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ALCANCE EDUCANDO 17 PARTE I - CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO E DINÂMICAS MIGRATÓRIAS TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA EM MOÇAMBIQUE: MITO OU REALIDADE? António Francisco 1. Introdução Os debates económicos e políticos sobre as dinâmicas de migração, re- lações rural-urbanas, densificação e assentamentos populacionais em Mo- çambique tendem, frequentemente, a girar em torno de fenómenos nacionais, regionais e locais, bem como períodos relativamente curtos, pres- tando pouca atenção às dinâmicas demográficas gerais, e de longa dura- ção. Não há problema que assim seja, desde que as análises, localizadas e de curto prazo não percam de vista as dinâmicas demográficas globais. Apesar de variarem pouco a curto prazo possuem grande impacto a longo prazo. O senso comum não se apercebe, ou simplesmente desconhece, que as mudanças vividas no quotidiano da vida pessoal, familiar e comunitária, têm que ver com processos de longa duração. Algo similar acontece com muitos fenómenos naturais. O exemplo mais familiar é o da antiga percep- ção geocêntrica do universo, de acordo com a qual o Sol gira à volta da Terra e esta parece plana. Há séculos que a ciência desvendou e mostrou a verdadeira razão da ilusão óptica que gera este grosseiro e equivocado erro regular e sistemático, em que o sistema solar heliocêntrico, centrado no Sol e não na Terra, é percebido precisamente ao contrário. Parafraseando Gilbert (2007, pp. 16–17), uma ilusão óptica não é interes- sante só porque faz com que toda a gente cometa um erro; é interessante porque faz com que toda a gente cometa o mesmo erro. Isto acontece em diversos do- mínios, como seja: quando tentamos imaginar o nosso futuro (Gilbert, 2007, pp. 16–17), ou quando procuramos compreender os fenómenos demográficos a partir das aparências não coincidentes com a realidade da população (Keyfitz, 1980). Dois exemplos são suficientes para ilustrar como, à semelhança das ilu- sões ópticas, os pressupostos errados e ilusões de análise são esclarecidos e su- perados pela ciência (Deutsch, 2013; Keyfitz, 1980). O primeiro exemplo é a ideia errada de que, durante a primeira fase do desenvolvimento económico das sociedades, o aumento da população e o aumento da esperança de vida à nascença, tiveram um efeito positivo no crescimento económico. A investigação sobre este assunto produziu resultados surpreendentes, demonstrando que a esperança de vida à nascença exerceu Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 17 18 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE um efeito positivo no crescimento populacional mas, ao mesmo tempo, um efeito negativo na renda per capita (Acemoglu and Johnson, 2007; Bairoch, 2001; Cervellati and Sunde, 2009a, pp. 173–179). Evidências recentemente di- vulgadas, recorrendo a critérios metodológicos apurados, demonstram que é possível explicar porque é que na primeira fase da transição demográfica, o au- mento da esperança de vida teve um efeito negativo sobre o crescimento eco- nómico. Contudo, assim que a fecundidade diminuiu de forma sustentável, o seu efeito sobre o crescimento económico passou a ser significativamente po- sitivo (Cervellati and Sunde, 2015, 2011, 2009a). O segundo exemplo é sobre a percepção comum de que as populações se tor- nam mais envelhecidas, porque a taxa de mortalidade diminui e as pessoas vivem em média mais anos. Qual é o papel da mortalidade na determinação da distribui- ção etária da população? A resposta é surpreendente para o senso comum: a mor- talidade afecta muito menos a distribuição etária da população do que a fecundidade e na direção oposta do que a maioria das pessoas imaginam. O prolongamento da vida, através da redução das taxas de mortalidade tem o efeito perverso de tornar a população um pouco mais jovem, como tem acontecido em Moçambique, no úl- timo meio século (Coale, 1987, p. 366; Nazareth, 2004, pp. 115–118). A transição demográfica constitui uma realidade em Moçambique, não tanto porque a transi- ção da fecundidade iniciou nas áreas urbanas, nomeadamente na Cidade de Maputo. A transição demográfica moçambicana (TDM) está em curso a nível nacional, antes de mais nada porque a transição da mortalidade é uma realidade; o seu início remonta às primeiras décadas do século XX, se bem que só existam evidências fiá- veis a partir de 1950 (Arnaldo, 2007, pp. 309–310; Arnaldo and Muanamoha, 2011; Cardoso, 2007). Sendo a transição da mortalidade um facto, o equilíbrio po- pulacional pré-transicional, característico do regime demográfico antigo, foi que- brado pela diminuição sustentável e de forma irreversível da mortalidade infantil, associada à alteração do sistema homeostático de auto-regulação da organização fa- miliar, através da nupcialidade, das relações geracionais e de género, entre outras. Não é previsível, muito menos desejável, que o restabelecimento de um novo equi- líbrio populacional a longo prazo, resulte da reversão da transição da mortalidade. Por isso, o prosseguimento e a consolidação da transição demográfica, vai depen- der de quando e como é que a transição da fecundidade se associará à transição da mortalidade, corrigindo e contrabalançando os desequilíbrios e perturbações cria- dos pelo declínio da taxa de mortalidade. No âmbito dos debates sobre os movimentos e relações rural-urbanas, afi- gura-se oportuno debater e questionar certos pressupostos que nutrem a expec- tativa equivocada acerca da viabilidade e sustentabilidade de uma redução da mortalidade, sem que a mesma não seja contrabalançada por idêntica queda da natalidade. Tal expectativa errada é amplamente difundida no seio de políticos, religiosos, profissionais e técnicos bem posicionados para influenciarem as op- Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 18 ALCANCE EDUCANDO 19 ções de políticas públicas. A título de curiosidade, recentemente o autor deste texto foi questionado, por um funcionário sénior do Governo, se não seria possí- vel avançar na transição demográfica, sem ter que baixar a fecundidade, visto a elevada fecundidade ser dos valores tradicionais mais fortes na cultura moçam- bicana. Não lhe ocorreu que o mesmo se poderia dizer em relação à elevada mor- talidade rural, ao analfabetismo, aos casamentos prematuros e início precoce da actividade sexual, entre muitos outros aspectos, que também faziam e fazem parte da cultura moçambicana, como herança do regime demográfico antigo, presen- temente em ruptura. A questão no título – Mito ou Realidade? – visa indagar sobre o alcance da TDM, mesmo sabendo que é incipiente, atrasada e lenta, comparativa- mente à generalidade da transição demográfica global. Ao rever a litera- tura dedicada aos estudos da população moçambicana, percebe-se que os fazedores de políticas públicas evitam questionar percepções ilusórias, equivocadas ou preconceituosas, relacionadas com os processos de trans- formação demográfica. Mesmo os especialistas nestas matérias refugiam-se, frequentemente, numa postura técnica e acrítica, acabando por alimentar a complacência e a indiferença para com os enormes desafios provocados por processos demográficos. O actual crescimento populacional é ampla- mente considerado moderado ou irrelevante para a formulação de políticas de crescimento económico e desenvolvimento humano. O artigo está organizado em cinco secções, começando por esta Introdução. A segunda secção apresenta o enquadramento analítico e metodológico, recor- rendo para tal ao quadro proporcionado pela teoria da transição demográfica, ar- ticulando o seu modelo estilizado clássico com a sua representação empírica da população mundial e da população moçambicana, em particular. A terceira ses- são fornece um breve panorama da evolução da população moçambicana, co- brindo um período de 160 anos (1890-2050) para o qual é possível dispor de dados confiáveis, dos quais 125 anos representam a evolução passada e 35 anos correspondem à projecção até meados do século XXI. Antes de terminar a terceira secção,enumera-se uma dúzia de evidências empíricas sobre manifestações e efeitos da actual fase de transição demográfica moçambicana. A quarta secção re- visita e actualiza a questão levantada num trabalho anterior – ‘Somos muitos? Somos poucos?’ (Francisco, 2012a); mostra que a dimensão da chamada ‘ex- plosão demográfica’ em Moçambique, longe de ser um desafio distante, já está a afectar o presente e continuará a afectar decisivamente toda a primeira metade do corrente século. A quinta secção conclui, equacionando os principais desafios que a actual etapa da transição demográfica coloca aos investigadores e estudio- sos da população, bem como aos fazedores de políticas públicas e à sociedade mo- çambicana, em geral. Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 19 20 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE 2. Enquadramento analítico e metodológico O quadro conceptual da recente evolução demográfica da população hu- mana, mais representativo e amplamente usado, gira em torno do conceito ‘transição demográfica’, num duplo sentido: teórico e empírico. Esta dupla divisão, ainda que conveniente para efeitos de análise, na verdade, é artifi- cial e epistemologicamente questionável, por causa do seu forte enviesamento indutivista, que tem prevalecido na ciência demográfica desde o surgimento, no século XVII, com a publicação das Observações Naturais e Politicas, por John Graunt, o comerciante e amador que inventou as primeiras tábuas de mortalidade e estimativas sistemáticas do crescimento populacional de Lon- dres (Bandeira, 1996, pp. 7–8; Burch, 2003; Deutsch, 2013, pp. 13–55; Fran- cisco, 2011a, pp. 7–8, 1996, pp. 315–323; Graunt, 1996). Não é possível fazer justiça, neste texto, à extensa literatura internacio- nal sobre a evolução teórica e empírica da transição demográfica; nem tão pouco às controvérsias epistemológicas e metodológicas que as dinâmicas de mudança populacional têm provocado sobre o alcance da teoria de tran- sição para explicar as profundas transformações, tanto nos países mais de- senvolvidos como nos actuais países sub-desenvolvidos. Para efeitos de enquadramento analítico e metodológico deste trabalho, destacam-se seis pontos marcantes da transição demográfica (TD), sobre as seguintes ca- racterísticas: 1) o conceito de TD; 2) a tipologia clássica das fases da TD; 3) a alcance explicativo da TD; 4) os dados e a teoria TD; 5) a utilidade ana- lítica do modelo estilizado TD; 6) Controvérsias e críticas à TD. Em con- junto e de forma resumida, os referidos pontos permitem estabelecer o quadro básico de análise nas demais secções deste artigo. O primeiro ponto define a ‘transição demográfica’, como a etapa do pro- cesso de ruptura e transformação de um ‘regime demográfico antigo’ (RDA) de elevadas taxas vitais – taxa bruta de mortalidade e taxa bruta de natalidade – e baixo crescimento natural, passando por um processo de elevado cresci- mento transicional, para um ‘regime demográfico moderno’ (RDM) de baixas taxas vitais. As implicações deste processo de profundas transformações na es- trutura da população e na organização da sociedade, confirmam a antecipação notável do demógrafo francês Adolphe Landry (1987 [1909]), ao designá-lo por ‘revolução demográfica’, em1909; ou seja, vários anos antes da expressão ‘transição demográfica’ formulada por Nortestein (1945) ter sido adoptada pela comunidade de estudiosos da população. A TD é um processo que de- corre num período que tem variado entre um século e meio a dois séculos para uma dada população (Bandeira, 1996, pp. 13–15; Caldwell, 1976, p. 323; Ches- nais, 1990; Cowgill, 1963; Davis, 1945; Landry, 1987; Lee, 2003; Lee and Reher, 2011; Livi-Bacci, 1992; Reher, 2004; Thompson, 1929). O segundo ponto diz respeito aos padrões de crescimento populacional relacio- nados com a tipologia clássica das fases da TD. Na sua versão preliminar Warren Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 20 ALCANCE EDUCANDO 21 Thompson (1929) identificou três padrões de crescimento, configurados no que Francisco (1996, pp. 209–214) designou por ‘tipologia ABC do sistema demográ- fico’. Isto porque, no clássico artigo intitulado Population, Thompson usou as três primeiras letras do alfabeto (A-B-C) para designar os três grupos de países indi- ciando padrões de crescimento populacional específicos. Posteriormente, demógra- fos como Keyfitz (1977, p. 24) e McNamara (1982, p. 146) substituíram as letras A-B-C por números (1-2-3), a qual outros expandiram, adicionando mais uma ou duas etapas, enquanto outros ainda propõem a distinção entre “primeira” e “se- gunda” transições demográficas. Independentemente das variações e adaptações à diversidade de processos de mudança reais, a clássica tipologia ABC capta o essen- cial do modelo fundamental de transição demográfica, principalmente desde que Notestein qualificou os três regimes típicos de crescimento populacional, designa- dos por: ‘crescimento incipiente’, crescimento transicional’ e ‘elevado potencial de crescimento’. A primeira fase da evolução demográfica, geralmente designada por pré-transicional, corresponde ao “’crescimento incipiente’, o nosso primeiro tipo de- mográfico”, como escreveu Notestein (1945, p. 41). O RDA representou um pro- cesso milenar de equilíbrio populacional variável, em torno de elevadas taxas de mortalidade (Taxa Bruta de Mortalidade – TBM, o número de óbitos em cada mil habitantes) e de natalidade (Taxa Bruta de Natalidade – TBN, o número de nasci- mentos em cada mil habitantes); taxas elevadas, mas suficientemente próximas uma da outra, para se evitar a extinção, rondando entre 40 e 50 eventos (óbitos ou nasci- mentos) por 1000 pessoas. A segunda fase da transição, de ‘crescimento transicio- nal’ (Notestein, 1945, p. 46) é a fase de transição propriamente dita, quando a queda tanto da mortalidade como da fecundidade fica bem estabelecida. A diminuição da mortalidade geralmente precede a queda da natalidade, dando origem a um rápido crescimento populacional, muitas vezes apelidado de ‘explosão demográfica’ (Cald- well, 1982; Coale and Watkins, 1986; Korotayev et al., 2015). A esperança de vida à nascença aumenta de forma sem precedentes, convertendo-se numa das principais conquistas em toda a evolução da humanidade. Existem pelo menos duas principais explicações para a transição da mortalidade, nesta fase: uma que destaca a melhoria do padrão de vida da população causada pelo desenvolvimento económico; a outra que enfatiza a contribuição e difusão das inovações na medicina, saúde pública, me- lhoria da higiene pessoal e saneamento básico. Eventualmente, a taxa de natalidade acaba por iniciar uma diminuição sustentável, similar à observada com a mortalidade; o hiato entre os dois componentes de mudança da população reduz-se, desacele- rando-se o crescimento vegetativo da população. Nesta etapa, o declínio da taxa de natalidade é a principal novidade sobre o crescimento da população moderna. Sem a alteração do comportamento reprodutivo e consequente diminuição da fecundidade não restaria outra alternativa ao crescimento populacional insustentável, senão a re- versão da taxa de mortalidade para os níveis elevados primitivos. Emerge, assim, um terceiro regime, o RDM, caracterizado por um novo equilíbrio resultante da aproxi- mação das taxas vitais, mas diferentemente do RDA, em torno de baixas taxas Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 21 22 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE vitais. Esta terceira fase da TD abrange os processos mais avançados das transfor- mações demográficas recentes, incluindo a queda das taxas de fecundidade para ní- veis abaixo do limiar de substituição (2,1 filhos por mulher), ou à busca do equilíbrio populacional recorrendo aos processos migratórios e às novas dinâmicas associadas ao envelhecimento populacional. As novas dinâmicas associadas ao RDM têm sido suficientemente relevantese originais para motivarem um número crescente de es- tudiosos da população a falarem de quarta ou quinta fase da transição, enquanto ou- tros consideram tratar-se de uma ‘segunda transição demográfica’ (Dyson, 2010; Johnson-Hanks, 2008; Lee, 2003; Lesthaeghe, 2014, 2010; Malmberg and Som- mestad, 2000; Reher, 2004). O terceiro ponto sobre a transição demográfica refere-se a um dos as- pectos mais notáveis da ciência, sobre o contraste entre o alcance e o poder das melhores teorias disponíveis, por um lado, e os meios precários e locais com que são criadas, por outro. “Uma vez que as teorias podem contradi- zer-se mas não existem contradições na realidade”, escreveu Deutsch (2013, p. 36), “cada problema [de investigação] é um sinal de que o nosso conhecimento deve ser imperfeito ou inadequado”. E se o conhecimento é inadequado ou errado, ‘...nenhuma observação corrigirá essa concepção errada até termos uma ideia melhor; contrariamente, se tivermos a con- cepção correcta podemos explicar o fenómeno mesmo se existirem grandes erros de dados” (Deutsch, 2013, p. 36). Esta observação é particularmente importante quando se lida com fenómenos para os quais não é possível dis- por de dados adequados ou fidedignos. Em relação a grande parte da evo- lução humana só é possível contar com suposições, pressupostos, estimativas matemáticas e técnicas indirectas. O destaque aqui dado a uma abordagem epistemológica contrária ao empirismo, ao instrumentalismo e ao relativismo, deriva do facto de as estimativas e, sobretudo, as projec- ções sobre a evolução demográfica futura da população de países particu- lares dependerem mais de pressupostos, conjecturas, suposições ou teorias do que propriamente dos chamados ‘dados’ (Deutsch, 2013, pp. 34–37).2 A interpretação das transições demográficas observadas na realidade é con- dicionada pela qualidade dos dados, mas estes dependem, por sua vez, da 2 ‘Desde o famoso artigo de Thompson de 1929, o quadro analítico da teoria da transição demográ- fica tem representado para os 'estudos da população' o que a teoria estável de Lotka esboçada em 1907 tem representado para a 'demografia formal’: o culminar de um longo processo de conver- gência entre fecundidade e mortalidade, num modelo estilizado e unificado... Tal como a teoria da população estável, a transição demográfica surgiu após um longo processo no desenvolvimento da teoria demográfica que remonta, pelo menos, à tradição da investigação estabelecida pelo Prin- cípio da População de Malthus.Tanto a teoria da população estável como a teoria da transição de- mográfica converteram, pelos seus próprios meios, a visão malthusiana da população com destino em dois elegantes modelos... muito além de simples representação da ordem, tendências e regu- laridades herdadas dos dados de Graunt ...’ (Francisco, 1996, pp. 209–210). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 22 ALCANCE EDUCANDO 23 capacidade da teoria indicar o que procurar, como e porquê. Por exemplo, a tendência de se considerar o progresso da TD como uma transformação predominantemente dependente da transição da fecundidade remeteu as migrações (e também a nupcialidade) e a sua relação com o processo glo- bal de urbanização para o esquecimento ou, pelo menos, para um plano muito secundário (Dyson, 2011). Por outro lado, quando lidamos com as projecções demográficas, é indispensável não esquecer que antes de olhar para os resultados, o mais importante a tomar em conta são os pressupos- tos sobre o comportamento e rumo dos determinantes das mudanças de- mográficas, nomeadamente: natalidade, mortalidade e migrações. O quarto ponto sobre a transição demográfica relaciona-se com o ponto anterior. Neste trabalho, as principais fontes de dados estatísticos usadas são as estimativas e as projecções da Divisão Populacional da Organização da Nações Unidas (UN, 2015), da Divisão de Estatísticas da FAO (Orga- nização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e do Instituto Nacional de Estatística (INE, 2010). Desde a revisão de 1963, a Divisão de População da ONU emprega o método de projecção de componentes-de- coorte na elaboração de projecções individuais dos países, tornando-se o método de projecção mais comum utilizado pelos demógrafos. Este mé- todo fornece um quadro contabilístico para os três componentes de mu- dança demográficas – fecundidade, mortalidade e migração internacional – aplicado a uma população específica, através de um modelo matricial que calcula o efeito de padrões futuros assumidos para cada componente, num determinado ponto no futuro (UN, 2015). As projecções de organismos in- ternacionais (e.g. ONU) ou nacionais têm sido revistas e actualizadas em conformidade com a revisão dos pressupostos e sua estabilidade com novos dados empíricos disponibilizados. Este trabalho obstrai-se das dúvidas que possam surgir sobre a qualidade dos dados demográficos relativos a Mo- çambique (Zinkina and Korotayev, 2014a). Esta opção não significa que eventuais problemas de qualidade dos dados estatísticos sejam considerados irrelevantes ou desprezíveis. O que significa é que no fundamental tais pro- blemas de qualidade dos dados não invalidam os principais argumentos apresentados neste trabalho. O mesmo se pode dizer em relação à forma fetichista como o INE, principal organismo de estatística oficial em Mo- çambique, lida com os dados estatísticos. Por fetichismo entende-se, neste caso, o culto de uma abordagem dos dados estatísticos oficiais como se de ‘coisas’ se tratasse; evita-se, tanto quanto possível, comunicar ao público a incerteza inerente às projecções, enfatizando apenas uma única variante, como se esta opção deixasse o público melhor preparado, do que a opção da ONU fornecer diferentes variantes de projecções, admitindo um inter- valo de predição de resultados prováveis (Silver, 2013, pp. 186–192). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 23 24 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE O quinto ponto relevante sobre a TD diz respeito à utilidade do seu mo- delo estilizado. O segredo de qualquer modelo, como escreveu Silver (2013, p. 238), reside na sua capacidade para ajudar a entender as complexidades do universo e não um substituto para ele. Dado que a representação gráfica do modelo clássico estilizado da TD é amplamente difundida (pode ser fa- cilmente visualizada na Internet), é dispensável aqui reproduzir a imagem clássica das três fases da transição acima referidas (Bandeira, 1996; Fran- cisco, 2011a, 2011b, p. 15, 1996; Livi-Bacci, 1992, p. 103). No seu lugar, a Figura 1 ilustra o gráfico do processo de TD global em comparação com a TDM, com base nos dados disponibilizados pela variante média mais re- cente da ONU (UN, 2015). A Figura 1 representa as transformações de- mográficas registadas a partir de meados do séc. XX, ilustrada no gráfico pela faixa sombreada a cinzento, mas não capta o avanço da transição de- mográfica mundial da primeira para a segunda fase. Em 1950, a média mundial da mortalidade (TBM) rondava 20,1 por 1000 óbitos (daqui em diante ‰); ou seja, nessa altura já tinha baixado para cerca de metade dos elevados níveis da mortalidade pré-transicionais mundiais. Por sua vez, a média mundial da natalidade (TBN) rondava os 37,8 por 1000 nascimen- tos (daqui em diante ‰), indicando que a transição da fecundidade já re- flectia substanciais mudanças no comportamento reprodutivo global. 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2030 2040 2050 6 TCN_Moz Transição Demográfica Mundial TBN-Moz TBM-Moz Ta xa s B ru ta s ( po r 1 00 0 ha bi ta nt es ) TBN-Mundo TBM-Moz TBM-Mundo TCN-Mundial Fonte: UN, 2015 TBN-Moz TCN_Moz 29 21 0 10 20 30 40 50 60 49 48 46 45 41 37 30 26 8 10 13 16 25 34 Figura 1: Comparação do Processo de Transição Demográfica no Mundo e em Moçambique, 1950-2050 Fonte: UN, 2015 Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 24 ALCANCE EDUCANDO 25Em relação a Moçambique, em 1950 a taxa de mortalidade rondava os 34,1‰ (ou seja, substancialmente acima da média mundial), e a taxa de natalidade mantinha-se próximo dos 50‰. Estes dados indicam que a rup- tura com o RDA, ao nível da mortalidade, terá iniciado nas primeiras dé- cadas do séc. XX. Por outro lado, em meados do séc. XX a discrepância entre as taxas vitais, a nível mundial, era maior do que em Moçambique. O crescimento médio da população mundial, em 1950, rondava 1,8% por ano, contra uma taxa de 1,5% em Moçambique, no mesmo ano. Ao longo das últimas seis décadas, como ilustra a Figura 1, a TBN moçambicana per- maneceu acima de 40‰, enquanto a TBM baixou para menos de metade (12,6‰) do nível em 1950. Por seu turno, a nível mundial, tanto a morta- lidade como a natalidade prosseguiram a sua diminuição para níveis mais baixos, e cada vez mais próximas uma da outra, traduzindo-se numa desa- celeração do ritmo de crescimento da população mundial para cerca de 1,2% ao ano. Em contrapartida, a discrepância entre as taxas vitais au- mentou em Moçambique, originando uma aceleração do crescimento po- pulacional para cerca de 2,8% ao ano. O sexto e último ponto visa reconhecer a importância das controvérsias e críticas que a transição demográfica tem inspirado, se bem que este não seja o espaço apropriado para discutir os seus méritos e deméritos. Apesar da sua generalização como um processo real e global, nem por isso a teo- ria da TD deixa de inspirar novas questões e formas de investigação, bem como novas críticas, questionamentos e desafios relativamente aos seus princípios essenciais: o conceito e o seu modelo estilizado clássico e evo- lucionista; a ideia da sua generalização à população de todo o mundo; e a instrumentalização prospectiva da teoria (Abernethy, 1995; Alves, 2002; Bandeira, 1996, p. 15; Burch, 2003; Cochran and O’Kane, 1977; Francisco, 1996, pp. 315–323; Galor, 2011; Korotayev et al., 2015; Korotayev and Zinkina, 2015; Nielsen, 2015a, 2015b; Teitelbaum, 1987; Weinstein, 1980). Parte das inspirações indagadoras e, sobretudo, críticas derivam das ideias e previsões contraditórias da teoria, razão pela qual questões como a de Weinstein (1980), ‘Precisamos de uma teoria da transição demográfica?’, estão longe de ser irrelevantes ou despropositadas. Aliás, se aqueles que consideram a teoria de TD uma história de ficção e de fantasmas, rica em desinformação mas pobre em ciência (Abernethy, 1995; Nielsen, 2016, 2015b) estiverem certos, eventualmente encontrarão a maneira de de- monstrar à comunidades de demógrafos que a TD não passa de mais uma ilusão óptica, como as que foram referidas no início deste artigo. Afinal de contas, são muitas as questões que continuam abertas à investigação, tais como: a chamada transição da estagnação malthusiana para o desenvolvimento pós-malthusiano ecologicamente compatível e sustentável (Deutsch, 2011, pp. Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 25 26 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE 434–436; Ehrlich and Ehrlich, 2016; Galor, 2011; Nielsen, 2016, 2015b); os mal-entendidos sobre o crescimento hiperbólico tão extensivamente tomado como exponencial; os aparentes efeitos positivos do melhor estado de saúde no crescimento económico, na fase inicial da TD, desvendados assim que os critérios definidores de "pré-transição" e "pós-transição" da fecundidade foram melhor operacionalizados (Cervellati and Sunde, 2015, 2009b; Sunde and Cervellati, 2012); o potencial de conflitos sociais na forma como os paí- ses numa fase incipiente de transição demográfica lidam com o seu subde- senvolvimento económico e demográfico (Akaev et al., 2012; Bandeira, 1996; Blue and Espenshade, 2011; Bongaarts, 2009; Francisco, 2016a; Hopfenberg, 2014; Kapitza, 2009, 2009; Kobelev and Nugaeva, 2000; Korotayev et al., 2011; Korotayev and Zinkina, 2015; Lee, 2015; Lee and Reher, 2011; McNi- coll, 2013; Nielsen, 2015a, 2015b; Reher, 2011; Shin, 2013). Apesar da questão enunciada no título – mito ou realidade? – ter como foco o caso particular de Moçambique, depreende-se desta secção que o tipo de resposta para ela é, implícita ou explicitamente, determinada pelo seu enten- dimento e interpretação da teoria da TD. Eventualmente, tal entendimento não pode ser indiferente às reais e profundas transformações geradas pela ‘revo- lução demográfica’ mundial, como antecipou Landry (1987) no início do sé- culo XX, mesmo se no seu pensamento – ao contrário de Malthus e dos teóricos da transição – ainda estivesse ausente a ideia de que tais mudanças se generalizariam inevitavelmente a outras regiões do mundo, para além da Eu- ropa (Bandeira, 1996, p. 15). 3. Breve Panorama da População Moçambicana: 1890-2050 O termo “explosão demográfica” é por vezes desvalorizado como alar- mista e pessimista; mas tal só acontece quando não se faz o mínimo de es- forço para apreciar o alcance da impressionante transformação demográfica, observada na humanidade, nos últimos dois séculos, graças ao controlo da mortalidade. Foram precisos vários milénios para que a popu- lação mundial atingisse mil milhões de pessoas, por volta do ano 1800, mas desde então, em apenas dois séculos multiplicou-se por sete vezes. Em 1930, ou seja, 130 anos após atingir a cifra de mil milhões, a população mundial alcançou os dois mil milhões de pessoas. Em 1960 atingiu três mil milhões; em 1975 chegou aos quatro mil milhões; em 1987 aos cinco mil milhões de pessoas; em 1999 seis mil milhões e, em 2011, ultrapassou os sete mil milhões de pessoas. Se a variante média das projecções da ONU se confirmar, em 2024 a população mundial atingirá a cifra de oito mil mi- lhões (Francisco, 2012a, 2010a; Maddison, 2008; UN, 2015). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 26 ALCANCE EDUCANDO 27 Este notável crescimento da população mundial transporta-nos para o comentário de Alberto Bartlett (2007), proeminente físico que investigou extensivamente as consequência do crescimento populacional: “O maior defeito da raça humana é a nossa incapacidade em compreender a função exponencial”. Uma função matemática intimamente ligada aos processos de crescimento rápido (aumento ou diminuição) que, tal como se referiu na Introdução, o senso comum percebe frequentemente de forma equivo- cada ou distorcida. E como se não bastasse, como advertiu Hardin (1987): “A competência numa área do conhecimento humano interfere na com- preensão de outra. Por exemplo, uma boa educação em economia pode obscurecer a importância do crescimento da população”. Comecemos por traçar, de forma resumida, a trajectória do crescimento da população mo- çambicana. 3.1. Evolução Populacional: 1890-2015 A Figura 2 ilustra a evolução da população de Moçambique num pe- ríodo de 160 anos, incluindo a estimativa do período mais longo com dados representativos disponíveis (125 anos) e as perspectivas de crescimento fu- turo (próximos 35 anos), até meados do corrente século (Maddison, 2006; UN, 2015). A menos que novos dados mais fidedignos venham a ser dis- ponibilizados estima-se que, em 1890, a população de Moçambique ron- dava os 3,8 milhões de habitantes. Decorridos 125 anos, a população moçambicana terá atingido, em 2015, os 28 milhões de habitantes. Se a va- riante média da projecção da ONU se confirmar, Moçambique atingirá, em 2050, cerca de 65 milhões de habitantes (UN, 2015). A trajectória ilustrada na Figura 2 permite inferir um conjunto de ob- servações sobre as características do crescimento da população moçambi- cana, tanto em termos retrospectivos como prospectivos. Convém referir que o ano 1890 não é uma data escolhida ao acaso. Foi em meados de 1891 que a configuração geográfica do território de Moçambique ficou definiti- vamente definida e reconhecida internacionalmente, tal como a conhecemos até hoje3. Em outras palavras, pode-se dizer que Moçambique nasceu como Estado moderno, em 1891, integrando os principais elementos constituin- tes: um territóriocom cerca de 800 mil km2, devidamente delimitado; uma 3 Todos os anos é celebrado o dia oficial do nascimento da Cidade de Maputo, e de outras cidades estabelecidas antes da Independência, mas o mesmo não acontece com o nascimento de Moçam- bique, como Estado moderno. Se a inexistência de uma data que simbolize o nascimento de Mo- çambique pode ser atribuída a preconceitos políticos, é difícil entender que os mesmos preconceitos não sejam extensivos às datas comemorativas das cidades que nasceram, tal como Moçambique, no período colonial. O reconhecimento do nascimento de Moçambique como Es- tado moderno talvez ajudasse a estabelecer uma visão de Nação mais realista, com uma história antes e depois de 1975, ano em que o Estado Colonial deu lugar ao Estado Soberano. Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 27 28 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE Administração Pública unificadora, imposta pela Administração colonial Portuguesa, na sequência do Tratado entre Portugal e Inglaterra e que vi- gorou durante 84 anos, até à Independência em 1975; uma língua oficial, o Português, que apesar de ser a única que não tem origem bantu, talvez por isso o novo Estado Soberano optou por mantê-la como língua oficial depois da Independência (Francisco, 2012a, 2010b; Heston et al., 2011; Maddi- son, 2006; Newitt, 1997, pp. 291–342; Pélissier, 2000, p. 144). O facto da delimitação territorial de Moçambique se ter mantido inalterada ao longo dos últimos 125 anos foi determinante em múltiplos aspectos: políti- cos, sociais, económicos e culturais. Não menos importante, a delimitação clara do território moçambicano proporciona o enquadramento dos processos de- mográficos da sociedade moçambicana, incluindo o tamanho e a estrutura da população, bem como a dinâmica dos componentes de mudança da popula- ção, sua distribuição geográfica, movimentos migratórios e urbanização, entre muitos outros aspectos marcantes na sociedade moçambicana. Em 1961, a população moçambicana atingiu cerca de 7,6 milhões de habi- tantes. Significa que foram precisos 71 anos para que Moçambique alcançasse a sua primeira duplicação populacional, desde 1890. A década que se seguiu à Independência foi marcada por mudanças radicais e bruscas, a nível político, social e económico, incluindo uma guerra civil devastadora que durou 16 anos, cujas consequências desestabilizadoras se prolongam até aos dias de hoje, como testemunham os conflitos político-militares que reemergiram desde 2013. Mas mais importante do que ajuizar sobre as consequências do inusitado legado da utopia revolucionária radical que se apoderou do processo de descolonização de Moçambique, é reconhecer aquilo que pouco ou nada mudou em termos demográficos, nas ultimas quatro décadas. Contrariamente ao que aconteceu em certos países africanos ou asiáticos (e.g. Botswana, África do Sul e Coreia do Sul), a taxa de dependência infantil (grupo etário dos 0-14 anos) em Moçam- bique aumentou de 0,78 em 1950 para perto de 1 (0,97) em 1990, diminuindo ligeiramente posteriormente para cerca de 0,87; mas até ao fim da corrente dé- cada, não se prevê que a proporção de dependência infantil reduza para o nível observado em 1950 (Francisco, 2013a, p. 368)4. Desde a Independência de Moçambique a taxa de crescimento populacional acelerou, devido à ampliação do hiato entre a mortalidade e a natalidade, enquanto o crescimento económico regrediu e deixou de contribuir positi- vamente para a transformação progressiva da economia e integração efectiva 4A título compartivo, em 1950, o nível e estrutura de dependência infantil em Moçambique era idên- tico ao da maioria dos países da África subsaariana, tais como África do Sul (0,70), Botswana (0,78), Gana (0,89), e da Ásia; por exemplo Coreia do Sul (0,81). Porém, em 2010, a dependên- cia infantil na Coreia do Sul tinha baixado drasticamente para 0,24; na África do Sul e no Bots- wana baixou para cerca de 0,50, mas Moçambique e Gana (este último ligeiramente menos) permaneceram praticamente estagnados (Francisco, 2013a, p. 368). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 28 ALCANCE EDUCANDO 29 e progressista na economia capitalista mundial. Pelo menos no período em que a sociedade moçambicana, e em particular o Estado, tentou romper (´li- bertar-se?’) bruscamente com o sistema económico-financeiro capitalista, regional e internacional, no mínimo a economia nacional deixou de contri- buir positivamente para a transformação estrutural da economia e da po- pulação economicamente activa (Francisco, 2003; Mosca, 2005; Newitt, 1997). As aspirações da sociedade moçambicana por uma melhoria visível, efectiva e ampla das condições de saúde, educação e de vida da sua população, depressa se converteu num projecto de viabilidade e sustentabilidade duvido- sas. As razões são diversas, mas este não é o espaço adequado para as debater. Apenas vale a pena sublinhar que, a contar pelas experiências históricas inter- nacionais, sem mudanças estruturais e institucionais progressivas na capaci- dade produtiva e reprodutiva, dificilmente a sociedade moçambicana logrará uma melhoria efectiva do padrão de vida (Acemoglu and Robinson, 2012; Francisco, 2016a; Francisco and Siúta, 2015a). 70,000 60,000 50,000 40,000 30,000 Po pu la çã o (e m m il ha bi ta nt es ) 20,000 10,000 3,795 1890 1906 1922 1938 1954 7,643 15,363 Previsão da 4ª duplicação 2018-2047 (29 anos) Previsão da 3ª duplicação 1994-2018 (24 anos) 2ª Duplicação 1961-1994 (33 anos) 1ª Duplicação 1891-1961 (70 anos) 30,339 61,591 65,544 10,405 1975, Independência de Moçambique 1891, Nascimento do Estadomoderno (colonial) 3,828 1970 1986 2002 2018 2034 2050 Fonte: Maddison, 2006; UN, 2015 Figura 2: Evolução e Projecção da População de Moçambique: 1890-2050 Por volta de 1994, a população mçambicana atingiu 15,3 milhões de ha- bitantes, significando que precisou de 33 anos para que uma nova duplica- ção populacional acontecesse. Desde meados da década de 1990 a taxa de crescimento da população acelerou ainda mais, até ao presente. Confirma- o o ritmo de crescimento populacional, no último quarto de século; entre 1890 e 1961 a população cresceu a uma taxa média anual de 0,99%, no período 1961 – 1994 acelerou para uma média anual de 2,14% e, desde 1994 até ao presente, aproximou-se dos 3% (Francisco, 2011a, 2011c; Mad- dison, 2008; UN, 2015). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 29 30 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE 5 Curiosamente, este ritmo de duplicação populacional (cerca de 25 anos) corresponde ao que Malthus constatou, no seu Ensaio sobre População publicado em 1798, estar a ocorrer no seu tempo, nos Es- tados Unidos da América; ou seja, há mais de duzentos anos atrás (Malthus, 1986, pp. 8–9). Sabendo que a persistente e rápida aceleração da taxa de crescimento populacional, acima referida, não foi causada pela imigração, a única al- ternativa explicativa que resta é o aprofundamento da ruptura do RDM. Como se mostrou anteriormente (Figura 1), aumentou a diferença ou hiato entre o número de nascimentos (TBN) e o número de óbitos (TBM). Devido à falta de dados vitais detalhados, de longa duração, é praticamente im- possível mostrar empiricamente quando é que, efectivamente, terá iniciado a transição da mortalidade. Porém, a partir dos dados usados para esboçar a Figura 1, pode-se inferir que a transição da mortalidade terá iniciado nas primeiras décadas do Século XX, devido à influência da extensão dos ser- viços de administração pública e difusão de alguns serviços sanitários, com- bate à malária e outras doenças primárias (Newitt, 1997; UN, 1981). Mas mais importante do que procurar identificar uma data precisa sobre o iní- cio da transição da mortalidade moçambicana, os parcos dados estatísticos disponíveis confirmam a consistência do sentido e do ritmo da tendência da mortalidadecom a teoria da população e com as experiências das transições demográficas mais avançadas. 