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120 Unidade II Unidade II 5 FARMACOLOGIA CARDIOVASCULAR E RENAL Os fármacos que alteram a função cardiovascular podem fazê-lo por atuação direta sobre o coração (antiarrítmicos, cardiotônicos e alguns anti-hipertensivos), sobre os vasos (anti-hipertensivos) ou sobre o sistema renal (diuréticos, usados no tratamento da hipertensão arterial). 5.1 Antiarrítmicos e cardiotônicos Para melhor compreensão dos efeitos exercidos pelos fármacos que atuam sobre o coração, há necessidade de se conhecer os mecanismos de ativação da contração e relaxamento do músculo cardíaco. O ciclo cardíaco é o desempenho do coração humano desde o final de um batimento cardíaco até o início do próximo. Consiste em dois períodos: o primeiro durante o qual o músculo cardíaco relaxa e se enche de sangue (diástole) e o segundo durante a forte contração e bombeamento de sangue (sístole). Após seu esvaziamento, o coração relaxa imediatamente e se expande para receber outro influxo de sangue que retorna dos pulmões e outros sistemas do corpo, e então volta a contrair para bombear o sangue novamente. Um coração com desempenho normal deve ser totalmente expandido antes de poder bombear com eficiência novamente. Existem duas câmaras atriais e duas ventriculares nesse órgão: o átrio esquerdo, o ventrículo esquerdo, o átrio direito e o ventrículo direito. Essas câmaras trabalham em conjunto para repetir o ciclo cardíaco continuamente. No início do ciclo, durante a diástole ventricular, o coração relaxa e se expande ao receber sangue nos dois ventrículos pelos dois átrios; então, próximo ao final da diástole ventricular, os dois átrios começam a se contrair (sístole atrial), e cada átrio bombeia sangue para o ventrículo “abaixo” dele. Durante a sístole ventricular, os ventrículos estão se contraindo e pulsando vigorosamente (ou ejetando) dois suprimentos de sangue separados do coração – um para os pulmões e outro para todos os outros órgãos e sistemas corporais – enquanto os dois átrios estão relaxados (diástole atrial). Essa coordenação garante que o sangue circule com eficiência por todo o organismo. Os movimentos do músculo cardíaco são coordenados por uma série de impulsos elétricos produzidos por células com função de marcapasso, encontradas no nodo sinoatrial e no nodo atrioventricular. Todas as células marcapasso exibem automaticidade, isto é, a capacidade de despolarizar de maneira rítmica acima de um limiar de voltagem. A automaticidade resulta na geração de potenciais de ação espontâneos. Em seu conjunto, as células marcapasso constituem o sistema de condução especializado que governa a atividade elétrica do coração. 121 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA O segundo tipo de células cardíacas inclui os cardiomiócitos atriais e ventriculares, que sofrem contração em resposta à despolarização e são responsáveis pela maior parte da contração cardíaca. Em situações patológicas, essas células podem adquirir automaticidade e, portanto, também passam a atuar como células geradoras de potenciais de ação. O potencial de ação cardíaco é resultado das alterações no potencial de membrana das células de marcapasso e das células de condução, que resultam na atividade elétrica responsável por excitar os cardiomiócitos e, assim, promover a contração cardíaca. Esse potencial de ação envolve a entrada de íons sódio e cálcio, nesta ordem, e a saída de íons potássio pelas células (veja a figura a seguir). É gerado no nodo sinoatrial, que apresenta atividade de marcapasso, conduzido pelos feixes de His até o nodo atrioventricular e do nodo atrioventricular até as fibras de Purkinje. 4 Entrada de Na+ Entrada de Ca2+ Saída de K+/Cl- Corrente retificadora de K+ Saída de K+ 0 2 3 ECG 4 1 Figura 46 – Esquema representativo do potencial de ação nas células de Purkinje, demonstrando a entrada e a saída de íons em cada fase, assim como a correlação com o registro do eletrocardiograma (ECG) de um coração normal Saiba mais Leia sobre a atividade marcapasso cardíaca em: DIFRANCESCO, D. The role of the funny current in pacemaker activity. Circulation Research, v. 106, n. 3, p. 434-446, 2010. As fibras de Purkinje estabelecem sinapses químicas com os cardiomiócitos e promovem a alteração no potencial de membrana dessas células, o que culmina na contração delas. O processo inicia com a abertura de canais de sódio e de cálcio na membrana dos cardiomiócitos, o que resulta no aumento dos 122 Unidade II níveis intracelulares desse íon e na abertura de canais de cálcio presentes no retículo sarcoplasmático. Esses íons estimulam a contração muscular, a partir da interação com a troponina, que é desligada do complexo actina-miosina e permite que esses filamentos deslizem um sobre o outro. O restabelecimento do potencial de repouso da membrana do músculo é realizado a partir de dois transportadores que atuam em conjunto: o transportador de Na+/Ca2+ e a Na+/K+ ATPase. 5.1.1 Antiarrítmicos As arritmias podem ser definidas como a anormalidade na frequência cardíaca, decorrente de alteração na origem do impulso nervoso no coração, na condução do impulso através das células cardíacas ou por uma associação de ambos, o que modifica a sequência normal da ativação atrial e ventricular, gerando instabilidade hemodinâmica e proporcionando enchimento e ejeção ineficazes. Ritmos cardíacos irregulares podem ocorrer em corações saudáveis e normais. As arritmias também podem ser causadas por certas substâncias ou medicamentos, como cafeína, nicotina, álcool, cocaína, fármacos para tosse e resfriado, entre outros. Estados emocionais como choque, medo ou estresse também podem causar ritmos cardíacos irregulares. Arritmias recorrentes ou relacionadas a uma condição cardíaca subjacente são mais preocupantes e devem sempre ser avaliadas por um médico. Há diferentes tipos de arritmias: • Taquicardia: ritmo cardíaco acelerado com taxa de mais de 100 batimentos por minuto. • Bradicardia: ritmo cardíaco lento com frequência abaixo de 60 batimentos por minuto. • Arritmias supraventriculares: arritmias que começam nos átrios (supra significa acima; ventricular refere-se às câmaras inferiores do coração ou ventrículos). • Arritmias ventriculares: arritmias que começam nos ventrículos (as câmaras inferiores do coração). • Bradiarritmias: ritmos cardíacos lentos que podem ser causados por doenças no sistema de condução do coração, como o nodo sinoatrial (SA), o nodo atrioventricular (AV) ou a rede His-Purkinje. Uma arritmia pode ser “silenciosa” e não causar nenhum sintoma. Se ocorrerem sintomas, eles podem incluir palpitações (sensação de batimentos cardíacos irregulares), tonturas, falta de ar, desconforto no peito, fraqueza ou fadiga, entre outros. As arritmias podem ser causadas por: doença arterial coronariana, hipertensão, cardiomiopatia, distúrbios da válvula cardíaca, desequilíbrios eletrolíticos no sangue, como sódio ou potássio, lesão após um infarto do miocárdio, processo de cicatrização após cirurgia cardíaca ou outras condições médicas. 123 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Os antiarrítmicos são fármacos capazes de controlar e/ou suprimir arritmias cardíacas. Didaticamente, esses fármacos são agrupados em quatro classes, com base em seu efeito eletrofisiológico celular dominante (veja a figura a seguir): • Classe I: são os bloqueadores dos canais de sódio. Os representantes dessa classe são subdivididos nas subclasses a, b e c. Eles bloqueiam os canais rápidos de sódio, diminuindo a condução nas células de condução cardíaca (sistema His-Purkinje). • Classe II: são os betabloqueadores, que afetam predominantemente os tecidos de canal lento (nós sinoatrial e atrioventricular), onde diminuem a taxa de automação e a velocidade lenta de condução e prolongam a refratariedade. • Classe III: são principalmente os bloqueadores de canais de potássio, que prolongam a duração do potencial de ação e a refratariedade nos tecidos dos canais lento e rápido. • ClasseIV: são os bloqueadores dos canais de cálcio não hidropiridínicos, que deprimem os potenciais de ação dependentes de cálcio nos tecidos de canal lento e, portanto, diminuem a taxa de automação e a velocidade de condução lenta e prolongam a refratariedade. 4 Entrada de Na+ Entrada de Ca2+ Saída de K+/Cl- Corrente retificadora de K+ Saída de K+ 0 2 3 4 1 Classe I: bloqueadores dos canais de sódio Classe II: betabloqueadores Classe III: bloqueadores dos canais de potássio Classe IV: bloqueadores dos canais de cálcio Figura 47 – Efeito dos antiarrítmicos sobre o potencial de ação cardíaco Antiarrítmicos da classe I Como já mencionado, os antiarrítmicos da classe I são bloqueadores dos canais de sódio (medicamentos estabilizadores da membrana), que bloqueiam os canais rápidos de sódio, diminuindo a condução nos tecidos dos canais rápidos do sistema His-Purkinje. No eletrocardiograma (ECG), esse efeito pode ser refletido como aumento da onda P, aumento do complexo QRS, prolongamento do intervalo PR ou combinação. Os fármacos de classe I são subdivididos com base na cinética dos efeitos do canal de sódio: • os fármacos de classe Ib têm cinética rápida: lidocaína, fenitoína, metilxantina; 124 Unidade II • os fármacos de classe Ic têm cinética lenta: flecainida, propafenona; • os fármacos de classe Ia têm cinética intermediária: quinidina, procainamida, disopiramida. Observação A lidocaína, quando administrada por via intravenosa, atua como antiarrítmico, e quando administrada localmente, atua como anestésico local. A cinética do bloqueio dos canais de sódio determina as frequências cardíacas nas quais seus efeitos eletrofisiológicos se manifestam. Como os fármacos de classe Ib têm cinética rápida, eles expressam seus efeitos eletrofisiológicos apenas em batimentos cardíacos acelerados. Assim, um eletrocardiograma obtido durante o ritmo normal a taxas normais geralmente não mostra evidência de lentidão na condução rápida do