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GOMES Estado Novo_ ambiguidades e heranças do autoritarismo no Brasil

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CAPÍTULO 1 Estado Novo: ambiguidades e heranças
do autoritarismo no Brasil
Angela de Castro Gomes*
*Pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea/Funda-
ção Getulio Vargas (CPDoc/FGV); pesquisadora do CNPq; professora titular de História do
Brasil da UFF. Autora de A invenção do Trabalhismo, 3ª ed., Rio de Janeiro: FGV, 2005, e
Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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O ESTADO NOVO: POLÍTICA, HISTÓRIA E OS USOS DO PASSADO
Poucos períodos na História do Brasil produziram desdobramentos tão
duradouros, importantes e ambivalentes como o dos oito anos que cobrem
o período conhecido como Estado Novo (1937-1945). Ao menos, esse é o
diagnóstico que vem sendo consolidado pelos numerosos e recentes estu-
dos que se dedicam às múltiplas faces e questões que dominam esse curto
tempo do primeiro governo Vargas ou, simplesmente, a Era Vargas.* Tra-
balhar com esses anos é, portanto, partir do reconhecimento de sua impor-
tância política, socioeconômica e cultural. É também estar disposto a
abandonar explicações simplistas e maniqueístas, uma vez que o desafio é
compreender um conjunto diversificado de políticas, muitas vezes contra-
ditórias e ambíguas, que convivem e disputam espaço em um contexto na-
cional e internacional extremamente tenso, até porque assinalado pela
eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Neste texto e assumindo a estratégia de uma reflexão historiográfica,
não se tem a pretensão de cobrir os múltiplos e complexos temas e debates
que recobriram o período. Isso seria certamente impossível e traria resul-
tados muito superficiais. O que se deseja é tão somente discutir algumas
questões que, até hoje, vêm marcando a produção acadêmica sobre o Esta-
do Novo, sendo sua relevância observada no fato de serem, com alguma
frequência, incorporadas a uma compartilhada cultura política, tributária
de ideias e experiências autoritárias no Brasil.
*Este texto foi escrito no primeiro semestre de 2007, portanto, antes dos 70 anos do Estado
Novo, mas nesse contexto.
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
O Estado Novo — uma designação de políticos e intelectuais nele enga-
jados, com nítida intenção de acentuar sua força transformadora — tem
início com o golpe de 10 de novembro de 1937 e se encerra em 29 de ou-
tubro de 1945, com a deposição de Getúlio Vargas. O golpe instala uma
ditadura com chefe civil, amplamente sustentada pelas forças militares, emespecial o Exército. Nascido de articulações de civis e militares, planejado
cuidadosamente e desfechado de forma “tranquila”, os passos do evento
de novembro de 1937 já foram destrinchados e caracterizados como os de
um “golpe silencioso”.1 Um “silêncio” — de protestos e reações de qual-
quer tipo e srcem — que evidencia não apenas o poder político dos que
então ascendiam à direção do Estado, mas também a existência de uma
proposta de construção de imagem: para o presente que se inaugurava e,
em decorrência, para seu “passado e futuro”.
Exatamente por atentarmos para a existência desse ambicioso projeto
político-cultural, mesmo reconhecendo que ele guarda tensões, é que que-
remos começar este texto assinalando uma primeira questão, ainda polêmica
quando se trabalha com o Estado Novo. Ela diz respeito ao compartilha-
mento de uma percepção que atribui a esses oito anos uma grande unidade
e estabilidade política. Além disso, o Estado Novo é visto como um evento
que se articula diretamente com a Revolução de outubro de 1930, que, por
sua vez, implicaria um corte radical com o “passado” do país. Em outros
termos, queremos chamar a atenção para os vínculos existentes entre uma
proposta de interpretação do Estado Novo e o estabelecimento das bases
de uma periodização da própria história republicana do Brasil, na qual esse
regime tem posição estratégica e nada ingênua. Uma operação intelectual
que merece reflexão, até porque teve, entre seus primeiros e mais competen-
tes arquitetos, como não poderia deixar de ser, os próprios ideólogos do
Estado Novo. Nesse sentido, ainda se pode dizer que persiste na História
do Brasil (embora com menos ênfase) um certo tipo de periodização que
toma como um bloco coeso o tempo que vai de 1930 a 1945 e nele situa o
Estado Novo como a “consagração dos ideais da Revolução de 1930”, que,
por sua vez, sepultara um simulacro de República, ensaiada e fracassada
praticamente desde seu começo, em 1889.
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
Segundo tal interpretação, a Revolução de 1930 assinalaria um novo e
grande ponto de partida em nossa história, rompendo definitivamente
como o “passado”; com os “erros” da Primeira República, liberal , oligár-
quica, fraca, inepta etc., enfim, uma “República Velha”, da qual o pós-1930
queria distância. Uma terminologia que se estabelece, como não é difícil
supor, apenas no pós-1930, e que se espraiaria na literatura acadêmica,
sendo usada de forma equivalente, até como sinônimo, de Primeira Re-
pública. Nessa nova história, as elites vitoriosas em 1930 inauguravam
um projeto político que teria como outro momento de inflexão exata-
mente o golpe de novembro de 1937. Assim, se nessa leitura o golpe é
tomado como um novo ponto de referência cronológico/polí tico, seu sen-
tido principal é a consecução inevitável dos projetos de 1930. O Estado
Novo é situado, dessa forma, como “a” conclusão lógica do movimento
revolucionário de 1930 e não só enterra definitivamente a República
“Velha” como faz com que os anos que o precederam transformem-se na
antecâmara de sua presença inevitável.
Se 1937 é o coroamento previsto e desejado dos projetos de 1930, o
ciclo só se fecha em outubro de 1945, que sela a sorte do Estado Novo,
embora não a de Vargas. Nesse sentido, não apenas o período de 1930 a
1945 torna-se um bloco, sem maiores diferenciações internas, como os anos
que decorrem de 1930 a 1937 são analisados como uma espécie de pre-
núncio do que se seguiria. Essa periodização, ao esquecer as marchas e
contramarchas do período, apaga da história a marca da incerteza política
que o domina, minimizando parte do sentido de fatos cruciais, como a Revo-
lução Constitucionalista de 1932, a experiência da Constituinte de 1934, a
movimentação política da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e da Ação
Integralista Brasileira (AIB), por exemplo. Dizemos parte do sentido porque
tais eventos não são apartados da vida política do país, mas são incorpora-
dos segundo uma perspectiva que os recupera na qualidade de justificação
 a posteriori dos fatos que acabaram por acontecer. Dessa forma, por exem-
plo, a guerra civil de 1932 é entendida como uma revolta separatista (mais
uma), cujo mérito teria sido acelerar o ritmo das iniciativas que o próprio
Governo Provisório vinha conduzindo, tendo em vista a constitucionalização
do país.
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
Não se trata, evidentemente, de discutir neste texto o caráter reformador
e/ou conservador da Revolução Constitucionalista, mas simplesmente assi-
nalar que tal interpretação minimiza os esforços de mobilização ocorridos
em São Paulo, bem como a radicalidade dos conflitos políticos então
vivenciados. O diagnóstico da Constituição de 1934 é ainda mais pedagó-
gico, pois, para os vitoriosos de 1937, ela, por sua “inadequação”, seria
uma das principais razões do golpe. Ao elaborar uma constituição vazada
de liberalismo — uma nota destoante em face do clima político da época
— a Assembleia Nacional Constituinte teria obstaculizado as diretrizes
lançadas em 1930, alimentando a “reação revolucionária de 1937”, esti-
mulada ainda mais pelas desordens promovidas por comunistas e integra-
listas. O Estado Novo, portanto, viera dar um paradeiro quer às pretensõesextremistas da esquerda e da direita, quer às resistências das velhas oligar-
quias estaduais, que se negavam a sair da cena política. Em síntese, o Esta-
do Novo viera impor a ordem e trazer o progresso.
Criticar esse tipo de periodização/interpretação pressupõe, de um lado,
compreender a lógica de sua própria construção e propagação desde os anos
1930/1940, especialmente durante o Estado Novo; e, de outro, demons-
trar a existência de linhas de continuidade e descontinuidade durante todo
o período, sem perder a dimensão da violência dos conflitos, mas também
das possibilidades de arranjos políticos diversos. Com tal entendimento, a
tônica fundamental dos anos que decorrem de 1930 a 1945 torna-se a da
disputa política, sobretudo a disputa intraelites. Isso se manifesta de forma
mais explícita e violenta, ou mais sutil e negociada, mas ambas contendo
doses de incerteza nada desprezíveis, particularmente quando se assume a
ótica dos atores envolvidos nos acontecimentos.
Um outro ponto a destacar, fortalecendo as ideias de imprevisibilidade
e também de continuidade/descontinuidade que assinalam o período, é o
da intensidade e riqueza do debate político ocorrido entre 1920 e 1940,
atravessando, portanto, o evento da Revolução de 1930. Nesse caso, vale
lembrar a experiência de reforma constitucional de 1926 e de outras im-
portantes reformas (na saúde, na educação, na regulamentação do mer-
cado de trabalho), ocorridas na “velha” e carcomida Primeira República.