3.2. Perspectivas de Crescimento Populacional: 2015-2050 A tendência e o ritmo de crescimento populacional descrito na secção an- terior reflectem mudanças demográficas sem precedentes, em toda a histó- ria da população moçambicana. Até à última década do séc. XIX, o tamanho da população moçambicana permaneceu abaixo de quatro milhões de pes- soas. Depois do fim do séc. XIX, a população multiplicou-se por sete. Se as projecções demográficas da ONU para o séc. XXI se concretizarem, em dois séculos a população de Moçambique aumentará da módica cifra de 3,8 mi- lhões (1891) para cerca de 120 milhões em 2091 (UN, 2015); um aumento populacional de quase 32 vezes, em apenas dois séculos. Analisando os dados de Moçambique num horizonte mais curto, se- gundo as últimas projecções da ONU, por volta de 2018 a população mo- çambicana atingirá 30 milhões de habitantes, completando uma nova duplicação, em apenas 24 anos5. Significa que, entre 1994 e 2018, viveu- se o período em que a taxa média anual de crescimento demográfico a nível nacional atingirá o pico recorde (2,9%). Assumindo que até meados do sé- culo XXI a taxa de crescimento populacional registe uma ligeira desacele- ração, não é previsível que baixe para menos de 2% ao ano. Assim, no Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 30 ALCANCE EDUCANDO 31 próximo quarto de século, Moçambique poderá registar uma nova dupli- cação populacional, prevendo-se que em 2050 alcance os 65 milhões de habitantes (Figura 2). 3.3. Evidências sobre a Transição Demográfica Moçambicana Sem pretender alongar o anterior panorama da evolução da população moçambicana, vale a pena relacioná-lo com o processo de transição de- mográfica em Moçambique, sumarizado numa dúzia de evidências rele- vantes sobre manifestações e efeitos da actual fase de transição. 1. A transição demográfica moçambicana é incipiente porque a transição da mortalidade desencadeou a ruptura do RDA, mas a transição da fecun- didade é demasiado circunscrita a algumas áreas urbanas ou sob a sua in- fluência. Entre 1950 e 2015 a mortalidade moçambicana diminuiu cerca de dois terços (-67%), enquanto a natalidade diminuiu um quinto (-21%) ou apenas um filho por mulher, segundo a taxa global de fecundidade (TFR) (usando a sigla em inglês; número médio de filhos por mulher na sua vida reprodutiva, ou dos 15 aos 49 anos de idade) (TFR_1950 = 6,6 filhos; TFR_2015 = 5,3). No corrente século, o comportamento repro- dutivo global evidencia transformações significativas que não têm sido acompanhadas pelo comportamento reprodutivo da população moçam- bicana. Entre 2000 e 2015, a taxa de fecundidade mundial passou de 2,7 para 2,5 filhos por mulher e a taxa de crescimento populacional baixou de 1,27% para 1,14%, no mesmo período. Por sua vez, nesta última dé- cada e meia, a taxa de fecundidade moçambicana passou de 5,8 filhos por mulher em 2000, para 5,3 filhos em 2015 (UN, 2015). 2. Moçambique é, e continuará a ser por várias décadas, um país de população maioritariamente jovem. Em 1950, a idade mediana indicava que 50% da po- pulação estava abaixo de 19,1 anos. Quase metade da população moçambi- cana era menor de idade, situação idêntica nessa altura à de países como Botswana (19,2 anos) e Brasil (19,2 anos). Decorridos 65 anos, a idade mediana da população moçambicana diminuiu para 17,3 anos (2015); uma mudança em sentido contrário ao que aconteceu no Botswana e no Brasil, onde a idade mediana aumentou para 24,2 e 31,3 anos, respectivamente. Em outras palavras, enquanto em Moçambique a população rejuvenesceu, no Botswana e Brasil envelheceu (UN, 2015). Por enquanto, o processo de cres- cimento populacional moçambicano acontece sem envelhecimento, porque o rejuvenescimento ou renovação da população infantil sobrepõe-se ao aumento do número de idosos, ou gerontocrescimento (Dumont, 2003; Francisco, 2016a). No Brasil e no Botswana o aumento da população idosa converteu-se Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 31 32 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE Fonte: UN, 2011, 2015TBN_UN-2015 TFT_UN-2015 TBN_UN-2010 TBM_UN-2015 TFT_UN-2010 TBM_UN-2010 50 TBN_UN-2015 TBN_UN-2010 TFT_UN-2015,5.5 TFT_UN-2010,4.6 TBM_UN-2010 TBM_UN-2015 19 50 -55 19 60 -65 19 70 -75 19 80 -85 19 90 -95 20 00 -05 20 10 -15 20 20 -25 20 30 -35 20 40 -45 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 2 4 6 8 10 Ta xa s B ru ta s d e M or ta lid ad e (T B N ) e d e N at al id ad e (T B N ) Ta xa de F ec un di da de T ot al (T FT ) Figura 3: Expectativas de Evolução da Natalidade, da Mortalidade e da Fecundidade em Moçam- bique (1950-2050) nas Projecções UN 2010 e 2015 em envelhecimento populacional, por causa do efeito da transição da fecun- didade. Se a projecção média da ONU (UN, 2015) se confirmar, o rejuve- nescimento moçambicano poderá ser invertido nas próximas décadas, mas de forma lenta. Em 2030 deverá aumentar para 19 anos, valor registado em 1950; em 2050 poderá atingir os 22,4 anos. Assim, o crescimento infanto-juvenil continuará a ofuscar o gerontocrescimento, adiando o envelhecimento popu- lacional. Isto é confirmado pela relativa estagnação do Índice de Envelheci- mento (IE) da população com 60 e mais anos de idade praticamente constante (11,6%), em seis décadas e meia. Prevê-se que em 2050 a proporção de ido- sos 60+ moçambicanos ronde os 6,2% e o IE 60+ aumente para 17,7%. A tí- tulo comparativo, em 2050, no Botswana a proporção de idosos 60+ deverá rondar os 16% e o IE 60+ 71,5%; no Brasil a proporção de idosos 60+ deverá atingir os 29% e o IE 60+ aproximar-se-á dos duzentos por cento (195,8%). 3. Contrariamente às expectativas das entidades oficiais de estatística, nacionais (e.g. INE) e internacionais (e.g. ONU), as tendências demográficas em Mo- çambique têm contrariado os seus pressupostos relativos às projecções futuras da fecundidade. Isto é visível na Figura 3 que compara os resultados dos pres- supostos da fecundidade na projecção da ONU de 2010 e de 2015. O gráfico mostra que os pressupostos da Divisão Populacional da ONU subestimaram a diminuição da mortalidade e sobrestimaram a redução da fecundidade (UN, 2015, 2011; Zinkina and Korotayev, 2014a). Algo similar acontece quando se comparam os pressupostos das projecções do INE de 1999 e 2010. Significa que a expectativa, no final do século passado, que a fecundidade registasse uma maior diminuição não se confirmou. Por isso, as últimas projecções da ONU assumem uma queda da fecundidade mais lenta do que as projecções de 2010 (INE, 2010; UN, 2015, 2011; Zinkina and Korotayev, 2014a). Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 32 ALCANCE EDUCANDO 33 4. Não sendo expectável uma reversão ou mesmo interrupção da transição da mortalidade, a única opção realista previsível para um reequilíbrio do cres- cimento populacional, em torno de taxas mais baixas e sustentáveis é que a fecundidade acabe por diminuir e aproximar-se dos níveis mais baixos de mortalidade. Eventualmente, à semelhança do que se tem passado na ge- neralidade do mundo, uma mudança substancial no comportamento repro- dutivo das famílias moçambicanas terá que emergir, independentemente do efeito económico, ou de qualquer opção coerciva de políticas autoritárias, como aconteceu na China. Em muitos países a queda da fecundidade tem ocorrido num ambiente de liberdade de escolha, por efeito da difusão de ideias e valores novos, bem como disponibilidade de métodos modernos de controlo da reprodução humana (Arnaldo, 2013; Arnaldo and Muana- moha, 2011; Cardoso, 2007; Ceccato, 2000; Francisco, 2011c). 5. A TD tem alguma coisa que ver com os chamados ‘casamentos prematu- ros’ e a ‘maternidade precoce’? Se as pessoas que se têm envolvido em campanhas públicas contra os casamentos prematuros em Moçambique ti- verem dúvidas sobrea resposta à pergunta anterior, era melhor que pen- sassem um pouco sobre o sentido das suas acções bem-intencionadas. Os casamentos prematuros e a maternidade precoce são apenas duas entre mui- tas outras evidências do RDA e da necessidade de se romper com o regime demográfico primitivo e pré-transicional a que pertencem. Contudo, uma parte significativa da população moçambicana ainda tem uma esperança média de vida à nascença próxima dos 40 anos de idade. Ora, numa popu- lação com esperança de vida média à nascença de cerca de 30 a 35 anos de idade, como seria possível garantir a reprodução da população se a mulher não começasse a ter filhos imediatamente após iniciar o seu período fértil? (Arnaldo, 2007; Arnaldo et al., 2014; Arnaldo and Muanamoha, 2011; INE et al., 2012; Lesthaeghe, 1989). Porém, como testemunham as ainda limi- tadas experiências de mudança do comportamento reprodutivo nas poucas áreas urbanas moçambicanas que já encetaram a transição da fecundidade, não é por falta de uma política de população governamental mais assertiva e progressista que os casais urbanos deixam de inovar e optar por novas es- tratégias de sobrevivência. Ceccato (2000); Francisco (2011c: 261) identi- ficaram pelo menos três casais típicos na actual sociedade moçambicana – tradicional, em transição e moderno – que exemplificam padrões distintos na fecundidade moçambicana. O casal em transição predomina principal- mente nos grupos étnicos Matsua e Tsonga e vive na Cidade de Inhambane. Por sua vez, o casal moderno predomina nos grupos linguísticos Marongas e Português e sempre viveu na Cidade de Maputo. Assumindo estilos de vida urbana, desde o início da união, o casal moderno sente-se motivado a controlar o tamanho da família, por uma razão simples. Ter filhos indesejados Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 33 34 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE implica custos adicionais significativos. Por isso, o casal moderno opta por não ter mais do que três filhos, uma vez que os custos de uma quarta criança comprometerão o investimento destinado à ‘qualidade da educação’ dos três primeiros filhos. Em suma, como mostra este trabalho, não será por falta de uma política explícita de população que a TDM deixará de progre- dir, principalmente numa altura em que as evidências disponíveis sobre a transição da fecundidade, testemunham que apesar de embrionária e loca- lizada, também já faz parte a realidade moçambicana. 