tecido. Os fármacos de classe Ib não são antiarrítmicos muito potentes e têm efeitos mínimos no tecido atrial. Os fármacos de classe Ic têm cinética lenta, portanto expressam seus efeitos eletrofisiológicos em todas as frequências cardíacas. Assim, um eletrocardiograma obtido durante o ritmo normal a frequências cardíacas normais geralmente mostra desaceleração da condução tecidual de canal rápido. Os fármacos de classe Ic são antiarrítmicos mais potentes. Os fármacos da classe Ia têm cinética intermediária, portanto seus efeitos de lentidão na condução tecidual de canal rápido podem ou não ser evidentes em um eletrocardiograma obtido durante o ritmo normal a taxas normais. Os fármacos da classe Ia também bloqueiam os canais de potássio repolarizante, estendendo os períodos refratários dos tecidos do canal rápido. No ECG, esse efeito é refletido como prolongamento do intervalo QT, mesmo em taxas normais. Os medicamentos de classe Ib e os de classe Ic não bloqueiam diretamente os canais de potássio. As principais indicações são taquicardia supraventricular para medicamentos classe Ia e Ic e taquicardia ventricular para todos os fármacos da classe I. Os efeitos adversos dos medicamentos de classe I incluem a pró-arritmia, uma “arritmia relacionada a fármacos”, que é o efeito adverso mais preocupante. Todos os medicamentos de classe I podem piorar a taquicardia ventricular. Os fármacos de classe I também tendem a diminuir a contratilidade ventricular. Como esses efeitos adversos têm mais probabilidade de ocorrer em pacientes com um distúrbio estrutural do coração, os medicamentos de classe I geralmente não são recomendados para eles. Assim, esses medicamentos geralmente são usados apenas em pacientes que não apresentam um distúrbio estrutural do coração ou naqueles que têm o problema, mas não têm outras alternativas terapêuticas. Existem outros efeitos adversos dos medicamentos de classe I específicos da subclasse ou do medicamento individual. 125 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Antiarrítmicos da classe II Como já mencionado, os antiarrítmicos da classe II são os betabloqueadores (propranolol, metoprolol, esmolol, atenolol, carvedilol, timolol), já abordados no tópico Simpatolíticos de ação direta. Esses fármacos afetam predominantemente os tecidos de canal lento (nodos sinoatrial e atrioventricular), onde diminuem a taxa de automação e a velocidade lenta de condução e prolongam a refratariedade. Assim, a frequência cardíaca é mais lenta, o intervalo PR é prolongado e o nodo atrioventricular transmite despolarizações atriais rápidas a uma frequência mais baixa. Os fármacos de classe II são usados principalmente para tratar taquicardias supraventriculares, incluindo taquicardia sinusal, reentrada nodal atrioventricular, fibrilação atrial e flutter atrial. Esses medicamentos também são usados no tratamento da taquicardia ventricular, aumentando o limiar da fibrilação ventricular e reduzindo os efeitos pró-arrítmicos ventriculares da estimulação dos adrenoceptores beta. Antiarrítmicos da classe III Os fármacos da classe III são bloqueadores de canais de potássio, com atividade estabilizadora de membrana. Os fármacos da classe III (amiodarona, bretílio, sotalol) prolongam a duração do potencial de ação e a refratariedade nos tecidos de canal lento e rápido. Assim, a capacidade de todos os tecidos cardíacos de transmitir impulsos em altas frequências é reduzida, mas a velocidade de condução não é significativamente afetada. Como o potencial de ação é prolongado, a taxa de automação é reduzida. O efeito predominante no ECG é o prolongamento do intervalo QT. Esses fármacos são usados para tratar taquicardia supraventricular e taquicardia ventricular. Os fármacos de classe III apresentam risco de pró-arritmia ventricular, principalmente taquicardia ventricular de torsades de pointes (um tipo específico de taquicardia ventricular que ocorre em portadores de distúrbios da atividade elétrica cardíaca denominada síndrome do QT longo). Antiarrítmicos da classe IV Os fármacos de classe IV são bloqueadores dos canais de cálcio (verapamil, diltiazem e nifedipina) que deprimem os potenciais de ação dependentes de cálcio nos tecidos de canal lento e, portanto, diminuem a taxa de automação e a velocidade lenta de condução e prolongam a refratariedade. A frequência cardíaca é mais lenta, o intervalo PR é prolongado e o nodo atrioventricular transmite despolarizações atriais rápidas a uma frequência mais baixa. Esses medicamentos são usados principalmente para tratar taquicardia supraventricular. Eles também podem ser usados para retardar a fibrilação atrial rápida ou flutter atrial. 5.1.2 Cardiotônicos A insuficiência cardíaca é uma síndrome complexa com alterações biológicas, funcionais e anatômicas do sistema cardiovascular de caráter progressivo, que leva à ativação de diversos mecanismos compensatórios, os quais, mesmo sendo benéficos inicialmente, acabarão contribuindo para a progressão do processo de disfunção ventricular. 126 Unidade II A insuficiência cardíaca é definida como a incapacidade do coração de fornecer o fluxo sanguíneo necessário para as necessidades metabólicas e funcionais dos órgãos vitais em condições normais. A associação das alterações hemodinâmicas e fisiológicas leva ao comprometimento progressivo da função miocárdica, com consequente piora do quadro clínico do paciente. Suscintamente, na insuficiência cardíaca ocorre diminuição do débito cardíaco, com aumento da frequência cardíaca e da resistência vascular periférica (vasoconstrição), causados pela ativação de mecanismos compensatórios do sistema nervoso autônomo simpático, que é ativado por meio dos quimiorreceptores e barorreceptores dos seios carotídeo e aórtico. A vasoconstrição periférica auxilia na manutenção da pressão arterial, visando adequar a perfusão tecidual, em especial miocárdica e cerebral. Contudo, com a vasoconstrição aumentada, ocorre simultaneamente enfraquecimento da musculaturacardíaca, a hemoconcentração e a consequente retenção de sódio e água. A vasoconstrição periférica pode agravar a insuficiência cardíaca, pois aumenta o trabalho do ventrículo esquerdo e diminui o volume sistólico. Em resumo, o coração apresenta força insuficiente e, na tentativa de manter seu trabalho adequado, altera a pré-carga, a pós-carga, o débito cardíaco, a força de contração (inotropismo) e seu desempenho, comprometendo sua função primordial: a de fornecer oxigênio para os tecidos. Dessa forma, instala-se um ciclo vicioso que pode evoluir para congestão, determinando assim o quadro de insuficiência cardíaca congestiva. Os mecanismos fisiopatológicos subjacentes são múltiplos: insuficiência cardíaca sem insuficiência ventricular, insuficiência ventricular com ou sem função sistólica ventricular anormal, taquicardias prolongadas ou taquiarritmias em corações normais. A associação de vários mecanismos agrava o prognóstico. Entre as principais causas de insuficiência cardíaca estão a doença crônica valvar mitral e as cardiomiopatias. Os princípios do tratamento dependem do tipo de insuficiência cardíaca encontrada. Os objetivos terapêuticos de médio e longo prazo não são apenas para corrigir as anormalidades hemodinâmicas, mas para melhorar a qualidade de vida e, se possível, aumentar a sobrevida do paciente. São utilizados fármacos que atuam diretamente sobre os cardiomiócitos (glicosídeos cardíacos) e também fármacos que diminuem a pressão arterial e, assim, melhoram o trabalho cardíaco por mecanismos indiretos (diuréticos, inibidores da ECA, antagonistas do receptor AT1 de angiotensina etc.). Os digitálicos, ou glicosídeos cardíacos, antigamente eram conhecidos como cardiotônicos, pois aumentam a força de contração do coração (efeito inotrópico positivo). Por esse motivo, eles possibilitam uma maior eficácia cardíaca. Entre os digitálicos, temos a digoxina, a digitoxina e a ouabaína, provenientes de plantas do gênero Digitalis (popularmente conhecidas como dedaleiras). O aumento da força da contração miocárdica desencadeada por esses fármacos deve-se, em última análise, ao aumento do cálcio intracelular livre, que interage com as proteínas contráteis, sem que haja aumento do consumo de oxigênio pelas fibras cardíacas. 127 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Atualmente, é um dos medicamentos cardíacos mais estudados, persistindo ainda muitas controvérsias com relação ao seu uso. Sua importância principal reside no fato de serem agentes inotrópicos viáveis para uso crônico, por via oral, em pacientes com insuficiência cardíaca. A estrutura química dos digitálicos é caracterizada por uma porção aglicona (genina), cujo núcleo básico é o ciclopentanoperidrofenantreno (núcleo estreoide), no qual se liga um anel lactona no átomo C17. O efeito cardíaco é determinado pela dupla ligação no anel lactônico e pelo grupo hidroxila no C14. As moléculas de açúcares, em geral, ligam-se ao C3 e estão relacionadas com hidrossolubilidade, penetrabilidade celular e duração da ação. A diferença estrutural entre os dois digitálicos mais usados terapeuticamente, a digoxina e a digitoxina, é a presença da hidroxila (OH) no C12 da digoxina (veja a figura a seguir). O O O O OO OO HO OH H H H H H H OH OH OH Figura 48 – Estrutura química da digoxina Um dos principais benefícios da digoxina na insuficiência cardíaca se deve ao seu efeito inotrópico positivo. Esse mecanismo de ação está relacionado à inibição da atividade da Na+/K+ ATPase (bomba de sódio/potássio) presente na membrana dos cardiomiócitos. Uma vez que a inibição dessa ATPase leva ao acúmulo de íons sódio no compartimento intracelular, o transportado de Na+/Ca2+ é indiretamente afetado e deixa de trocar íons sódio (que entram na célula) por íons cálcio (que saem da célula). Como consequência, ocorre aumento das concentrações intracelulares de cálcio. Os íons cálcio podem, direta ou indiretamente, atuar no mecanismo de excitação-contração, prolongando o tempo e a intensidade da contração das fibras do miocárdio (veja a figura a seguir). Os glicosídeos cardíacos apresentam baixo índice terapêutico, o que significa que as doses capazes de desencadear efeitos tóxicos são próximas das doses terapêuticas. A intoxicação está relacionada com o aumento excessivo de sódio e cálcio e diminuição do potássio no compartimento intracelular, o que desencadeia arritmias e contraturas. Observação Índice terapêutico é a relação entre a dose tóxica e a dose terapêutica de um fármaco e indica quantas vezes a dose de um fármaco pode ser aumentada sem que haja o desenvolvimento de toxicidade. 