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414 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL O direito assim entendido abrange tanto as leis esta- belecidas por Deus para o homem (que, em outra parte, Austin parece considerar como mais ou menos idênticas ao princípio de utilidade) como as leis estabelecidas pelo ho- mem para o homem; e aquelas leis que são estabelecidas graças ao status do legislador como superior político com- põem "a matéria apropriada da ciência jurídica". Para o to- tal dessas normas "o termo direito, usado simples e estrita- mente, é aplicado de modo exclusivo"11 . Toda lei, nesse sentido simples e estrito, é um coman- do, como fora para Bentham e para autores de todas as épo- cas, desde o início da história do pensamento jurídico. Po- rém, Austin foi mais explícito que seus predecessores, mais explícito ainda que a complicada descrição de Bentham, ao explicar um comando: "Se você expressa ou insinua o desejo de que eu pratique ou me abstenha de praticar algum ato, e se você me punir com algum dano caso eu não con- corde com seu desejo, a expressão ou insinuação de seu dese- jo é um comando."12 Uma lei, portanto, é um comando res- paldado por uma sanção ameaçadora, emitido por um su- perior político. Esse superior político é um "soberano", não necessariamente um indivíduo, mas possivelmente um gru- po ou assembleia de indivíduos; e a existência desse "sobe- r~no" é, um~ condição da existência de uma sociedade polí- tica. Alem d1sso, essencial para o status do elemento sobera- no é ele não ter o hábito de obedecer a nenhuma outra au- toridade, enquanto tem o hábito de receber a obediência de seus subordinados: "Se um determinado superior humano, 9ue não tem o hábito da obediência para com um superior Igual, recebe obediência habitual da massa de certa socieda- de, esse determinado superior é soberano nessa sociedade, e a sociedade (incluindo o superior) é uma sociedade política e independente."13 11. Ibid. 11. 12. Ibid. 13-4. 13. Ibid. 194. O SÉCULO XIX 415 Tal entendimento da lei, a "matéria da ciência jurídi- ca", exclui automaticamente várias coisas convencional- mente rotuladas de "lei", mas que não correspondem às especificações acima. Não só estão fora do quadro as leis que só recebem esse nome metaforicamente, tais como as "leis" da natureza- há quem fique contente de ver aí o fim de uma confusão que remonta a Aristóteles-, mas também a lei de Deus, a lei da natureza, a lei moral estão fora do al- cance da ciência jurídica de Austin, juntamente com as normas que são chamadas de "leis" por analogia, como as leis do bom convívio social ou do xadrez. O mais perturba- dor é que certos grupos de normas- que têm clara afinida- de funcional com o direito propriamente dito, que vão mui- to além da mera analogia ou metáfora e que são chamados de "direito" pelos juristas envolvidos no discurso jurídico sem que eles pensem estar forçando a linguagem- de acor- do com o esquema de Austin, perdem o direito de valer-se daquele nome porque não foram estabelecidos por supe- riores políticos para seus subordinados: o direito consuetu- dinário, por exemplo (a menos que se admita que, por tole- rá-lo, devemos deduzir que o soberano ordena implicita- m~l_'lte a ob~diência a ele); ou o direito das sociedades pri- mitivas, antigas ou modernas, nas quais nenhum soberano é visível; ou (principalmente) o direito internacional, que Austin estava disposto a considerar como direito somente "por analogia", e distinguia do direito positivo, colocando-o em uma categoria que ele rotulou de "moral positivada". Sejam quais forem as críticas que o conceito de direito de Austin possam suscitar (e neste século seu esquema rece- beu, como veremos, sua crítica mais radical), pode-se dizer que ele foi um pioneiro da forma analítica da ciência jurídi- ca positivista, e foi o primeiro autor a sugerir a apresenta- ção de um sistema jurídico como uma estrutura de "leis propriamente ditas"14, sem levar em conta sua boa ou má qualidade. 14. Ibid. 1. 