6. Em meados do século XX a população urbana moçambicana representava 3,5% da população total. Em 2015, a população urbana atingiu 32%, pre- vendo-se um aumento para cerca de 45%, por volta de 2040 (INE, 2010). Nas décadas passadas, parte da migração rural-urbana reflectiu, por um lado, os efeitos da guerra civil, entre 1976 e 1992; por outro, a mobilidade das pessoas em busca de melhores alternativas de sobrevivência do que as oferecidas pela economia rural. A Figura 4 compara o processo de transi- ção demográfica moçambicana, rural e urbana, no contexto da transição mundial (faixa cinzenta), entre 1980 e o presente, acrescentando uma pre- visão até 2040. À rápida queda da mortalidade e da natalidade a nível ur- bano corresponde uma taxa de crescimento populacional urbana com tendência decrescente. Esta tendência contrasta com a taxa de crescimento populacional rural, que acelera e atinge o pico no presente, prevendo-se que daqui em diante desacelere. O tempo dirá se esta previsão se confirma. O que se pode antecipar, a partir da experiência de outros países, é que mesmo se as condições económicas não melhorarem, dificilmente a população mo- çambicana rural poderá permanecer à margem da transição demográfica global, quanto mais não seja por não ser previsível que a transição da mor- talidade seja interrompida ou revertida (Arnaldo, 2013; INE, 2010). 7. A urbanização é tanto uma componente integrante da transição demo- gráfica como uma das suas principais consequências (Dyson, 2011, p. 47). A urbanização observada em Moçambique nas últimas três ou qua- tro décadas tem sido substancialmente diferente, em primeiro lugar, do que aconteceu em diversos processos históricos e clássicos, tanto euro- peus como asiáticos. Por exemplo, em processo de urbanização, em mea- dos do século XIX, a Suécia apresentava níveis de mortalidade urbano superiores aos níveis nacionais. Assim, o crescimento urbano acabou muitas vezes por depender mais da migração rural-urbana do que dos ní- veis de fecundidade (Dyson, 2011). Em segundo lugar, a migração rural- urbana observada nas duas últimas décadas antes da Independência, decorreu do rápido crescimento económico dos centros urbanos, forte proletarização provocada pela demanda de força de trabalho para a cons- trução civil, indústrias diversas, serviços domésticos da população Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 34 ALCANCE EDUCANDO 35 urbana, entre outros factores (First, 1998; Newitt, 1997; Rita-Ferreira, 1969). Depois da Independência, tanto a desestruturação da economia rural e urbana, como os efeitos desestabilizadores dos assentamentos populacio- nais provocados pela guerra civil, converteram-se em factores determinan- tes para o fluxo migratório rural-urbano. Mas independentemente dos conflitos político-militares, o facto da população ter atingido uma nova duplicação em meados da década de 1990 e continuar a duplicar, até ao presente, é motivo suficiente para que o fluxo rural-urbano se mantenha elevado, exista ou não capacidade da economia urbana formal de absor- ver os novos migrantes (Jenkins, 2012; Raimundo, 2013). 8. Nos últimos 60 anos, a proporção da população na idade considerada economicamente activa (15-59 anos) sempre foi maior do que a popula- ção convencionalmente em idade inactiva (crianças e idosos). Em 1950 o grupo etário dos 15 anos e mais de idade rondava os 58%; baixou para cerca de 53%, em 1990, voltando posteriormente a aumentar, atingindo cerca de 55%. Se a variante média da projecção da ONU se confirmar, em 2050 a proporção da população em idade economicamente activa atingirá o pico máximo de 67%. Se esta expectativa se confirmar, signi- fica que o grosso da população continuará a concentrar-se na faixa etá- ria dos 15 aos 59 anos; ou seja, a faixa etária produtiva. Devido ao elevado crescimento da população infantil e ao baixo nível de produtividade da TBN-Mundo TBN-Urbana-Moz TBM-Mundo TBN-rural-Moz TCN-rural-Moz TBM-urbana TCN-Urbana-Moz TCN-rural-Moz TBM-rural-Moz TBM-Urbana-Moz Fonte: INE, 2010 3,5 3 2,5 31,8 2 1,5 7,2 1 1040203520252015200719971980 0 10 20 30 40 Ta xa (p or 1 00 0 ha bi ta nt es ) 50 48 45 37,8TBN-Moz-rural TBN-Moz-urbano TCN-Urbano-MozTBM-Moz-rural 33,4 7,8 10,313,5 15,8 24 21,8 60 Ta xa d e C re sc im en to (% ) (dados decenais, em ‰ e %) Figura 4: Comparação da Transição Demográfica Rural e Urbana em Moçambique, no Contexto Mundial (faixa cinzenta), 1980-2040 Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 35 36 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE sociedade moçambicana, o País é globalmente improdutivo, não tanto porque a população em idade economicamente inactiva é maior do que a população activa, mas porque a sociedade em geral e a economia em particular são pouco produtivas. Por isso, uma proporção significativa da população supostamente em idade economicamente não activa en- contra-se, de facto, envolvida na actividade produtiva. Cerca de 25% das crianças de 4-14 anos e a maioria dos idosos (82% dos 60+ de idade) contribuem activamente para a actividade económica (Francisco, 2013b, 2011c; INE, 2009). 9. Quanto às causas da lentidão e do atraso da transição demográfica mo- çambicana, talvez a explicação mais plausível, mas que precisa de ser melhor aprofundada, relaciona-se com o facto de a ruptura com o RDA estar a ser induzida e determinada por factores principalmente exóge- nos: difusãointernacional da medicina moderna e serviços de saúde, pri- meiro pela administração colonial e, depois da independência, pelo novo Estado soberano; integração na economia de mercado capitalista mo- derna; ajuda e acções de actores internacionais; meios de comunicação globais, entre outros (Cervellati and Sunde, 2015; Cochran and O’Kane, 1977; Defo, 2014; Dyson, 2010; Korotayev et al., 2015; Lee, 2003; Sip- pel et al., 2011). Em contrapartida, os factores endógenos contribuem de forma restrita e concentrada para a transformação de uma economia rural mercantil simples e de subsistência, para uma economia de mercado de acumulação capitalista (Bongaarts, 2016; Bongaarts and Casterline, 2013; Cardoso, 2007; Korotayev et al., 2015). Contudo, a própria ques- tão da lentidão da transição demográfica moçambicana precisa ser rela- tivizada. É sabido que os países Ocidentais mais desenvolvidos demoraram um século ou mais para que a taxa de natalidade contraba- lançasse o declínio da taxa de mortalidade (Bairoch, 2001, p. 173; Lee, 2003). Em Moçambique, apesar da transição da fecundidade ainda não ser um processo generalizado e sustentável a nível nacional, os dados disponíveis indicam que terá iniciado em algumas áreas urbanas e na re- gião Sul do País, nos finais da década de 1980. No final da primeira dé- cada do corrente século, a Província de Maputo e a Cidade de Maputo já tinham reduzido a fecundidade para 3,3 e 3,0 filhos por mulher, respec- tivamente (Arnaldo, 2013, pp. 45, 53). 10. Historicamente, o investimento e o crescimento económico em Mo- çambique têm estado fortemente dependentes e ancorados na poupança externa. Na verdade, o processo político e económico que se seguiu à In- dependência política, acabaria por se converter num projecto pós-colonial em busca de novas formas de dependência, do que uma efectiva auto- nomia e independência económica. Esta percepção sustenta-se na forma Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 36 ALCANCE EDUCANDO 37 como a sociedade moçambicana, em geral, e as lideranças políticas eco- nómicas em particular, têm lidado com a poupança interna vis-à-vis a poupança externa (Francisco and Siúta, 2015a, 2015b). Neste contexto, a incipiente transição demográfica coloca Moçambique no que o autor deste texto designou recentemente, em outro trabalho, por “armadilha da transição demográfica” (Francisco, 2016a), em vez do que na lite- ratura se tem designado por “armadilha Malthusiana” (Korotayev and Zinkina, 2015). A armadilha da transição demográfica decorre da im- probabilidade da transição da mortalidade ser reversível, não restando outra alternativa à população senão encetar a transição da fecundidade. Se a busca de um novo equilíbrio populacional não é viável por via do retorno às elevadas taxas de mortalidade, do período pré-transicional, a única alternativa é a transição da fecundidade contrabalançar e com- pensar o desequilíbrio criado pela transição da mortalidade. Afinal de contas, a transição demográfica tem contribuído para resolver, pelo menos em parte, o dilema da alegada assimetria objectiva entre o que Malthus (1986, p. 7) designou por ‘poder da população’ (ou ‘paixão dos sexos’, na sua terminologia) e o ‘poder da produção’ ou ‘poder dos meios de subsistência’. Não é por causa da “paixão dos sexos” ser mais forte e suplantar a “capacidade produtiva”, como defendeu Malthus (1986, pp. 7–8 [1798]), que a população moçambicana tem tido difi- culdade de escapar da armadilha do “baixo-nível de equilíbrio” de so- brevivência (Nelson, 1956), ou armadilha Malthusiana (Francisco, 2016a; Kenny, 2010). Também não será por causa do sub-desenvolvi- mento económico moçambicano que a população deixará de procurar soluções para os desequilíbrios decorrentes da ruptura com o RDA. Se a sociedade moçambicana aspira a uma vida mais longa, não tem como conseguir que o aumento da esperança de vida seja simultaneamente acompanhado por melhores condições de vida, se não mudar o seu com- portamento reprodutivo e diminuir a natalidade. Em vez da transição da fecundidade depender da melhoria do padrão de vida e do nível educa- cional, em geral, ela passa a ser uma condição necessária para que a transição da mortalidade não fique comprometida, devido ao elevado desequilíbrio criado no crescimento populacional, segurança alimen- tar, gestão dos recursos naturais, entre muitos outros aspectos (Fran- cisco, 2011c; Sippel et al., 2011). 