128 Unidade II Lembrete O transportador de Na+/Ca2+ e a Na+/K+ ATPase são importantes para restabelecer o potencial de repouso nos cardiomiócitos após a contração. Dose teraupêtica Na/K-ATPase GC GC GC GC GC Tempo Doses tóxicas Arritmias Contraturas Co nt ra çã o Na+ Figura 49 – Mecanismo de ação dos glicosídeos cardíacos (GC) Esse mecanismo é responsável pelo aumento da força de contração cardíaca observada com o uso dos glicosídeos cardíacos. Além disso, esses fármacos apresentam outras propriedades farmacológicas que influenciam a função cardíaca: ocorre restabelecimento dos reflexos barorreceptores e aumento da atividade vagal, que resulta na diminuição da frequência cardíaca. O aumento do cálcio intracelular induzido pelos glicosídeos cardíacos também predispõe os tecidos de condução (nodo sinoatrial, feixe de His e fibras de Purkinje) ao disparo prematuro, por tornar mais positivo o potencial de repouso de membrana, causando arritmias. Os efeitos adversos dos glicosídeos cardíacos são, em grande parte, decorrentes: (a) da inibição da Na+/K+ ATPase no coração; (b) da inibição da Na+/K+ ATPase em sítios extracardíacos; e (c) do aumento exacerbado da atividade parassimpática. Esses efeitos incluem arritmias ventriculares e atriais, distúrbios do trato gastrointestinal (anorexia, vômito, náusea e dor abdominal), distúrbios visuais (visão branca e amarelada, diplopia), fadiga, tontura e delírios. Os pacientes com intoxicação pelos digitálicos apresentam acidose metabólica, hipocalemia, hipomagnesemia e hipercalcemia. O controle desse quadro é realizado pela administração de fármacos antiarrítmicos, correção do desequilíbrio eletrolítico, implantação de marcapasso 129 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA temporário e administração de anticorpos antidigoxina, que visam impedir a ação do fármaco sobre os tecidos. Os glicosídeos cardíacos interagem com uma série de outros medicamentos, vários dos quais também são utilizados no tratamento de afecções cardiovasculares (diuréticos tiazídicos e de alça, betabloqueadores, antagonistas do cálcio, espironolactona) e, portanto, é necessário monitoramento contínuo e fornecimento de orientações aos pacientes. 5.2 Anti-hipertensivos e diuréticos A hipertensão arterial sistêmica é uma doença crônica caracterizada pelos níveis elevados da pressão sanguínea nas artérias. É considerada hipertensão arterial sistêmica quando os valores das pressões máxima (sistólica) e mínima (diastólica) são iguais ou ultrapassam os 140/90 mmHg. Essa condição faz com que o coração tenha que exercer um esforço maior do que o normal para fazer com que o sangue seja distribuído adequadamente no organismo. Além disso, a hipertensão arterial sistêmica é um dos principais fatores de risco para a ocorrência de acidente vascular cerebral, infarto do miocárdio, aneurisma arterial e insuficiência renal e cardíaca. A hipertensão arterial sistêmica é herdada dos pais em 90% dos casos, mas há vários fatores que influenciam nos níveis pressóricos, principalmente os hábitos de vida do indivíduo (tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas, obesidade, estresse, elevado consumo de sal, níveis altos de colesterol, sedentarismo). Além desses fatores de risco, sabe-se que sua incidência é maior na raça negra e em diabéticos e que ela aumenta com a idade. Os sintomasda hipertensão costumam aparecer somente quando os níveis pressóricos estão bem elevados: podem ocorrer dores no peito, dor de cabeça, tonturas, zumbido no ouvido, fraqueza, visão embaçada e sangramento nasal. A hipertensão arterial sistêmica não tem cura, mas deve ser tratada e pode ser controlada. 5.2.1 Fisiopatologia da hipertensão arterial Conforme Rang (2011), entre as funções fisiológicas do organismo, a regulação da pressão arterial é uma das mais complexas, pois depende das ações integradas dos sistemas cardiovasculares, renal, neural e endócrino. A hipertensão arterial sistêmica tem causa multifatorial para a sua gênese e manutenção. A investigação da sua fisiopatologia necessita de conhecimentos dos mecanismos normais de controle da pressão arterial para procurar, então, evidências de anormalidades que precedem a elevação da pressão arterial para níveis considerados patológicos. A pressão arterial (PA) é determinada pelo produto do débito cardíaco (DC) e da resistência vascular periférica (RVP): PA = DC × RVP 130 Unidade II Nos indivíduos normais e nos portadores de hipertensão arterial, para um determinado nível de pressão arterial, existe um espectro de variação do débito cardíaco, com respostas concomitantes da resistência vascular periférica. O volume de sangue circulante, a frequência cardíaca, a contratilidade e o relaxamento do miocárdio e o retorno venoso podem influenciar o débito cardíaco. A resistência vascular periférica, por sua vez, é determinada por vários mecanismos vasoconstritores e vasodilatadores (como o sistema nervoso simpático, o sistema renina-angiotensina e a modulação endotelial) e depende também da espessura da parede das artérias (há uma potencialização ao estímulo vasoconstrictor nos vasos nos quais há espessamento de suas paredes). Assim sendo, nos pacientes portadores de hipertensão arterial, a elevação da pressão arterial pode ser decorrente do aumento da resistência vascular periférica e/ou da elevação do débito cardíaco. 5.2.2 Regulação da hipertensão arterial Os fatores responsáveis por regular a pressão arterial estão listados a seguir. Conforme Cassis (2011), os fármacos anti-hipertensivos, que serão abordados logo em seguida, atuam preferencialmente sobre os barorreceptores (betabloqueadores), sobre o sistema nervoso simpático (antagonistas alfa-1, agonistas alfa-2, betabloqueadores) e sobre o sistema renina-angiotensina aldosterona (inibidores da ECA e antagonistas do receptor AT1 de angioensina II), além de exercerem seu papel em outras etapas do controle da pressão arterial (diuréticos e bloqueadores dos canais de cálcio). Controle neurogênico O centro vasomotor é uma região do sistema nervoso central que inclui o núcleo trato solitário, localizado na medula dorsal (integração de barorreceptores), a parte rostral da medula ventral (região pressora) e outros centros na ponte e no mesencéfalo. Quimiorreceptores arteriais As trocas gasosas nos pulmões e a excreção de ácidos e base pelos rins são responsáveis pela manutenção em níveis adequados dos valores de PO2 (pressão parcial de oxigênio), PCO2 (pressão parcial de gás carbônico) e pH (concentração de íons hidrogênio). São os quimiorreceptores localizados estrategicamente no circuito arterial (corpúsculos aórticos e carotídeos) que detectam os aumentos ou as quedas de PO2, PCO2 e/ou pH e desencadeiam respostas homeostáticas para corrigir essas variações. Além disso, quedas da PO2 e do pH e/ou elevações de PCO2, por exemplo, alteram a frequência dos potenciais das aferências quimiossensíveis que se projetam no SNC, determinando alterações na pressão arterial. Também a estimulação dos quimiorreceptores aumenta a frequência e a amplitude da respiração provocando aumento da ventilação que restaura os gases sanguíneos e traz o pH aos valores normais. Barorreceptores arteriais Os barorreceptores arteriais são mecanorreceptores constituídos por terminações nervosas livres que se situam na adventícia de grandes vasos (aorta e carótida) e que são estimulados por deformações das paredes desses vasos, normalmente provocadas pela onda de pressão pelas características 131 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA mecano-elásticas da parede. Na pressão basal, os barorreceptores descarregam de forma intermitente e sincrônica com a pressão sistólica, na dependência das variações instantâneas da deformação e da tensão vascular induzidas pela pressão arterial. O aumento da pressão arterial ativa os barorreceptores, o que resulta em diminuição do tônus simpático e estimulação do nervo vago (sistema nervoso parassimpático), que resulta em diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial. Em indivíduos hipertensos, esse mecanismo pode estar defectivo. Sistema nervoso autônomo O sistema nervoso autônomo tem participação importante no controle normal da pressão arterial e pode estar alterado em pacientes com hipertensão arterial. A importância do sistema nervoso simpático na regulação a curto prazo da pressão arterial através da modulação do tônus vascular periférico e do débito cardíaco está bem estabelecida, enquanto o papel da atividade do nervo simpático no controle da pressão arterial a longo prazo é mais controverso. A ação do sistema nervoso autônomo sobre o sistema cardiovascular ocorre com a liberação da noradrenalina e da acetilcolina no coração, modificando a frequência cardíaca e, consequentemente, o débito cardíaco. A noradrenalina liberada no coração interage com adrenoceptores beta-1 causando cronotropismo e inotropismo positivos. Ocorre ainda uma modificação na contratilidade dos vasos sanguíneos devido à liberação da noradrenalina nos vasos circulantes, a qual estimula adrenoceptores alfa-1, promovendo vasoconstrição e, consequentemente, aumento da resistência vascular periférica. Sistema renina-angiotensina-aldosterona O sistema renina-angiotensina é uma via importante envolvida no controle homeostático da pressão arterial. A urina, além de ser o veículo para a eliminação dos restos metabólicos do nosso organismo, também está envolvida no controle da volemia e, consequentemente, da pressão arterial. Quando esta aumenta, os rins aumentam a excreção de sódio e água para que o volume de sangue diminua e ela retorne ao normal; quando a pressão arterial diminui, ocorre o oposto. Além disso, os rins também funcionam como glândulas endócrinas, pois são responsáveis pela síntese e secreção de renina que, em última instância, controla indiretamente a secreção de angiotensina II e de aldosterona. A renina é uma enzima que atua sobre o angiotensinogênio, uma grande proteína que circula na corrente sanguínea, convertendo-o em angiotensina I (que se mantém relativamente inativa). A angiotensina I sofre ação da enzima conversora de angiotensina (ECA), dando origem à angiotensina II, um hormônio que é muito ativo. A angiotensina II atua em receptores presentes nas arteríolas (receptores AT1), que são acoplados à proteína Gq, classicamente envolvida na contração da musculatura lisa. De fato, a ativação de AT1 pela angiotensina II faz com que a musculatura lisa dos vasos contraia, o que aumenta a pressão arterial. 