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Relacoes de Genero e Escutas Clinicas (1)

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Prévia do material em texto

(ORG.)
Editor(a) | Gilmaro Nogueira
Revisão | Patrícia Azevedo Gonçalves
Diagramação | Daniel Rebouças
Ilustração | Jenifer Prince
Conselho Editorial
CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
S877r Stona. José, —
 Relações de Gênero e Escutas Clínicas/José Stona 
(Organizador). 1ª edição/Salvador - BA. Editora Devires, 
2021.
260p.; 16x23 cm
ISBN 978-65-86481-26-6 
1. Psicologia 2. Diversidade 3. Saúde mental I. Título
CDD 159.9 CDU 308.1-13
Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que 
citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.
Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA 
www.editoradevires.com.br 
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Lima
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB
Prof. Dr. Djalma Thürler
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Fran Demétrio
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB
Prof. Dr. Helder Thiago Maia
Universidade Federal Fluminense - UFF
Prof. Dr. Hilan Bensusan
Universidade de Brasília - UNB
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
Prof. Dr. Leandro Colling
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia 
Afro-Brasileira – UNILAB
Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Prof. Dr. Marcio Caetano
Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Dr. Pablo Pérez Navarro (Universidade de Coimbra - CES/
Portugal e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)
Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Editor(a)Editor(a) | Gilmaro Nogueira | Gilmaro Nogueira
(ORG.)
A vida é certamente mais vivível 
quando nós não estamos confinados a 
categorias que não funcionam para nós.
Judith Butler, Corpos Que Ainda Importam
SUMÁRIO
PREFÁCIO 9
Jaqueline Gomes de Jesus 
APRESENTAÇÃO 12
GÊNERO: DA FORMAÇÃO A NÃO ESCUTA DO ANALISTA 19
José Stona 
Andrea Ferrari 
SOBRE MACACOS, CYBORGS E TRANSEXUAIS: 
A PSICANÁLISE E OS LIMITES DO HUMANO 35
Eduardo Leal Cunha 
DE ONDE ESCUTO? DE FREUD E LACAN E FOUCAULT 
E DELEUZE E... 51
Patrícia Porchat 
SEDIMENTAÇÕES DE UMA ODALISTA ANDROIDE: 
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE 
GÊNERO E CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR 63
Céu Silva Cavalcanti 
A METAFÍSICA GENERIFICADA DA ESCUTA PSICANALÍTICA 79
Daniel Kveller 
Henrique Caetano Nardi 
GÊNERO E RAÇA: MARCAS PERSISTENTES DE 
UM FAZER-SABER DENEGADO 93
José Damico 
VOZES NEGRAS FEMININAS: ECOAM POÉTICAS 
E AQUILOMBAMENTOS SUBJETIVOS 119
Liziane Guedes da Silva 
INDAGAÇÕES CONTRANORMATIVAS SOBRE OS USOS 
DOS CONCEITOS DE “FUNÇÃO MATERNA”, “FUNÇÃO 
PATERNA” E MATERNAGEM 141
Andrea Gabriela Ferrari 
Milena Silva 
IDENTIDADES TRANSGÊNERAS E O CAMPO DE CUIDADO COM 
A SAÚDE: UMA ANÁLISE DE EXPRESSÕES COM VIÉS 
PATOLOGIZANTE 159
Beatriz Bagagli 
IDENTIDADE DE GÊNERO E PARENTALIDADE 175
Gerson Smiech Pinho 
Analice de Lima Palombini 
TRUQUES E MAIS TRUQUES: SOB O RÓTULO DA DIVERSIDADE 
ESTÃO AS PRÁTICAS NORMATIVAS PEDINDO PASSAGEM 193
Sofia Favero 
Emilly Mel Fernandes 
RELAÇÕES ENTRE GÊNERO E SEXUALIDADE INFANTIL 205
Fernanda Isabel Dornelles Hoff 
ATITUDES CORRETIVAS (OU TERAPIAS CONVERSIVAS) 
DA ORIENTAÇÃO SEXUAL NA CLÍNICA PSICOLÓGICA: 
UMA ANÁLISE DE CASO 219
Mozer de Miranda Ramos 
A VIDA PSÍQUICA DO ARMÁRIO 235
Lucas Demingos 
José Stona 
SOBRE OS AUTORES 253
9
PREFÁCIO
Jaqueline Gomes de Jesus
Quem escuta quem na sociedade do espetáculo?
“...a política constrói o gênero e o gênero constrói a política”
(Scott, 1989, p. 89)1.
“O subalterno não pode falar”
(Spivak, 2010, p. 126)2.
O isolamento que me impus, para minha segurança e a dos meus próxi-
mos, durante a pandemia da COVID-19, trouxe consigo as demais dificuldades 
esperadas, especialmente no campo da produção acadêmica. São tantos pen-
samentos circulando que o simples ato de sentar-se frente ao computador e 
escrever estas linhas torna-se quase doloroso. Sei que muitos colegas, muitos 
mesmo, estão passando pelo mesmo martírio.
Apesar de tanta dificuldade em me externar por meio da escrita, de ordem 
menos cognitiva do que afetivo e até psicomotora, a escuta prossegue, explode, 
exponencialmente, por meio de centenas de lives e atendimentos psicológicos 
on-line. Escutas, escutas, escutas. Elaborações e reelaborações. De novo. O 
desgaste estressa e me aponta para o horizonte de um burnout, como sói a 
tantos que tenho aconselhado ou falado sobre ao longo destes meses. ALTO LÁ!
Dou-me um tempo, permito-me, aplico-me, permito-me ser ouvida. Abro 
mão de algumas dezenas de compromissos aceitos na dinâmica produtivista 
on-line que nos está sendo naturalizada, desnaturalizo-a, refaço-me, durmo 
antes das quatro da manhã, das três, das duas, quando progresso sentir sono 
antes da uma da madrugada! Ainda estou viva, apesar das urgências que pu-
lulam.
1 SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, 
pp. 71-99.
2 SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
10
Curiosamente, identifico neste livro — que se propõe, corajosamente, 
a falar de relações de gênero e escutas clínicas fora de alguns vieses tradi-
cionais de nosso vasto campo psi, sem cometer o erro de ignorá-los — uma 
ressonância dos nossos tempos, uma vibração anterior à disseminação do 
novo coronavírus que já decorria do nosso estado de coisas na globalização, 
nesta Sociedade do Conhecimento na qual o que mais temos, em overdose, 
são informações, ao passo que não sabemos de onde extrair, nesse monturo 
de dados, algo útil para nossas vidas chamado, sim, de conhecimento. Seja 
de nós, seja do mundo que nos cerca.
Eu encontro neste livro muitas vozes jovens, periféricas até, subalternas 
portanto, aquelas que trazem a potência de, quiçá, mudarem futuramente o 
nosso paradigma científico, obviamente que determinadas pelo que Thomas 
Kuhn já estabeleceu como parâmetros para tamanha empreitada. Mas elas 
estão aqui, nas linhas que me seguem.
Propõem-se a refletir, sempre criticamente, sobre temas que povoam o 
inconsciente coletivo ou o mainstream dos trending topics, que no entanto 
não encontraram profundidade de teorização antes de pousarem nestas pá-
ginas, como a articulação entre o tema da diversidade e a saúde mental; os 
corpos androides cujos componentes são hieróglifos (corpo e subjetividade/
subjetificação, pulsando Donna Harraway); a linguagem e seus usos e abusos 
para a (des)patologização das identidades trans; maternidade, paternidade, 
maternagem no contexto da figura hegemônica da família, tão confusamente 
amalgamada com a imagem de propriedade (privada); sexualidade e infân-
cias; filiação e identidades parentais em conflito com a cisnormatividade que 
não se nomeia como tal; uma necessária análise das chamadas — e famige-
radas — Terapias Conversivas (escrevo aqui em um duplo sentido, que inclui 
o religioso) da orientação sexual (homossexual); debates metafísicos sobre 
gênero e sexualidade, de fato raros de irromperem no campo psi, tão afeito à 
funcionalidade no trato dos conceitos; uma reflexão sobre o tão dito “armário”; 
entre outras desafiadoras interpretações acerca da escuta.
Compreendo esta obra comoum manancial de relevantes saberes e re-
latos de experiências potentes para a transformação de você, profissional da 
escuta – qualificada, ativa, qualquer que seja, entretanto, principalmente, da 
clínica, seja ela feita na clínica ou em qualquer outro lugar, curiosamente, por 
não se restringir ao lugar onde ocorre, mas se constituir nele.
Como uma mais velha que aponta a trilha mais proveitosa para o que você 
busca, indico-lhe esta leitura. Que ela lhe fortaleça, empodere, em vários sen-
tidos, certamente não em todos, mas em mais de um. Este é o seu propósito, 
11
e ele é necessário, urgente. Nunca a escuta se demonstrou tão emergencial e 
precisa quanto nestes tempos que estamos vivemos, inclusive para nós que 
escutamos profissionalmente, que sejamos escutados, desde os nossos dife-
rentes e complexos lugares de fala, como se costuma falar ultimamente. Temos 
tanto a dizer para além do que esperam que falemos. Então nos ouça, leia-nos.
Bairro da Glória, Cidade do Rio de Janeiro, em 09 de setembro de 2020, 
há cinco meses do isolamento físico, mas não social, decorrente da pandemia da 
COVID-19.