11. Seja qual for o tipo de armadilha que países africanos como Moçambi- que estão a enfrentar – Malthusiana, de ‘baixo-nível de equilíbrio’ de so- brevivência, ou da transição demográfica – como têm advertido Korotayev e colegas, o crescimento populacional explosivo, nas déca- das mais próximas, é uma probabilidade real em diversos países da Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 37 38 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE África Subsariana; uma probabilidade resultante da pressão que a len- tidão da transição da fecundidade pode exercer, provocando graves con- vulsões políticas. Assim, a duplicação (ou mesmo triplicação) populacional, nas próximas décadas pode prejudicar seriamente as pers- pectivas de desenvolvimento dos países africanos e conduzir à deses- tabilização político-social e conflitos violentos de grande escala com consequências possivelmente globais (Korotayev et al., 2011; Koro- tayev and Zinkina, 2015; Sippel et al., 2011; Zinkina and Korotayev, 2014b). Com a actual estratégia de crescimento económico ancorada na poupança externa ou no défice das contas correntes e enorme negli- gência para com a poupança nacional, bem como o nível de organiza- ção e de estruturação dos mercados, é pouco provável que a produção agrícola acompanhe o aumento da população. Em 2040, grande parte dos actuais actores políticos ainda estarão provavelmente vivos e irão enfrentar in loco essa realidade. 4. Explosão Demográfica: Somos Muitos? Somos Poucos? A ideia de que um extenso território com baixa densidade populacional justifica complacência ou total despreocupação com taxas de crescimento populacional acima de zero, constitui um dos principais equívocos no senso comum, sobre os determinantes do desenvolvimento humano e sócio-eco- nómico. Trata-se de um equívoco prevalecente na maioria dos moçambi- canos, incluindo entre os principais fazedores de políticas públicas, que continuam a pensar e a agir com indiferença para com as elevadas taxas de crescimento populacional e outros desequilíbrios populacionais, associa- dos à etapa da transição demográfica em que se encontra presentemente Moçambique. A dupla interrogação destacada no título desta secção foi colocada pelo autor, num breve texto publicado em 2012, por ocasião da celebração do Dia Mundial da População (11 de Julho). Vale a pena repeti-la aqui, pri- meiro, porque é uma questão demasiado importante para ser reservada ape- nas para ocasiões comemorativas. Em segundo lugar, a simples actualização dos dados de 2012, de 660 mil novos moçambicanos, para 713 mil em 2016, fornece uma ideia clara de como, com o evoluir do tempo, os desa- fios do crescimento populacional em vez de diminuírem aumentam e acu- mulam de ano para ano, com implicações para múltiplos domínios da vida social e económica: por exemplo, no acesso à terra agrícola e outros recur- sos naturais; nos fluxos migratórios, reassentamentos e processo de urba- nização; na demanda de serviços básicos e infra-estruturas, a nível Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 38 ALCANCE EDUCANDO 39 educacional, saúde, saneamento, emprego, serviços financeiros, adminis- tração pública, segurança alimentar, segurança social, entre outros. 4.1. Mais de 700 mil Pessoas só em 2016! Não é possível dizer ao certo quantos moçambicanos existem em 2016. Contudo, na falta de melhores fontes, o INE e a ONU permitem aferir es- timativas específicas. De acordo com as projecções do INE, em 2016 a po- pulação moçambicanaronda os 26,4 milhões, enquanto que a ONU estima (variante média) 28,8 milhões de habitantes. Esta discrepância deriva das diferenças metodológicas nas projecções das duas fontes. Poderá incomo- dar os que olham para os números de forma fetichista, preferindo não co- municar ao público a incerteza inerente à projecção, mas não é por se optar por uma ou outra estimativa que o público será melhor preparado para lidar com os desafios envolvidos (Silver, 2013, pp. 186–188). Ambas são sufi- cientemente fidedignas, dentro dos seus respectivos critérios, para permi- tirem sustentar o ponto importante que merece ser colocado. O importante a reter das referidas estimativas, independentemente das diferenças, é que em 2016 terão ocorrido cerca de um milhão de nasci- mentos em Moçambique. Após deduzir os óbitos no ano de 2016, estima- dos em cerca de 322 mil, o balanço final é que no corrente ano cerca de 713 mil pessoas foram adicionadas à população moçambicana. Este efectivo de pouco mais de 700 mil pessoas é equivalente ao total da população mas- culina da Província de Inhambane, ou da Província de Gaza; ou ainda ao total de mulheres que habitam presentemente na Cidade de Maputo. O total de nascimentos estimados para 2016, equivale a toda a população feminina de Cabo Delgado ou de Manica, ou ainda ao total de homens existentes em Sofala. Perante os exemplos anteriores, a dupla interrogação do título desta sec- ção, ‘Somos muitos? Somos poucos?’, assume particular relevância quando se compara o actual ritmo de crescimento populacional com as oportuni- dades de emprego e a capacidade da população em melhorar o padrão de vida. Respondendo à primeira parte da questão, podemos dizer que somos muitos e a multiplicar-nos mais rápido, do que a capacidade disponível para sociedade melhorar as suas condições de vida. Contrariamente às declarações politicamente correctas dos governantes, quando afirmam que a maior riqueza disponível são as pessoas e os recur- sos humanos, é sabido que a maioria da população moçambicana é pro- fundamente pobre, em múltiplos sentidos: rendimento, capacidade produtiva e educacional; saúde, experiência, habilidades profissionais e tecnológicas, entre outras. Neste sentido é lícito afirmar que os 26,4 mi- lhões de moçambicanos existentes em 2016, de facto, tornam-se poucos Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 39 40 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE para a dimensão dos desafios que a população moçambicana enfrenta nos dias de hoje. Porém, existe aqui uma armadilha analítica. Por mais contraintuitivo que possa parecer, as enormes carências obser- vadas presentemente em Moçambique não serão, nem poderão ser, supe- radas por via do aumento do tamanho da população. Pelo contrário, o aumento da população tem agravado os problemas sociais enfrentados. Basta referir um simples exemplo: assumindo que a taxa de analfabetismo ronde presentemente os 50%, Moçambique possui actualmente cerca de 13 milhões de analfabetos e outros tantos de alfabetizados. Significa que, ape- sar da redução da taxa relativa de analfabetismo para cerca de metade, em termos absolutos, o efectivo de analfabetos é presentemente maior do que a população total existente por ocasião da Independência. Isto acontece por- que o ritmo de crescimento do número de alfabetizados não tem compen- sado o ritmo de crescimento demográfico, por forma a reduzir o efectivo absoluto de analfabetos6.Assim, a resposta à questão, “Somos Poucos?”, precisa de ser orientada para a melhoria da qualidade da população exis- tente, em vez do aumento do tamanho populacional. A consequência desta perspectiva é importante em termos das implicações do progresso da tran- sição demográfica para a estratégia de sobrevivência individual e familiar. O progresso da transição demográfica envolve a transferência dos esfor- ços e do investimento da quantidade para a qualidade da população (Cald- well, 1982, 1976, Francisco, 2011a, 2011c, pp. 259–271). O processo da transição demográfica moçambicana, silencioso, mas de modo algum irrelevante, decorre enquanto as atenções dos políticos, in- vestigadores, profissionais e analistas se concentram inteiramente no al- cance de elevadas taxas de crescimento económico. Após duas décadas com taxas capazes de duplicar a economia em cada década (uma média anual 7- 8%), no ano em curso até os mais optimistas admitem que o crescimento fique abaixo de 5% ao ano. Mesmo que seja possível repor os níveis de crescimento económico na ordem dos 7-8% é sabido que o referido crescimento é assimétrico; ou seja, está longe de ser normalmente distribuído em termos estatísticos, abran- gendo e beneficiando uma pequena parte da população. Para se conseguir a absorção do aumento anual da força de trabalho rural, que cresce pelo menos a 2,5% ao ano, seria necessário aumentar o emprego nos sectores não agrícolas, na ordem de 8-10% ao ano (Bairoch, 2001, p. 176; James et al., 2005; Jones and Tarp, 2012). Para além de isto não ser possível, prin- cipalmente por causa da natureza e composição dos determinantes do cres- 6 E o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao número de crianças que estudam no chão, ao número de novas carteiras necessárias por cada ano para o ensino primário, entre outros. Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 40 ALCANCE EDUCANDO 41 cimento económico, presentemente, a preocupação dos agentes económi- cos em garantir elevadas taxas de investimento, visa repor elevados níveis de crescimento económico, sem qualquer preocupação com o nível de ab- sorção do aumento populacional. De qualquer forma, para se ter uma ideia do esforço em causa, basta referir o seguinte exemplo: assumindo um rácio capital/produto de 4-5% do Produto Nacional Bruto (PNB), típico nos paí- ses sub-desenvolvidos como Moçambique, a economia moçambicana teria de investir 10-13% do PNB, a fim de compensar o aumento de 2,5% da po- pulação e, eventualmente, lograr um aumento de 1% do PNB. Obviamente, o tão falado crescimento económico inclusivo envolve muito mais do que isto, mas será um debate vazio se não tiver estas relações simples, mas cru- ciais, em consideração. É difícil encontrar explicação para a enorme indiferença pública, da parte dos profissionais, técnicos e políticos, relativamente ao actual ritmo de cres- cimento da população moçambicana. Como acima se referiu, recordando novamente Hardin (1987), uma boa educação em economia pode obscure- cer a importância do crescimento da população. Para o economista comum, gestor ou investidor, um retorno anual de 5-10% gerado por certas aplica- ções financeiras é um resultado conservador, para não dizer insatisfatório. Porém, quem usar este tipo de critérios económico-financeiro para avaliar o ritmo de crescimento populacional, será induzido a concluir que taxas de crescimento populacional de um, dois ou três por cento são suportáveis, ou até relativamente baixas. Ora, este tipo de interferência do que ao nível da economia poderá ser sinal de competência, tornar-se-á desastrosa do ponto de vista biológico ou demográfico. Para estes últimos, qualquer taxa de crescimento populacional acima de zero, é demasiado elevada e insusten- tável a longo prazo (Bartlett, 2007; Hardin, 1987). 5. Conclusão A transição demográfica mundial representa uma das mudanças estru- turais e comportamentais mais radicais das populações e famílias em toda a história da humanidade. Uma verdadeira “revolução demográfica”, como previu o demógrafo francês Adolphe Landry, em 1909, com notável sentido de antecipação da profunda transformação global, que acabara por ocorrer ao longo do séc. XX. Mesmo nos países da África Subsariana, como Mo- çambique, onde a transição demográfica é incipiente, não é por isso que ela se torna menos real e relevante. O facto de Moçambique ainda exibir muitas das relações típicas do RDA, permite entender o atraso e a lentidão do processo de abandono do regime primitivo, mas só em parte.É sabido que os países Ocidentais mais desenvolvidos, demoraram um século ou mais até que a taxa de natalidade Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 41 42 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE contrabalançasse o declínio da taxa de mortalidade. Moçambique ainda pode ir a tempo de conseguir, em menor ou igual período, converter a transição da fecundidade moçambicana, por enquanto circunscrita a algumas áreas urba- nas do sul do País, num processo sustentável e generalizado a nível nacional. Existem, todavia, importantes obstáculos institucionais e dificuldades sociais para que tal aconteça. O progresso da TDM depende fortemente de factores exógenos, tais como: difusão da tecnologia e medicina moderna, ajuda internacional ao de- senvolvimento, investimento nacional fortemente dependente do investimento directo estrangeiro e do crédito externo, acesso à informação e aos valores mo- dernos e partilha de conhecimento sobre os custos e benefícios de diferentes es- tratégias de sobrevivência na vida, entre outros. O tipo de estratégia de crescimento económico prevalecente, fortemente ancorado na poupança externa, contribui, ou mesmo reforça, o fraco incentivo à inovação e iniciativa privada nacional, contraria a expansão da poupança interna e a mobilização de capital externo orientado para os sectores produtivos e sistemas financeiros e fiscais, po- tencialmente capazes de suportar a efectiva transição demográfica para um RDM viável e sustentável (Francisco et al., 2016). Presentemente, as instituições políticas, sociais e económicas contribuem significativamente para o desenvolvimento de dinâmicas restritas e assimé- tricas, demasiadamente concentradas para que se possa conseguir um pro- gresso satisfatório de transformação da economia rural e sub-urbana, ampla e predominantemente mercantil, simples e de subsistência, para formas de eco- nomia de acumulação capitalista produtiva. No último quarto de século, a eco- nomia nacional ampliou efectivamente o crescimento do produto interno bruto per capita; mas fê-lo de forma concentrada, como é testemunhado pelo facto de a oferta e o consumo alimentar nacionais terem permanecido cronicamente abaixo dos requisitos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS); isto é, 2300-2400 quilo/calorias por pessoa/dia, como norma reco- mendável, e 2100 como o mínimo diário indispensável (Francisco, 2016a; Korotayev et al., 2015; Korotayev and Zinkina, 2015). A economia rural tem contribuído precária e insuficientemente para o actual crescimento do PIB per capita (Francisco, 2012b). A própria transição da mortalidade continua frágil, e assim continuará, enquanto não se alicerçar numa transição epidemiológica efectiva, ao nível da morbilidade e da saúde pública (Cervellati and Sunde, 2009a; Defo, 2014). Simultaneamente, o actual processo de urbanização não resulta do aumento da produtividade agrária, capaz de gerar excedentes pro- dutivos e de consumo para o sustento da demanda urbana (Cervellati and Sunde, 2009a; Defo, 2014; Jenkins, 2012). No último ano do séc. XX, o Governo Moçambicano aprovou uma Política Nacional de População (PNP), na qual declara aspirar a um crescimento po- pulacional economicamente sustentável, através de uma fecundidade contro- Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 42 ALCANCE EDUCANDO 43 lada (Conselho de Ministros, 1999). Tal declaração depressa se converteu em mais uma declaração politicamente correcta, como tantas outras declarações de boas-intenções encontradas em diversas políticas públicas; uma declaração de princípios, útil unicamente para acomodar os programas de acção de orga- nismos internacionais (ONU, PNUD, UNICEF, FNUAP, Banco Mundial), sen- síveis e vocacionados para lidarem com os problemas demográficos enfrentados por países sub-desenvolvidos como Moçambique. À medida que o tempo tem passado, torna-se cada vez mais evidente que a generalidade dos fazedores de políticas carece de uma ideia clara sobre o que significa uma taxa de crescimento económico sustentável e, sobretudo, o que fazer para a alcançar. Isto é agravado pela grande ansiedade política, ime- diatista e de curto prazo, em prol de elevadas taxas de crescimento econó- mico, sem se prestar a devida atenção ao impacto da elevada taxa de crescimento populacional. As percepções e acções governamentais com im- pacto efectivo na população deixam muito a desejar. A título ilustrativo, con- sideremos apenas alguns exemplos, respectivamente, sobre os três principais componentes de mudança populacional (mortalidade, natalidade e migração). Primeiro, desde os primeiros anos de Independência, políticos e gover- nantes têm exibido uma fascinação acrítica e exagerada pela vasta extensão territorial do País e, sobretudo, pelos seus abundantes recursos naturais. Tal fascinação denota uma percepção vulgar, romântica e irrealista sobre a re- lação entre população, economia e desenvolvimento. O referído fascínio domina a actual liderança política e governamental, tendo evoluído de um nível meramente contemplativo para um nível mais assertivo e determi- nado em tirar o maior proveito, quanto antes, dos recursos naturais ime- diatamente exploráveis (e.g. madeira, pescado, caça furtiva, minerais, entre outros). Prevalece, também, uma grande confusão entre aumento popula- cional e densidade populacional; a baixa densidade populacional é muitas vezes interpretada, erradamente, como sinal de incentivo ao crescimento populacional, acreditando-se que terá, por si só, um efeito positivo na me- lhoria do padrão de vida. Simultaneamente, aos métodos predatórios, típi- cos da economia de subsistência em espaços geográficos de baixa densidade populacional, assiste-se a um crescente recurso a outro tipo de métodos predatórios determinados pela acumulação especulativa, em vez de métodos orientados para a acumulação de capital produtivo. O tempo dirá se, ou em que medida, os factores institucionais e ideológicos irão in- centivar ou, pelo contrário, dificultar o estabelecimento de uma gestão dos recursos naturais tendente a endogeneizar não só os custos, mas também os benefícios da nova economia extrativa que tem estado a emergir. O segundo exemplo diz respeito à aspiração governamental por uma rá- pida redução da mortalidade e da morbilidade. Reduzir a mortalidade é, Movimentos Migratórios 21.6.17_PG_Proc_Penal 17/09/06 10:55 Page 43 44 MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS E RELAÇÕES RURAL-URBANAS: ESTUDOS DE CASO EM MOÇAMBIQUE sem dúvida, uma aspiração nobre, humanista, moral e politicamente ape- lativa tanto internamente como ao nível da comunidade internacional. Ora, por estas mesmas razões também se justifica idêntica aspiração relativa- mente à fecundidade, para evitar desequilíbrios como a chamada explosão demográfica. Considerando o nível e a dimensão da ruptura do RDA moçam- bicano, provocada pela progressiva redução da mortalidade e urbanização ao longo do século XX, nada indica que a transição demográfica venha a ser in- terrompida, muito menos revertida. Isto não significa que os factores endóge- nos, relacionados com o elevado sub-desenvolvimento da economia moçambicana, não se agravem, adiem ou dificultem as transformações econó- micas, sociais e culturais indispensáveis ao progresso para a efectivação da se- gunda fase da transição e, eventualmente, o estabelecimento de um RDM. O terceiro exemplo é sobre as políticas de migração (incluindo imigração e emigração) e de emprego. Ao longo das décadas passadas, as políticas de migração e de emprego estiveram longe de promover o desenvolvimento eco- nómico efectivo e progressivo. Desde 1975, a questão migratória vem sendo abordada de forma preconceituosa, patente nas visíveis manifestações de dis- criminação e violação dos direitos humanos básicos e contra o progresso abrangente e efectivo para a maioria da população, como por exemplo: i) O recurso ao nacionalismo e extremismo revolucionário para subordinar a eco- nomia e
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