser 44 explicado tecnicamente, que são as ciências humanas. Num tempo em que já não era possível manter-se assentada na idéia de um destino natural, de uma leitura “providencialista da realidade”, a educação, como ciência, foi se tornando cada vez mais dependente das condições sociais, culturais, políticas e econômicas vigentes. Dessa forma, ocorreu uma nítida divisão entre os produtores e os consumidores do conhecimento produzido. Em muitos casos, ocorreu a mecanização do pensamento, a tentativa de negação do mundo das experiências vividas. O conhecimento em geral e, especialmente, o conhecimento do professor foi sendo reduzido à técnica. Houve grande preocupação com a objetividade do conhecimento produzido e, assim, foi separado do significado humano, deixando de ser analisado, questionado e negociado para se tornar administrado e dominado. A racionalidade técnica instrumental impôs uma relação de subordinação dos níveis mais aplicados e próximos da práticaaos níveis mais abstratos de produção do conhecimento, ao mesmo tempo em que se acentuam as condições para o isolamento dos profissionais. Esse modelo foi ressignificado no sistema educacional, no qual a separação ocorre entre os técnicos, administradores, pesquisadores e os professores. A racionalidade técnica instrumental promoveu uma “autêntica divisão do trabalho” (GÓMEZ, 1998), assentada numa espécie de naturalização de uma organização do trabalho docente tal como o modelo taylorista da organização do trabalho industrial (CORREIA, 1999). Ocorreu a subtração dos saberes dos atores e, portanto, dos poderes decorrentes do uso desses saberes, os professores não passaram a ser “bonecos de ventríloquo” (TARDIF, 2002), aprofundando o fosso que separa os “actores dos decisores” (NÓVOA, 1992). Os professores, ao ficarem submetidos às estruturas de racionalização de seu trabalho, tendem a tornarem-se cada vez mais dependentes do conhecimento especializado, as técnicas de ensino. A mesma hierarquização do conhecimento fez-se presente entre os professores. O professor universitário foi concebido como pesquisador construtor do conhecimento. Quanto ao professor da escola fundamental e média, definiu-se que sua função é ensinar o conhecimento produzido na universidade. Dessa forma, os professores da escola desempenham um papel de consumidores, não de criadores. 45 Visando atender aos ditames da hierarquia, da cientificidade e da racionalidade técnica instrumental, os cursos de formação de professores foram sendo organizados para formar um professor ideal, ou “bom” professor, dentro de um modelo pré-concebido com o desenvolvimento de determinadas competências para o exercício técnico-profissional. Esse tipo de formação pragmática, simplificadora e prescritiva acaba sendo de abrangência restrita, pois prepara o prático, o tecnólogo, isto é, aquele que faz, mas não conhece os fundamentos do fazer. Então, são definidas normas, regras, formas de fazer, que serão transmitidas ao futuro professor. A este futuro professor vai sendo ensinado “o que deve fazer, o que deve pensar, o que deve evitar para adequar a situação educativa ao modelo proposto” (ESTEVE, 1991, p.118). Para atingir o perfil ideal de professor , inicialmente, deverá ocorrer a construção de um cabedal de conteúdos capaz de “dotá-los de recursos oriundos de um componente científico-cultural, para assegurar o conhecimento do conteúdo a ensinar e um componente psicopedagógico, para aprender a atuar eficazmente na sala de aula” (MONTEIRO, 2002, p. 11). Além do componente científico- cultural, a formação inicial nestes moldes deverá dotar os futuros professores de um saber-fazer prático que conduza ao desenvolvimento de esquemas de ação que, adquiridos de forma racional e fundamentada, permitam aos professores desenvolverem-se e agirem em situações complexas de ensino. Portanto, a formação da racionalidade técnica está assentada no entendimento de que a escola é um campo de aplicação. A formação, utilizada para igualar as práticas e comportamentos para desvincular os aspectos profissionais dos políticos, em que o professor-profissional da educação foi sendo transformado em um ser apolítico – sem envolvimento, sem participação, sem poder de decisão e ainda sem instrumental científico – apresentou-se de maneira peculiar na formação dos professores de Estudos Sociais no Brasil, durante as décadas de 1970 e 1980. Nesse período, o professor foi submetido a um treinamento generalizante e superficial, o que conduziria fatalmente a uma deformação e a um esvaziamento de seu instrumental científico, de modo que não havia necessidade em fornecer-lhe elementos que permitissem analisar e compreender a realidade que o cercava. Ele também não precisava refletir e pensar, deveria apenas aprender a transmitir (FENELON, 1994). O importante para ser um bom professor era dominar o como fazer e não o que fazer, ou para que fazer. As atividades do professor acabavam tornando-se instrumentais, de treinamento, baseadas na 46 aquisição de competências e habilidades, voltadas para a aplicação de teorias e técnicas. Desde então os professores