Ou seja, durante essas duas décadas, um verdadeiro leque de propostas
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
inovadoras tomou conta do campo político e intelectual, podendo-se iden-
tificar diagnósticos e soluções, fundados em diferentes alternativas ideo-
lógicas, e tendo em vista a montagem de variados modelos de arranjos
institucionais . Apesar disso, e convivendo com toda essa multiplicidade,
o que também se pode observar nesse rico embate de ideias é um fortale-
cimento de matrizes antiliberais que, desde o fim da Primeira Guerra, ga-
nhavam força internacionalmente.
Situando o exemplo do Brasil, pode-se afirmar que, grosso modo, entre
uma grande maioria de intelectuais e políticos (ou as duas coisas ao mes-
mo tempo) a questão não era mais apontar a existência de condições ad-
versas à vigência do modelo de Estado liberal no Brasil. Tratava-se de
reconhecer sua impossibilidade e indesejabilidade de “adaptação”, em
função de razões profundas que tinham a ver com o próprio processo de
formação histórica do país. O paradigma liberal, dominante desde o sé-
culo XVIII, sofria severas críticas, advindas de novas orientações científi-
cas. Elas se traduziam tanto pelos postulados de uma teoria elitista de fundo
autoritário, que apontava as “ficções” desse modelo político, como pelos
enunciados keynesianos que, ainda no terreno liberal, defendiam um
intervencionismo econômico e social do Estado, até então inusitado. Nesse
sentido, se o ideal de autoridade racional-legal e a construção de uma eco-
nomia urbano-industrial continuavam sendo postulados como signos de
uma sociedade moderna a ser alcançada, os instrumentos operacionais,
vale dizer, as instituições políticas para materializar tal sociedade, sofriam
mudanças substanciais, afastando-se da arquitetura liberal de forma mais
ou menos radical, conforme os exemplos europeu e americano, sobretu-
do após a crise de 1929, demonstravam.
O que tais formulações acentuavam, de forma crescente a partir dos anos
1920, era a necessidade de criação e/ou fortalecimento de novas instituições
e práticas políticas estatais (órgãos e políticas públicas), como mecanismo de
 start para o estabelecimento de uma nova modernidade. Assim, se havia, in-
ternacionalmente, um enorme descompromisso com procedimentos e valo-
res políticos liberais, era porque também havia um enorme esforço para
formulação de uma outra arquitetura institucional de Estado, cujo sentido
transformador era muito amplo, abarcando esferas da sociedade até então
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
intocadas pela presença pública. As interpretações da sociedade e da política
brasileira, construídas a partir dos anos 1920 e em experimentação durante
os anos 1930, têm esse contexto político e intelectual como cenário.
 Apenas para que se tenha uma dimensão do compartilhamento que tais
diretrizes antiliberais alcançam, vale assinalar que, segundo Hobsbawm,
entre o fim da Primeira Grande Guerra e o início da Segunda, o número de
governos constitucionais sofreu um drástico recuo em todo o mundo: nos
anos 1920, eram 35; em 1938, passaram a ser 17; e, em 1944, restringiam-
se a 12.2 Na verdade, na Europa, pode-se dizer que apenas a Inglaterra não
conviveu com um avanço significativo de forças políticas antiliberais e a
 América foi um continente onde houve poucos exemplos de resistência: os
EUA, o Canadá e o Uruguai estão entre eles. Além desse indicador quanti-
tativo, convém igualmente destacar, numa dimensão qualitativa, que as
correntes antiliberais que ganhavam força vinham da direita do espectro
político e tinham características muito distintas da direita “conservadora”
até então conhecida. Como a literatura que trata do tema das organizações
políticas e das ideologias tem assinalado, a “nova direita” que emerge nos
anos 1920/1930 se propõe a usar recursos organizacionais e a mobilizar
valores e crenças de forma muito inovadora, aproximando-se mais do ins-
trumental revolucionário utilizado pelo que então era identificado como
“esquerda” (a despeito de sua diversidade) do que pelo que vinha sendo
tradicionalmente usado pela “direita”, razão pela qual os confrontos podiam
ocorrer nessas duas direções.
O Brasil, por conseguinte, é apenas um dos países que alimentarão a mon-
tante internacional de antiliberalismo, inserindo-se em um grande conjun-
to de experiências que marcou o entreguerras. Nossos intelectuais e políticos,
durante a Primeira República, já vinham elaborando críticas e propondo al-
ternativas de arranjos institucionais para o que se entendia como o fracasso
ou o desarranjo do regime republicano inaugurado com a Constituição de
1891. O ponto de chegada, mais ou menos consensual, que perpassava todas
essas críticas, das mais radicais às mais brandas, era o da necessidade do
fortalecimento do poder intervencionista do Estado. Contudo, o que se pode
identificar como um crescente “estatismo” não deve ser assimilado a um
automático “autoritarismo”. A defesa do poder de intervenção do Estado e
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
do avanço de sua governabilidade sobre a sociedade — uma regularidade
em sociedades de “modernização retardatária” — não deve ser identificada
como um mero sinônimo de defesa de Estado autoritário, forte e concen-
trado no Executivo, como muito frequentemente ocorre. Esforços empre-
endidos ainda no terreno do ideário liberal, existentes na década de 1930
(como os trabalhos da Constituinte ilustram), evidenciam as possibilidades
de disjunção entre nacionalismo e intervencionismo do Estado, de um lado,
e centralização e autoritarismo do regime político, de outro. Dessa forma,
se os embates políticos travados, especialmente entre 1930 e 1937, condu-
ziram a uma fórmula autoritária, materializada pelo Estado Novo, esse “re-
sultado” não pode ser entendido como um destino manifesto, inscrito nos
equívocos de uma República “Velha”, nos projetos “srcinais” dos revolu-
cionários de 1930 e, por fim, nos “descaminhos” das experiências vividas
até o momento do golpe de 1937.
 A competência dos ideólogos do Estado Novo, sem dúvida os propo-
sitores dessa periodização tão duradoura e plena de significados, pode ser
reconhecida, mas não precisa ser seguida. E o que o crescimento da litera-
tura sobre a Era Vargas, mais particularmente sobre o Estado Novo, vem
evidenciandosão muitos progressos nesse sentido. Correndo muitos ris-
cos, talvez já seja possível afirmar que as descontinuidades, os conflitos e ascrises que assinalam o tempo que vai de 1930 a 1945, incluindo o Estado
Novo, como se verá com mais vagar, passaram a ser algo bem mais aceito
pela produção acadêmica das duas últimas décadas. Uma produção que se
dedicou ao estudo da história e da memória da Era Vargas, destacando, cada
vez mais, a centralidade dos anos do Estado Novo. Uma produção que tam-
bém tem sua história e, como ensina a historiografia, uma história pautada
pelas inquietações do presente do historiador.
ESTADO NOVO: HISTORIOGRAFIA, POLÍTICA E ACADEMIA 
Para os historiadores, comemorar — lembrar junto, com objetivos críticos
e orientados pelas questões do presente — é sempre uma rica oportunidade
de fazer história e historiografia, pois as comemorações são ocasiões espe-
ciais para se empreenderem balanços do que se produziu e não se produziu,
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
a respeito de personagens, acontecimentos e períodos. Exatamente por isso,
retomar marcos — como o das comemorações ocorridas em 1987 e 1997 —,
embora de forma muito breve, é uma estratégia interessante para situar al-
gumas características e preocupações da produção acadêmica das últimas
décadas. Isto é, para se pensar quando, mais especificamente, e movida porque interesses conjunturais, algumas questões e temas foram sendo defini-
dos e passaram a orientar as pesquisas sobre o Estado Novo, produzindo
impactos sobre interpretações compartilhadas, que vão sendo discutidas e
revisitadas.3 Em ambos os casos, tomando a cidade do Rio de Janeiro como
palco, foram realizados importantes seminários que resultaram na publica-
ção de coletâneas, roteiros adequados para um contato, ainda que parcial,
com o chamado estado da arte sobre o período.
Em novembro de 1987, sob o governo do presidente civil José Sarney ,
o país se preparava para assistir aos trabalhos da Assembleia Nacional
Constituinte, que encerraria os mais de 20 anos vividos à margem de um
Estado de Direito. Nesse context o, “lembrar 1937” — ou não esquecer a
ditadura de Vargas — tinha enorme e clara carga política. Evidenciava uma
postura de engajamento na luta contra o regime militar e de preocupação
com a construção da democracia no Brasil. Em 1987, “lembrar” o Estado
Novo era uma rica oportunidade para se pensar a questão do autoritarismo
no país, ou seja, para se trabalhar com a história imediata do Brasil, e não
só a história do tempo presente, aliás uma terminologia que tinha pouco
curso à época.
O seminário foi realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
tendo como seu principal organizador o professor José Luiz Werneck da
Silva, e se desdobrou no livro O feixe: o autoritarismo como questão teóri-
ca e historiográfica, publicado em 1991.4 O que logo salta aos olhos é ques-
tão central proposta no volume: o autoritarismo e seu debate no campo
historiográfico. Por isso, ele está organizado em três partes. Na primeira,
discute-se, de forma comparada, o fenômeno político do fascismo, com tex-
tos sobre as experiências da Itália e de Portugal; na segunda, Mito Político,
é a figura de Vargas que está no centro e no título dos três artigos que a
compõem; na terceira, dois textos buscam realizar balanços historiográficos.