416 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL A influência do utilitarismo: o refinamento da "utilidade" por Mill Embora as propostas de codificação de Jeremy Bentham não tenham tido êxito nem em seu país nem em nenhuma outra parte, sua longa defesa da reforma do direito segundo o espírito da utilidade, em outras palavras, segundo o crité- rio da solução que tende a maximizar a felicidade e minimi- zar seu oposto, teve resultados revolucionários mesmo du- rante sua vida e continuou a produzir uma rica colheita de reformas do direito muito depois de sua morte. "A era dare- forma do direito e a era de Jeremy Bentham são a mesma coisa", escreveu o político liberal e advogado reformista Lorde Brougham; ele é o pai do mais importante de todos os ramos da refor- ma, o primeiro e principal departamento do aperfeiçoamen- to humano. Ninguém antes dele jamais tinha pensado seria- mente em descobrir os defeitos do sistema de direito inglês. Todos os estudiosos antigos tinham se limitado a aprender seus princípios- a se tornarem mestres de suas normas emi- nentemente técnicas e artificiais; e todos os autores antigos tinham apenas exposto as doutrinas transmitidas de geração em geração ... Ele foi o primeiro a dar o poderoso passo de submeter à prova todas as disposições de nossa ciência jurí- dica por meio do critério da utilidade, examinando destemi- damente até que ponto cada parte estava conectada com o restante; e, com uma coragem ainda mais intrépida, inqui- rindo até que ponto mesmo seus arranjos mais coerentes e simétricos se estruturavam de acordo com o princípio que deve permear um código legal- sua adaptação às circunstân- cias da sociedade, às necessidades dos homens e à promo- ção da felicidade humana. Não só foi ele, desse modo, eminentemente original entre os juristas e jusfilósofos de seu país, como também se pode dizer que foi ele o primeiro filósofo jurídico que apare- ceu no mundo.15 15. Citado por Dicey, Law (vide n . 2), 126-7. O SÉCULO XIX 417 É inquestionável que a época da reforma do direito, identificada aí com a influência de Bentham, também so- freu o influxo de outros fatos: a religião (particularmente o cristianismo evangélico, que adquiriu no início do século XIX o poderoso apoio das classes mais modestas da popu- lação inglesa), o humanitarismo, o temor da revolução e a ânsia de evitá -la pela concessão de reformas, todos tiveram grande força: conseguiram, por exemplo, arrancar do Parla- mento britânico, teoricamente comprometido com a dou- trina da liberdade de contrato, a legislação que prescrevia condições mínimas de humanidade nas horas e condições do trabalho industrial; e obrigaram esse mesmo Parlamen- to, a despeito de seus preconceitos contra os católicos em geral, os irlandeses em particular, e a favor dos direitos de propriedade, a conceder a emancipação católica e as medi- das da reforma fundiária irlandesa que, no final, expropriou os senhores de terra irlandeses e tomou seus arrendatários os donos dos campos nos quais viviam. Porém, dentro de todas essas forças e contribuindo ainda com um impulso independente, estava o espírito de Bentham e seus segui- dores, sempre insistindo que nem o uso imemorial, nem os interesses e privilégios deviam obstruir o caminho da refor- ma baseada no princípio da utilidade; e nunca baseando seu programa em teorias que a experiência recente tinha toma- do suspeitas aos ouvidos dos ingleses. A filosofia utilitária de Bentham, como Dicey escreveu, respondeu exatamente à necessidade imediata da época. Em 1825, os ingleses tinham sentido que as instituições do país requeriam minuciosas emendas; porém, os ingleses de todas as classes, os whigs e reformistas tanto quanto os tories, des- confiavam da teoria inteira dos direitos naturais e evitavam qualquer adoção dos princípios jacobinos ... O professor que estivesse destinado a levar a Inglaterra ao caminho da refor- ma não devia falar sobre contrato social, direitos naturais, direitos dohomem ou de liberdade, fraternidade e igualda- de. Bentham e seus discípulos satisfaziam perfeitamente esse requisito; eles menosprezavam e zombavam das gene- ralidades, sentimentos e retórica vagos ... O primeiro dos fi- 418 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL lósofos jurídicos não era