vinham sendo formados como “um especialista que rigorosamente põe em prática as regras científicas e/ou pedagógicas” (PEREIRA, 2002), ou ainda, como “tecnólogo do ensino” (VEIGA, 2002). Formados para “serem ensinantes, para transmitir conteúdos, programas, áreas e disciplinas de ensino” (ARROYO, 2000). Portanto, o perfil de professor desejado para essa concepção era aquele que deveria dominar o saber disciplinar (BOLÍVAR, 2002). Ao realizar a adoção extremada dos princípios da racionalidade, o sistema educacional foi possibilitando brechas para que os próprios professores, ao resistirem a determinadas imposições, desenvolvessem mecanismos que minaram as estruturas do modelo, realizando, assim, atividades educativas em que alunos e professores tornam-se produtores de conhecimento. O que impede a racionalidade técnica de se concretizar plenamente é que as situações de ensino, por um lado, são incertas, únicas, variáveis, complexas e portadoras de conflitos de valores na definição das metas e na seleção dos meios; por outro lado, não existe uma teoria científica única e objetiva, que permita uma identificação unívoca de meios, regras e técnicas a utilizar na prática, uma vez identificado o problema e clarificadas as metas. A perspectiva da racionalidade técnica é simplista ao conceber o professor apenas como um canal de transmissão de saberes produzidos por outros. Isto porque , (...) nega a subjetividade e saberes dos professores e dos alunos como agentes no processo educativo, e parece desconhecer a crise de paradigmas no campo do conhecimento científico nas últimas décadas. A provisoriedade, o questionamento das verdades, o pluralismo metodológico, os critérios de validação do conhecimento científico revelam que no mínimo é preciso perguntar que conhecimento estamos ensinando e queremos ensinar (MONTEIRO, 2002, p. 13). Embora pareça distante e irreal nos dias de hoje, essa perspectiva de formação de professores não está morta; pelo contrário, ressurge com muita força através de iniciativas governamentais, como os PCN, Diretrizes Curriculares e Propostas Curriculares, que têm sido implantados em vários países, inclusive no Brasil. Essas “mudanças” vêm numa perspectiva de reforçar a separação entre os que pensam e os que fazem, em que o professor idealizado é o que possui competências e habilidades. Todas essas propostas vêm com algumas categorias comuns, tais como habilidades, competências, 47 autonomia da escola e do professor, voltar-se para as realidades locais. Dessa forma, ao pensar a educação como uma questão de eficácia, cabem determinadas funções ao professor, como numa linha de produção industrial, da qual deverá sair um bom produto, isto é, um aluno com determinados perfis. Para se atingir este determinado produto, o professor precisa possuir certas competências, ao invés de saberes profissionais, ocorrendo, assim, o deslocamento do olhar do trabalhador para o local de trabalho, ficando este vulnerável à avaliação e controle de suas competências. Se estas não se ajustam ao esperado, facilmente poderá ser descartado. Para a avaliação ou conferência do produto – alunos – foram criadas formas de controle de qualidade, como as provas do ENEM para o ensino médio e o ENADE para os cursos de graduação. Evidentemente, concordando-se com tudo que afirmam os autores sobre a perspectiva da racionalidade técnica, estar-se-iapensando em robôs e não em pessoas. Seria negada toda a capacidade humana que os professores têm de se colocarem em conflito e, até mesmo, em oposição à sua condição de técnicos repassadores de conteúdos. Assim, a própria racionalidade é criadora de possibilidades diferentes de formação de professores. No diálogo direto com o filósofo Walter Benjamin e o historiador Eduard Thompson, proponho pensarmos o “Fazer-se Professor ou Professora”. Tal tese se apresenta na perspectiva de se pensar a partir das ruínas articuladas intimamente às possibilidades de superação, nunca de maneira determinista. Assim, a formação de professores descortina-se como um imenso campo de possibilidades. Ao trazer para o campo da formação de professores as categorias benjaminianas e thompsonianas – experiência, experiência vivida, memória, cultura, narrativa, escovar a história a contrapelo, tempo saturado de agoras, fazer-se sujeito – verifica-se que é possível, no diálogo com as idéias já canonizadas da formação para a racionalidade técnica, anteriormente apresentadas, ir um pouco além e pensar outra “formação”. Formação esta que firme a possibilidade do professor fazer-se. O “Fazer-se Professor” é entendido como um processo ao longo de toda vida, e não situado num dado momento ou lugar - universidade. Possibilita-nos pensar a incompletude do ser humano e no seu eterno fazer-se. Neste sentido, são fundamentais as contribuições expressas na obra “A Formação da Classe Operária Inglesa” de Thompson (1989), que nos mostra como essa classe 48 operária não nasceu pronta, foi se construindo, fazendo-se, tornando-se sujeito, nascendo enquanto categoria histórica. Na esteira desse pensamento de Thompson é que proponho pensarmos