132 Unidade II A angiotensina II também provoca a liberação do hormônio aldosterona pelas glândulas adrenais e da vasopressina (hormônio antidiurético) pela hipófise. A aldosterona e a vasopressina fazem com que os rins retenham sódio. A aldosterona também faz com que os rins excretem potássio. O aumento de sódio faz com que a água seja retida, aumentando, assim, o volume de sangue circulante e a pressão arterial (veja a figura a seguir). Enzima conversora da angiotensina (ECA) Aldosterona estimula a reabsorção de sódio e água nos néfrons Nos capilares pulmonares Fígado libera angiotensinogênio no sangue Na+ H2O Angiotensina II promove vasoconstrição (através da ativação de AT1) e induz a secreção de aldosterona pelo córtex da suprarrenal Figura 50 – O sistema renina-angiotensina-aldosteronaA aldosterona exerce suas ações através da ativação dos receptores de mineralocorticoides (MR), que são receptores intracelulares que regulam positivamente a expressão da Na+/K+ ATPase na membrana basal das células do túbulo renal. Como resultado, ocorre maior reabsorção de sódio nessas células, simultaneamente ao aumento da excreção de potássio. Recentemente, outras vias alternativas de geração de angiotensina II têm sido descritas, e vários estudos mostram a produção local do sistema renina-angiotensina no coração, na parede dos vasos, no cérebro e em outros tecidos. No coração, há também a produção de uma enzima chamada quimase, que tem a propriedade de converter a angiotensina I em II sem o auxílio da ECA. O envolvimento preciso desse sistema local ainda não é totalmente esclarecido, entretanto, sabe-se que a geração de angiotensina II atua sobre a síntese proteica muscular e pode estar implicada no desenvolvimento ou na regressão da hipertrofia vascular ou cardíaca. A angiotensina II ainda atua potencializando as ações do sistema nervoso simpático, dos peptídeos atriais, das terminações nervosas, da endotelina e do neuropeptídeo Y e interage com as cininas e prostaglandinas nos rins. Outro possível exemplo dessa ação cardiovascular modulatória ocorre no endotélio, através de ações da angiotensina II sobre a L-arginina, o óxido nítrico e a bradicinina, alterando as funções hemodinâmicas locais. 133 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Peptídeo natriurético atrial O peptídeo natriurético atrial é liberado pelos átrios e produz natriurese, diurese e uma diminuição modesta da pressão sanguínea, enquanto diminui a renina plasmática e a aldosterona. Em conjunto também alteram a transmissão sináptica dos osmorreceptores. O peptídeo natriurético atrial é liberado como resultado da estimulação dos receptores de estiramento atrial. As suas concentrações são aumentadas por pressões elevadas de enchimento e em pacientes com hipertensão arterial e hipertrofia ventricular esquerda, à medida que a parede do ventrículo esquerdo participa da secreção de peptídeo natriurético atrial. Eicosanoides Os metabólitos do ácido araquidônico alteram a pressão sanguínea através de efeitos diretos no tônus do músculo liso vascular e interações com outros sistemas vasorreguladores: sistema nervoso autônomo, sistema renina-angiotensina-aldosterona e outras vias humorais. Em pacientes hipertensos, a disfunção das células endoteliais vasculares pode levar à redução de fatores relaxantes derivados do endotélio, como óxido nítrico, prostaciclina e fator hiperpolarizante derivado do endotélio ou aumento da produção de fatores contráteis, como endotelina-1 e tromboxano A2. Sistemas de calicreína-cinina As calicreínas de tecido atuam no cininogênio para formar peptídeos vasoativos. O mais importante é o vasodilatador bradicinina. As cininas desempenham um papel na regulação do fluxo sanguíneo renal e da excreção de água e sódio. Os inibidores da ECA diminuem a quebra da bradicinina em peptídeos inativos. Mecanismos endoteliais O óxido nítrico (NO) medeia a vasodilatação produzida pela acetilcolina, bradicinina, nitroprussiato de sódio e nitratos. Em pacientes hipertensos, o relaxamento derivado do endotélio é inibido. O endotélio sintetiza endotelinas, os vasoconstritores mais poderosos. A geração ou sensibilidade à endotelina-1 não é maior em hipertensos do que em normotensos. No entanto, os efeitos vasculares deletérios da endotelina-1 endógena podem ser acentuados pela geração reduzida de óxido nítrico causada pela disfunção endotelial hipertensiva. Esteroides adrenais Mineralocorticoides e glicocorticoides aumentam a pressão arterial. Esse efeito é mediado pela retenção de sódio e água (mineralocorticoides) ou pelo aumento da reatividade vascular (glicocorticoides). Além disso, glicocorticoides e mineralocorticoides aumentam o tônus vascular, regulando positivamente os receptores de hormônios pressores, como a angiotensina II. 134 Unidade II 5.2.3 Fármacos anti-hipertensivos Todos os anti-hipertensivos devem atuar diminuindo o débito cardíaco e/ou a resistência vascular periférica. As classes de medicamentos mais comumente usadas incluem diuréticos tiazídicos, os betabloqueadores, os inibidores da ECA, os antagonistas dos receptores AT1 de angiotensina II e os bloqueadores dos canais de cálcio. Casos particulares podem exigir o uso de antagonistas alfa-1, agonistas alfa-2, vasodilatadores diretos e alguns medicamentos de ação central, como os agonistas de receptores de imidazolina I1. O efeito de cada um desses fármacos sobre a pressão arterial será abordado a seguir. Diuréticos Os diuréticos constituem uma das primeiras escolhas no tratamento da pressão arterial, por induzirem a natriurese e, assim, a diurese. Como resultado, ocorre diminuição da volemia, o que contribui para a redução da pressão arterial. De fato, a terapia diurética em baixas doses reduz o risco de derrames, de doença coronariana, de insuficiência cardíaca congestiva e, portanto, da mortalidade total. Eles atuam nas diferentes regiões dos túbulos renais, promovendo a reabsorção de sódio e de outros íons e, consequentemente, de água. Os diuréticos mais usados no tratamento da hipertensão são os de alça, os tiazídicos e os poupadores de potássio (veja a figura a seguir). Outros diuréticos, como os inibidores da anidrase carbônica, são utilizados para outros fins, conforme indicado na figura: Inibidores da anidrase carbônica (ex.: acetazolamida) Inibem a conversão de água e dióxido de carbono em ácido carbônico, com redução da reabsorção de bicarbonato para o sangue, juntamente ao sódio. Promovem diurese leve. Usados principalmente no tratamento do glaucoma. Diuréticos de alça (ex.: furosemida, torsemida, ácido etacrínico) Inibem o cotransporte de Na+/K+/2Cl- na porção ascendente da alça de Henle. Promovem grande excreção de íons sódio → são os diuréticos mais eficazes. Poupadores de potássio Espironolactona: é um antagonista dos receptores de aldosterona. Amilorida e triantereno: bloqueiam canais de sódio. Baixa eficácia, são associados aos diuréticos de alça e aos tiazídicos para evitar a perda de potássio. Diuréticos tiazídicos (ex.: hidrocolorotiazida) Inibem a reabsorção de Na+ e Cl- no túbulo contorcido distal. Promovem aumento intermediário da diurese, sendo os mais usados no controle da hipertensão. Túbulo contorcido proximal Túbulo contorcido distal Alça ascendente de Henle Alça descendente de Henle Túbulo e ducto coletor Figura 51 – Principais diuréticos e seus locais de ação 135 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Os diuréticos de alça (furosemida, torsemida, ácido etacrínico) atuam primariamente sobre o segmento ascendente da alça de Henle, inibindo o carreador de Na+/K+/2Cl- presente na membrana luminal e, consequentemente, impedindo a reabsorção de íons sódio e cloreto. Com isso, promovem a excreção de até 25% do sódio presente no filtrado glomerular original, o que resulta em aumento acentuado da diurese. Além disso, os diuréticos de alça aumentam a eliminação de íons cálcio e magnésio e inibem a excreção de ácido úrico, o que contraindica seu uso por pacientes com gota úrica (hiperuricemia), pois pode precipitar crises agudas de gota. Lembrete O sódio é o principal determinante do volume extracelular, e sua excreção é acompanhada da eliminação de quantidades significativas de água. Devido à redução da reabsorção do sódio na porção ascendente da alça de Henle, a oferta desse íon aumenta no túbulo distal e no ducto coletor, o que causa perda acentuada de íons potássio e de prótons (H+), resultando, respectivamente, em hipopotassemia e em alcalose metabólica. A hipopotassemia pode causar alterações no ritmo cardíaco, aumentar os efeitos e a toxicidade de vários fármacos administrados concomitantemente (tal como a digoxina e a amiodarona) e deve ser tratada com reposição suplementar de potássio e como uso concomitante