APRESENTAÇÃO
13
Já não é novidade que nós, psicólogues ou interessades nas múltiplas 
áreas da psicologia, começamos a entender que o problema central não é 
apenas a teoria, que ainda pode (re)produzir uma possibilidade de leitura 
discriminatória, estigmatizante e violenta sobre o sujeito por meio de con-
ceitos que foram construídos colonialmente e que se tornam dispositivos 
de poder-saber-ser e ajudam a fabricar condições prévias de inteligibilidade 
por meio de n normatizações. Nem mesmo deveríamos ficar surpresos com 
o comportamento reativo e defensivo de alguns discursos psis (psicólogues, 
psiquiatres e psicanalistes) diante das nomeações de questões coloniais como 
branquitude, patriarcado, machismo, elitismo, capacitismo, cisheteronorma 
etc (KILOMBA, 2010)3. 
Assim, recusar a interseccionalidade no fazer clínico (a sobreposição ou 
intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de exploração, 
dominação ou discriminação que, a partir de categorias, visam, dentre outras 
coisas, a subverter hegemonias de opressão públicas e privadas para que ga-
nhem visibilidade e reconhecimento social) hoje é, justamente, tentar a todo 
custo manter um certo legado normativo intacto. É, também, tentar conservar 
pactos narcísicos de opressão, discriminação e estigma, perpetuando o silen-
ciamento das múltiplas corporeidades possíveis na cultura. 
Diante disso, pergunto-lhe: na sua formação, seja ela qual for, quantes 
autores trans, não bináries, não branques, indígenas, travestis, feministas, 
LGBTTQIA+ ou com deficiência você já leu ou tem lido? Quais são os efeitos de 
tais ausências na nossa formação? Quais são os efeitos desses apagamentos e 
dessas invisibilidades na nossa escuta e prática clínica? Cada vez mais se torna 
importante situarmos o nosso lugar de escuta, que é fabricado por uma teoria 
que não é neutra e isenta de uma historicidade que apaga os marcadores in-
terseccionais de diferença. Se, como nos avisa Gayatri Spivak (1988)4 e Djamila 
Ribeiro (2017)5, quem tem o privilégio social tem o privilégio epistêmico, ainda 
cabe uma posição defensiva ou de silenciamento? Qual o lugar das relações 
de gênero na clínica? Qual o lugar da identidade na clínica?
O livro que o leitor tem em mãos parte dos questionamentos supracitados 
e, certamente, não consegue dar conta, e nem pretende, “falar de tudo”, dei-
xando questões e ausências para um debate contínuo. A ideia foi organizar um 
trabalho narrativo feito, principalmente, por profissionais da psicologia que, 
3 KILOMBA, G. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Ver-
lag, 2. Edição, 2010.
4 SPIVAK, G. Can the Subaltern Speak?” In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Larry (Ed.). Marxism and the In-
terpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988a. p. 271-313.
5 RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento: Justificando, 2017.
14
quando pensam seus fazeres clínicos, éticos e políticos, levam em considera-
ção, não como elemento central, mas como elemento não passível de isenção, 
os atravessamentos singulares das relações de gênero (sejam eles de raça, 
etnia, classe, gênero, orientação sexual, religião, deficiência, nacionalidade 
etc.). São, além disso, autores que, em seu campo de atuação, deixam que a 
clínica seja primária em relação à teoria e fazem dos seus corpos ações políti-
cas, partindo do pressuposto de que a sua teoria, independentemente da linha 
teórica adotada, não é imparcial frente a estigmas, violências e discriminações. 
A justificativa da obra está pautada no entendimento de que a prática clínica 
em psicologia esteve, durante longas décadas, colada aos saberes médicos, 
jurídicos e terapêuticos, que, a partir de seus dispositivos de “cuidado” e tutela, 
produziram uma dívida histórica por meio de patologizações e silenciamentos 
em face das relações de gênero. Longe de ser algo amplamente resolvido, os 
campos discursivos das psicologias ainda atuam como dispositivos de controle, 
violência, discriminação e patologização. 
Nesse contexto, a obra parte desses (des)encontros entre os campos teó-
ricos de saber e as escutas clínicas para problematizar, enfaticamente, que 
gênero é um conceito que não pode ser pensado isoladamente (Davis, 2016)6. 
Esta coletânea de textos apresenta as múltiplas faces das relações de gênero 
nas escutas clínicas dentro dos campos das psicologias.
Em Gênero: da formação a não escuta do analista, os autores discutem 
como a formação do psicanalista, devido a sua possibilidade de manuten-
ção normativa, pode ter como consequência um impedimento da escuta do 
analista sobre determinadas questões, a exemplo do gênero. A partir de uma 
breve retomada histórica, os autores refletem sobre como certas posições 
normativas na formação do psicanalista podem, ainda, estar presentes con-
temporaneamente. 
Em De onde escuto? De Freud e Lacan e Foucault e Deleuze e..., o texto 
apresenta autores franceses que vêm construindo uma psicanálise em diálogo 
com a  obra de Foucault e de Deleuze. O objetivo da autora é pensar um campo 
psicanalítico que seja constantemente crítico de si mesmo para desconstruir 
os efeitos de saber que colocam em cena os dispositivos de poder. A atenção 
que a psicanálise dispensa às minorias é problematizada de modo a não correr 
o risco de se fundar uma nova psicanálise normativa, universalizante e que 
essencializa identidades.
Em Macacos, cyborgs e transexuais: a psicanálise e os limites do humano, 
o autor propõe uma breve discussão sobre o lugar, na clínica psicanalítica, de 
6 DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016, 244p.
15
uma interrogação quanto aos limites do humano e seus modos de determina-
ção. Ele propõe, ainda, pensarmos na escuta das experiências transidentitárias 
e a sua articulação a uma problematização do que poderia ser descrito como 
“humanismo” psicanalítico, situando que, ao invés de um lugar de afirmação 
a partir de certo ideal antropológico, a clínica psicanalítica deve ser, ao con-
trário, um campo de experimentação ética, no qual novas formas de existência 
possam se produzir e ser reconhecidas.
Em Sedimentações de uma odalisca androide - algumas reflexões sobre 
gênero e clínica transdisciplinar, a autora toma emprestado, como guia provi-
sório, a imagem mítica da Odalisca Andróide, poema de Fausto Fawcett, texto 
que propõe um passeio pelos campos de reflexão sobre clínica transdisciplinar 
e perspectivas de gênero pós-estruturalistas. Através de um diálogo entre 
Espinosa e Butler, a autora atenta para um traçado de subjetividade no qual 
os códigos morais do ordenamento transcendente corporificam, inclusive, os 
marcos regulatórios do gênero. Por meio do conceito-metáfora de corpo sem 
órgãos, o texto faz ser possível vislumbrarmos como os diferentes estratosse 
compõem por sobre o corpo, construindo formas completamente atravessadas 
pelas linhas históricas, sociais e econômicas. 
Em A metafísica generificada da escuta psicanalítica, os autores refletem 
sobre uma posição ambígua da psicanálise, onde existe, de um lado, uma 
atitude de resistência em relação aos debates de gênero e sexualidade e, de 
outro, uma pressuposição naturalizada do gênero em suas práticas através de 
uma metafísica sustentada no a priori da diferença sexual. Os autores sugerem 
que o gênero só se torna um problema para a psicanálise quando ele desafia 
os rituais heteronormativos que atravessam seu funcionamento cotidiano, 
argumentando que, se a psicanálise almeja sustentar uma ética realmente 
não-identitária, deve começar examinando as expectativas e os preconceitos 
relacionados ao gênero que operam na sua teoria e prática de maneira natu-
ralizada.
Em Gênero e raça: marcas persistentes de uma fazer-saber denegado, o 
autor articula duas categorias que foram negligenciadas pela psicanálise du-
rante muito tempo e que vagarosamente começam a ter seu caminho estriado 
pelas discussões de grupos que historicamente foram subalternizados. O autor 
coloca que essa abertura/rasura não se dá sem resistências, indicando que, nos 
tempos em que vivemos, ninguém que se percebe minimamente ao lado de 
uma sociedade mais justa gostaria de receber os selos de racistas, machistas, 
homofóbicos e transfóbicos.
Em Vozes negras femininas: ecoam poéticas e aquilombamentos subjetivos, 
a autora interroga a ética da psicologia que se produz, muitas vezes, a partir 
16
de uma caixa eurocêntrica. A autora, recorrendo às vozes negras femininas do 
Sarau Sopapo Poético, busca problematizar as ideias de escuta e de sujeito, 
em uma perspectiva pluriversal e posicionada, em diálogo com a Psicologia 
Preta e a Filosofia Afroperspectivista. A autora aposta no Aquilombar, como 
categoria clínico-política, para a (re)construção de modos de subjetivação 
negros e afroperspectivistas, na diáspora africana ao sul do Brasil, evocando 
vozes africanas e ameríndias no intuito de afirmar multiplicidades subjetivas a 
partir de corporeidades e vozes negras, que têm muito a ensinar à psicologia.
Em Indagações contranormativas sobre os usos dos conceitos de “função 
materna”, “função paterna” e “maternagem”, as autoras partem dos qualifi-
cativos materno e paterno atrelados às funções constituintes, bem como da 
noção de maternagem acoplada à figura da mãe, para questionar, a partir de 
autores contemporâneos, a manutenção desses termos acoplados, ainda que 
imaginariamente, aos personagens da mãe/mulher e do pai/homem. 