um agitador, mas um pensador sis- temático de extraordinário poder, que mantinha seus olhos fixos não em ideais vagos e indefinidos, mas em planos defi- nidos para a emenda prática do direito da Inglaterra.16 Visto que uma das principais convicções dos seguidores de Bentham era o caráter sagrado da liberdade individual, inclusive a liberdade de contrato, em razão da qual era o in- divíduo quem melhor sabia, por si mesmo, o que era mais adequado a seu bem -estar, algumas das leis que podem ser atribuídas à influência de Bentham pareceriam hoje intole- ráveis e faz realmente muito tempo que foram superadas por novos sistemas baseados em valores socialmente cons- cientes, "coletivistas": como as leis que inibiam a atividade dos sindicatos dos operários (por tenderem a sobrecarregar os empregadores e distorcer os termos dos contratos de tra- balho que eles fariam se não fossem pressionados) e as que reformaram o antigo método elisabetano de alívio à pobre- za (que parecia obrigar os membros mais diligentes de uma paróquia a manter, a um custo doloroso, os membros ocio- sos), instituindo centrais de trabalho para os pobres. Mas em outras áreas a revolução inspirada por Bentham conferiu benefícios permanentes. "Utilidade, eficiência, economia e avaliação quantitativa", escreveu Oliver MacDonagh, "de- safiavam as visões prescritivas, reverentes e hereditárias do direito e suas instituições"17; isso no que diz respeito às re- formas na administração da justiça e ao alívio da pobreza nas décadas de 1830 e 1840, mas o princípio foi aplicado em todos os campos. Tornou-se hábito instituir comissões par- lamentares e governamentais para investigar, primeiro, os fatos de uma situação, para que então pudesse receber uma regulamentação legislativa tão racional quanto possível. As próprias estruturas do parlamento e do governo foram re- formadas, com as Leis de 1832 e 1867 que ampliaram o su- frágio e racionalizaram a distribuição de cadeiras, e a de 16. Ibid. 171-3. 17. '"Pretransformations': Victorian Britain", in E. Kamenka (ed.), Law and Social Contrai (Londres, 1980), 118. O SÉCULO XIX 419 1836, que deu às cidades inglesas um sistema próprio de au- toadministração. As leis que reformaram (e humanizaram) o direito penal, o processo civil e penal, o sistema dos tribu- nais; que removeram as restrições arcaicas ao comércio e à transmissão da propriedade fundiária; que criaram uma ju- risdição de divórcio; que puniram a crueldade com os ani- mais: todas elas podem ser atribuídas à influência de Ben- tham e sua escola. Essa escola teve como mais famoso e proeminente dis- cípulo John Stuart Mill (1806-73), que cunhou a palavra "uti- litarismo" para denotar a posição daqueles ligados à dou- trina da utilidade como medida das leis e instituições. Po- rém, Mill acrescentou novas dimensões à noção de utilida- de, que devem ser mencionadas aqui. Em primeiro lugar, enfatizou que o compromisso com a doutrina da utilidade não significa imputar ao indivíduo o interesse exclusivo de buscar somente seus próprios prazeres e evitar os sofri- mentos que o ameacem; seria esta uma leitura muito des- prezível do ser humano. O altruísmo, a preocupação com os outros, sem dúvida é menos desenvolvido no homem que sua preocupação consigo mesmo; todavia, seu instinto social natural tende a encorajar esse elemento em sua na- tureza e a impedir uma abordagem puramente egoísta do mundo e, logo, uma compreensão puramente egoísta da uti- lidade. Sua felicidade está ligada à das pessoas entre as quais ele vive e não pode ser encontrada na total indepen- dência delas. Novamente, a experiência comum mostra que os humanos- sem dúvida por formação, mas depois natu- ralmente- desejam a virtude, um desejo "não tão universal, mas tão autêntico como o desejo da felicidade" 18; na verda- de, para alguns a virtude é "desejada e estimada não como um meio para a felicidade, mas como uma parte de sua fe- licidade"19. A utilidade, como princípio auxiliar da felicida- de, torna-se assim uma concepção elevada. 18. Utilitarianism, ed. H. Acton (Londres, 1972), 33. [Trad. bras. A liber- dade/Utilitarismo, São Paulo, Martins Fontes, 2000.] 