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
Considerando os objetivos aqui propostos — pensar o Estado Novo
historicizando a própria produção sobre o período —, um dos artigos cha-
ma a atenção por vários motivos. Trata-se de “Estado Novo: um inventário
historiográfico”, de René Gertz.5 O primeiro deles remete à sua conclusão
de que ainda não eram muito numerosos os estudos que se dedicavam es-
pecificamente ao Estado Novo (exceção feita às memórias e biografias). Além
disso, o autor assinala que, nessa produção, a participação dos historiado-
res era menos significativa do que a dos cientistas sociais, em particular dos
cientistas políticos. Uma observação que nos permite constatar uma espé-
cie de divisão informal de trabalho no campo intelectual e também a exis-
tência de uma “desconfiança” ainda muito forte dos historiadores em relação
ao que se convencionaria chamar de história do tempo presente. Nesse sen-
tido, o que Gertz aponta e estamos reforçando é que, até praticamente os
anos 1980, os historiadores brasileiros, de uma forma geral, ainda não se
voltavam para a pesquisa sistemática e consistente de temas e questões que
ultrapassassem o emblemático episódio da Revolução de 1930. A História
do Brasil “começava” em 1500 e “acabava” em 1930, e o historiador “mes-
mo” precisava de distanciamento no tempo, devendo trabalhar com o perío-
do colonial e imperial ou, no máximo, com a Primeira República. Mas
importa também destacar que Gertz avalia que esse panorama vinha se al-
terando, apontando os trabalhos produzidos pelo Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc) como um
bom indicador da tendência.6
Um segundo bom motivo para o exame do artigo de Gertz, passados 30
anos, são as razões que, para ele, explicariam tal situação. Algumas delas
podem ser entendidas como “dificuldades” que os historiadores teriam com
o estudo do período, o que nos remete a duas de suas questões-chaves: a
das ambiguidades de suas políticas, já brevemente mencionadas, e a do deba-
te sobre o caráter fascista do regime. Citando:
Mesmo autores que procuram ser neutros ou críticos não conseguem esca-
par da ambivalência. O Estado Novo foi uma ditadura, teve traços fascistas,
mas muitos autores não conseguem negar avanços na economia, na cons-
trução do Estado, na questão social.
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
Ou seja, pondera-se que os historiadores “resistiam” ao estudo do Estado
Novo por reconhecer que se tratava de uma “ditadura com traços fascis-
tas” que, inegavelmente, apresentava avanços nas políticas públicas econô-
micas e sociais. Levando muito a sério tal reflexão, o que se está querendo
apontar é que as ambiguidades do período do Estado Novo, já reconheci-das pela historiografia, constituíam-se, de fato, em um complicador de aná-
lise, naquele momento. Isso porque, politicamente, nos anos 1970 e 1980,
era fundamental atacar o regime militar através da ditadura de Vargas. E
como fazê-lo se era difícil ignorar os “progressos” então alcançados, espe-
cialmente no campo das políticas sociais? Como criticar o autoritarismo e,
digamos, avalizar a leitura de que ele podia e até havia sido “progressista”
em certas dimensões, nos anos 1930?
Trocando em miúdos e a despeito da simplificação, a questão acadêmica
se via engolfada pela conjuntura política, que tornava difícil ou quase impos-
sível reconhecer que regimes ditatoriais podiam produzir modernização eco-
nômica e social, sem que isso soasse como “justificativa” para o autoritarismo.
Uma dificuldade que não se referia ao Estado Novo, pois era o que ocorrera
também nos anos 1970 e 1980, durante o regime militar, como diversos cien-
tistas sociais comprovavam. Assim, a combinação de autoritarismo com
modernização era muito mais um desafio político do que teórico. A extrema
preocupação quanto às possibilidades de uma pesquisa reconhecer a convi-
vência de avanços e recuos; de reconhecer a ambivalência como dimensão
constitutiva das diretrizes políticas de um regime era, basicamente, uma cau-
tela que tinha a ver com a luta pela democratização dos anos 1980.
Por isso, a questão do caráter fascista do Estado Novo, designação ain-
da corrente naquele momento, mas que começava a ser muito questionada,
ganhava enorme interesse. Os comentários de Gertz a esse respeito, bem
como a primeira parte do livro, apontam para a problematização do uso da
categoria “fascista”, e não apenas para a designação doEstado Novo. A
experiência portuguesa igualmente não cabia bem nesse rótulo, que, de tão
amplo e impreciso, acabava por abarcar realidades históricas muito dife-
renciadas, ignorando suas especificidades. A tendência da literatura inter-
nacional e nacional era atentar para os significados das categorias de
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
totalitarismo e fascismo, aprofundando os estudos das doutrinas e práticas
de diferentes regimes políticos, até então nomeados como tal. Esse exercí-
cio, a que se dedicavam principalmente os historiadores, fazia com que tais
categorias viessem sendo abandonadas em proveito da de Estado autoritá-
rio. No caso da América Latina, por exemplo, era crescente um consenso
sobre a pertinência dessa designação.
Para o Brasil, o artigo de Bolívar Lamounier “Formação de um pensa-
mento político autoritário na Primeira República”, publicado em 1977, na
consagrada coleção História Geral da Civilização Brasileira (v. 9), e o livro
 Estado Novo: ideologia e poder , de 1982, de autoria de Lucia Lippi Olivei-
ra, Mônica Pimenta Velloso e Angela de Castro Gomes, eram duas ilustra-
ções do fato assinalado.8 Eles chamavam a atenção para certas dimensões
das políticas do Estado Novo — que pesquisas posteriores aprofundariam
— todas apontando para a inadequação de um conceito fundado na ideia
de unidade e monopólio absoluto do poder do Estado. Além disso, o uso
da designação fascista sempre fora negado pelos próprios ideólogos do re-
gime, que o identificavam como autoritário. Quer dizer, vários intelectuais
do período, com destaque para Azevedo Amaral e Oliveira Vianna, haviam
afirmado, com clareza, que sua proposta não era nem fascista nem liberal,
pois não admitiam nem o predomínio total do Estado nem o do mercado.
Mas, seguindo Gertz, essa era uma afirmação que, quando sancionada pelos
analistas, trazia problemas, pois podia ser entendida como uma minimização
da violência do Estado Novo ou como uma possibilidade de estar “manco-
munado com o poder” (do regime militar), sendo então mais prudente
pesquisar temas menos comprometedores.9 É fácil imaginar como essas ob-
servações, vistas do ano de 2006 a 2007, podem parecer inacreditáveis. Mas
elas não são, sendo importante considerá-las uma forma de iluminar o cli-
ma político que vigia no país e em boa parte da academia, nas décadas de
1970 e 1980.
Finalmente, Gertz levanta uma terceira razão para a existência de tão
poucos estudos sobre o Estado Novo. Essa é bastante consistente e se rela-
ciona à situação do campo historiográfico nacional, que ainda permanecia
marcado por análises que privilegiavam explicações de cunho estrutural,
marxistas em grande parte (isto é, de esquerda), voltadas para questões
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
econômicas e sociais e afastadas da história política, quer dizer, da história
de curta duração, centrada em indivíduos e eventos. Um tipo de história muito
condenada, sobretudo quando voltada para os “vencedores” e autoritários,
como era o caso do Estado Novo. Através dessa observação, é possível per-
ceber que a historiografia brasileira, até esse momento, ainda se pautava
fortemente por paradigmas estruturalistas e raramente avançava para além
do marco de 1930. Tendências que serão revertidas justamente a partir de
então, produzindo mudanças decisivas e definitivas nas pautas de investi-
gação existentes e nos modelos interpretativos compartilhados, o que se
refletirá nos estudos sobre o Estado Novo.
Como se pode imaginar, essa renovação está articulada a toda uma “gran-
de transformação” teórica e metodológica da historiografia em nível inter-
nacional que, brevemente, pode ser identificada como a da chamada
renovação da história política e de sua articulação com uma história cultu-
ral, que floresceram e chegaram ao Brasil, com mais intensidade, justamen-
te nos anos 1970 e 1980. A revitalização da história política, ou o que tem
sido chamado de o “retorno” da história política, guarda relações profun-
das com as mudanças de orientação teórica que atingiram as ciências sociais
de forma geral. Inúmeros autores situam esse fenômeno como o da crise
dos paradigmas estruturalistas então vigentes: o marxista, o funcionalista e
também o de uma vertente da Escola dos Annales. Essa crise, traduzida pela
recusa de explicações deterministas, metodologicamente quantitativistas e
marcadas pela “presença” de atores coletivos abstratos, não localizáveis no
tempo e no espaço, teria impactado o campo das ciências humanas, forçan-
do-as a rever suas ambições totalizadoras e suas explicações racionalistas/
materialistas.10 Entretanto, se essas transformações mais globais que afe-
tam a conformação de um campo disciplinar como o da História e, dentro
dele, o delineamento de espaços mais específicos de trabalho demonstram
a existência de uma historicidade geral que une internacionalmente os pes-
quisadores, pode-se igualmente verificar um outro movimento, mais espe-
cífico em seus ritmos e características, que diz respeito às variações nacionais
que a transformação mais ampla pode sofrer.