Em Identidades transgêneras e o campo de cuidado com a saúde: uma 
análise de expressões com viés patologizante, a autora trabalha o tema pato-
logização das identidades transgêneras em discursos do campo do cuidado 
com a saúde. Para tanto, ela seleciona artigos e documentos de referência, 
abordando as seguintes noções utilizadas para descrever as experiências de 
pessoas trans: “surgimento precoce/tardio/rápido”, “contágio social”, “sofri-
mento”, “desistência”, “persistência”, “riscos” e “benefícios”. A autora propõe 
uma discussão sobre como essas expressões são inadequadas para a com-
preensão das identidades trans, entendendo que elas possuem um viés pa-
tologizantes, e busca desenvolver no artigo as perspectivas dos sujeitos trans 
como um contrapeso a tais expressões.
Em Identidade de gênero e parentalidade, os autores problematizam as 
mudanças ocorridas nas últimas décadas nas configurações das famílias, 
pensando o estatuto dos laços de filiação e das identidades parentais que se 
estabelecem no âmbito das minorias sexuais. Os autores referem que, mes-
mo com uma maior flexibilidade nos papéis desempenhados no interior das 
famílias, não é raro que as relações constituídas fora da heteronormatividade 
sejam consideradas socialmente inviáveis, segundo o pressuposto de que a 
ligação heterossexual seria o único caminho concebível para a organização 
do parentesco. Com base nas noções de função materna e função paterna, o 
texto visa a refletir sobre a questão proposta, tanto na prática clínica quanto 
nas formulações teóricas no campo da psicanálise.
Em Truques e mais truques: sob o rótulo da diversidade estão as práticas 
normativas pedindo passagem, as autoras propõem uma reflexão sobre como 
a “diversidade” tem sido uma categoria articulada na saúde mental de maneira 
17
controversa. Ao passo que os debates sobre gênero e sexualidade se encon-
tram fortalecidos na esfera pública, nem tudo aquilo que responde ao termo 
“diversidade” indica ser exatamente uma prática voltada à desconstrução de 
estereótipos sexistas e LGBTfóbicos. Através de reflexões baseadas nos estu-
dos de gênero, o texto pretende expor como tal “lugar comum” se direciona à 
produção de dependências clínicas, fazendo com que a figura do/a terapeuta 
adquira maior autoridade e que nós, pessoas interessadas em outros projetos 
à psicologia, distanciemo-nos de horizontes éticos com a diferença.
Em Relações entre gênero e sexualidade infantil, a autora pensa sobre como 
o modo de o sujeito se reconhecer e buscar um lugar junto aos seus amores 
está relacionado a complexos movimentos pulsionais, identificatórios e trau-
máticos, que permeiam posicionamentos constitutivos da identidade sexual e 
da identidade de gênero. O texto evidencia como esses movimentos singulares 
ocorrem a partir da relação com quem assume a parentalidade e suas funções, 
atravessados pela cultura. A partir dessa sustentação, a pulsão, o narcisismo 
e o complexo de Édipo podem ser instaurados numa organização singular do 
sujeito. A autora ilustra esses percursos constitutivos numa intersecção entre 
a teoria e alguns recortes da escuta psicanalítica de crianças e adolescentes.
Em Atitudes corretivas (ou terapias conversivas) da orientação sexual na 
clínica psicológica: uma análise de caso, o autor reflete sobre o relato de aten-
dimento clínico de um psicólogo que praticou atitudes corretivas da orienta-
ção sexual com um cliente. O texto problematiza as consequências clínicas e 
políticas de tal ação a partir de diretrizes e referências contemporâneas so-
bre o assunto.
Em A vida psíquica do armário, os autores refletem sobre os efeitos psíqui-
cos exercidos pelo dispositivo do armário sobre o sujeito. Para isso, recorrem 
tanto a elaborações de Judith Butler, a partir do conceito de melancolia de 
gênero, quanto às maneiras pelas quais esses efeitos psíquicos se manifestam 
materialmente nos sujeitos, a partir de breves menções de documentários e 
recortes da escuta clínica. Em um segundo momento, a investigação reelabora 
e complexifica a estrutura do armário ao vinculá-la aos relatos de formação 
do sujeito e suas possibilidades de resistência.
Boa leitura!
José Stona
18
Eu ouvi que eu era “bicha”, que eu era “viado”, quando eu tinha, sei lá, 6 anos de idade. 
Eu tava numa padaria, eu acho, e um cara falou isso pra mim. Eu não sabia o que era 
aquilo, mas o jeito que ele falou era tão pesado que eu entendi que aquilo era uma 
coisa muito ruim [...]. E quando eu tinha uns 8 anos, aí eu entrei numa terapia, por 
conta do meu comportamento [...]. E aí eu comecei a ser treinado pra agir diferente. 
Na verdade, comecei a ser ensinado que tudo que eu fazia tava errado. As coisas que 
eu brincava, as pessoas que eu brincava, o jeito que eu falava, o jeito que eu andava. 
Então, tipo, na terapia, ela gravava tudo que eu dizia pra eu ouvir depois. Ela fazia 
eu repetir as mesmas coisas com outra voz, pra treinar uma voz mais masculina. Eu 
caminhei várias vezes pela sala para, tipo, treinar um caminhar “de homem”. Eu fiz um 
tipo de caligrafia também para escrever igual um menino. E ela falava, por exemplo, o 
meu “A” e o meu “O”, eles eram quase iguais. E ela falava que isso era uma coisa muito 
errada, porque eu tinha que diferenciar o que era feminino e o que era masculino. E eu 
lembro muito disso que parece uma besteiraquando você fala assim, fora do contexto, 
mas era uma coisa que, tipo, que me marcou muito. E eu não conseguia e não me sentia 
bem fazendo as coisas que ela queria que eu fizesse. O meu modelo estabelecido foi 
o meu irmão. E eu tinha que me comportar igual a ele. E eu comecei a entender que, 
quanto mais eu demorasse pra fazer do jeito que ela queria, mais tempo eu ia ficar lá. 
Durou mais ou menos 1 ano essa terapia... E aí eu comecei a me comportar do jeito 
que ela queria. E isso não acabava quando eu saía da sala de terapia porque ela tinha 
criado uns sinais com a minha mãe e com o meu irmão. Então, se eu me comportasse 
de maneira errada em público, a minha mãe e o meu irmão tinham que me corrigir. 
E aí quando eu via aquilo eu tinha que parar, tipo, se eu tivesse correndo, sei lá, de 
alguma forma, eu tinha que parar e correr feito homem. Se eu tivesse falando com voz 
de menina eu tinha que falar com voz de homem. E aí começou aquela perseguição, 
né, na minha cabeça e.. sobre todo o meu comportamento, sobre a minha persona-
lidade, sobre tudo...
Bruno, em Bichas, o documentário.
GÊNERO: 
DA FORMAÇÃO A 
NÃO ESCUTA DO ANALISTA
José Stona
Andrea Ferrari 
20
“Nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios 
complexos e resistências internas”. 
(Sigmund Freud, As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica).
As discussões dos estudos de gênero, proposições teórico-políticas que 
tentam propor uma atualização nas temáticas científicas sobre corpo, sexo e 
gênero (CONNEL & PEARSE, 2015), em diálogo com a psicanálise, nos últimos 
anos, têm revelado diversas fragilidades e potências da teoria psicanalítica 
diante da clínica com experiências gênero-dissidentes. Conforme apontam 
os autores Porchat (2015), Ayouch (2017), Cunha (2016) e Gherovici (2017), 
há conceitos da teoria psicanalítica que acabaram produzindo uma clínica 
normativa, patologizante e estigmatizante frente a tais experiências. 
Nesse contexto, além dos estudos de gênero, outros saberes também 
apontam essa dimensão branco-cis-hetero-normativa e elitista da psicanálise, 
como os estudos sobre interseccionalidade, de Crenshaw (1989) e Davis (2016), 
e os estudos raciais, de Fanon (2008) e Mbembe (2013), que denunciam uma 
certa norma não escrita na teoria psicanalítica e na formação de psicanalistas. 
Essa norma tem trazido diversas consequências negativas na clínica ao longo 
do tempo. 
Assim, o presente artigo surge do confronto não só com a teoria, mas da 
escuta clínica de experiências transidentitárias diante das possibilidades de 
formação de um analista, tendo em vista que há problemáticas, para além 
da teoria7, que também merecem atenção, conforme se verá a seguir. Porém, 
cabe justificar que empregaremos o termo experiências transidentitárias ou 
transidentidades, neste trabalho, de acordo com a noção de Ayouch (2015), 
Tenório e Prado (2016) e Cunha (2016), que compreendem que essa é uma 
nomenclatura fora do campo médico-jurídico-terapêutico e uma expressão 
particular entre as muitas denominações possíveis relacionadas às dissidên-
cias de gênero em cada contexto cultural. Concordamos com o uso do termo, 
principalmente, porque ele surge dentro do movimento trans e abrange uma 
multiplicidade identitária não passível de unificação. 
Gherovici (2017), Porchat (2018), Cossi (2018) e Ambra (2019) são autores 
que nos mostram como o gênero, ou melhor, as discussões sobre gênero ense-
jam críticas importantes para ampliar o debate e esvaziar a lacuna normativa 
produzida por diversos psicanalistas ao longo do tempo. As discussões de 
7 Em psicanálise, não separamos diretamente clínica de teoria. Essa separação está sendo feita apenas 
para fins didáticos.