19. Ibid. 34. 422 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL uma noção identicamente errada de conveniência, cuja cor- reção teria feito aquela que aprovam parecer tão monstruosa como a que finalmente aprenderam a condenar. Toda a his- tória do progresso social tem sido uma série de transições pelas quais um costume ou instituição após outro, que eram uma suposta primeira necessidade da existência social, pas- saram para a categoria da injustiça e tirania universalmente estigmatizadas. Assim ocorreu com as distinções entre es- cravos e homens livres, nobres e servos, patrícios e plebeus; e assim será, e em parte já é, com as aristocracias de cor, raça e sexo22 A culminância dessa passagem reflete a disputa pela causa da emancipação das mulheres, da qual Mill foi um pioneiro, particularmente por meio da publicação de seu tratado, A sujeição das mulheres, em 1869, uma época em que a noção de igualdade dos sexos ainda era altamente excêntrica. O nascimento da escola histórica Contemporâneo do nascimento do utilitarismo e do movimento favorável às concepções positivistas do direito, o século XIX viu também uma poderosa reação, fundada naquelas mentes do século XVIII que não tinham simpati- zado com o entusiasmo racionalista do Iluminismo. Essa reação encontrou em Edmund Burke uma voz famosa, mas não um programa; e, no final do século, incorporou -se es- pecialmente numa geração de jovens intelectuais alemães. Ali, inspirado até certo ponto pelo instinto patriótico de re- sistir ao imperador francês que espezinhou de alto a baixo as prostradas e desunidas terras alemãs, um novo espírito desenvolveu -se entre escritores e poetas, que voltaram seus interesses para sua nação, seu povo e sua raça (esta última ainda estava longe de ter um sentido elitista ou ameaça- 22. Utilitarianism, ed. H. Acton (Londres, 1972), 59. ··~ O SÉCULO XIX 423 dor). Para eles, o povo, o Volk, era dotado não meramente de uma história, que obviamente todo povo possui, mas de uma espécie de essência e valor místicos que transcendiam os méritos dos membros presentes da nação e os fatos ex- ternos de seu passado. A essa entidade despersonalizada mas emocionalmente poderosa veio acrescentar-se a di- mensão fornecida pela ideia de Rousseau da volonté généra- le como algo diferente da mera opinião da maioria, algo que antes agrupava a maioria e a minoria num elemento superior e irresistível que desafiava a análise numérica. ~as o conceito místico da nação foi mais que um combushvel para posteriores lutas políticas. Entre os erudito.s, _ele .des- pertou um genuíno sentido da história e uma paiXao s~nce ra pela penetração e o entendimento do passado alemao: e entre o estudo acadêmico e a literatura nenhuma fronteira rígida se delineava. Surgiu então uma constelação inteira de intelectos inspirados pelo sentimento nacional, muitos deles associados a um tipo de ligação sentimental com as ruas pitorescas e o castelo em ruínas de Heidelberg (de onde sua designação coletiva, na história cultural alemã, como o "Romantismo de Heidelberg"); os nomes proemi- nentes desse movimento foram Achim von Arnim e Cle- mens Brentano, que coletaram antigas canções folclóricas e poesia alemãs, e os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, cuja coleção de contos populares alemães se tornou famosa. Ja- cob Grimm também foi o fundador da filologia germânica, o estudo da história da língua. Essa mentalidade dissemi- nou-se tanto entre os juristas alemães quanto entre os es- critorese poetas; e a consequência foi a emergência da esco. la "histórica" de ciência jurídica, denominação que designa a tradição, agora com quase duzentos anos de idade, de es- tudar não meramente o direito em vigor, mas a história es- pecial, as raízes populares, os fatores condicionantes, o am- biente em diferentes épocas, das instituições jurídicas de uma nação. A ocasião imediata para o surgimento visível dessa es- cola, que então se tomou independente de suas origens in- 424 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL telectuais, foi a diferença entre dois eruditos alemães. Em 1814, Anton Thibaut (1772-1840), professor de direito em