o fazer-se profissional dos professores e professoras sem descartar outros aspectos da vida, pois somos sujeitos inteiros, não podemos separar o profissional do pessoal e vice-versa. Pensar o professor na totalidade do seu fazer-se possibilita perceber as ambigüidades que vão se construindo nas relações estabelecidas nos diferentes espaços em que os professores relacionam-se com outros sujeitos – alunos, pais, diretores de escola... Thompson, ao trabalhar com o binômio dominação/resistência, foi explicitando que ambas não aparecem como blocos monolíticos e opostos, mas que dominação e resistência acontecem de forma entrecruzada, ou seja, são parte da mesma moeda e só acontecem quando inter-relacionadas. Benjamim, por sua vez, mostra que são ambivalentes e constituem-se em cenários móveis, a partir de um mesmo fio. Então, conhecendo as lutas, as experiências do passado, os sujeitos se instrumentalizam, passam a ter esperança na mudança, na utopia como algo que está se fazendo e não que virá de qualquer forma. Deste modo, as professoras e professores, ao buscarem suas memórias e experiências vividas, passam a ser sujeitos do processo, sentem-se produtores, participantes. Para ocorrer essa passagem do “formar” ao fazer-se professora ou professor é necessário pensar o ato educacional como um campo de possibilidades, com uma história que está aberta, por se fazer, e não como algo pronto, fechado, determinado, no qual falam, expõem e os alunos ouvem e repetem. Assim, ocorreriam diálogos entre diferentes saberes. Para o diálogo entre diferentes saberes, considero as condições socioeconômicas, político-culturais de cada grupo social onde a escola está inserida. O trabalho pedagógico seria com as “realidades” e as especificidades locais, regionais, ou seja, iniciar-se-ia o trabalho com o que está mais próximo dos alunos e professores, o que foi expresso por Paulo Freire em diversos livros: seria o “ponto de partida”. Portanto, o local não estaria desvinculado do contexto global. 49 Para se compreender o que efetivamente acontece na Escola, faz-se necessário perceber as marcas culturais da experiência, do vivido, do enraizamento, para compreendermos o trabalho de um profissional, a história mais ampla que precisa ser desvelada. Marcas culturais nas quais os sujeitos, atores e autores da cultura docente, possam expressar o fazer e saber ser professor, de forma a relacioná-lo com outros saberes e fazeres, visualizando com mais nitidez as experiências vividas. Ao trabalhar considerando os professores e professoras como sujeitos do processo de seu fazer-se, sou levado a dialogar com Benjamim sobre o que a modernidade capitalista fez com a experiência vivida. Para, ele, até então: Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre foi comunicada aos jovens. De forma concisa, com autoridade da velhice, em provérbios, de forma prolixa, com a loquacidade, em histórias; muitas vezes com narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração a geração? Quem é ajudado hoje por um objeto oportuno? Quem tentará sequer lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1986, p. 115). Em diálogo com Benjamin, Jorge Larrosa também expõe uma série de aspectos referentes à experiência e de como a modernidade privou os sujeitos modernos de viverem experiências devido ao “excesso de informações”. Para este autor, as informações não deixam lugar para a experiência; também o excesso de opinião seria impeditivo das experiências; a falta de tempo é outro fator que impede os sujeitos de terem experiências e, também de terem memória; o excesso de trabalho é outro fator que impede a experiência. Para o autor, a experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. As questões levantadas por Benjamim e Thompson são fundamentais para que possamos discutir a formação de professores junto com professores, e suas experiências ou a falta delas, levando-se em consideração o que os professores pensam, como vivem, quais experiências têm para contar, que metodologias desenvolvem, que relações fazem entre teorias e práticas cotidianas; enfim, precisamos deixar de pensar a formação para ou sobre o professor, para pensar na relação junto com os professores. Não podemos esquecer que o fazer-se dos professores e professoras se dá num processo relacional, ou seja, constrói-se na interação com os outros, isto é, com os professores universitários, os colegas 50 de trabalho, os alunos, com os autores dos livros, com a comunidade escolar, ou ainda, outros situados em diferentes espaços da produção de saberes: na troca de experiências, no diálogo constante é que ocorre a feitura profissional do professor. Esse processo, portanto, dá-se de maneira social e nunca individual; e, em sendo social, não pode ser homogêneo. Proponho, pois, pensar a experiência na sua dimensão de totalidade, para além do científico e do racional, pois como Benjamim defende, é preciso “escovar a história a contrapelo”, trazer para ela o insignificante, o miúdo, o relegado. Tal encaminhamento remete a Sonia Kramer, quando, em diálogo com Benjamin, aponta as contribuições do