Esses ritmos nacionais, que não chegam a alterar a direção global do
processo, têm certamente a ver com eventos próprios às histórias “políti-
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
cas” de cada país. Nesse sentido, alguns acontecimentos — que não preci-
sam ser políticos tout court — impõem aos intelectuais, e em particular
àqueles cuja tarefa é interpretar a realidade política, a escolha de certos temas
de análise, o que pode se traduzir pela emergência de “novos” objetos e
métodos, ou pelo “retorno” de “velhos” objetos, revigorados por “novas”
abordagens. A dimensão ética e engajada do trabalho intelectual é, nesses
casos, mais visível e compreensível e se manifesta de forma mais transpa-
rente, por razões óbvias, no campo de trabalho daqueles que se dedicam à
história do tempo presente. As reflexões historiográficas há muito ressaltam
esse aspecto, ilustrando-o com os exemplos da guerra da Argélia, para os
intelectuais franceses; das lutas coloniais na África, para os portugueses;
do retorno do peronismo, na Argentina; e, no caso do Brasil, da instaura-
ção do regime militar, em 1964, e do processo de “abertura lenta e gradual”,
que tem início no governo do general Geisel (1974-1979). Assim, é tão
impossível compreender os movimentos da história política no Brasil sem
uma remissão aos debates interdisciplinares travados em nível internacional
como sem o estabelecimento de uma conexão com o impacto dramático tra-
zido pelo restabelecimento do autoritarismo em fins da década de 1960, se-
guido pela luta pela redemocratização, emergente e crescente nos anos 1980.
Toda a literatura produzida a partir dos anos 1970, grosso modo, gira
em torno da compreensão do fenômeno do autoritarismo, sendo movida
pela necessidade de se entenderem as causas do colapso do regime liberal-
democrático e da eclosão do movimento civil e militar de 1964. Por conse-
guinte, ela assume uma perspectiva política nítida que irá cada vez mais
privilegiar o estudo do período do pós-1930. Isso porque era inviável pensar
as características e os rumos do regime militar sem um retorno ao pré-1964,
sendo claro que as bases do autoritarismo brasileiro deitavam raízes pro-
fundas nas formulações e experiências anteriores, com destaque especial
para o Estado Novo.
Dessa forma, entre 1987 e 1997 crescem o interesse e o número de es-
tudos sobre esse período, diversificando-se os temas recortados e transfor-
mando-se as questões e interpretações que movimentam cada vez mais os
historiadores, agora em diálogo estreito com os cientistas sociais e sem te-
mer, como antes, a história do tempo presente. Com tal panorama de fun-
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMESAUTORITÁRIOS — BRASIL E...
do, pode-se examinar a coletânea que reúne os estudos apresentados no
seminário “Estado Novo: 60 anos depois”, realizado em novembro de 1997,
por iniciativa de um conjunto de instituições: o Centro de Pesquisa e Docu-
mentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
(CPDOC/FGV), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Casa de Oswaldo
Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e o Núcleo de Estudos
Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp).
O livro, organizado por Dulce Pandolfi, intitula-se Repensando o Esta-
do Novo.11 Contendo 18 textos, o volume está dividido em seis partes, que
podem ser entendidas como indicadores do tipo e da distribuição das in-
vestigações que vinham sendo empreendidas. As partes são: legado ins-
titucional; trabalho, previdência e sindicalismo; indústria, bancos e seguros;
intelectuais, cultura e educação; imigração e minorias étnicas; e militares,
política e repressão. Cada uma delas é composta por três ou quatro textos,
sendo que, não casualmente, a parte que mais se aproxima do tema da eco-
nomia possui apenas um artigo.12 Um conjunto que destaca a questão das
transformações e inovações institucionais trazidas pelo Estado Novo e sua
centralidade para a construção do aparelho de Estado no Brasil. O tema
crucial das políticas sociais, na chave da saúde, educação e trabalho, tem
grande espaço no volume, podendo-se assinalar um tratamento que enfrenta
a questão das ambiguidades do regime, evitando esquematismos. O tema
da imigração, sempre clássico, quando associado ao entendimento do pro-
blema do antissemitismo e da “raça”, recebe novos contornos. O mesmo se
pode dizer da presença de atores como os intelectuais e os militares e de
reflexões que passam a destacar o estudo da propaganda e da repressão
políticas no Estado Novo.
Na verdade, um elenco que não se distancia tanto do assinalado no ar-
tigo de 1987, que apontava a existência de estudos e polêmicas sobre os
temas da reforma do Estado, da industrialização, das relações de trabalho e
da ação dos militares e dos intelectuais. Mas, o que esse livro traz, em dis-
tinção às observações anteriores, é uma espécie de “resolução” de proble-
mas que mobilizaram os historiadores nos anos 1970/1980, dentre os quais
o que envolvia a designação do Estado Novo como um Estado fascista. Após
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
a eleição direta e o impeachment do primeiro presidente que chegou ao
poder pelo voto direto, a questão que mobilizava o campo intelectual era
outra. Ela tinha a ver, como antes, com a conjuntura política e remetia, mais
uma vez, à Era Vargas e ao Estado Novo. Seu formulador, aliás, era o pró-
prio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, um sociólogo
de formação. Seus termos, instigantes e desafiadores, estavam sintetizados
na afirmação ou na interrogação: vivia-se o fim da Era Vargas? Por isso, a
organizadora do livro e do seminário o situa como uma possibilidade de
melhor “compreensão dos debates sobre as reformas em curso no país”. 13
Reformas que, no marco das orientações neoliberais, apontavam a direção
inversa das diretrizes lançadas e implementadas por Vargas, especialmente
durante o Estado Novo: nacionalismo, protecionismo, intervencionismo
etc. Sem perder terreno, a questão do autoritarismo e da repressão dividia
espaço com o tema do tamanho e do papel do Estado na economia e na
sociedade. Certamente porque, em 1997, já era muito claro o esgotamento
do modelo desenvolvimentista, cujos marcos iniciais foram lançados nos
anos 1930. Um tema que permanece desafiando políticos e intelectuais
dez anos depois e que ainda motiva as pesquisas em curso no campo da
história política do tempo presente.
 A realização de seminários e a publicação de seus resultados fixam o es-tado da arte da produção acadêmica sobre um objeto de estudo, permitin-
do uma análise pontual e bastante representativa. Mas um outro indicador
pode ser usado para se dimensionar o andamento dessa produção através
do tempo. Estamos nos referindo à elaboração de dissertações e teses nos
programas de pós-graduação de História do país, que se desenvolveram em
número exatamente a partir de 1980.
No que se refere ao Estado Novo, é o próprio Gertz que, em seu balan-
ço e usando os dados do Catálogo das dissertações e teses dos cursos de pós-
 graduação em História, elaborado por Carlos Humberto Correa, para o
período 1973-1985, informa que, das 734 teses e dissertações computa-
das, cinco tratavam do período de 1930 a 1945, 24 do período de 1930 a
1937 e 11 do Estado Novo, o que, no geral, foi considerado pouco. 14 Re-
forçando essa conclusão, são valiosas as observações de Maria Helena Rolim
Capelato, no artigo publicado em 1998 intitulado “Estado Novo: novas
histórias”.
15
 Segundo ela, que utiliza os dados do volume já citado e da Pro-
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
dução histórica do Brasil (1985-1994), publicada em três volumes sob sua
coordenação, entre 1980 e 1995, de 1.688 teses e dissertações produzidas
nos 19 programas de pós-graduação, apenas cem se referiam a temas envol-
vendo o período do Estado Novo. Ainda segundo a professora, se entre
1973 e 1980 os estudos sobre o Estado Novo representavam 2% da produ-
ção discente, entre 1980 e 1994 eles saltaram para apenas 5%, o que con-
tinuava sendo considerado pouco.
Procurando atualizar esses números e recorrendo ao Banco de Teses e
Dissertações da Capes, realizamos um breve levantamento para o período
que vai de 1995 a 2004. Não buscamos saber quantas dissertações e teses
foram produzidas nesse lapso de tempo, mas tão somente computar o núme-
ro de trabalhos diretamente voltados para o estudo do Estado Novo. Feita a
chamada com esse “tema”, encontramos uma lista, mas para afiná-la consul-
tamos os resumos dos trabalhos, chegando então, da melhor maneira possí-
vel, a uma aproximação com as pesquisas que priorizaram, de fato, o período,
independentemente da questão substantiva que examinassem.