Heidelberg, publicou o ensaio Sobre a necessidade de um có- digo civil geral para a Alemanha, no qual, evidentemente ins- pirado tanto pelo recente exemplo do Code Napoléon como pela ambição nacional relacionada a seu país e pela espe- rança de sua unidade, insistia no ponto expresso pelo títu- lo. A Alemanha, naturalmente, ainda estava dividida em um grande número de entidades políticas mais ou menos autônomas; porém, dentro do espírito do Iluminismo, Thi- baut argumentava que um direito fundado na razão seria aplicável em qualquer lugar. Ele foi desmentido imediata- mente pelo professor berlinense Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) 23 em uma obra intitulada Sobre a vocação de nossa era para a legislação e a ciência jurídica. Essa obra, que anunciou substancialmente o programa que caracterizaria a escola histórica, declarou prematura a proposta de Thibaut. Segundo Savigny, não era possível codificar o que ainda não se tinha entendido adequadamente; e não poderia ha- ver um entendimento completo da massa de leis em vigor em diferentes partes da Alemanha até que a história de cada parte da massa tivesse sido plenamente discernida e explorada, tarefa que ainda não havia sido sequer encetada, mas que Savigny, inflamado com o espírito romântico em seu aspecto de encantamento histórico centrado na nação, estava determinado a aceitar. O que a Alemanha necessita- va não era um conjunto racionalista de mecanismos legais, mas uma percepção minuciosa da história de suas institui- ções existentes. Somente quando isso tivesse sido alcança- do é que poderia ser iniciada a compilação dos elementos mais adequados para serem convertidos em um código. O axioma em que Savigny se fundamentava era que cada povo tinha seu próprio caráter individual, seu próprio espírito- o Volksgeist, ou alma nacional, como foi concisa- 23. Savigny e Thibaut pertenciam a famílias de origem huguenote france sa. O SÉCULO XIX 425 mente chamado mais tarde por um de seus discípulos, em uma expressão que "pegou"-, e esse espírito deixava sua marca em todas as instituições do povo, inclusive no direi- to. Estava implícita aí a ideia, atraente para os ouvidos mas muito difícil de provar, de que algumas instituições que es- tavam realmente em vigor se mostrariam, mediante inves- tigação, peculiarmente "naturais" a esse povo e nascidas de sua história; enquanto outras se mostrariam espúrias, en- xertos de uma linhagem estranha, não "naturais" para o povo, e por isso não teriam direito à perpetuação na forma rígida de um código. O próprio país de Savigny era um ter- reno inadequado para defender essa ideia, porque algumas áreas do direito em todas as suas regiões, notadamente o direito dos contratos e outras obrigações, não eram absolu- tamente de origem nativa, mas tinham sido conscientemen- te "recebidas" na prática dos tribunais alemães, ou pelo menos naqueles que se haviam embebido da sabedoria da Renascença, por volta do final do século XV e começo do XVI (como vimos acima): acaso Savigny propunha cortar essa grande massa de material romano com a qual muitas gerações de advogados alemães tinham se acostumado? A resposta de Savigny foi que as instituições romanas assim absorvidas tinham suficiente afinidade com o espírito na- cional alemão para serem, por assim dizer, implantadas na vida nacional alemã sem sofrer rejeição. Essa resposta não é muito satisfatória e parece demolir o próprio axioma que foi seu ponto de partida; esse axioma tem grande dificul- dade de se manter de pé no século XX, que assistiu a trans- plantes bem-sucedidos de sistemas jurídicos inteiros, ou quase inteiros, em territórios com muito menos afinidade com a cultura exportada que a Alemanha medieval tinha com o Império Romano tardio: por exemplo, a adoção, pela Turquia e pelo Japão, de grandes trechos tirados diretamen- te dos códigos civis da Suíça e da Alemanha respectiva- mente. Contudo, a influência de Savigny foi decisiva para deter, em nome do entendimento histórico, o movimento de codificação; somente nos últimos anos do século, e de- 426 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL pois da unificação política alemã, foi