seu pensamento para falar em educação: O professor teve sua experiência empobrecida: seu conhecimento não é visto como ‘verdade aurática' e, ele não é narrador por não ter uma experiência coletiva a contar. Quem é ele? Professor e alunos são cada vez mais impedidos de deixar rastros. (...) Tornaram-se, professor e alunos, meras mercadorias? (...) Como operário (na linha de montagem), o jogador(sempre começando), o passante (vagando na multidão), professores e alunos estão também condenados ao eterno recomeço? Há possibilidade do ‘novo' ou sua ação se reduz ao ‘sempre-igual'? Para se buscar a possibilidade de mudança, precisa-se buscar (me parece) a relação que é construída por professores e alunos, com o conhecimento produzido na prática social viva, para que deixem de se deslocar como autômatos... (...) Como recuperar a capacidade de deixar rastros? Ou seja, de deixar marcas? Ou ainda, de ser autor? Como ler em cada objeto a sua história? (2002, p. 58). Muitos têm pensado a formação de professores desconsiderando o que os professores pensam. São discussões genéricas sobre um professor sem rosto, sem nome, sem identidade, sem experiência; fala-se do ‘professor', no masculino e genérico e não especificamente do João, da Maria, do Pedro. Ao trabalhar com a idéia de rememoração, Benjamin nos instiga a pensarmos como as memórias dos professores podem contribuir para o seu fazer-se. Possibilita que questionemos em que medida as memórias de formação escolar, de suas vidas, de sua construção como cidadãos, como profissionais da educação, podem contribuir para que a academia passe a conhecer e respeitar os professores e professoras. E, mais do que isto, pensar em que medida os próprios professores e professoras podem se fortalecer, respeitando-se mais, em contato vivo com suas próprias memórias e ensinando a academia a conhecê-los e respeitá-los? Neste sentido, penso que para irmos além de dados modelos de “formação” de professores precisamos pensar este sujeito – professor – como um todo, ou seja, um sujeito com experiências vividas que precisam ser ouvidas e, assim, desenvolvermos outras práticas de formação que 51 possibilitem a ocupação de outros espaços para além da universidade e da escola como lugares de formação. Cabem aqui alguns exemplos, que podem contribuir para que os professores se façam ao desenvolver suas atividades educativas nos chamados espaços não formais de formação, ao ocuparem museus, casas de cultura, centros de memória e tantos outros e desenvolverem outras práticas formativas que os possibilitem tornarem-se sujeitos autores e atores de suas práticas, deixando de ficar à mercê do conhecimento que outros produzem, rompendo com a dicotomia produção/reprodução, ou produção/transmissão. Enquanto professor de Prática de Ensino de História, venho incentivando que os professores em formação realizem seus estágios em diferentes espaços de produção cultural e guarda de memórias, pois acredito que as relações entre os diferentes sujeitos, considerando-se as experiências vividas como ponto de partida, possibilitarão a construção de novas práticas escolares. Para encerrar e não concluir, pontuo agora alguns exemplos de experiências que desenvolvi ao orientar os alunos do curso de História da UNOCHAPECÓ para que realizassem seus estágios em espaços não convencionais como: numa empresa de transportes coletivos, problematizando a história do transporte no município de Chapecó-SC; com grupos de mulheres agricultoras, discutindo a historicidade do Movimento de Mulheres Agricultoras; com grupo de mulheres da Pastoral da Criança, enfocando o papel da mulher na política; com grupos vinculados ao Movimento Sem Terra; com uma comunidade de descendentes de italianos abordando imigração e colonização da Região Oeste Catarinense, dentre muitos outros espaços não formais em que aconteceram aulas de História para além do espaço escolar. Dessa forma, a experiência foi indicando como os professores produzem conhecimento, como são autores, como se fazem nas relações que desenvolvem. Assim, entendo ser necessário pensarmos a “formação” considerando a possibilidade de diálogo com as experiências vividas e não mais termos modelos formatados do que deve ser um professor. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2 a ed, 2000. BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119. (Obras escolhidas vol. 1). 52 _____________ Sobre o conceito da História. Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. 7 a ed, São Paulo, Brasiliense, 1994. _____________ O narrador. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-221. (Obras escolhidas, vol. 1) _____________ Infância em Berlim por volta de 1900.In: Rua de Mão única. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 73-142. (Obras escolhidas, vol. 2) BOLÍVAR, Antonio (org.). Profissão Professor: o itinerário profissional e a construção da escola. 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Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Maria, Mestre em História pela PUC de São Paulo e Doutor em Educação pela UNICAMP. 54 Carmen Teresa Gabriel