de diuréticos poupadores de potássio. Os diuréticos tiazídicos (hidroclorotiazida, indapamida, clortalidona) reduzem a reabsorção de íons sódio por inibição do cotransporte de Na+/Cl- no túbulo contorcido distal. Consequentemente, ocorre diminuição da reabsorção de NaCl, o que aumenta a concentração dos íons sódio e cloreto no filtrado que se encontra na luz do túbulo renal. O aumento da oferta de íons sódio no ducto coletor causa a perda de potássio e de prótons (H+). Observação Todos os diuréticos que agem antes da porção final do túbulo controlado distal, como os de alça e os tiazídicos, promovem aumento da excreção de potássio. Os diuréticos tiazídicos são menos potentes que os diuréticos de alça. Os efeitos dos tiazídicos sobre o balanço iônico são qualitativamente semelhantes aos dos diuréticos de alça, mas de magnitude menor. Além disso, esses fármacos também podem induzir um quadro de hiperuricemia. No entanto, em contraste com os diuréticos de alça, os tiazídicos reduzem a eliminação de íons cálcio, o que pode ser vantajoso em pacientes mais idosos com risco de osteoporose. Além disso, constituem uma das principais classes de anti-hipertensivos, tanto em monoterapia quanto associados a outras classes de fármacos. Os diuréticos poupadores de potássio incluem os inibidores dos canais de sódio no ducto coletor (amilorida e triantereno) e os antagonistas de receptores de aldosterona (espironolactona). São diuréticos que eliminam íons sódio e água, mas impedem a perda de potássio (daí o nome “poupadores de potássio”). 136 Unidade II Apresentam eficácia limitada como diuréticos, pois atuam primariamente no ducto coletor, onde ocorre apenas pequena fração de reabsorção de sódio. Esses diuréticos podem ser administrados juntamente a diuréticos de alça ou tiazídicos, com a finalidade de manter o balanço de potássio no organismo. O uso clínico dos diuréticos poupadores de potássio inclui a insuficiência cardíaca, a hipertensão arterial e o hiperaldosteronismo. Adicionalmente, nos últimos anos a espironolactona vem sendo utilizada no tratamento da síndrome dos ovários policísticos e da acne, devido aos seus efeitos antiandrogênicos (lembre-se de que tanto a aldosterona quanto a testosterona apresentam natureza esteroidal). Esses usos são off label, ou seja, não constam da bula do medicamento, e precisam ser validados para constar das diretrizes do tratamento dessas condições. O principal efeito indesejável associado ao uso dos diuréticos poupadores de potássio é a hiperpotassemia, o que é perigoso em pacientes com comprometimento renal ou que estejam recebendo outros fármacos que possam aumentar os níveis plasmáticos de potássio. Fármacos simpatolíticos Dentro dessa classe, de acordo com Westfall (2011), se encontram os fármacos que atuam inibindo o tônus simpático sobre o coração e/ou vasos: os betabloqueadores, os antagonistas alfa-1, os agonistas alfa-2 e outros fármacos de ação indireta. Seus mecanismos de ação já foram discutidos no tópico Farmacologia do sistema nervoso simpático. O efeito anti-hipertensivo dos betabloqueadores se deve a três mecanismos principais: • Bloqueio dos adrenoceptores beta-1 no coração, o que leva à diminuição do trabalho cardíaco e consequente vasodilatação. • Bloqueio dos adrenoceptores beta-1 nos rins, o que inibe a secreção de renina. • Regulação dos barorreceptores (na hipertensão arterial, é comum o sistema barorreceptor reconhecer pressões elevadas como normais, e não ativar os mecanismos compensatórios). • Alguns representantes, como o labetalol, apresentam atividade antagonista também nos adrenoceptores alfa, controlando diretamente a pressão arterial. Por muito tempo, os betabloqueadores foram os fármacos de primeira escolha no tratamento da hipertensão arterial. Porém, seu uso está sendo revisto, pois, em alguns casos, está relacionado ao agravamento da insuficiência cardíaca. Além disso, diversos estudos mostraram que não há aumento da expectativa de vida por pacientes que fazem uso dos betabloqueadores para o controle da hipertensão. Portanto os betabloqueadores podem ser considerados na terapêutica inicial em situações específicas: na presença de arritmias supraventriculares, de enxaqueca, de insuficiência cardíaca (é necessário cautela, pois pode piorar o quadro) e coronariopatias. 137 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Os principais representantes dessa classe são o propranolol, o atenolol, o carvedilol e o metoprolol. Os antagonistas alfa-1 (prazosin, doxazosin, terazosin) reduzem a resistência vascular periférica e também reduzem os níveis de colesterol no sangue. Devido a seus efeitos adversos, que incluem sonolência, hipotensão postural (efeito de primeira dose), retenção hídrica e, ocasionalmente, taquicardia, não são fármacos de primeira escolha no tratamento da hipertensão arterial, sendo reservados para casos de hipertensão resistente. Os agonistas alfa-2, como a clonidina e o guanabenzo, ativam os adrenoceptores alfa 2-adrenérgico no sistema nervoso central, o que resulta em diminuição dos impulsos simpáticos que atingem os vasos periféricos, os rins e o coração. Como resultado, ocorre diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial sistólica e diastólica. Por apresentarem efeitos adversos semelhantes aos dos antagonistas alfa-1, também não são primeira escolha no tratamento da hipertensão arterial. Outros simpatolíticos de ação central que podem ser utilizados no tratamento da pressão arterial são a metildopa (falso neurotransmissor e agonista dos adrenoceptores alfa-2), a moxonidina e a rilmenidina (agonistas dos receptores da imidazolina1, reduz a atividade simpática ao atuar em centros na medula lateral ventral rostral, reduzindo assim a resistência vascular periférica) e a reserpina (inibe a captação de noradrenalina pelas vesículas presentes nas terminações nervosas). Bloqueadores de canais de cálcio Os bloqueadores dos canais de cálcio são divididos em di-hidropiridinas (nifedipina, nimodipina, amlodipina) e não di-hidropiridinas (verapamil, diltiazem). Ambos os grupos diminuem a resistência vascular periférica e são usados como antiarrítmicos, mas o verapamil e o diltiazem também apresentam efeitos inotrópicos e cronotrópicos negativos (diminuem a força e a frequência de contração cardíaca). Lembrete Devido a seus efeitos cardíacos, o verapamil e o diltiazem também são usados como antiarrítmicos. Os bloqueadores dos canais de cálcio são fármacos de primeira escolha no tratamento da hipertensão e geralmente são associados aos diuréticos tiazídicos. Eles atuam bloqueando os canais de cálcio do tipo L (dependente de voltagem) no músculo liso vascular, o que impede a vasoconstrição, e no músculo cardíaco (não di-hidropiridinas), o que resulta em diminuição da frequência cardíaca. As principais reações adversas incluem cefaleia, tontura, rubor facial e edema de extremidades, devido à vasodilatação que provocam. Mais raramente, podem induzir à hipertrofia gengival. Alguns dos agentes dessa classe (di-hidropiridínicos de ação curta) provocam importante estimulação simpática reflexa, que é deletéria para o sistema cardiovascular. 138 Unidade II Inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) Os inibidores da ECA estão sendo cada vez mais usados como terapia de primeira escolha. Eles são bem tolerados, e têm relativamente poucos efeitos colaterais e contraindicações (exceto estenoses bilaterais da artéria renal). Os inibidores da ECA são agentes de primeira escolha em pacientes hipertensos diabéticos, pois diminuem a progressão da disfunção renal. Na hipertensão com insuficiência cardíaca, os inibidores da ECA também são medicamentos de primeira escolha. Os efeitos anti-hipertensivos dos inibidores da ECA são devidos à inibição da síntese de angiotensina II a partir da angiotensina I, à inibição da degradação da bradicinina, uma molécula que promove vasodilatação, e à redução do tônus simpático (vejaa figura a seguir). Angiotensinogênio Angiotensina I Renina ECA Inibidores da ECA ↓ Tônus simpático ↓ Retenção de sódio e água ↑ Vasodilatação ↑ Níveis de bradicinina Inibição da degradação de bradicinina Angiotensina II diminuída Produção de aldosterona reduzida Diminuição da pressão arterial PA - ! Figura 52 – Ações dos inibidores da ECA sobre o sistema cardiovascular • A inibição da produção de angiotensina II resulta na diminuição da sua ação vasoconstritora direta (mediada pela ativação de receptores AT1 nos vasos) e indireta (mediada pelo estímulo da síntese de aldosterona). • A inibição da degradação da bradicinina potencializa os efeitos vasodilatadores dessa molécula (a ECA é considerada uma cininase, pois participa da degradação das cininas). • A inibição do tônus simpático ocorre devido à diminuição da ação estimulatória da angiotensina II sobre os nervos desse sistema e sobre a medula da suprarrenal. O captopril foi o primeiro agente a ser comercializado. Foi isolado do veneno da jararaca pelo pesquisador brasileiro Sérgio Henrique Ferreira, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, na década de 1960. O captopril é um agente muito eficaz na inibição da ECA, porém seu uso está relacionado com o desenvolvimento de tosse seca (efeito mediado pela bradicinina) e de síndrome lúpica do tipo lúpus eritematoso (rara, mas mais importante do ponto de vista clínico). Esses efeitos adversos motivaram o desenvolvimento de outros inibidores da ECA, com estrutura química semelhante ao captopril, mas com menor probabilidade de desenvolvimento de tosse e sem o efeito adverso da síndrome lúpica. O enalapril é um derivado sintético do captopril que, além de apresentar essas vantagens, pode ser administrado somente uma vez por dia, enquanto o captopril necessita de três doses diárias, pois sua meia-vida plasmática é mais curta. 