21
gênero deixam, assim, cada vez mais nítido que é impossível, hoje, ignorarmos 
os atravessamentos de marcadores sociais na produção de pesquisa, ensino 
e transmissão da psicanálise (como questões geracionais, capacitistas, de 
raça, classe, identidade, gênero e orientação sexual). Como apontam Iaconelli 
(2018) e Zambrano (2018), um texto que não leve em conta essas contribuições 
estará datado de saída. Entretanto, será que é possível, para os psicanalistas, 
transitarem de um pensamento cada vez menos etiológico, essencialista e 
normativo para um pensamento mais polifônico e plural, se as formações 
continuam mantendo um certo regime normativo de inclusão e exclusão? 
Quando se trata de aproximar as propostas dos estudos de gênero com a 
psicanálise, a teoria psicanalítica, por meio dos estudos da sexualidade, nos 
ofereceu cisões históricas importantes. Tanto Freud – ao separar a pulsão 
do instinto, retirando qualquer determinismo biológico – quanto Lacan – ao 
pensar a matemática, a lógica e a topologia para a retirada de qualquer possi-
bilidade de essencialismos de leitura em significantes já carregados de sentido 
imaginário – se preocuparam em contribuir para os avanços clínicos sobre a 
sexualidade. Isso, então, nos faz perceber que o problema não são somente 
as particularidades teóricas da psicanálise freudo-lacaniana, mas o que fazem 
dela, ou seja, o problema são os próprios psicanalistas. 
Freud e Lacan produziram um movimento subversivo importante para 
sua época, mas inevitavelmente sofreram o efeito de seu tempo. Contudo, 
o problema central não são, de fato, esses dois autores, mas a recepção que 
lhes foi dada, que não parece ter mantido o movimento subversivo de suas 
propostas teóricas, as quais sempre tiveram por intenção respeitar a hiper-
singularidade do sujeito. Há, efetivamente, paradoxos que demonstram essa 
dualidade na forma de utilizar a psicanálise tanto como potência quanto como 
um dispositivo de normatização. 
Todavia, ao longo deste texto, queremos propor reflexões que se fizeram 
presentes durante o nosso percurso, a partir de uma questão principal: a forma-
ção do psicanalista pode ser uma das problemáticas que impede a subversão 
de uma escuta normativa na clínica?
As problemáticas da formação do analista
A formação do psicanalista é o caminho pelo qual cada analista vai cons-
truir o seu percurso, nas psicanálises, a partir do seu desejo, apossando-se da 
sua formação e autorizando-se a um ser analista por meio de princípios que 
foram formalizados ao longo do tempo. 
22
No entanto, ao pensarmos esses “princípios” da formação do psicanalista, 
entendemos que há, pelo menos, dois principais vieses históricos. Primeira-
mente, o rigor estabelecido na instituição criada por Sigmund Freud, em 1910, 
a IPA8 (Associação Psicanalítica Internacional), que sustentava a formação 
baseando-se na obrigatoriedade do tripé processo pessoal de análise, estudo 
teórico e supervisão. Em segundo lugar, os diversos rompimentos propostos 
por Jacques Lacan até a fundação de sua escola, a EFP9 (Escola Freudiana de 
Paris), que se propunha a uma nova forma de ensino estruturada na trans-
missão e instauração de um novo discurso (analítico), em conjunto com os 
dispositivos do cartel10 e do passe, ou seja, “quando o analista compartilha o 
ato de tornar-se analista com alguns outros” (WEILL, 2006, p. 16), devido aos 
usos instrumentais, tecnicistas e adaptativos pelos psicanalistas da época. 
A partir das recomendações de Sigmund Freud (1910), nós temos, em um 
momento inicial, a instauração de uma tradição que, desde o princípio, tentou 
normatizar um processo de formação, a exemplo da negação à formação para 
pessoas fora do campo da medicina. Segundo Roudinesco (1988), Calligaris 
(1990), Fingermann (2016) e Medeiros (2018), a IPA apenas reconheceria ana-
listas que se submetessem a um tratamento normatizado, onde a frequência, o 
tempo, a posição do analisante e a mudez do analista eram, durante as sessões 
de análise, padronizadas. Esses elementos, que “por muito tempo levaram a 
psicanálise a constituir-se numa prática funcionalista de adaptação a um ideal 
de normalidade, mais bem adaptado ao discurso e à ordem médica” (Medeiros, 
2018, p. 249), produzem resquícios até hoje. 
Posteriormente,temos um posicionamento de Freud reconhecendo que 
a formação do analista, afastanda de sua característica exclusiva a praticantes 
da medicina, deveria ser mais autônoma. Já com Jacques Lacan, criticando as 
formatações da IPA, nós temos um novo momento com seu retorno a Freud. 
Jacques Lacan, ao concordar com a importância do tripé, vai, além de enfa-
tizar que a base para a formação é a passagem por uma análise, perceber a 
necessidade de levarmos em conta mais dois fatores no processo formativo: 
a transmissão e o discurso analítico. 
A transmissão (saber como trabalho) não é apenas um ensino, mas a pala-
vra posta por um psicanalista que articula o seu percurso teórico, a sua análise 
8 Suas recomendações aos interessados em se tornarem psicanalistas acabaram por inspirar uma regra 
sustentada rigidamente pela IPA e seus grupos filiados ao redor do mundo, construída em torno da análise 
didática, da supervisão e da escuta de pacientes. 
9 Fundada em 21/07/1964 e dissolvida em 11/03/1980.
10 Proposição de 09/10/1967.
23
pessoal e o não-saber inerente à experiência analítica em um ensino. Sobre 
o discurso, Lacan (1992, p. 11) o define como “um discurso sem palavras”, ou 
seja, a instauração de atos e formas de gozo que existem em certas relações 
fundamentais que não podem ser mantidas sem a linguagem. Para o autor, 
dessa inevitável relação do sujeito com a linguagem surgem cinco produções 
fundamentais que marcam conduta, ato e enunciação. Assim, ele nos apresenta 
a sua organização dos dispositivos dos discursos (formas de enlaçamento com 
o outro) em cinco lugares, para cada uma das quatro permutações: o discurso 
da histeria, o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso capitalista 
e o discurso do analista – sendo este último o objeto de nosso enfoque (apesar 
de todos estarem diretamente ligados em um circuito). 
O discurso do analista põe em cena a ética da psicanálise e coloca o desejo 
em sua busca. O desejo, desse modo, emerge em um momento raro e preciso 
para sustentar a experiência do sujeito de afirmar-se na sua pura diferença. 
Diante disso, o discurso do psicanalista surge no árduo exercício de suspender 
qualquer tipo de saber prévio (se é que isso é possível) que cria condições nor-
mativas de inteligibilidade, esse saber da ciência clássica e do senso comum, 
para uma posição que renuncia a qualquer tentativa de ser agente de um 
saber, tendo em vista que este deve ser “colocado na berlinda pela experiên-
cia psicanalítica” (LACAN, 1992, p. 31) para que o analista ocupe a posição de 
objeto a – causa do desejo. Segundo a posição do discurso do analista, o único 
saber que importa é aquele que se adquire escutando o analisante (diferente 
da relação do discurso do mestre: daquele que sabe e ponto). A questão é do 
sujeito (efeito dos significantes) e foi por ele construída. É o sujeito que sofre. 
Por essa razão, o próprio analista deve representar aqui, de algum modo, “o 
efeito de rechaço do discurso” (LACAN, 1992, p. 45), a queda do efeito do dis-
curso, lugar destinado no ato psicanalítico sustentado pelo não-saber. 
Com Jacques Lacan, temos, ainda, uma ruptura central na forma de pensar 
a formação de psicanalistas: a inserção, dada por ele, da psicanálise na univer-
sidade, em 1964, nos seus seminários na École Normale Supérieure, momento 
que terá amplas consequências para a circulação cultural da psicanálise, “já 
que, no contexto da inscrição universitária, os jogos de filiação (fidelidade e 
submissão), serão complicados ou mesmo subvertidos, em relação ao mode-
lo hegemônico” (KUPERMANN, PERELSON, FRANCO Et al., 2019, p. 150) das 
sociedades até então. Assim, a partir das premissas freudianas e lacanianas 
apresentadas, contemporaneamente, ao pensarmos a formação do psicana-
lista, além de levarmos em conta que as tradições referidas ainda existem, 
em menor ou maior grau, dependendo da instituição, devemos lembrar que
24
 são tantas e tão variadas as instituições hoje existentes e espalhadas 
pelo mundo, que muitas vezes os estudantes não têm acesso às produ-
ções teóricas e clínicas dos analistas de filiação institucional diferente da 
sua própria. É o que atesta boa parte das construções bibliográficas dos 
trabalhos acadêmicos (monografias, dissertações, teses etc.), que não raro 
demonstram essa linha de filiação, a qual, de forma bastante determinista, 
propõe uma direção unívoca, a começar em Freud, passando por Lacan e 
desaguando no próprio orientador e nos psicanalistas de mesma escola. 
Sendo assim, torna-se fácil constatar a pouca abertura a outros saberes, 
como se os psicanalistas tendessem a se fechar no circuito das suas tra-
dições de leitura e de interpretação dos seminários lacanianos utilizando, 
para tanto, o argumento das trilhas e afinidades transferenciais. (MARTINS 
& POLI, 2017, p. 902).