feito o projeto do códi- go civil alemão; e ele entrou em vigor com o título de Bür- gerliches Gesetzbuch em 1? de janeiro de 190024. A escola histórica teve assim por objeto original o di- reito alemão. Mas seu postulado básico foi aplicado a todas as nações e suas instituições, e ela realmente estimulou a pesquisa da história jurídica de muitos países. Foi especial- mente importante por ter inspirado o estudo histórico cien- tífico do direito romano que constituiu um elemento subs- tancial dos sistemas existentes na maior parte da Europa. Esse direito romano, todavia, era em essência a compilação de Justiniano, acrescida naturalmente da obra dos comen- taristas medievais; uma geração dos chamados juristas "hu- manistas" tinha reconhecido, na Renascença, a diferença entre o texto do Digesto e o que os juristas clássicos ali sele- cionados (que em sua maior parte haviam trabalhado 350 ou mais anos antes da época de Justiniano) provavelmente tinham escrito a princípio; mas a obra desses humanistas baseava -se mais em críticas filológicas que institucionais, e seu principal valor para eles estava em quanto os textos lhes permitiam entender o mundo antigo; não imaginavam que as camadas históricas do texto pudessem ter uma com- plexidade maior que a que fora acrescentada pelas adapta- ções feitas pela comissão justiniana. A nova ciência jurídica histórica agora explorava esses mesmos textos, particular- mente o Digesto, com as ferramentas de uma análise muito mais ·sutil, e começou a construir uma imagem do direito romano tal como ele realmente era, a saber, como um mo- numento intelectual que, na época em que os compiladores de Justiniano se sentaram para trabalhar, já tinha mil anos de história atrás de si. O progresso desse estudo científico (no qual os alemães foram proeminentes durante todo o 24. A data da entrada em vigor foi escolhida pelo kaiser Guilherme II, que não pôde ser persuadido de que o primeiro dia do século XX (um dia que parecia ter valor psicológico) não era 1~ de janeiro de 1900, mas 1~ de pne1ro de 1901. O SÉCULO XIX 427 século XIX, embora no século XX os italianos tenham riva- lizado com eles no volume de produção erudita, com signi- ficativas contribuições também da França, Espanha, Ingla- terra e Países Baixos) foi marcado por prodígios, para não dizer extremos, de engenhosidade na seleção de textos e no desmascaramento de elementos não originais sobrepostos às palavras originais dos juristas clássicos (esses elemen~os eram chamados indiscriminadamente, e com um sentido mais amplo do que o do uso comum, "interpolações"). Mas, a despeito dos excessos cometidos na busca das in~erpola ções (" Interpolationenforschung"), que por volta da VIrada do século XX ocupava tantas carreiras acadêmicas que quase se podia falar de uma indústria acadêmica, a ideia original sobre a qual toda a escola repousava - que o direito devia ser visto como um fenômeno orgânico que evolui no decor- rer da história de uma civilização, da qual cada etapa exigia estudo - determinou um enriquecimento permanente e fru- tífero da ciência jurídica. Já vimos que, por uma evolução paradoxal, a cultura jurídicada França, tendo se proposto inicialmente a expres- sar no novo Code civil a perfeição da razão e a última pala- vra da tradição do direito natural, terminou em um positi- vismo extremo que considerava as palavras e a vontade do legislador como a única base para a validade do direito. O desenvolvimento da cultura jurídica alemã do século XIX se deu, de certo modo, em paralelo, porque o movimento his- tórico gerou rapidamente uma escola de juristas_c~j_o traba- lho também culminou em uma forma de positiVIsmo. O apelo à investigação histórica do d~r.eito alemão le~o~ a uma ciência jurídica histórica especificamente germamc~, mas também, como se explicou acima, a um novo moVI- mento de arqueologia jurídica em torno do direito romano, que, na forma recebida na Idade Média, era o element~ d~ minante nos sistemas alemães contemporâneos. O propno Savigny em particular, e depois muitos outros, abordaram es- se direito romano com um espírito classicista; nada lhes bas- taria, exceto a cuidadosa