139 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Com o tempo, outros inibidores da ECA surgiram: os principais são o lisinopril, o ramipril, o cilazapril, o delapril, o benazepril, o fosinopril etc. Saiba mais Vários fármacos, incluindo o captopril, interferem com os resultados dos exames laboratoriais. Leia mais em: RAPIEWICZ, J. C.; ZAROS, K. J. B.; GROBE, R. Interação de fármacos com exames de laboratório. Cimformando, n. 4, ano XV, out./nov./dez. 2018. Disponível em: https://www.crf-pr.org.br/uploads/revista/35428/ BFtOSB44cJW25q_WSqPV8rq3vZJ_1Y2_.pdf. Acesso em: 16 abr. 2020. Antagonistas dos receptores AT1 de angiotensina II Conforme Tavares, Gionoza e Ribeiro (2004), os antagonistas dos receptores AT1 promovem diminuição da pressão arterial por impedir as ações diretas da angiotensina II sobre os vasos. Os principais representantes são o losartan, o valsartan e o candesartan. Como não atuam diretamente sobre a bradicinina, esses fármacos causam menos tosse do que os inibidores da ECA. Em geral, apresentam bom perfil de tolerabilidade, ou seja, poucos efeitos adversos (tontura e hipersensibilidade cutânea são alguns dos efeitos). Com o tempo, é necessário ajustar as doses de antagonistas AT1. Isso ocorre porque a angiotensina II é responsável pelo feedback negativo sobre a secreção de renina pelos rins. Ao bloquear os receptores AT1 nesse órgão, o feedback negativo é inibido, com consequente aumento da quantidade de angiotensina II produzida. Esse excesso de angiotensina II retira o antagonista do sítio de ligação no receptor e, como consequência, ocorre vasoconstrição. Nessa situação, se a dose for aumentada, o aumento da pressão arterial será ainda maior (pois a quantidade de angiotensina II aumentará ainda mais). Deve-se, portanto, diminuir a dose. Observação O alisquireno é o único inibidor da renina com utilização terapêutica. Seu uso foi regulamentado em 2008, em combinação com os diuréticos tiazídicos ou em monoterapia. Vasodilatadores diretos A hidralazina e o minoxidil são vasodilatadores de ação direta. Porém seu uso diminuiu nos últimos anos devido ao potencial de efeitos colaterais graves (síndrome de lúpus com hidralazina, hirsutismo 140 Unidade II com minoxidil). Além disso, esses fármacos promovem retenção hídrica e taquicardia reflexa, o que contraindica seu uso como monoterapia. 5.2.4 Associações de fármacos no tratamento da hipertensão arterial Segundo a 7ª Diretriz de Hipertensão Arterial (SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA, 2016), a hipertensão estágio 1 (pressão sistólica: 140-159 e pressão diastólica: 90-99) deve ser tratada com monoterapia associada a tratamento não medicamentoso (reeducação alimentar, exercício físico etc.). Valores mais elevados de pressão arterial são tratados com combinações de dois ou mais fármacos, aliados ao tratamento não medicamentoso discutido anteriormente. A monoterapia inicial da hipertensão deve ser realizada com diuréticos tiazídicos, inibidores da ECA, bloqueadores dos canais de cálcio, ou com antagonistas do receptor AT1. Os betabloqueadores faziam parte dessa lista, mas como foi observado que seu uso não estava relacionado com aumento da expectativa de vida, eles continuam sendo primeira escolha somente em casos de hipertensão associada a arritmias, enxaqueca, insuficiência cardíaca ou coronariopatia. Em relação às associações, deve-se evitar aquelas constituídas de fármacos com o mesmo mecanismo de ação, ou com mecanismos de ação semelhantes (a exceção é a associação de diuréticos tiazídicos com poupadores de potássio, que visa ao equilíbrio dos níveis séricos de potássio). Os diuréticos são muito utilizados nessas associações, pois potencializam ação anti-hipertensiva das outras classes. As principais associações de fármacos anti-hipertensivos são representadas na figura a seguir: Bloqueadores dos receptores da angiotensina Betabloqueadores Bloqueadores dos canais de cálcio Outris anti- hipertensivos Inibidores da IECA Diuréticos tiazídicos Combinações preferenciais Combinações não recomendáveis Combinações possíveis, mas menos testadas Figura 53 – Esquema preferencial de associações de anti-hipertensivos 141 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Saiba mais Leia o documento a seguir: SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA. 7ª Diretriz de Hipertensão Arterial. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, v. 107, n. 3, Supl. 3, set. 2016. Disponível em: http://publicacoes.cardiol.br/2014/diretrizes/2016/05_ HIPERTENSAO_ARTERIAL.pdf. Acesso em: 2 abr. 2020. 6 FARMACOLOGIA DA DOR E DA INFLAMAÇÃO A dor pode ser definida como uma resposta desagradável a estímulos associados com real ou potencial dano tecidual. Trata-se de uma experiência que envolve tanto as características físicas dos estímulos quanto variáveis de ordem psicológica, como ansiedade, depressão e nível de expectativa. A sensação dolorosa pode ser consequência da ativação de nociceptores (dor nociceptiva ou somática), de lesão do sistema nervoso (dor neuropática), de fenômenos de natureza psíquica (dor psicogênica) ou da associação desses mecanismos (dor mista). Pode ser classificada em aguda ou crônica, de acordo com sua duração, e em dor rápida ou dor lenta, de acordo com o tempo decorrido entre o estímulo e a sensação dolorosa. Os fármacos que atuam inibindo a dor são os anestésicos (locais e gerais), utilizados quando se deseja impedir o estabelecimento da sensação dolorosa frente a uma intervenção (por exemplo, uma cirurgia), e os fármacos com ação analgésica, que atuam inibindo a dor já estabelecida. Os fármacos com ação analgésica pertencem à classe dos anti-inflamatórios, esteroidais e não esteroidais, e à classe dos analgésicos opioides. Adiante, iremos estudar as etapas envolvidas na neurotransmissão do estímulo doloroso, assim como o efeito dos fármacos citados sobre essa neurotransmissão. 6.1 Mecanismo de transmissão da dor O estabelecimento da percepção dolorosa depende da presença de nervos especializados em reconhecer estímulos danosos, chamados de nervos nociceptivos, e envolve quatro diferentes etapas, ilustradasna figura a seguir. Os nervos nociceptivos estão presentes em todo organismo e são constituídos de três feixes de neurônios em série: o neurônio de primeira ordem origina-se na periferia e projeta-se para a medula espinal, o neurônio de segunda ordem ascende pela medula espinal em direção ao tálamo e o neurônio de terceira ordem projeta-se para o córtex cerebral. 142 Unidade II Projeções tálamo-corticais Via ascendente Trato espino-talâmico Modulação descendente Gânglio da raiz dorsal Transmissão Transdução Modulação Percepção Corno dorsal da medula espinal Nervo aferente primário Nociceptor Figura 54 – Etapas da neurotransmissão dolorosa Transdução A transdução refere-se à ativação de receptores de dor (nociceptores) presentes nas terminações nervosas livres dos neurônios de primeira ordem do nervo nociceptivo, por estímulos dolorosos de diferentes naturezas. Três tipos de estímulo são capazes de ativar os nociceptores: os estímulos químicos, mecânicos e térmicos. A dor rápida, percebida como dor em pontada, é resultado da ativação de nociceptores térmicos e mecânicos. A dor lenta ou crônica, percebida como dor em queimação, é resultado da ativação de nociceptores químicos por diversas substâncias presentes no local da lesão, como a bradicinina, a histamina, os íons potássio, os ácidos, a acetilcolina e as enzimas proteolíticas. Os nociceptores pertencem a uma família de receptores de potencial transitório (TRP) constituídos de canais de cátions não seletivos, que permitem o influxo principalmente de íons cálcio quando ativados. Nos mamíferos, os 28 membros dessa superfamília estão distribuídos em seis subfamílias: canonical (TRPC), vaniloide (TRPV), anquirina (TRPA), melastatina (TRPM), policistina (TRPP) e mucolipina (TRPML). O nociceptor TRPV1, por exemplo, é um canal catiônico permeável aos íons cálcio e sódio ativados por diversos estímulos físicos e químicos exógenos e endógenos, como a capsaicina (componente das pimentas), as temperaturas iguais ou maiores de 43 ºC e o pH menor que 6,5. Esse receptor participa da dor crônica (osteoartrite, câncer, doença inflamatória intestinal) e da dor neuropática (enxaqueca). Observação Alguns nociceptores não respondem a estímulos químicos, térmicos ou mecânicos. Eles são denominados de “nociceptores silenciosos” ou “dormentes” e são ativados em condições de inflamação tecidual. 143 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA Transmissão A etapa de transmissão refere-se ao desencadeamento de potenciais de ação pelas fibras nervosas aferentes nociceptivas de primeira ordem. Essas fibras apresentam características distintas. Os sinais de dor rápida são transmitidos por fibras de pequeno diâmetro, mielinizadas, do tipo A delta, com velocidades entre 6 e 30 m/s, que geram sensação dolorosa localizada. A dor do tipo lenta é transmitida por fibras não mielinizadas, do tipo C, com velocidades entre 0,5 e 2 m/s, o que gera sensação dolorosa difusa. Os potenciais de ação são propagados até o corno dorsal da medula espinal, onde as fibras nociceptivas fazem sinapse com neurônios de segunda ordem. Nessas sinapses, o neurônio de primeira ordem libera os neurotransmissores substância P e glutamato, que ativam seus receptores (de neurocinina-1, no caso da substância P, e AMPA e NMDA, no caso do glutamato) presentes no neurônio de segunda ordem. Como consequência, potenciais de ação são deflagrados através dos neurônios de segunda ordem. Modulação Interneurônios opioides emergem da substância cinzenta periaquedutal e de outras regiões em direção aos neurônios de primeira e de segunda ordem do nervo nociceptivo. Essas células participam da modulação negativa do estímulo doloroso e constituem a via inibitória da dor. Os neurotransmissores liberados pelos interneurônios opioides são os peptídeos opioides, conhecidos como endorfinas, encefalina e dinorfinas. Ao serem liberados na sinapse, esses peptídeos ativam os receptores opioides presentes na membrana