Portanto, quando pensamos que a formação do analista pode ser um 
entrave para uma escuta clínica não normativa, estamos considerando os 
seguintes pontos: o primeiro deles é a institucionalização, na medida em que 
nos parece existir a psicanálise freudiana e o processo de institucionalização 
da psicanálise, no qual havia um Freud clínico e pesquisador e um Freud que 
disputava poder, querendo a todo custo firmar a psicanálise como uma ciência. 
São, certamente, momentos diferentes, mas que retomam a lembrança das 
duas vozes divergentes do próprio Freud e nos mostram como, no processo 
de institucionalização, não se valorizou esse duplo empreendimento. Houve, 
sim, a escolha (de uma matriz cisheterossexista), e a outra (de subversão) ainda 
nos parece estar silenciada (ou despertando). 
Essa dualidade, que provocou diversos efeitos na história da psicanáli-
se, acaba se imbricando à patologização e reforçando as variadas formas de 
deslegitimação da diversidade sexual. Ainda assim, existem psicanalistas que 
conseguem fazer o exercício crítico de seu tempo e aqueles que não conseguem 
e nem querem romper com pressupostos normativos, o que nos traz a seguinte 
questão: independentemente de como o futuro analista irá se interessar pela 
teoria, há uma leitura das obras a ser feita. Essa leitura cria a possibilidade de 
escolha, daquele que lê, de fazer um exercício crítico, desmontando pressu-
postos de uma teoria da época vitoriana para um momento contemporâneo, 
seja ele qual for, mas, principalmente, levando em conta as demandas da 
clínica, que, por certo, não se mantêm exatamente iguais àquela época. Se 
hoje, na leitura da obra freudiana, o leitor não sente nenhum desconforto, 
existe, de fato, um problema do ponto de vista ético, justamente por ser uma 
teoria que possibilita a sustentação de normativas e categorias dos processos 
de subjetivação e do sujeito. 
25
O segundo ponto é o da singularidade do leitor – quem é esse leitor, que 
bagagem ele carrega, que vida teve, que experiências viveu... Tudo isso vai ser 
importante para pensar que perguntas o leitor endereçará ao texto, pois a lei-
tura vai se alterando e se modificando a partir dessas premissas. A recepção do 
texto nos parece trazer a pergunta de como as pessoas estão lendo e de como 
é a compreensão do texto. Para além de pensar uma leitura certa ou errada, ela 
nos convoca a pensar sobre a aproximação a um campo conceitual analítico 
do ponto de vista ético que leve em conta a hipersingularidade do sujeito e 
a ética do desejo como mais importantes que as diversas normativas que a 
teoria possa oferecer. As pessoas podem estar abertas a um movimento crítico 
de leitura ou podem peneirar no texto elementos normativos para justificar 
suas atitudes racistas, transfóbicas, homofóbicas etc. Porém, sendo a questão 
extremamente delicada, como ela seria colocada de forma mais adequada? 
Seria possível, ou mesmo desejável, sustentar que há um problema de “erro 
de leitura”, quando esse suposto engano é utilizado para justificar mecanismos 
de violências, normatizações e patologizações, considerando que essa mesma 
teoria se propõe a uma exterioridade à normadesde o princípio?
O terceiro ponto é o dos pares e da transmissão, levando em conta que 
um dos principais meios de estudo em psicanálise é a troca entre os iguais, a 
partir da herança metodológica na forma de cartéis, deixada por Lacan (1964), 
de grupos de estudo e até mesmo da academia. O risco de uma certa pedago-
gia de transmissão infecciosa à normatização, conservando ideias patriarcais 
embutidas em conceitos, é, efetivamente, inegável. Portanto, sob o horizonte 
de troca entre os pares de leitura, parece-nos haver uma escolha, nem que seja 
inconsciente, na medida em que muitos psicanalistas que ocupam o lugar da 
maestria insistem em dizer da leitura correta a partir da intenção de Freud no 
texto. Esse ato, no entanto, pode ter por consequência um ordenamento ou 
um direcionamento de leitura, ou seja, uma conservação de relações de poder. 
O quarto ponto é o texto psicanalítico. Diante das questões de gênero, 
ele ainda oferece respostas às nossas perguntas? Ainda podemos transpor 
um deslocamento, ou a diferença sexual, o complexo de Édipo freudiano e a 
sexuação lacaniana estariam em declínio nesse horizonte de percepção em 
relação às demandas da clínica? 
O quinto ponto são os dispositivos de formação, pois não devemos es-
quecer que ainda temos instituições que estabelecem critérios de seleção para 
formação de analistas, ou seja, microcosmos que tendem a reproduzir, na 
contemporaneidade, o contexto social vitoriano em sua lógica, sua virtude e 
seus preconceitos. Nas palavras de Zambrano (2018), um dos resultados dessa 
26
reprodução é a possibilidade de colocar em foco uma compreensão teórica 
específica da psicanálise, observada em dinâmicas institucionais, clínicas 
e pessoais que podem levar a distorções na condução dos tratamentos e a 
prejuízos para a vida pessoal e institucional dos terapeutas. Nesse processo 
seletivo, o interessado (que deve passar por uma entrevista pautada por crité-
rios da instituição), além de obrigado a fazer análise (quatro vezes na semana) 
e supervisão no mesmo espaço, ainda precisa dispor de recursos financeiros 
suficientes ao pagamento da formação teórica, cujo custo é alto, para que 
possa ser reconhecido como psicanalista. 
Tais apontamentos nos remetem a pensar que, se pudéssemos aproxi-
mar essa discussão das denúncias do transfeminismo, sobre a dificuldade do 
acesso a direitos básicos da população trans à vida (como saúde, assistência, 
educação, trabalho etc.), bem como do movimento negro no Brasil, frente à 
desigualdade salarial e de educação, poderíamos perceber que, mesmo não 
diretamente, essa exclusividade seletiva na formação do analista dá origem a 
uma espécie de categoria normativa e a uma ausência de representatividades 
para a formação e figura desse profissional11:
são questões referentes às lutas pelo capital cultural, ao poder simbólico 
das hierarquias constituídas durante a formação, à submissão ou resis-
tência dos candidatos a algumas imposições teóricas, ao machismo e a 
homofobia travestidos de conhecimento científico que aparecem nos se-
minários, congressos, publicações e principalmente, suas consequências 
na formação dos analistas. (ZAMBRANO, 2018, p. 17).
Por fim, mas não menos relevante, é a análise como condição essencial 
para a autorização de si mesmo a analisar um outro. Aqui, poderíamos pensar 
que essa seria uma chave importante para a aposta contra normatividades, 
mas acreditamos que nem mesmo ela seja garantia, tendo em vista que, se 
existe uma manutenção seletiva na formação, é inevitável que o interessado na 
psicanálise – ou até mesmo futuro analista – possa vir a cair nas mãos de um 
analista que participa do fluxo normativo acerca do qual estamos discorrendo.
11 Público facilmente observado em eventos de instituições psicanalíticas: pessoas brancas-hetero-cisgê-
neras-sem deficiência assistindo a palestrantes brancos-heteros-cisgêneros-sem deficiência etc. 
27
Da exclusividade seletiva na formação a não escuta do 
analista
Se pensarmos na ausência de representatividade por meio de marcadores 
interseccionais na formação de psicanalistas (como identidade de gênero, 
orientação sexual, classe, raça etc.), podemos perceber que todo ponto de 
vista da rede significante, quando está em relação à rede enunciativa, é pos-
sível de ser utilizada e inteligível em um determinado tempo e contexto. Essa 
situação nos faz lembrar como, até 1980, ou seja, há pouco tempo, era proi-
bida a formação em psicanálise para homossexuais, como explica Bulamah 
(2016). O autor evidencia, ainda, como, após a queda dessa proibição, com a 
inserção de homossexuais fazendo formação em psicanálise, um certo tipo de 
colagem etiológica das homossexualidades à categoria clínica da perversão 
pôde ser colocada em questão, gerando um movimento da teoria psicanalítica 
que caminha no sentido de uma escuta não normativa e não patologizante. 
 Assim, se a representatividade de homossexuais na formação mudou ou 
colocou a teoria em questão, devemos lembrar que ela está sempre em relação 
ao regime de verdades, como aponta Foucault (2008). Tanto a formação quanto 
a escuta estão atadas a esse regime, o que não quer dizer que ele seja imutá-
vel, mas que é sempre tenso e dependente do jogo de relações de poder, cujo 
efeito de verdade mais legítimo é sempre um acoplamento – que vai definir o 
que se pode falar e escutar. Nesse sentido, a ausência de representatividades 
interseccionais na formação de analistas pode colocar em cena leituras nor-
mativas frente às identidades dos sujeitos contemporâneos. 
Um exemplo de leitura normativa do gênero é aquela que conduz, muitas 
vezes, a maneira de organizar e compreender o sexo, o gênero, o corpo e a 
identidade, segundo Butler (2016), possibilitando uma legitimação da mul-
tiplicidade das posições corporificadas ou a manutenção de normativas que 
acabam por levar o tratamento a uma linearidade cis-hetero-sexista. Desse 
modo, ao pensarmos a formação do psicanalista, temos, todavia, que retomar 
as recomendações fundamentais sobre o exercício da psicanálise em Freud 
(1912/1996). No texto, o autor é enfático ao prever os caminhos éticos a todo 
interessado na psicanálise, advertindo, principalmente, sobre o cuidado que 
o psicanalista deve ter para certificar-se de não estar exercendo resistências ao 
caminho da escuta. Ele nos oferece proposições essenciais para o manejo da 
transferência e a direção do tratamento com qualquer sujeito. Porém, como 
poderíamos pensar essas resistências da escuta, hoje, se a epistemologia ofe-
recida para a clínica, muitas vezes, não faz o exercício de atualizar-se para as 
28
questões do nosso tempo? Como pensar as resistências do analista, diante 
das questões de gênero, se as instituições ainda são rigidamente seletivas na 
forma de ingresso? 