eliminação não apenas dos acrés- 428 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL cimos medievais mas também dos de Justiniano, e a expo- sição pura das regras romanas do período clássico, em ou- tras palavras, dos dois primeiros séculos depois de Cristo. Dessa abordagem brotou, então, a concepção de um siste- ma - extremamente atraente para esses juristas alemães preocupados em promover a unificação, inclusive jurídica, de um país politicamente fragmentado, visto que o direito do Alto Império Romano também assumira a forma de um sistema observado em suas muitas regiões. Esse sistema, ao ver desses juristas, seria uma vasta estrutura de conceitos in- terdependentes e harmoniosamente articulados: princí- pios, regras, doutrinas, para cuja elaboração o material ro- mano clássico devia servir de pedreira da qual blocos ade- quados podiam ser extraídos. Os ativistas dessa escola, vis- to que concentravam sua atenção principalmente no Digesto (que também recebia o nome grego de Pandectas, Pandec- tae), eram chamados em alemão de Pandektisten, e sua ciên- . cia, de Pandektistik. Sua abordagem classicista conflitava com a dos modernos juristas práticos que trabalhavam com o direito romano "impuro" que havia sido fundido nos siste- mas internos alemães desde a Idade Média; sem falar no choque com os Germanisten, os eruditos fundamentalistas que tinham entendido Savigny de modo excessivamente li- teral e lutavam pela máxima absorção, no código alemão definitivo que todos sabiam que devia vir no final, das fon- tes germânicas ancestrais. Mas foram os pandectistas que por fim mais influenciaram o projeto do Bürgerliches Gesetz- buch. Algum terreno foi ganho e mantido pelos germanis- tas nas partes do código que regem os direitos de proprie- dade, família e sucessões; mas a forma e o estilo geral do código, juntamente com a parte sobre o direito de suces- sões, e principalmente a primeira parte "geral" na qual são estabelecidas as bases fundamentais, os conceitos básicos de todo o código, eram romanos no sentido pretendido pe- los pandectistas durante suas longas décadas de abstração operada a partir de um material romano casuístico e essen- cialmente concreto. É fácil perceber quanto tudo isso se O SÉCULO XIX 429 distanciava da concepção romântica original de explorar e identificar os princípios que cresceram organicamente com o povo e se enraizaram em seu espírito. E o mesmo se pode dizer do esforço positivista - que lembra o de Christian Wolff, no apogeu do Iluminismo, criando todo um sistema sobre postulados puramente racionais - para atribuir força de lei, e de lei consolidada em um código estável, a uma rede de normas construída a partir de abstrações destiladas das fon- tes romanas clássicas. A abordagem antropológica Um ramo posterior da escola histórica, que se distin- gue dela por sua abordagem fortemente comparativa bem como pela ausência da convicção romântica no Volksgeist, é às vezes chamado de escola "antropológica". É possível apontar os precursores dessa escola no século anterior, tais como Vico e Montesquieu. Porém, a primeira pessoa a trans- formar percepções como as deles em uma espécie de ciên- cia foi o inglês Henry Sumner Maine (1822-88). Maine foi um jurista acadêmico que também escreveu muitos ensaios sobre temas políticos e econômicos da época e serviu alguns anos como membro jurídico do conselho do vice-rei da fn- dia. Seu primeiro e mais famoso livro, Direito antigo (1861), foi escrito na época em que a principal agitação intelectual procedia da obra-prima recém-publicada pelo biólogo Char- les Darwin, A origem das espécies (1859), e assim reflete até certo ponto o interesse da época na evolução; uma influên- cia mais remota foi identificada na filosofia hegeliana da história, mencionada anteriormente, que talvez tenha su- gerido a Maine a ideia dos princípios uniformes do desen- volvimento25 . De qualquer modo, em Direito antigo Maine propôs uma espécie de teoria evolutiva do direito, acompa- nhada de um padrão de crescimento no qual, como ele pre- 25. Julius Stone, Social Dimensions ofLaw and ]ustice (Londres, 1966), 120. 