dos neurônios de primeira e de segunda ordem. As endorfinas também estão associadas ao prazer, à memória, à disposição e ao sistema imunológico. Lembrete Além de inibirem a dor, as endorfinas também estão relacionadas com o bom humor, a memória, a disposição física e mental, a melhora do sistema imunológico etc. Existem três principais subtipos de receptores opioides: µ (mu ou mi), κ (kappa) e δ (delta). Eles estão distribuídos em diferentes regiões do sistema nervoso central, e os principais envolvidos na modulação do estímulo doloroso são os receptores mi. Os três subtipos de receptores opioides são acoplados à proteína Gi (ver o tópico Receptores acoplados à proteína G para mais informações). Como resultado de sua ativação, ocorre inibição da enzima adenilil-ciclase e, consequentemente, diminuição dos níveis intracelulares de AMPc. Esse segundo mensageiro está relacionado com a resposta à dor e com a plasticidade sináptica, e a diminuição de seus níveis intracelulares participa da inibição da neurotransmissão da dor. 144 Unidade II A ativação da proteína Gi acoplada aos receptores opioides também induz o fechamento de canais de cálcio voltagem-dependentes, que participam da liberação dos neurotransmissores na fenda sináptica, e a abertura dos canais de potássio, que participam da repolarização neuronal. Como consequência, ocorre diminuição da liberação de neurotransmissores pelo neurônio de primeira ordem e a diminuição da excitabilidade, ou até a hiperpolarização dos neurônios de primeira e de segunda ordem (veja a figura a seguir). Receptor opioide K+ Receptor opioide Neurônio de primeira ordem Neurônio de segunda ordem Ca2+ Ne ur ot ran sm iss or (gl ut am ato , su bs tân cia P) Figura 55 – Mecanismo de ação dos receptores opioides A via inibitória da dor é um mecanismo fisiológico de controle da intensidade dos estímulos dolorosos que estão sendo conduzidos até o sistema nervoso central. Sua maior ou menor ativação depende de fatores relacionados ao estímulo tátil, ao tipo de estímulo doloroso, à atividade do indivíduo, ao nível de estresse agudo e crônico, entre outros. Esses fatores, em conjunto, são capazes de determinar se a liberação de peptídeos opioides será maior, causando analgesia, ou menor, o que, em geral, resulta em maior percepção dolorosa. O mecanismo que regula essa ativação é denominado mecanismo do portão da dor. Saiba mais O mecanismo do portão da dor é descrito em: GUSMAN, A. C. et al. Teoria do portão ou controle da dor. Revista de Psicofisiologia, v. 1, n. 1-2, 1997. Disponível em: http://labs.icb.ufmg.br/lpf/ revista/revista1/revista1.htm. Acesso em: 2 abr. 2020. Muitas vezes nos lesionamos durante a atividade física e só vamos perceber depois do término dela, quando estamos repousando. Isso ocorre porque a atividade física é um dos fatores capazes de aumentar o nível de ativação da via inibitória da dor. 145 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA O exercício físico, o estresse e outras condições acabam sendo interpretadas pelas estruturas do sistema nervoso central envolvidas na regulação via inibitória da dor como situações durante as quais o indivíduo não pode parar de realizar suas atividades. Imagine se, por exemplo, você está correndo de algum animal quando, de repente, torce o tornozelo. Parar de correr por conta da dor da lesão não seria vantajoso, pois então o animal poderia te alcançar. Assim, nessa condição, de intensa atividade física e estresse, a via inibitória da dor é mais ativada para que haja analgesia e você possa continuar fugindo. A partir do momento em que você diminuir sua atividade e permanecer em repouso e segurança, a via inibitória da dor diminuirá sua atividade e você sentirá a dor resultante da lesão. Nessas condições, sentir a dor é importante para que você busque uma maneira de melhorar a lesão e restabelecer a homeostase no tecido afetado. Percepção Os neurônios de segunda ordem fazem sinapse com os de terceira ordem notálamo. Essa estrutura funciona como uma rede de interpretação sensitiva. Os neurônios de terceira ordem que emergem do tálamo vão em direção ao córtex cerebral (regiões do córtex somato-sensor) e ao sistema límbico (giro cingulado). O córtex está relacionado com o estabelecimento da consciência da sensação dolorosa, enquanto o sistema límbico com o emocional à dor. A dor em queimação e difusa, produzida pela via lenta (fibras C), é mais significativa do ponto de vista clínico, visto que costuma ser mais duradoura. A dor localizada apresenta duração curta e é útil para que o corpo se afaste do agente que a está causando (machucar o dedo com um corte de faca é um exemplo). A sensação dolorosa, quando consolidada, estimula a maioria dos circuitos neuronais, o que resulta em maior estado de alerta e excitabilidade do doente que sofre de dor, principalmente se esta é aguda. 6.2 Papel dos prostanoides na regulação da sensação dolorosa A inflamação é uma resposta do organismo a uma infecção ou lesão dos tecidos. Faz parte do sistema imune inato, que constitui a primeira linha, inespecífica, de defesa do organismo. Durante a inflamação, são observados os quatro sinais cardinais: a dor, o calor, o rubor e o edema, que são estabelecidos por ação de mediadores inflamatórios denominados prostaglandinas que, estruturalmente, podem ser classificados como prostanoides. Todos os sinais cardinais visam facilitar a resolução da lesão pelas células do sistema imunológico: • O sinal cardinal da dor refere-se à hiperalgesia, que é a diminuição do limiar para ativação dos nociceptores (estímulos que antes não ativavam os nociceptores passam a ativá-los). 146 Unidade II • O calor refere-se ao aumento do metabolismo do local lesionado, que resulta em aumento da temperatura do tecido e atividade das células do sistema imunológico. • O rubor está relacionado com o aumento da circulação sanguínea para o local, o que possibilita a chegada de mais leucócitos. • O edema refere-se ao extravasamento de plasma para o interstício, o que facilita a atividade dos leucócitos que chegaram ao local. As principais prostaglandinas envolvidas no estabelecimento do processo inflamatório são a prostaglandina E2 (PGE2) e a prostaglandina I2, ou prostaciclina (PGI2). O mecanismo pelo qual elas induzem a hiperalgesia envolve a potencialização da resposta nociceptiva produzida pelos mediadores inflamatórios bradicinina e histamina quando eles interagem com nociceptores. Esses efeitos são mediados pelos diferentes subtipos de receptores de prostaglandinas, que são acoplados à proteína Gs. As prostaglandinas apresentam meia-vida plasmática curta e, portanto, atuam no local em que foram sintetizadas. A síntese de prostaglandinas no sistema nervoso central está relacionada com o aumento da temperatura corporal (febre) e com a cefaleia decorrente da vasodilatação provocada por esses agentes. 6.3 Atuação de fármacos sobre a transmissão do estímulo doloroso Diferentes classes de fármacos podem causar diminuição, ou até cessar a transmissão do estímulo doloroso para o sistema nervoso central. Esses fármacos apresentam diferentes finalidades, e seus principais sítios de ação estão representados na figura a seguir. A partir de agora, iremos explorar cada um desses fármacos em detalhes. Projeções tálamo-corticais Via ascendente Trato espino-talâmico Modulação descendente Gânglio da raiz dorsal Corno dorsal da medula espinal Anestésicos gerais: promovem a depressão do sistema nervoso central por diferentes mecanismos Anestésicos opioides: são agonistas dos receptores opioides e, assim, potencializam a via inibitória da dor Anestésicos locais: bloqueiam os canais de sódio dependentes de voltagem e, assim, impedem a deflagração de potenciais de ação Anti-inflamatórios (não esteroidais e esteroidais): inibem a síntese de prostaglandinas e, assim, inibem a hiperalgesia Nervo aferente primário Nociceptor Figura 56 – Ação de fármacos sobre a neurotransmissão dolorosa 147 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA 6.4 Anti-inflamatórios não esteroidais (Aines) Os anti-inflamatórios não esteroidais (Aines) são um grupo de fármacos com estrutura química heterogênea, cuja principal função é inibir as manifestações da inflamação (dor, calor, rubor e edema), e a febre. São os medicamentos mais comercializados no mundo e importantes como fonte de automedicação. Existem, na atualidade, mais de 40 representantes desses fármacos disponíveis nas farmácias e drogarias. O protótipo dos Aines é o ácido acetilsalicílico, e o nome comercial do medicamento de referência é Aspirina®. Esse fármaco apresenta propriedades anticoagulantes, analgésicas, antitérmicas e anti-inflamatórias, de acordo com a dose utilizada: 100 mg garantem efeito antiagregante plaquetário; 500 mg a 1 g garantem efeito analgésico e antitérmico; e doses superiores garantem controle das manifestações inflamatórias. O ácido acetilsalicílico foi a primeira criação da indústria farmacêutica, ou seja, foi o primeiro fármaco a ser sintetizado. Até então, todos os princípios ativos utilizados na terapêutica eram isolados de produtos naturais e administrados na sua forma original. Assim acontecia com o ácido salicílico, princípio ativo que é a base para a síntese desse medicamento. Extraído da casca do salgueiro (Salix spp.), o ácido salicílico apresenta atividade analgésica, antitérmica e anti-inflamatória, e sua utilização tem sido descrita ao longo da história, por Hipócrates, na Grécia antiga (V a.C.), e por outras civilizações antigas que incluem a Suméria, o Egito e a Assíria. Na época, eram preparadas infusões com a casca do salgueiro, para administração oral. No entanto, essas preparações não eram seguras, devido ao baixo índice terapêutico do ácido salicílico. De fato, as medicações preparadas à base desse princípio ativo até antes do desenvolvimento do ácido acetilsalicílico eram capazes de desencadear efeitos adversos graves e intoxicações com relativa frequência. Lembrete