Do ponto de vista quantitativo, o total encontrado foi o de 59 trabalhos,
o que pode ser considerado ainda muito pouco, sobretudo tendo-se em vista
o crescimento do número de programas de pós-graduação de História e
também o aumento do número de estudantes ocorridos nesses anos. Do
ponto de vista qualitativo, esse dado ganha novos significados, indicando
de que forma o Estado Novo passou a ser investigado. Nesse sentido, 23
trabalhos podem ser entendidos como de história política, sendo que ape-
nas três dedicam-se à política externa no período. No conjunto maior, é
possível identificar algumas concentrações, basicamente no que se refere à
política de povoamento do regime — colonização, imigração e Marcha para
Oeste; à política de regulamentação do mercado de trabalho; e à questão
da modernização urbana. Um outro grande grupo de pesquisas, alcançan-
do 19 trabalhos, envolve temas afetos à política educacional e cultural do
Estado Novo, com destaque para a campanha de nacionalização. Finalmente,
e em nítida conexão com o conjunto anterior, há 17 trabalhos centrados na
análise das políticas de repressão (polícia política, censura e antissemitismo,
por exemplo) e propaganda do regime (rádio, cinema, cinema educativo,
comemorações cívicas etc.). A concentração de pesquisas no campo da his-
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
tória política e cultural e a importância que os temas da educação, da legis-
lação social (e trabalhista), da propaganda e da repressão têm nessa amos-
tra evidenciam as transformações mais amplas ocorridas na historiografia
nacional e internacional.
ESTADO NOVO: AUTORITARISMO, TRABALHISMO, CORPORATIVISMO E
MITO VARGAS
Neste ponto da reflexão algumas ponderações podem serrealizadas. Em-
bora não se possa dizer que os estudos sobre o Estado Novo tenham au-
mentado tanto em número, sem dúvida eles apontam para uma maior
diversidade de abordagens, de recortes e de temas de análise. Paralelamen-
te a esse fato, é possível registrar que os principais impasses que mobiliza-
vam os debates intelectuais dos anos 1970 e 1980 sobre o período do Estado
Novo, se não encontraram uma “solução completa”, pois não é disso que
se trata, encontraram um termo, estabelecendo possibilidades para se tra-
balhar com o período. Ou seja, em alguns casos, interpretações bastante
compartilhadas foram sendo gradativamente abandonadas; em outros, a pro-
dução historiográfica acabou por consagrar novas questões, que passaram
a disputar posições, mas de maneira menos excludente e mais capaz de um
diálogo. De toda forma, o fundamental é que houve renovações importan-
tes, para o que foi decisivo o crescimento das pesquisas advindas dos pro-
gramas de pós-graduação.
 Alguns exemplos do que estamos querendo assinalar serão comentados,
não havendo, contudo, qualquer pretensão de esgotá-los. Entre eles estão
os debates em torno de uma periodização para o Estado Novo; de uma forma
de designar seu regime político; de uma forma de interpretar suas políticas
sociais, com destaque para as voltadas para a regulamentação do mercado
de trabalho, ao que se associa a questão da condução do processo de indus-
trialização; e, finalmente, perpassando todos os outros, o que envolve a cons-
trução da liderança de Vargas. Tais temas/questões, contudo, só podem ser
distinguidos entre si do ponto de vista analítico, razão pela qual serão acom-
panhados em conjunto.16
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
No que diz respeito à questão da periodização, já tratada anteriormen-
te, vale a pena abordá-la especificamente no que se refere ao Estado Novo.
Não por preciosismo, mas para dela retirar desdobramentos importantes
na caracterização dos rumos do regime e de suas políticas sociais. Nesse
sentido, do mesmo modo que a literatura que contempla a Era Vargas foi
se afastando de uma visão do período como um bloco coeso, os estudos
sobre o Estado Novo também se afastaram de uma visão que insistia em
sua unidade e estabilidade. Uma visão que postulava a existência de uma
única orientação política durante todo o regime, marcada pelo autoritarismo
de tipo desmobilizador. Esse é um ponto fundamental, pois se vincula ao
debate sobre a melhor denominação para o regime. Debate que se processa
em paralelo às discussões sobre os conteúdos das categorias de totalitaris-
mo e autoritarismo, visando a melhor precisá-las teoricamente e através da
pesquisa histórica sobre experiências na Europa e na América Latina dos
anos 1920-1940.
No caso do Estado Novo, pode-se observar um duplo movimento nesse
debate. O primeiro deles significou abandonar a designação de fascista/to-
talitário e assumir, progressivamente, a conceituação de Estado autoritá-
rio, fazendo-se um investimento mais profundo, não apenas na própria
questão do autoritarismo no Brasil como também numa investigação mais
pormenorizada da experiência do Estado Novo. Alguns trabalhos vindos
das ciências sociais, como os de Bolívar Lamounier e Wanderley Guilherme
dos Santos, foram decisivos para se precisar a trajetória e o sentido da cate-
goria de Estado autoritário, na medida em que apontavam a existência de
uma tradição no pensamento social brasileiro, que excedia e somava às in-
fluências do montante antiliberal do entreguerras.17 No mesmo sentido, pes-
quisas, nacionais e internacionais, que trabalhavam com o conceito de
totalitarismo, visando a precisá-lo, sentiam dificuldade em utilizá-lo para
designar experiências latino-americanas e até europeias, como a de Portu-
gal e a da Espanha. No caso do Estado Novo, desenvolveram-se análises de
suas formulações doutrinárias e de suas políticas públicas, retomando a
participação de atores (coletivos e individuais), como burocracia, os inte-
lectuais, os industriais, os banqueiros, os sindicalistas etc. Tais estudos cada
vez mais concluíam que não ocorrera, no caso brasileiro, um monopólio
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
absoluto do Estado no plano jurídico-político, continuando a existir mui-
tas tensões e oposições, até no interior do núcleo dirigente estado-novista,
mesmo que limitadas de múltiplas formas. Assim, se era possível identificar
traços totalitários no Estado Novo, não era adequado designá-lo como um
Estado fascista.18
Nesse caso, as constatações de que o Estado Novo não buscara um con-
trole total, por exemplo, dos meios de comunicação de massa e que recor-
rera, durante boa parte de sua existência, a uma estratégia política de
desmobilização da sociedade pesaram muito. Evidentemente, não se que-
ria dizer com isso que, sob o Estado Novo, a repressão física e/ou simbólica
fora pequena ou pouco violenta. O que se buscava ressaltar é que não se
adotara, no Brasil, um modelo de mobilização de tipo fascista, o que forta-
lecia a tese do autoritarismo. É justamente esse último aspecto, que carac-
teriza um segundo movimento do debate sobre o período, que desejamos
enfatizar neste texto. Trata-se de investir em uma interpretação mais fina
sobre a dinâmica interna da política estado-novista, buscando relativizar
(mas não afastar) a tese da orientação desmobilizadora do regime. Para tanto,
o que se propõe é uma periodização em dois tempos.19 Num primeiro tem-
po, que vai até 1942, teria prevalecido esse autoritarismo desmobilizador,
fundado basicamente na coerção via censura e repressão. Mas, a partir daí,
examinando-se um conjunto de políticas públicas, com destaque para a com-
binatória entre políticas sociais e de propaganda, pode-se dizer que o Esta-
do Novo experimenta um segundo tempo. Nele, a atenção da elite se volta
para a busca de legitimidade e de construção de bases políticas, por meio
da articulação de esforços ideológicos e organizacionais, visando à cons-
trução de um pacto político do Estado com a sociedade, encarnado nas fi-
guras do presidente e povo brasileiro. É exatamente para ressaltar a lógica
desse pacto, bem como seus desdobramentos para a história política do país,
que se insiste na questão desses dois tempos, entendidos sob os signos, pri-
meiro, de uma repressão mais aberta e, em seguida, de uma articulação entre
investimentos de mobilização e controle social.
Essa nova proposta interpretativa, valorando a presença e importância
de disputas políticas durante todo o período (1930-1937 e 1937-1945) e
percebendo a dinâmica da política estado-novista como integrada por dois
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
momentos com características distintas, precisa ser acompanhada com mais
vagar. De início, é bom acentuar que se trata de uma leitura alimentada por
vários estudos, a começar pelos que se dedicam ao acontecimento funda-
dor do Estado Novo: o golpe de novembro de 1937. Nesse episódio, inte-
ressa destacar o contexto político, marcado por uma acirrada campanha
presidencial que possuía, como pano de fundo, articulações conspiratórias
envolvendo expressivas figuras políticas e militares. Um golpe que encerrou,
na verdade, um processo complexo e ao mesmo tempo violento de dispu-
tas entre projetos e lideranças bem diferenciados, tendo como uma de suas
decorrências principais um grande investimento na construção da figura
de chefe de Estado, Getúlio Vargas. Um investimento que, para ser bem
dimensionado, deve considerar que, em 1930, Getúlio era apenas um en-
tre os homens que fizeram a Revolução. Essa condição só começa a se alte-
rar com a chefia do Governo Provisório, embora, nas eleições indiretas para
presidente da República, realizadas pela Assembleia Nacional Constituinte
de 1934, seu nome ainda disputasse votos com os de Borges de Medeiros eGóis Monteiro.20 Aliás, as eleições de 1934 podem ser entendidas como
um episódio politicamente denso e ilustrativo da instabilidade em que o
país vivia, após uma guerra civil (a Revolução Constitucionalista de 1932)
e a convocação de uma Constituinte, antecedida pela elaboração de um novo
Código Eleitoral.21 Mas como presidente eleito, entre 1935 e 1937, Vargas
continuou enfrentando dificuldades para impor sua liderança e o acompa-
nhamento do processo golpista não indica que, como chefe de um novo
Estado de força, ele fosse a única solução possível. Durante algum tempo,
o tipo de regime que poderia ser implantado — uma ditadura civil ou mi-
litar — deixava em aberto qual seria o seu chefe máximo. Problemas inter-
nos ao Exército, aliados à habilidade e confiabilidade de Vargas perante os
militares e boa parte das lideranças civis, além, é claro, de sua já ampla vi-
sibilidade na sociedade, definem o formato e o líder do Estado Novo. 22
Foi, portanto, a partir desse momento que Vargas passou a ser reconhe-
cido como a figura maior da arena política nacional, tendo sua imagem
projetada por uma das mais bem-sucedidas campanhas de propaganda de
nosso país. A despeito dessa imensa vantagem, o ano de 1938 é abalado
pela tentativa de golpe dos integralistas, que invadem o Palácio das Laran-
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
jeiras, ameaçando a vida do presidente e de sua família, em episódio que
tem grande impacto no país. O período de 1939 a 1941 foi de franco en-
durecimento do regime; porém, já em 1942, o projeto político do Estado
Novo começava a sofrer transformações. Nessa perspectiva, pode-se dizer
que, durante os anos que vão de 1937 a 1941, o Estado Novo se configura
com um certo perfil e, a partir de 1942, torna-se um “novo” Estado Novo.