Nesse contexto, se estamos nos deparando com um certo limite da teoria 
psicanalítica diante das questões de gênero, como afirma Porchat (2018), acres-
centaríamos, ainda, a ausência de representatividades nas formações, pois isso 
nos parece ter como consequência algo que já era objeto de alerta por Freud 
(1912/1996): um psicanalista escolhendo o que se escuta e inclinando-se nas 
suas próprias expectativas – situação nos faz lembrar toda a produção teórica 
violenta, patologizante e estigmatizante psicanalítica frente a experiências 
não-cisgêneras, conforme aponta Butler (2003). 
Assim, se a formação não der conta de pensar as questões do seu tempo, 
repensando constantemente a teoria, e se o analista não estiver atento a ofe-
recer a tudo o que se ouve a mesma atenção flutuante, mantendo a influência 
consciente longe de sua capacidade de observação e escuta, o efeito disso 
pode ser uma escuta que se preocupa em notar alguma coisa ou encaixar 
a teoria naquilo que o paciente fala. Nesse sentido, pensando no recorte a 
que este escrito se destina, se o analista pensar o gênero como um elemento 
central e acabar esquecendo de prestar atenção aos outros elementos caoti-
camente desordenados,sem ligação ou continuidade, ele poderá fazer uma 
seleção prejudicial do que ouve, tornando o gênero o principal problema do 
tratamento, em uma direção da cura centrada na busca por etiologias. Ainda 
no texto, Freud destaca que
para ter as condições de escuta, além do analista ter de ser capaz de usar 
de tal forma seu inconsciente como instrumento de análise, ele precisa ser 
um indivíduo aproximadamente normal [...] submetido a uma purificação 
psicanalítica e tenha tomado conhecimento daqueles seus complexos que 
seriam capazes de perturbar a apreensão do que é oferecido pelo anali-
sando. (FREUD, 1912/1996, p. 157).
Diante disso, será que poderíamos pensar que essa “purificação psicana-
lítica” provocou uma formatação normativa do analista e, consequentemente, 
da escuta, razão pela qual há profissionais que escolhem, ainda, pensar em 
etiologias e diagnósticos 12frente às questões de gênero? Estariam os analistas 
fazendo uma escolha inconsciente – já que gênero não se torna questão – do 
12 O problema não é hipotetizar etiologias e diagnósticos, mas a antecipação prévia de psicose/perversão 
antes da escuta do sujeito.
29
gênero como problema em um silenciamento e uma impossibilidade de es-
cuta para outras questões do sujeito? Poderíamos pensar, hoje, a partir das 
possibilidades críticas que temos, à luz dos estudos de gênero, que existiu um 
histórico de patologização das dissidências de gênero por meio de um diag-
nóstico apressado, selvagem, sem escuta do sujeito, ou seja, um diagnóstico 
não psicanalítico por parte dos psicanalistas, justificado pela possibilidade 
normativa de leitura, escuta e intervenção? Seria o gênero um elemento in-
consciente que os analistas ainda não levam em conta como conhecimento 
necessário do que está oculto em si mesmo, conforme enfatizou Freud? 
Essas questões, enfim, estão se apresentando e nos lembrando que não 
parece à toa que Freud (1913) compara o tratamento psicanalítico ao jogo de 
xadrez, na infinita variedade de movimentos. Por fim, se a psicanálise ressalta 
a hipersingularidade enunciada em uma situação de comunicação entre pa-
ciente e analista, pelas vias de acesso ao desconhecido que habita cada um, 
muito mais do que padrões de adaptação à moral e aos costumes vigentes, 
conforme apontam Macedo e Falcão (2005, p. 67), por que razão existe um 
histórico de patologização que coloca as experiências gênero-dissentes na 
psicanálise, na maioria das vezes, alocadas a um diagnóstico de psicose e 
perversão, como já referenciado por Stona (2019)?
 Em nosso entendimento, acreditamos que a formação do psicanalista é 
um processo essencial que contribui para essa forma de manejo clínico, na 
medida em que, como método e técnica, ela deve ser (re)pensada no que diz 
respeito ao efeito de sua ação terapêutica/analítica sobre o sujeito. Portanto, 
apostamos que ações afirmativas poderiam ser uma forma de contrapor esse 
discurso normativo estabelecido, intencionalmente ou não, nas instituições 
de formação. As ações afirmativas, segundo Barroso (2004), Piovesan (2008) e 
Chaves (2015), referem-se a um conjunto de políticas públicas de acesso para 
determinados grupos (étnicos, raciais, religiosos, de gênero ou de casta) que 
historicamente são discriminados e estão em constante desvantagem social 
e econômica, no passado ou no presente. 
As políticas de ação afirmativa visam a romper com essas barreiras ins-
tituídas estruturalmente, permitindo uma forma mais justa de acesso de tais 
grupos a espaços de educação, saúde, emprego, bens materiais e redes de 
proteção social, assim como de reconhecimento cultural e, por que não, da 
formação em psicanálise.
30
Considerações finais
Com o objetivo de pensar uma escuta clínica ética e afinada às questões 
de seu tempo, escapando de normatizações, percorremos pontos da formação, 
entre os quais as institucionalizações, o leitor, os pares e a transmissão, o texto 
psicanalítico e os dispositivos de formação, que chamaram nossa atenção. 
Isso foi feito a fim de que, quando tais questões surgirem, estejamos prontos 
a romper com essas manutenções normativas, visto que, se assim não o fizer-
mos, elas poderão ter como efeito violências, discriminações, estigmatizações, 
patologizações e normatizações contra as dissidências de gênero, operando 
por meio e em nome da psicanálise. 
Percebemos, enfim, o quão delicado é falar da formação do psicanalista 
como um elemento que dificulta o processo de rompimentos com normati-
vas, na medida em que a psicanálise se estruturou por meio de uma ética do 
desejo exterior a qualquer normatização desde a sua fundação e, também, 
porque não há possibilidade de controle desses pressupostos. De qualquer 
sorte, mesmo que houvesse, não teríamos a garantia de um analista “seguro”, 
como apontam Santos & Polverel (2016), produzindo uma escuta sensível a 
questões de gênero, por exemplo. 
O que podemos pensar é que, se partirmos da ideia de que tudo já estaria 
em Freud e Lacan, acabaríamos por limitar a psicanálise apenas a uma teo-
ria normativa e criadora de categorias do sujeito. A partir disso, acreditamos 
cada vez mais na necessidade de pensarmos em uma clínica da potência, 
em contraponto a uma clínica da patologização, tensionando os espaços de 
formação para atravessarem as fronteiras entre as áreas do conhecimento, 
em busca de diálogos com as questões do nosso tempo. Os argumentos apre-
sentados por uma maioria de psicanalistas, frente às questões de gênero, nos 
colocam diante de certos paradoxos quando tentamos nos aproximar de um 
possível fazer clínico não normatizante. Portanto, apesar deste artigo ter se 
originado da experiência de escuta clínica das transidentidades e do confronto 
de discussão entre a formação em psicanálise e os estudos de gênero, nosso 
interesse se resumiu a problematizar a formação do analista como principal 
entrave diante das possibilidades de rompimento de pressupostos normativos 
na escuta clínica. 
Nesse cenário, se não tivermos uma formação que nos permita escutar 
as novas enunciações da clínica, hoje, a exemplo das dissidências de gêne-
ro, sem condições prévias de inteligibilidade diagnóstica, nós entenderemos 
conceitos como complexo de Édipo, psicose, perversão etc. como conceitos 
31
prontos, prescindindo da escuta singular. Essa situação nos mostra a neces-
sidade de uma reinvenção constante e uma desacomodação da teoria, mas, 
principalmente, indica o quanto é fundamental questionarmos como estão as 
análises e as formações dos analistas, pois, em última observação, é como se 
gênero não se tornasse questão de análise. Em vista disso, uma dúvida se faz 
presente: o que se produz, enquanto teoria, mantendo uma forma exclusiva de 
formação? Quais são as consequências dessa exclusividade na teoria, na escuta 
e na intervenção dos psicanalistas frente às questões de gênero na clínica? 
Assim, a formação do psicanalista não é a aquisição de competências 
técnicas oriundas de regras burocratizadas e rígidas. Embora não exista uma 
formação em psicanálise fora de uma experiência comum, atualmente, consi-
derando os diversos dispositivos (escolas, grupos de estudos, cartéis e a pes-
quisa na universidade) disponíveis, a formação do analista pode, ainda, estar 
alocada em uma ética totalitária com posturas normativas, adaptativas, com 
técnicas diagnósticas e de doutrinamento, ou pode estar situada em uma ética 
contingente e polifônica, que leve em conta cada um como responsável por 
sua formação, em sua radical singularidade de experiência com a psicanálise.
 Por fim, a formação em psicanálise é algo a ser refeito, continuamente, 
devido à necessidade de ocuparmos uma posição subjetiva de não saber. 