Índice terapêutico é um parâmetro que expressa a relação entre a dose tóxica e a dose terapêutica de uma substância. O ácido acetilsalicílico é sintetizado a partir da acetilação do ácido salicílico (veja a figura a seguir). Isso confere melhor perfil de segurança ao fármaco, sem que suas propriedades sobre a dor, a inflamação, a febre e a coagulação sejam perdidas. Foi primeiramente sintetizada pelo laboratório farmacêutico Bayer em 1897 e comercializada pelo nome Aspirina®, designação do medicamento de referência até os dias de hoje. OH COOH O Ácido salicílico Anidrido acético ácido sulfúrico Ácido acetilsalicílico O COOH Figura 57 – Biossíntese do ácido acetilsalicílico 148 Unidade II 6.4.1 Mecanismo de ação dos Aines O mecanismo de ação não só do ácido acetilsalicílico, mas de todos os Aines, consiste na inibição da enzima ciclo-oxigenase (COX), envolvida na síntese de prostanoides. Os prostanoides são classificados em prostaglandinas, prostaciclinas e tomboxanos de acordo com sua estrutura química e suas principais funções. • As prostaglandinas, como já abordado anteriormente, são responsáveis pelo estabelecimento dos sinais cardinais da inflamação e por uma série de outros eventos fisiológicos importantes não relacionados ao processo inflamatório. • As prostaciclinas induzem a vasodilatação não só no sítio inflamatório, mas também em outros leitos vasculares. • Os tromboxanos são produzidos nas plaquetas e estão relacionados com a promoção da agregação plaquetária. A síntese de prostaglandinas inflamatórias ocorre da seguinte maneira: em resposta a um estímulo nocivo (por exemplo, um corpo estranho), ocorre ativação dos leucócitos residentes no tecido, que passam a converter fosfolipídeos que compõem sua membrana plasmática em ácido araquidônico, pela ação da enzima fosfolipase A2. O ácido araquidônico é o substrato para as enzimas lipo-oxigenase (LOX) e ciclo-oxigenase (COX). Pela ação da primeira,serão produzidos leucotrienos, mediadores responsáveis pela migração de leucócitos polimorfonucleares para o local da inflamação e, pela ação da segunda, prostaglandinas, responsáveis pelos sinais cardinais da inflamação (veja a figura a seguir). Fosfolipídeos Ácido araquidônico Leucotrienos Prostaglandinas Migração de leucócitos polimorfonucleares para o sítio inflamatório Dor, calor, rubor e edema PLA2 LOX COX Figura 58 – Cascata bioquímica da síntese das prostagaldinas inflamatórias. As enzimas envolvidas (PLA2, prostaglandina A2; LOX, lipo-oxigenase; COX, ciclo-oxigenase) estão indicadas Na verdade, o esquema que acabamos de apresentar é uma simplificação, já que as ciclo-oxigenases COX-1 e COX-2 são responsáveis pela síntese de uma prostaglandina instável, a prostaglandina H2 (PGH2), que é posteriormente convertida nos diferentes prostanoides por enzimas específicas (sintases) 149 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA presentes nos diferentes tecidos. O fato de existirem diferentes sintases, cuja expressão varia nos diferentes tecidos, garante a variedade de prostanoides com atividade biológica (PGE2, PGF2α, PGI2, PGD2, TXA2 etc.). Duas isoformas da COX estão presentes nos diferentes tecidos do organismo: a COX-1 e a COX-2. Enquanto a COX-1 é responsável pela produção de prostanoides em tecidos onde essas moléculas apresentam papel fisiológico, a COX-2 é a enzima presente em sítios inflamatórios. Por esse motivo, a COX-1 é considerada uma enzima constitutiva e a COX-2 é considerada uma enzima induzida pelo processo inflamatório. Exceções a essa regra são o sistema nervoso central, os rins, o útero durante o período menstrual e os ossos, nos quais a síntese de prostanoides constitutivos é realizada pela COX-2. Conforme já discutido, os prostanoides são importantes não somente nos sítios inflamatórios, mas também na maioria dos tecidos. Nesses tecidos, a síntese dessas moléculas ocorre localmente, pois a meia-vida desse mediador na circulação é curta. Os prostanoides são responsáveis pela proteção gástrica, pela regulação do processo de coagulação do sangue e pelas contrações uterinas durante o período menstrual, pela vasodilatação de diferentes leitos vasculares, entre outras funções. Assim, nosso organismo apresenta diferentes moléculas de prostanoides, cujos principais representantes são: • A prostaglandina E2 (PGE2), relacionada à diminuição da secreção de HCl no estômago e ao estímulo da produção de muco protetor, além de ser a responsável pelo estabelecimento do processo inflamatório. • A prostaciclina (PGI2), também conhecida como prostaglandina I2, que é produzida pelo endotélio e inibe a agregação plaquetária, além de apresentar efeito vasodilatador. • A prostaglandina F2α (PGF2α), que medeia a contração do miométrio e de outros músculos lisos. • O tromboxano A2 (TXA2), que é produzido pelas plaquetas e promove a agregação plaquetária. Além disso, participa da proliferação das células musculares lisas e tem efeito vasoconstritor. • A prostaglandina D2 (PGD2), assim como todos os prostanoides citados, promove broncodilatação. O perfil de afinidade dos diferentes Aines pela COX-1 e pela COX-2 é de extrema importância, pois determina o risco do aparecimento de efeitos adversos decorrentes da inibição da COX-1 em sítios não inflamatórios. O ácido acetilsalicílico, por exemplo, inibe ambas de maneira irreversível e apresenta, inclusive, maior afinidade pela primeira. Portanto, os principais efeitos adversos observados com o uso desse medicamento são gastrite e úlceras, decorrentes da inibição da síntese de PGE2 no estômago, e hemorragias, pela inibição da síntese de TXA2 nas plaquetas. A seguir, as ações dos Aines sobre os diferentes sistemas orgânicos são discutidas. Tais ações são observadas em maior ou em menor grau com o uso de praticamente todos os Aines disponívels comercialmente. Serão levados em consideração os efeitos desencadeados pelo ácido acetilsalicílico, protótipo da classe. 150 Unidade II Ação analgésica Conforme discutido no tópico Papel dos prostanoides na regulação da sensação dolorosa, a prostaglandina E2 induz hiperalgesia, que é a potencialização da resposta nociceptiva produzida pelos mediadores inflamatórios bradicinina e histamina, quando estes interagem com nociceptores. A queda dos níveis dessa prostaglandina, decorrente da inibição da COX-2 no sítio inflamatório, faz com que o limiar para a ativação dos nociceptores volte ao normal. Ação antitérmica A PGE2 pode ser sintetizada no sistema nervoso central em resposta aos pirógenos, citocinas liberadas pelos leucócitos ativados que estão participando do processo inflamatório ou de outros eventos, por exemplo, as reações de hipersensibilidade e o câncer. A PGE2 produzida localmente é capaz de afetar o centro termorregulador hipotalâmico anterior, resultando em febre. A inibição da COX presente no sistema nervoso central impede o estabelecimento dessa resposta. Ação anti-inflamatória Refere-se à inibição da vasodilatação e da diminuição da permeabilidade capilar decorrentes da inibição da síntese de PGE2 e PGI2 no sítio inflamatório. A inflamação, mesmo sendo uma resposta do sistema imunológico a lesões e à infecção por patógenos que visa à eliminação dessas interferências, é inespecífica e potencialmente danosa aos tecidos do organismo. Não à toa, muitos autores consideram a existência de um quinto sinal cardinal, a “perda de função”, que ocorre quando o tecido inflamado perde a capacidade de desempenhar suas atividades normais. A perda funcional dos tecidos inflamados justifica o uso de anti-inflamatórios para a reversão de quadros inflamatórios intensos e/ou crônicos. Ação sobre a coagulação O efeito antiagregante plaquetário do ácido acetilsalicílico é observado mesmo em baixas doses e justifica seu uso para inibir a formação de trombos em pacientes cardiopatas. É decorrente da inibição da COX-1 das plaquetas, diminuindo a síntese de TXA2. Tal inibição é duradoura e perdura por aproximadamente um mês após a última dose, devido aos três fatores listados a seguir: • O ácido acetilsalicílico promove inibição irreversível das ciclo-oxigenases, portanto é necessária a síntese de novas enzimas para o restabelecimento da produção de prostanoides. • As plaquetas são células anucleadas e, por esse motivo, a síntese de novas enzimas COX-1 não é possível nessas células. Isso garante o efeito antiagregante plaquetário durante toda a vida útil da plaqueta. • O restabelecimento da síntese de PGI2 pelo endotélio, após a interrupção do uso do ácido acetilsalicílico, ocorre mais precocemente do que o retorno dos níveis de TXA2 na plaqueta. Como 151 FARMACOLOGIA APLICADA À BIOMEDICINA resultado, é observada inibição adicional da agregação plaquetária após a interrupção do uso do ácido acetilsalicílico. Observação Baixas doses de ácido acetilsalicílico (100 mg), usadas diariamente, costumam ser prescritas a hipertensos e cardiopatas, por prevenir a formação de trombos (“afina o sangue”). O TXA2 e a PGI2 exercem funções opostas sobre as plaquetas: o TXA2 é um potente estimulador de agregação plaquetária e causa vasoconstrição, enquanto a PGI2 inibe a agregação plaquetária e induz vasodilatação. Portanto, o efeito final sobre as plaquetas depende do balanço entre a produção desses dois mediadores. Ações gastrointestinais Em condições normais, ocorre síntese de PGI2, PGE2 e PGF2α pelas células do estômago que expressam a COX-1. A PGI2 inibe a secreção de HCl pelas células parietais do estômago, enquanto a PGE2 e a PGF2 α (principalmente a primeira) estimulam a síntese de muco protetor que reveste a mucosa do estômago e do intestino delgado. A inibição da síntese desses prostanoides decorrente do uso dos Aines, portanto, resulta no aumento da secreção do ácido gástrico e na diminuição da proteção da mucosa, o que pode resultar no desenvolvimento de gastrites ou até mesmo úlceras. O ácido acetilsalicílico é particularmente
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