 A dinâmica e o sentido dessa transformação são fundamentais, pois suas
ambiguidades marcam não só o período do pós-1942 como toda a vida po-
lítica brasileira do pós-45. Uma herança que, não casualmente, a República
de 1946-1964 quis desconhecer, considerando o Estado Novo uma exceção
a ser lamentada e que podia ser esquecida sem maiores problemas. Uma
estratégia política que, como se viu, deixou marcas no campo intelectual e
na própria historiografia sobre a República.
O contexto maior dessa grande transformação operada no interior do
Estado Novo tem, antes de tudo, vínculos com o panorama internacional,
ou seja, com o curso da Segunda Guerra Mundial. Desde o início da guerra,
em 1939, o governo brasileiro começara a sofrer pressões americanas, mas,
desde fins de 1941, com Pearl Harbor e a entrada dos EUA no conflito, elas
aumentaram muito. A partir daí, a condução de uma política externa
equidistante entre EUA e Alemanha, como o Brasil vinha praticando durante
os anos anteriores, ficou impossível. No início da década de 1940, as cartas
da barganha política são postas na mesa. Elas consistiam, por parte dos
Estados Unidos, no interesse pelo Nordeste brasileiro como local para insta-
lação de bases militares e, por parte do Brasil, na obtenção de recursos
materiais visando à instalação do projeto siderúrgico de Volta Redonda, além
da modernização do equipamento do Exército. Mas foi só em janeiro de
1942, com a realização da Conferência do Rio de Janeiro, que a situação
ficou definida. Não se tratava ainda de uma declaração de guerra ao Eixo,
embora em fevereiro de 1942 o plano de operações preparado pelo Exército
americano prevendo a ocupação do Nordeste estivesse pronto e, em março,
a permissão para o desembarque fosse concedida pelo governo brasileiro.23
Ou seja, com o alinhamento internacional do Brasil com os Estados
Unidos estavam definitivamente seladas as perspectivas de manutenção de
um projeto político autoritário, conforme fora o do Estado Novo até então.
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A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS REGIMES AUTORITÁRIOS — BRASIL E...
Tal fato, contudo, guarda em si uma grande ambiguidade, porque dizer que
era necessário transformar a face autoritária do Estado não significava di-
zer que era necessário desalojar as elites políticas desse Estado das posições
de liderança por elas ocupadas. Inclusive porque se as elites brasileiras sem-
pre tiveram dificuldades para realizar alianças políticas mais amplas, também
sempre se mostraram competentes para negociar as condições necessárias
para sua manutenção no poder. Portanto, é o que se deseja destacar, a par-
tir de 1942 ficou claro para as lideranças estado-novistas que as caracterís-
ticas do regime implantado em 1937 estavam se tornando insustentáveis.
Um modelo de Estado forte, antiliberal, nacionalista, com poder concen-
trado no Executivo e com uma estratégia política francamente centrada na
desmobilização não seria capaz de sobreviver ao fim da guerra.
Tal modelo, seguindo os parâmetros autoritários consagrados nos anos
1920 e 1930, não encontrava mais respaldo diante da liderança incontestá-
vel dos EUA nas Américas e de sua provável e anunciada vitória, ao lado
dos Aliados, sobre o Eixo. Por conseguinte, o problema que se colocava
para as elites era como transitar do autoritarismo para a liberal-democra-
cia, elaborando uma estratégia que possibilitasse sua permanência no po-
der. Ou seja, uma transição “por dentro”, concebida e implementada pela
elite intelectual e política do próprio Estado Novo. E, em tal processo, se
as balizas internacionais são inquestionáveis, há igualmente uma série de
fatos da política nacional que dimensionam as mudanças que o Estado Novo
vai sofrer. Esse aspecto é fundamental, porque é exatamente nesse novo
contexto, como mencionado, que vai se articular o que estamos conside-
rando um pacto político entre Estado e povo/classe trabalhadora no Brasil.
É sobre a montagem desse pacto, portanto, que este texto vai se concen-
trar a partir daqui, destacando-o como o núcleo de uma reorientação polí-
tica, com desdobramentos que vão além do período do Estado Novo. Assim,
vale ressaltar que ele envolve, de forma estratégica, uma mudança nas rela-
ções entre Estado e sociedade, redefinindo discursos e práticas e abarcan-
do a questão da incorporação da classe trabalhadora ao cenário político do
país. Porém, antes de se acompanharem, mais detidamente, as condições
de sua implementação, importa relembrar, ainda que brevemente, as inter-
pretações mais correntes a respeito do modelo de relações que teria se es-
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ESTADO NOVO: AMBIGUIDADES E HERANÇAS DO AUTORITARISMO NO BRASIL
tabelecido entre governantes e governados, entre elites e “massas”, durante
o Estado Novo, com o qual essa proposta tem que dialogar.
De modo geral, tal modelo assinalava dois aspectos. Em primeiro lugar,
partia da constatação da nítida intervenção do Estado no processo de orga-
nização dos trabalhadores, situando-a como um ponto de ruptura radical
em um processo “natural”, que tinha curso desde a Primeira República. Tal
intervenção, portanto, além de efetuada por um ator “externo”, era a res-
ponsável pela alteração de um “sentido” que se pressupunha, até certo
ponto, ao menos, como conhecido e previsível. Em segundo lugar, as rela-
ções entre Estado e classe trabalhadora eram compreendidas como regidas
por uma lógica instrumental que trocava benefícios materiais por obediên-
cia política. Nesse raciocínio, de um lado o Estado do pós-1930, por meio
de sua política social do trabalho, era caracterizado como um produtor de
bens de valor nitidamente utilitário: as leis sociais do trabalho. Por outro, a
classe trabalhadora, ao se submeter politicamente em troca dessa legislação,
estaria realizando um cálculo político de custos e benefícios, fundamentalmente
racional e instrumental. Isto é, o trabalhador, por almejar os novos direitos
sociais, acabava aderindo politicamente ao regime e sendo “cooptado e/ou
manipulado” pelo Estado. A classe trabalhadora, nesses termos, era ludi-
briada por palavras e por uma legislação enganosa(muito mais uma promessa
do que uma realidade), perdendo sua autonomia política e mergulhando
numa posição de submissão, que combinava ingenuidade e ignorância, em
doses razoavelmente proporcionais.
Sem afastar a presença dessa lógica material na construção de um mo-
delo de relações entre Estado e classe trabalhadora, o que se pretende, ao
propor uma interpretação que enfatiza a construção de um pacto político
desses dois atores, é afastar o modelo explicativo consagrado na literatura
pela categoria populismo. Ele seria excessivamente simplista, estando an-
corado tanto na ideia de um aparelho de Estado maquiavélico e todo-po-
deroso como na de uma classe trabalhadora desprovida de consciência e
impulsão próprias; de um Estado sujeito histórico e de uma classe trabalha-
dora objeto passivo de sua ação.24 É justamente devido ao compartilhamento
desse tipo de concepção sobre as relações de dominação construídas du-
rante o Estado Novo que os debates sobre o uso da designação de Estado
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fascista/totalitário para classificá-lo cruzaram-se — ajudando a alimentar ou
a recusar — com os debates sobre o uso da categoria populista. Além disso,
essa última trazia consigo uma inevitável reflexão sobre a questão da repre-
sentação versus cooptação (de líderes sindicais, de políticos, de intelectuais
etc.), bem como sobre os significados da própria palavra manipulação, que
passou a ganhar contornos mais sofisticados para sustentar a proposta do
populismo.