450 UMA BREVE HISTÓRIA DA TEORIA DO DIREITO OCIDENTAL sobre a liberdade56. Stephen parecia, de fato, aceitar que o equilíbrio entre a tolerância e a repressão, exibido pelo di- reito inglês da época, era quase perfeito: "O direito penal... encontrou seu equilíbrio nesse país e, embora interfira em muitos aspectos de grande importância, dificilmente pode-se considerar que impõe qualquer restrição perceptível às pes- soas decentes."57 Stephen parecia até aceitar "o princípio de que o direi- to penal deve ser empregado apenas para prevenir atos de força ou fraude que prejudicam outros além do agente", mas isso era apenas uma "vaga regra prática"; de modo al- gum ele a aceitaria como um critério invariável decorrente da ideia de liberdade. Ao fim e ao cabo, as considerações que efetivamente podem limitar a ação do direito penal não nascem de nenhuma teoria, mas da natureza do próprio di- reito penal e do processo, que devem impedir que ele se ex- panda até virar uma espécie de sistema de polícia moral. Por exemplo, um comportamento moralmente censurável (como a ingratidão ou a perfídia) é muito vago e indefinível para ser objeto de uma regulamentação legal; a lei não deve avançar em intromissões oficiosas e mesquinhas; proble- mas de ordem inteiramente prática nas normas processuais de prova já deixam, de qualquer modo, alguns tipos de pe- cado fora de alcance; o direito penal não deve expressar um padrão de moralidade muito acima do nível popular cor- rente; e a privacidade dos indivíduos é um valor autônomo, cuja excessiva violação por um direito penal enérgico de- mais deve ser evitada58. Mill morreu logo depois que o tra- tado de Stephen foi publicado, e nunca teve a oportunida- de de contestá-lo. Ao cabo de mais de um século, contudo, parece que Stephen, apesar de suas expressões de rigor gó- tico sobre o crime e os criminosos, ainda estava lidando com valores bastante próximos do entendimento comum 56. Ibid. 136. 57. Ibid. 58. Liberty, Equality, Fratemity, 147. I I O SÉCULO XIX 451 do conceito de liberdade - uma vez que suscitava noções como as de "intromissão" e "privacidade"- embora evitasse qualquer análise teórica dela. Neste século*, como vere- mos, o tema debatido por Mill e Stephen será outra vez um campo de batalha acadêmico. Isso basta quanto ao papel do direito penal e seu direi- to à existência. Porém, outro tema que se relaciona e se so- brepõe àquele é a finalidade da punição criminal. Acaba- mos de ver que Stephen, nesse particular, escreveu sobre a vingança, a satisfação de sentimentos de ódio contra o cri- minoso. Isso mais tarde se tornaria antiquado, mas não era um sentimento estranho para os ouvidos ingleses do s~cu lo XIX; na primeira parte do século ouvia-se, por exemplo, algo parecido do poeta Shelley e do ensaísta Hazlitt59.Uma versão muito mais rarefeita do retributivismo aparece nos Princípios da filosofia do direito (1821) de Hegel. Na seção do livro que trata da "Transgressão", Hegel apresenta, em uma linguagem caracteristicamente difícil, a imagem do crime como algo que cria uma espécie de desequilíbrio, cabendo à pena reequilibrar a situação; a pena "anula" o crime. E não apenas isso: a pena, na verdade, conta com o consenti- mento implícito do criminoso, a quem uma espécie de par- ticipação no plano total de restaurar o equilíbrio é misterio- samente imputada; na realidade, o criminoso tem o "direi- to" de ser punido. Aqui vão breves excertos das passagens que parecem querer dizer tudo isso: "A única existência po- sitiva que o dano possui é que ele é a vontade particular do criminoso. Consequentemente, causar 'dano' [pela pena] a essa vontade particular, como uma vontade determinada- mente existente, é anular o crime, que caso contrário seria considerado válido, e restaurar o Direito." Tratar a pena meramente como um tipo de mal necessário, a ser justifica- do em termos de intimidação, prevenção, reforma e assim *A primeira publicação deste livro ocorreu em 1992, portanto no século XX. (N. da T.) 59. Referências in Séamus Deane, The French Re:uolution and Enlighten- ment in England (Cambridge, Mass., 1988), 115, 155, 173-4.
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