Afinal, o psicanalista só se autoriza de si mesmo e por alguns outros a partir 
do seu desejo, segundo Lacan (1973-1974), e a formação é, sempre, uma (de)
formação, pois não cessa de se inscrever, como explica Fingerman (2016). 
32
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SOBRE MACACOS, CYBORGS
E TRANSEXUAIS: 
A PSICANÁLISE E 
OS LIMITES DO HUMANO
Eduardo Leal Cunha
36
Em 17 de novembro de 2019, Paul B. Preciado, filósofo autodeclarado 
homem trans, responde ao convite da Escola da Causa Freudiana de Paris, 
uma das mais tradicionais e poderosas instituições psicanalíticas de herança 
lacaniana, com uma fala contundente que teve imediata repercussão no meio 
psicanalítico internacional.
Há, certamente, no texto que Preciado endereça aos psicanalistas e à 
própria psicanálise, muitas coisas – ideias, perguntas, provocações – que po-
dem nos fazer trabalhar tanto teórica quanto psiquicamente, mobilizando 
conceitos e afetos, nos fazendo, muitas vezes, nos confrontarmos com nossas 
resistências. Assim, ao lê-lo, me vem à mente a famosa e praticamente intradu-
zível noção freudiana de Durcharbeitung, o trabalho psíquico necessário após 
uma interpretação – trabalho que só é possível quando identificamos nossos 
pontos cegos e percebemos o que repetimos sem elaborar. Esse, me parece, 
é o trabalho a ser feito por nós com o texto de Preciado, e é nessa direção que 
este texto se movimenta.
Preciado, com sua fala, não apenas nos interpela, mas, sobretudo, nos 
interpreta, tenta nos dizer o que não conseguimos pensar, o que nos parece 
impossível, ou simplesmente inaceitável, ameaçador ou por demais íntimo, 
estranho, intimidante, infamiliar. De forma inversa aos analistas da audiên-
cia, que muitas vezes o ouvem, mas não o escutam, Preciado procura tornar 
audível – nos textos teóricos ou nos risos, vaias e silêncios da plateia – o que, 
embora não seja dito ou sequer pensado, está ali, produzindo esses efeitos, 
determinando o incômodo que se converte em vais, risos, silêncios e impos-
sibilidade de escutar. É assim que ele nos oferece “a oportunidade de uma 
terapia política de suas [nossas] próprias práticas institucionais.” (PRECIADO, 
2020, p. 532), terapia que se apoia em uma crítica epistemológica com a qual 
se reafirma a articulação – em verdade familiar a Freud – entre modos de ser, 
modos de saber e modos de sofrer.
Este trabalho de interpelação/interpretação se faz presente desdeos pri-
meiros momentos da sua fala, sobretudo no enunciado que se materializa em 
seguida no título do livro que dá corpo à sua intervenção: eu sou um monstro 
que lhes fala. É, portanto, já na capa do pequeno volume, em sua face mais 
visível, feita para nos provocar e nos seduzir, que se encontra o que me parece o 
principal eixo da sua enunciação, sobretudo quando pensamos em tomá-la em 
referência à nossa escuta das experiências transidentitárias e às suas condições 
de possibilidade. Ali, na capa, posta de modo tão evidente que corre o risco de 
passar desapercebida, como a célebre carta roubada do conto de Edgar Allan 
Poe que tanto serviu a Lacan para nos dizer dos mistérios do inconsciente.
37
É sobre essa frase bem curta que desenvolvo o meu argumento e a in-
terrogação, o enigma que o conduz: o que pode fazer um analista e o que se 
passa em uma análise que se faz em torno de um sujeito que se apresenta 
como monstro, que se sujeita a ser monstruoso, que se percebe ou é percebido 
como tal? Um monstro que fala e que será ou não escutado: como monstro 
por um humano, como humano por um humano, como monstro por outro.
É a partir daí que endereço ao leitor algumas reflexões sobre o impacto 
das experiências transidentitárias sobre a clínica psicanalítica, e o faço como 
psicanalista que tem nos últimos anos não apenas procurado escutar analiti-
camente pessoas trans, mas também as escutar politicamente, interrogando, 
ao mesmo tempo, as respostas que a psicanálise tem dado a essas pessoas 
e o modo como essas respostas ressoam a teoria, repercutem na elaboração 
contemporânea da clínica e impactam nossa compreensão dos modos de viver 
juntos e o nosso posicionamento sócio-político.
Começo nosso breve percurso com uma pergunta simples: o que define 
um monstro? 
Segue a resposta de Preciado: “O monstro é aquele que vive em transição. 
Aquele cujo rosto, corpo e práticas não podem ainda serem considerados 
como verdadeiros em um regime de saber e de poder determinados” (PRECIA-
DO, 2020, p. 300). Ser monstruoso, sentir-se como tal, é tocar nos limites da 
humanidade, é correr o risco de não se reconhecer ou ser reconhecido como 
humano. Mas Preciado nos diz que não há – e não deve haver – neste humano 
e na demarcação dos seus limites nada de natural ou de transcendente. Hou-
ve um tempo em que ser humano requeria uma alma cristã, e foi assim que 
os povos originários das Américas se viram reduzidos a objetos ou animais, 
ainda que a humanidade possível estivesse sempre no horizonte, ao preço 
da conversão à fé cristã, o que não era outra coisa senão a submissão ao que 
Preciado descreve como epistemologia: uma certo regime político e estético 
regulado por um sistema de saber-poder particular.
O monstro pode ser também, nos termos de outra pessoa trans, aquele 
percebido como motivo de estranhamento e curiosidade, que vive, na melhor 
das hipóteses, uma “segunda humanidade” (BEAUVOIR, 2018, p. 12). 
Ser monstro, habitar o registro do monstruoso, implica, portanto, viver a 
experiência de exclusão de uma humanidade primeira, afirmada como a única 
verdadeira e em seguida naturalizada, como no mito barthesiano (BARTHES, 
1985), que faz com que aqueles que vivem experiências transidentitárias sejam 
38
excluídos do regime da verdade. Eles seriam, no máximo, simulacros de huma-
nos, posto que encarnados em uma simulação do masculino e do feminino.
Mas é a partir desse lugar de exclusão, da verdade e do humano, des-
se lugar impossível, que autores como Atena Beauvoir e Paul B. Preciado se 
engajam na desconstrução daquela antropologia que as faz monstruosas e 
procuram “assumir que não há um modelo humano. Não há verdade de uma 
unidade humana. Não há destino para a espécie humana senão aquele que 
ela mesma constrói para si, querendo chamar de natural, comum ou normal.” 
(BEAUVOIR, 2018, p. 12).
Atena Beauvoir, mulher trans de Porto Alegre, universitária, se aproxima 
aqui do homem trans europeu para nos dizer que sua interrogação transan-
tropológica pretende transformar também as existências ditas cisgêneras e 
desvelar “as razões pelas quais suas existências foram construídas ou como 
nunca foram livres para a construção de si mesmos.” (BEAUVOIR, 2018, p. 13).
Assim, a novidade que vivemos hoje é que, se muitos de nós parecem 
acomodados a esse incômodo produzido pelo encontro com pessoas trans, 
que nos leva a acomodá-las em jaulas diagnósticas, essas pessoas trans, por 
sua vez, não apenas já não se contentam em habitar esse zoológico que po-
demos visitar esporadicamente, mas percebem que, para sair dessas jaulas, 
é preciso subverter a antropologia e o que nos define ou não como humanos.
É desse modo que a questão do confronto entre o humano e o monstruo-
so não pode ser percebido como mero artifício retórico, mas deve, sim, ser 
tomado como índice do que se passa efetivamente, do que está em questão, 
na experiência transferencial que marca a escuta clínica das dissidências de 
gênero.
Refiro-me a essa demarcação dos limites entre o humano e o não humano, 
ao modo como reconhecemos no outro um ser como nós, ou o posicionamos 
para além das fronteiras da humanidade, ou em suas bordas: animal, objeto, 
monstro. Refiro-me ainda aos modos como esses limites podem ou devem 
aparecer numa experiência de análise, pois indissociável das maneiras e dos 
caminhos pelos quais nos autoformamos, nos reconhecemos como sujeitos 
e nos posicionamos no mundo. 
O que se passa, portanto, com a escuta de pessoas trans, e que é colocado 
de maneira clara por Preciado, desde o título da sua intervenção, é, a meu ver, 
uma interrogação sobre os limites do humano e como estes podem ou devem 
ser ultrapassados ou redefinidos. 
39
Penso que esse confronto com o inumano, em nós ou no outro, é um 
elemento central a qualquer experiência analítica, mas que tem se mostrado 
evidente no encontro com experiências transidentitárias, pois é sobretudo 
neste encontro que nossos modos de demarcar as fronteiras da humanidade 
e nossa forma de reconhecer ou não o outro como verdadeiro têm sido atual-
mente postos em questão.
Por fim, pensando na centralidade desse confronto com o monstruoso em 
nossas análises, talvez seja preciso considerar que só nos embrenhamos no 
passado e exploramos a nossa história porque temos no horizonte a constru-
ção, ou reconstrução, de nós mesmos e de nossa humanidade singular. Assim, 
curiosamente, talvez não seja mera coincidência que Atena Beauvoir situe 
como objeto do seu projeto transantropológico “teorizar sobre meu próprio 
existir” (BEAUVOIR, 2018, p. 15), enquanto Jean Laplanche (1992) define como 
objeto da psicanálise e de sua clínica o homem enquanto teórico de si mesmo. 