Ou seja, a ideia da manipulação deixava de ter um sentido tão unidire-
cional (significando o poder absoluto do Estado), sendo postulada como
tendo uma ambiguidade constitutiva, por ser quer uma forma de controle
do Estado sobre as massas trabalhadoras, quer uma forma de real atendi-
mento de suas demandas. Dessa forma, embora seja sempre enfatizada uma
dimensão de mascaramento nesse atendimento — devido à falta de força
dos trabalhadores brasileiros, pouco numerosos e sem tradições de luta,
como os europeus —, a “política populista” efetivada pelo Estado Novo
fora vivenciada pela classe trabalhadora como uma possibilidade de acesso
a direitos, eminentemente sociais. Contraditoriamente, portanto, quando
no Brasil os direitos políticos (e também os civis) encontravam-se legalmente
suspensos — não havendo formas de representação no campo da política
formal —, teria havido a incorporação de um ator coletivo tão central para
o mundo urbano-industrial como era a classe trabalhadora. Assim, o que se
pode chamar de modelo populista de interpretação das relações entre go-
vernantes e governados, mesmo quando reconhecia a ambiguidade da
“manipulação”, entendia que os dominados podem e são, com frequência,
praticamente destituídos de autonomia e consciência, quando submetidos a
estratégias políticas próprias da sociedade de massas. Esse fenômeno políti-
co-cultural incluiria uma certa seleção de variáveis histórico-sociológicas, bem
como um certo perfil de atores, presente no Brasil dos anos 1930 e 1940:
uma classe trabalhadora fraca e sem consciência; uma classe dirigente cindida
e em crise de hegemonia após a Revolução de 1930; e um líder carismático
cujo apelo ideológico se fortaleceu, sobretudo na ditadura do Estado Novo.
 Afastar essa abordagem implicava discutir seus postulados e, em particu-
lar, considerar que os trabalhadores também tinham uma posição política ativa,
ainda que sem recusar a força do Estado que sobre eles se abatia. A dificulda-
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de, teórica e histórica, de utilização do conceito de populismo residia nessa
perspectiva de construção de relações sociais, pois tudo que era qualificado
como “populista” enfatizava uma dimensão de “manipulação” do Estado sobre
as “massas”, mesmo quando se reconhecia sua ambiguidade. Dessa forma,
considerar os trabalhadores interlocutores do Estado era reconhecer um di-
álogo entre atores com recursos de poder diferenciados, mas igualmente ca-
pazes de se apropriar e reler as propostas políticas um do outro. Tal operação
afastava a dicotomia, muito vigente, entre autonomia e heteronomia da clas-
se trabalhadora, como forma de designar e explicar a ausência de lideranças
“verdadeiras” e de sua “falta de consciência” ou sua “consciência possível”.
Esse aspecto era importante, porque se vinculava à explicação do sucesso das
lideranças políticas populistas, tendo o poder de colocar sob suspeição aque-
les que com eles se relacionavam, no caso, as lideranças sindicais “cooptados”,
isto é, pelegos: ingênuos e/ou traidores. Ser cooptado — por definição “não
representar” — era estar em uma relação em que não se possuía qualquer
poder, em que se estava sendo “manipulado” e transformado em objeto in-
capaz de negociação.
Por essas inúmeras razões, vinculadas ao efeito simplificador que o uso
do conceito populismo gerava, seu amplo uso foi sendo também questio-
nado, e sua constituição como categoria explicativa, mais bem investigada.
Esses esforços resultaram, de forma muito esquemática, ou em seu abando-
no por alguns estudos ou em seu uso com muito mais cuidado. No primei-
ro caso, está nossa própria pesquisa que propõe a designação de pacto
político trabalhista para entender as relações construídas pelo Estado e pela
classe trabalhadora no Brasil, nesse período. Esse pacto precisaria ser en-
tendido a partir de duas dimensões essenciais: uma simbólica e outra orga-
nizacional. A dimensão simbólica se traduziria pela construção de um
cuidadoso discurso de propaganda do regime, que marcaria profundamen-
te a cultura política brasileira, desde então. Tal discurso, por conseguinte,
não está sendo postulado como uma construção de efeitos meramente
conjunturais, embora se possa datá-lo e mapear as condições específicas de
sua produção. Ele deitaria raízes profundas numa tradição do pensamento
social brasileiro, extrapolando em muito a década de 1940 e “inventando”
uma matriz para se pensarem as relações entre governantes e governados
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no Brasil. A dimensão organizacional é igualmente fundamental e se tradu-
ziria pela criação de um instrumental institucional em que uma das faces é
o modelo de sindicalismo corporativo, e a outra, seu acoplamento a um
sistema político-partidário. Ou seja, a estratégia da transição “por dentro”,
implementada durante o Estado Novo, vislumbra, a curto prazo, os anos
1940 e a saída do autoritarismo e, a longo prazo, os desdobramentos polí-
ticos inevitáveis da instalação da liberal-democracia no país, com o retorno
do voto, dos partidos políticos e do Parlamento.
Retomando, com mais vagar, a dinâmica de construção desse pacto po-
lítico, é interessante examinar, mais detidamente, o discurso de propagan-
da então elaborado e divulgado. Acreditamos que esse é um momento
privilegiado para se observar a qualidade e a eficácia da construção de uma
ideologia política, a que chamamos trabalhismo, que se constituirá em
uma das bases privilegiadas da liderança de Vargas. O chefe do Estado Novo
é provavelmente, até hoje, nosso melhor produto de marketing político. A
campanha que, sobretudo a partir de 1942, se articula em torno de seu nome
é extremamente bem concebida e executada. Ela combina uma cuidadosa
estratégia de mobilização dos trabalhadores com a manutenção de todo um
esforço de controle que se exprime pela diluição e, se necessário, pela re-
pressão às opções de organização e expressão políticas que se mantivessem
insistentes. O centro desse esforço é o Departamento Nacional do Traba-
lho (órgão do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio), logicamente
mantendo contatos e tendo o apoio do Departamento de Imprensa e Pro-
paganda (DIP) e do aparelho policial. Um dos pontos altos dessa orques-
trada propaganda são os discursos que o ministro do Trabalho,Alexandre
Marcondes Filho, faz semanalmente pelo rádio no programa Hora do Brasil.
O título dessas “conversas” era Falando aos trabalhadores do Brasil e elas se
sucederam, praticamente sem interrupções, de meados de 1942 até mea-
dos de 1945. A estrutura dessas falas, sempre coloquiais e didáticas, estava
centrada numa interpelação dirigida à classe trabalhadora, que a colocava
no centro do cenário político nacional.25
Mas o fato fundamental a se ressaltar é que esse discurso se apropriava
de toda uma série de demandas e práticas experimentadas pelos trabalha-
dores ao longo das décadas da Primeira República, dando-lhes novos signi-
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ficados. É, portanto, com tal perspectiva que se deve repensar a ideia de
uma ruptura radical produzida pela intervenção estatal na trajetória do
movimento sindical brasileiro. Ou seja, durante o Estado Novo, o que se
observa é um esmerado esforço na construção de um discurso de propa-
ganda do regime e de Vargas, baseado na política social de regulamentação
do mercado de trabalho, que omite um passado de lutas e reivindicações
dos trabalhadores. Uma operação que retoma a tradição do movimento
operário, em outro contexto, apresentando suas antigas demandas como
“doações” do Estado: como benefícios antecipados, concedidos antes mes-
mo de serem pedidos.
É o que a literatura designou como “ideologia da outorga”, numa chave
que prioriza uma pertinente crítica ao discurso governamental, mas que não
explora suas virtualidades como recurso de poder. Justamente por isso,
tornava-se fundamental ressaltar as continuidades entre o pré e o pós-1930,
apontando que uma das razões do sucesso do discurso do Estado Novo foi
a “leitura” que empreendeu das lutas dos trabalhadores do pré-1930. Isto
é, que foi por meio dessa estratégia — que ao mesmo tempo mobilizava e
obscurecia a memória operária — que a legislação trabalhista, previdenciária
e sindical foi apresentada à população de trabalhadores brasileiros como
uma “dádiva”, uma “ação antecipada” do Estado.
Uma operação nada banal e cheia de significados, pois há muita força
política no ato de doar, como ensina Marcel Mauss. Sem desprezar essa
chave explicativa ou considerá-la indicadora de mera manipulação, a ideia
é tratar esse pacto como uma forma de “comunicação política”, fundada
na apresentação do “direito social como dádiva”, por meio da qual se pro-
duz adesão e legitimidade. Isto é, uma ideia aparentemente paradoxal — a
de “direito como favor” — que envolve um circuito de “dar, receber e retri-
buir”, que se estrutura por meio de uma lógica político-cultural, incom-
preensível dentro dos marcos de um mercado político orientado apenas por
interesses instrumentais. Uma lógica política que combina crenças e inte-
resses, tanto por parte dos dominantes quanto dos dominados, embora com
evidente desequilíbrio de poder entre eles. Nesse contexto, pode-se enten-
der o esforço do Estado Novo na divulgação dos direitos trabalhistas, re-
correndo aos mais modernos meios de comunicação da época, bem como
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usando recursos humanos altamente qualificados. É certamente muito difícil
dimensionar o tipo de recepção de tais iniciativas. Mas, seguindo orientações
dos estudos de história cultural, sabe-se que toda mensagem é recebida e
apreendida por um público de forma ativa, segundo seus próprios referen-
ciais. Não há público passivo e, portanto, entre a intenção da mensagem e
o entendimento do público há um grande espaço para novas elaborações.