Fabricando monstros
Preciado nos conta a história de um macaco kafkiano, “transportado para a 
Europa e levado a um circo de animais” (PRECIADO, 2020, p. 40), mas nos podia 
ter lembrado de outros personagens, como, por exemplo, Joseph Merrick, o 
homem elefante, ou Saartjie Baartman, a vênus hotentote, ambos transforma-
dos pelo cinema em heróis marginais; da mesma forma que Lili Elbe, a segunda 
mulher a ser submetida à dita cirurgia de redesignação sexual.13 Os monstros, 
ao que parece, ficam muito bem na tela do cinema, quando nossa relação com 
eles é mediada por um processo de espetacularização, mas incomodam um 
pouco mais quando invadem o nosso cotidiano e se colocam diante de nós 
demandando reconhecimento como seres iguais ou, ao menos, com o mesmo 
direito à existência e à presença na esfera pública.
Na vida, no entanto, como no cinema, a produção de monstros se alia, 
portanto, à espetacularização e objetificação do diferente, do desviante, muitas 
vezes em sintonia com sua patologização e condenação moral. Nesse pon-
to, como retomaremos em seguida, a discussão sobre as transidentidades 
se encontra com reflexões sobre a experiência perversa e a história da sua 
apropriação pela medicina e pela psicanálise, nos mostrando como essa de-
marcação das fronteiras do humanoé indissociável não apenas da questão 
13 O homem elefante (The elefant man, 1980). Direção de David Lynch. A Vênus negra (Vénus noire, 2010). 
Direção de Abdellatif Kechiche. A garota dinamarquesa (The Danish girl, 2015). Direção de Tom Hooper.
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epistemológica e do registro estético, como destaca Preciado, mas também 
dos valores e normas que regulam nossa vida em comum.
No argumento de Preciado, a fabricação do monstro corresponde ao esta-
belecimento de um modo universal, verdadeiro, de constituição do humano, 
o que ele articula, no campo psicanalítico, ao paradigma da diferença sexual. 
Não podemos, certamente, no escopo deste capítulo, seguir todos os seus pas-
sos – e menos ainda considerar algumas respostas já dadas pela comunidade 
psicanalítica –, mas creio ser legítimo destacar um aspecto dessa problemática 
que toca diretamente à questão dos limites do humano: a figuração do regime 
da diferença sexual “como uma rede semio-técnica e cognitiva que limita 
nossa percepção” (PRECIADO, 2020, p. 177). A dita ordem simbólica passa a 
ser compreendida sobretudo como regime estético, o qual não apenas esta-
belece o modo como percebemos o mundo, demarcando limites para o que 
conseguimos perceber, mas define, ainda, a maneira como compreenderemos 
aquilo que chegarmos a perceber. 
Esse limite perceptivo-cognitivo definido pelo regime estético vigente faz 
com que certas formas de existência se tornem ininteligíveis ou mesmo imper-
ceptíveis, nos fazendo pensar e agir como se não houvesse outra humanidade 
possível que não aquela definida por esse regime estético e por essa “rede 
semio-técnica e cognitiva”. 
Com base nessas formulações de Preciado, somos levados a pensar nos 
riscos de se estabelecer na psicanálise qualquer forma de antropologia, uma 
antropogênese, e também um humanismo psicanalítico. Ou seja: o risco de que 
a psicanálise, ignorando o caráter transitório historicamente e socialmente de-
terminado do regime estético que sustenta uma concepção da ordem simbólica 
referida a categorias como Complexo de Édipo e Diferença Sexual, legitime um 
ideal de humano – pretensamente a-histórico –, o qual produz inevitavelmen-
te um campo do inumano ou insuficientemente humano, a ser habitado por 
aqueles que escapam aos padrões de inteligibilidade hegemônicos: o monstro 
de Preciado, a segunda humanidade de Atena Beauvoir. Nos termos, ainda, de 
Preciado, estamos nos referindo muito simplesmente à possibilidade de que 
a psicanálise se reduza de fato a um “etnocentrismo que não reconhece sua 
posição politicamente situada” (PRECIADO, 2020, p. 249).
O tema da percepção nos conduz ainda às recentes discussões sobre uma 
utopia queer e a autores como Jack Halberstan (2020), que trata não apenas 
da perturbação dos limites do humano, mas de como tal perturbação requer 
o compromisso de produção de um novo real, posto que os limites do huma-
no, como do mundo e do universo, são, no fundo, definidos pelos limites do 
41
nosso pensamento, da nossa forma de perceber a realidade e de imaginar 
outros mundos e existências possíveis: “os processos que nos conduzem a 
uma mudança epistemológica implicam profundas modificações tecnológicas, 
sociais, visuais e sensoriais” (PRECIADO, 2020, p. 784).
Assim, quando Preciado nos fala de uma “estética da diferença sexual” 
(PRECIADO, 2020, p. 494), ele procura articular diferentes registros, eviden-
ciando tanto a dimensão política dos processos de subjetivação quanto os 
impactos dos nossos modos de perceber e compreender o mundo à nossa volta 
sobre os processos de transformação social. Com isso, a mudança subjetiva e 
a mudança política se tornam indissociáveis, ao tempo em que se vinculam à 
produção de novos regimes estético e epistemológico, ou seja, à invenção de 
novas formas de compreender o mundo e nossa própria existência. 
A própria psicanálise talvez nos dê outras pistas interessantes sobre o 
modo como, enquadrados em certo regime estético e epistemológico, expe-
rimentamos psiquicamente – inclusive na clínica – essa atribuição do caráter 
monstruoso ao outro, inviabilizando assim o reconhecimento de novas formas 
de existência. Para tanto, é preciso lembrar que, na breve história da apropria-
ção psicanalítica das experiências transidentitárias, a questão do humano e 
dos seus limites parece se configurar numa espécie de herança deixada pela 
compreensão de outras formas de dissidência, agrupadas na categoria geral 
das perversões sexuais. 
Apesar de a maior parte das leituras psicanalíticas das dissidências de 
gênero fazer referência à psicose, baseando-se principalmente no cruzamento 
da descrição estabelecida por Robert Stoller do que seria o dito transexual 
verdadeiro com a leitura lacaniana das psicoses com base no mecanismo da 
foraclusão, podemos perceber uma espécie de sombra produzida pela refe-
rência, às vezes lateral, às vezes implícita, à categoria de perversão. Tal sombra 
aparece, por exemplo, na crítica de muitos psicanalistas a autores da teoria 
queer, na qual estes são acusados de recusar a diferença sexual e a dimensão 
real da sexualidade ao concebê-la como meramente discursiva, e na tomada 
de certas formas de dissidência em relação à norma binária de gênero como 
modalidades contemporâneas de perversão, assentadas no desmentido da 
castração e da lei simbólica14.
14 Para uma discussão sobre os usos da categoria de perversão na crítica da cultura e dos processos con-
temporâneos de subjetivação, inclusive no que se refere à teoria queer, ver: CUNHA, Eduardo L. O homem 
e suas fronteiras: uma leitura crítica do uso contemporâneo da categoria de perversão. Ágora – Estudos 
em Teoria Psicanalítica vol.19 n.1, 2016; CUNHA, E. L.. Sexualidade e perversão entre o homossexual e o 
transgênero: notas sobre psicanálise e teoria queer. Revista EPOS, Vol. 4 n .2. 2013.
42
Tomada de modo crítico, e a partir de uma perspectiva radicalmente di-
ferente, a referência à perversão nos parece, no entanto, verdadeiramente 
central ao entendimento das dificuldades – e também das potências – pro-
duzidas no encontro dos psicanalistas com as experiências transidentitárias, 
pois nos permite compreender a articulação entre a questão transidentitária 
e o problema das identificações e dos seus limites. Desse modo, o encaminha-
mento dado nesta minha breve reflexão é responder a essa questão a partir 
do entendimento de que a figura do monstruoso aparece em relação com a 
demarcação dos limites daquilo com o que podemos nos identificar e assim 
reconhecer como humanos. 
Lembremos mais uma vez que, ao menos de início, não é a pessoa trans 
que se coloca voluntariamente na posição de monstro. Assumir tal posição e 
reivindicar para si a anormalidade já é em verdade um segundo passo e uma 
forma de resistência. Ela havia sido posta em tal lugar antecipadamente, e 
esta posição, como nos mostra Preciado, é ratificada pela plateia que, diante 
de sua fala, ri, vaia, quer expulsá-lo ou simplesmente se reduz a um silêncio 
constrangedor. 
O ponto relevante, e que a meu ver nos conduz ao tema dos vínculos 
identificatórios e de seus limites, é que não se trata de um silêncio que possa 
abrir lugar para que o outro fale, e assim abra espaço também para a transfe-
rência que tornará possível a análise. Este silêncio é, principalmente, contra-
transferencial; ele fala da transferência do analista, das reações, sobretudo 
inconscientes, deste em relação àquele sujeito que não consegue suportar. 
Um tipo de silêncio que me parece ter marcado desde sempre a relação da 
psicanálise com essa figura privilegiada do monstruoso, que é o dito perverso.
O interesse teórico do masoquismo perverso é tão evidente que é de espe-
rar que, quando se tem a oportunidade de observar um caso desses, nos 
debrucemos sobre ele sem hesitar. Todavia, a observação que porei aqui 
à vossa disposição já tem mais de dez anos, e não creio que se possa por 
entre parêntesis esse longo período, pois ele diz-nos precisamente qualquer 
coisa de essencial

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