Dessa maneira, pode-se entender que outra razão do sucesso desse dis-
curso foi a leitura que os trabalhadores de imediato fizeram dele, “apro-
priando-se da dádiva” e cobrando sua execução em nome da lei. A “ideologia
da outorga”, trabalhada nessa perspectiva, permite identificar a montagem
desse modelo de relações políticas como um dos elementos fundamentais
do projeto de transição mais amplo que estava sendo conduzido pelas eli-
tes do Estado Novo. Tal modelo estabelecia, basicamente, uma interlocução
entre uma autoridade benevolente — materializada na pessoa de Vargas —
que concedia ao povo/classe trabalhadora um conjunto de direitos sociais,
independentemente de suas lutas e reivindicações. Por meio de uma rela-
ção de troca — de troca de presentes, de bens materiais com valor simbó-
lico — a classe trabalhadora estava sendo incorporada como ator político,
reconhecendo a liderança de Vargas e, ao mesmo tempo, “apropriando-se”
do discurso de propaganda do regime.
 Assim, é preciso entender a “obediência” dos trabalhadores, quer como
uma possibilidade de efetivação de controles do Estado sobre suas organi-
zações, quer como um canal de comunicação política que se abria para elas,
estabelecendo um novo lugar de interlocutor político, reconhecido e há
muito perseguido. Ou seja, se há, embasando a lógica de construção desse
pacto, uma dimensão coercitiva por parte do Estado, e uma dimensão uti-
litária por parte das organizações sindicais — pois os trabalhadores “rece-
bem benefícios”, acionados por uma série de políticas públicas — tal lógica
não esgota seu sentido político. A expansão da legislação trabalhista e
previdenciária; a instituição da carteira de trabalho, da estabilidade do em-
prego e do salário mínimo; a criação da Justiça do Trabalho; a inauguração
de restaurantes para trabalhadores; a construção de conjuntos habitacionais
e de colônias de férias são bons exemplos para se referenciar sua dimensão
material. Mas há nesse pacto, igualmente, uma lógica simbólica, e é por
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meio dela que se expressa o reconhecimento, pelo Estado, da identidade
social e política dos trabalhadores brasileiros. É por meio dessa dimensão
que se abre o espaço da política à participação dos trabalhadores, ainda que
com muitos limites. É, portanto, em função dessa dupla lógica — material
e simbólica — que Estado e povo se reconhecem mutuamente, o que per-
mite e explica que os trabalhadores se dirijam ao Estado “reclamando” di-
reitos que são seus e devem ser cumpridos por empresários e por autoridades
governamentais.26 Esse pacto político-trabalhista, pensado ao longo do tem-
po, possui de modo integrado, mas não redutível, tanto a palavra e a ação
do Estado (que sem dúvida teve o poder de desencadeá-lo) como a palavra
e a ação da classe trabalhadora, devendo-se ressaltar que nenhum dos dois
atores era uma totalidade harmônica.
O último ponto a ser tratado é a dimensão organizacional desse pacto
político. Ela é fundamental, porque toda essa construção está alicerçada na
montagem da estrutura do sindicalismo corporativo no Brasil. É lógico que,
antes dos anos 1940, já existiam leis instituindo um modelo de organiza-
ção sindical de tipo corporativo no Brasil e também existiam sindicatos e
federações de “empregados” e “empregadores”, reconhecidos pelo Minis-
tério do Trabalho. A questão é que a maioria absoluta desses sindicatos não
mobilizava nem representava os trabalhadores. Por isso, inclusive, eram cha-
mados de “sindicatos de carimbo”, tanto pelos trabalhadores quanto pela
própria burocracia governamental, inclusive a do Ministério do Trabalho.
Contudo, durante um bom tempo, esse fato não preocupou o ministério
nem Vargas e é preciso entender por que passou a incomodar justamente
a partir de 1942. Ora, a montagem do discurso trabalhista, centrado na
afirmação da cidadania expressa pelos direitos sociais, precisava de amar-
ras sólidas e essas só poderiam ser os sindicatos. Mas sindicatos que
possuíssem graus efetivos de legitimidade, caso contrário seriam inúteis
para a implementação de uma estratégia de saída do autoritarismo. Não é
casual, portanto, que exatamente nesse momento fossem implementadas
iniciativas para estimular a sindicalização e darvitalidade aos sindicatos e
a suas lideranças. Dentre elas, uma das mais importantes e duradouras foi a
criação do imposto sindical, medida que transformaria os sindicatos em
reais dispensadores dos benefícios que a legislação garantia e o discurso
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trabalhista propagava. 27 Outra é a formação da Comissão de Organização
Sindical, que deveria estimular a filiação de trabalhadores aos sindicatos
e treinar lideranças capazes de atuar conforme os novos direitos traba-
lhistas e previdenciários.
Por fim, é desse momento a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
que era chamada por Marcondes Filho de a “bíblia do trabalhador”. Ele
dizia, pelo rádio, que cada trabalhador devia ter um exemplar em sua me-
sinha de cabeceira e devia lê-la um pouco todos os dias, para que se imbuís-
se da posição de cidadão da democracia social brasileira. Essa ativação do
sindicalismo corporativo, municiada, de um lado, pelo imposto sindical
e, de outro, pelo discurso trabalhista, começa a deslanchar a partir de 1942.
É extremamente difícil ter algum tipo de avaliação precisa sobre o sucesso
desse empreendimento, mas é significativo verificar o empenho do apa-
relho estatal e entendê-lo como um sinal do quanto acreditava e apostava
nos resultados de tal política. Isso porque toda essa montagem precisaria
estar azeitada para que a transição do autoritarismo para a liberal-
democracia se fizesse sem maiores problemas. Além disso, o sindicalismo
corporativista deveria articular-se cuidadosamente com o renascimento
de um sistema partidário. É nesse mesmo momento, portanto, que a ques-
tão dos partidos políticos é levantada pela cúpula estado-novista, com a
discussão de quais seriam as relações entre sindicatos e partidos: entre a
cidadania social dos benefícios trabalhist as e dos sindicatos corporativistas
já existente e a cidadania política do direito de voto e dos partidos polí-
ticos que estava por vir.
O primeiro dos partidos que se forma na conjuntura do fim do Estado
Novo é a União Democrática Nacional (UDN), que, como um partido de
oposição, logicamente, não estava previsto pelos mentores da transição.
Mas, a partir de sua existência e do lançamento de um candidato à Presi-
dência da República — o brigadeiro Eduardo Gomes — não se podia adiar
mais a criação de partidos “governistas”. Em face da impossibilidade de
um único partido que conjugasse todos os líderes políticos nacionais e
regionais, e ainda agregasse o esquema criado pelo trabalhismo-corporati-
vismo, emergem dois: o Partido Social Democrático (PSD), como espaço
privilegiado para as articulações dos líderes políticos estaduais, e o Partido
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Trabalhista Brasileiro (PTB), como um partido para o povo organizado
nas bases do sindicalismo corporativista. 28
Nesse sentido, a herança que o Estado Novo deixou é muito sólida e
complexa. Sem dúvida, esse foi um período que modernizou a administra-
ção pública e que deixou muitos saldos em termos de desenvolvimento eco-
nômico e social, a despeito de ter restringido a cidadania civil e eliminado
a cidadania política. Portanto, se os trabalhadores reconheceram e ainda
reconhecem Getúlio Vargas como uma liderança vinculada ao acesso a di-
reitos e à cidadania, esse fato precisa ser entendido e enfrentado. Obvia-
mente, os trabalhadores e o povo brasileiro perderam muito durante a
ditadura do Estado Novo, mas, por outro lado, receberam um reconheci-
mento até então por eles desconhecido. E é essa ambiguidade um dos maio-
res legados do período, permanentemente desafiando o historiador.
NotasNotas
1. CAMARGO, Aspásia et alii. O golpe silencioso. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989.
2. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Pau-
lo: Companhia das Letras, 1995, p. 115.
3. Um balanço da produção historiográfica sobre o Estado Novo, que estará sendo
aqui usado, foi feito por CAPELATO, Maria Helena Rolim. “Estado Novo: no-
vas histórias”, in: FREITAS, Marcos César de (org.). Historiografia brasileira em
 perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
4. O livro, da Jorge Zahar, foi publicado como o volume I do projeto O feixe e o
 prisma: uma revisão do Estado Novo. O volume I, O feixe com o qual vamos
trabalhar, está centrado na questão do autoritarismo e o volume II, O prisma,
estaria voltado para temas do Estado Novo e reuniria artigos de outros partici-
pantes do seminário. O volume I, como se pode verificar pelas citações bibliográ-
ficas de vários artigos, recebeu artigos concluídos bem depois de 1987 e o volume
II não chegou a ser publicado.
5. O outro artigo que também faz reflexões historiográficas é PESAVENTO, Sandra.
“Historiografia do Estado Novo: visões regionais”, in: SILVA, José Luiz Werneck
da (org.). O feixe: o autoritarismo como questão teórica e historiográfica. Rio de
 Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, pp. 132-139. O artigo de Gertz o antecede,
pp. 111-131.
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