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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS KAIQUE OLIVEIRA DE SANTANA Monteiro Lobato, eugenia e racismo. BELO HORIZONTE 2018 “A nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano!”, assim decretava Renato Kehl, um dos principais eugenistas brasileiros do século passado. O conceito por trás da eugenia está muito bem traduzido em infinitivos como aperfeiçoar, evoluir, superar, embelezar, fortalecer. De acordo com a historiadora Pietra Diwan (2007), os ideais eugênicos remontam à Antiguidade, onde motivados por uma busca incessante do ideal grego de beleza e força, os eugenistas selecionavam os traços físicos e o biótipo de quem poderia fazer parte de uma sociedade evoluída. A eugenia possui um caráter diferente de outros momentos históricos de crueldade, não necessita de uma justificativa religiosa, como a inquisição tampouco depende de um sistema de dominação político-econômica. Ela possui um status científico, de progresso e análise profunda pelos ditos intelectuais. Conforme aponta Diwan (2007), os ideais eugênicos nasceram na segunda metade do século XIX com o inglês Francis Galton. Para ele era possível o melhoramento da raça humana do ponto vista biológico, suas ideias logo se espalharam pela América Latina com certa rapidez, apesar de cada país ter suas singularidades e diferenciações. À exemplo do caso eugenista mexicano, que, contraditoriamente, se apoiava na eugenia para dar à miscigenação um status positivo e que deveria ser estimulado. No Brasil, Kehl foi o eugenista que mais chamou atenção devido aos seus escritos complexos e ambivalentes. Nenhum outro brasileiro fora tão incisivo no desejo de tornar o Brasil cheio de “gente sã física e moralmente”. Mas tais ideais já estavam postos no país tupiniquim antes de Kehl. Motivados pelo racismo e pela noção vigente de branqueamento populacional, diversos médicos, intelectuais europeus, cientistas, antropólogos e juristas viam na eugenia uma forma de melhorar racialmente o Brasil desde a vinda da família real portuguesa em 1822. Para eles, a promiscuidade racial a qual o Brasil estava inserido, além de enfeiar a população levava a nação a uma degeneração e ao atraso, pois o sangue africano e indígena impediam o progresso destinado às sociedades puras. Tinham como premissa que a mestiçagem inferiorizava o ser humano, pois ao combinar diversas ancestralidades, o gene impuro sempre levava vantagem em relação ao gene puro, o que levava as sociedades a se destruírem em pouco tempo. Desde figuras históricas pouco conhecidas até personagens massificados, muitos foram os que creram na impossibilidade do progresso brasileiro dado a sua composição racial. Pode-se citar Oliveira Vianna, Fernando Azevedo e Monteiro Lobato. Este último é o que se pretende estudar neste artigo, ressaltando a sua literatura racista e sua estreita relação com a eugenia. José Bento Renato Monteiro Lobato nasceu no estado de São Paulo em 1882, considerado um dos maiores brasileiros de todos os tempos, foi um dos mais importantes escritores brasileiros. Suas obras voltadas para o público infantil, como “O Picapau Amarelo”, fazem sucesso até hoje. Porém o que causa surpresa é o fato de Monteiro Lobato estar entre os defensores do movimento eugênico. No transcorrer de 1918, Lobato teve diversos de seus artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo. Naquele mesmo ano, por iniciativa da Sociedade de Eugenia de São Paulo (SESP) e da Liga Pró-Saneamento do Brasil (LPSB), eles foram reunidos em um livro, sob o título de “Problema Vital”. Nesta coletânea, que foi prefaciada por Kehl, trazia análises e críticas para o saneamento do Brasil. Esse envolvimento marcaria todo o pensamento de Lobato, inclusive sua produção literária. O personagem Jeca Tatu é demonstração vívida da preocupação de Lobato com a questão sanitarista do Brasil. Quando o conto “Urupês” foi publicado em 1914, percebeu-se nitidamente como Lobato enxergava o sertanejo. Um ser “degradante, seminômade e inadaptável à civilização”, características postas a Jeca Tatu em um primeiro momento. Conforme observa Nélio Bizzo (1995), durante a sua vida “Lobato manteve-se tão próximo das ideias eugênicas quanto de seu maior propagandista no país, Renato Kehl”. Em 1911, Lobato herdou de seu avô uma grande fazenda em Taubaté, onde residiu até 1917. Nesta fazenda, pôde observar e fazer constatações sobre o comportamento do sertanejo do interior e assim nasceu os rascunhos do seu famoso personagem Jeca Tatu. Segundo Pedro Moraes (1997), na primeira fase do Jeca, o viés evolucionista, racista e eugênico de Lobato era claro. Jeca Tatu simbolizava o sertanejo comum que era doente, preguiçoso, ignorante e um “funesto parasita”. A causa de tamanha degradação, para Lobato, estava na mistura racial. Tanto o caboclo quanto o pardo eram apresentados como resultados degenerados da miscigenação a qual estavam submetidos. Seguidor das ideias eugênicas de intelectuais da época, como o Conde de Gobineau, Lobato acreditava que o negro era inferior ao branco e a mistura destes resultava em seres fracos com características iguais a de Jeca Tatu. E estes seres gerados eram ainda inferiores aos negros. Em 10 de abril de 1928, Lobato escreveu uma carta ao médico baiano Arthur Neiva, um defensor do Darwinismo Social e da eugenia que propôs o embranquecimento da população brasileira. Na carta, Lobato exalta a atividade da organização racista Ku Klux Klan. “Paiz de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan, é paiz perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa phrase as duas attitudes. ‘Nós defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brazil’. Um dia se fará justiça ao Klux Klan; tivéssemos ahi uma defeza desta ordem, que mantem o negro no seu lugar, e estariamos hoje livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do gallego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destróe a capacidade constructiva”. Para Lobato, os caboclos foram vítimas da “vingança inconsciente” dos negros, pois estes ao se tornarem escravos sentiam raiva e a única forma de se vingar dos brancos seria pelo enegrecimento das suas gerações. Concepção que Lobato, à exceção de raros momentos, não mudou. Várias são as menções notadamente racistas em suas histórias infantis. Desde “Caçadas de Pedrinho” até “História de Tia Nastácia”, Lobato reforçou estereótipos raciais e diminuiu a sabedoria popular negra da época. Por exemplo quando Emília desrespeita cozinheira Nastácia em um trecho de Histórias de Tia Nastácia: Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto ! - Bem se vê que é pretae beiçuda ! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. Facínora ! - Emília , Emília ! - ralhou Dona Benta. A boneca botou-lhe a língua ( p.132 ) Em seus artigos publicados, Lobato já enunciava sobre os negros que “O Senegal não edita livros. Não obstante, a pretalhada vive luzidia [brilhante], contente da vida, felicíssima, com o cérebro em edênico repouso.” O que confere ao país africano um ar de incivilidade e primitivismo. E ainda prosseguiu afirmando que “Pretos por fora e por dentro, toda a gente de lá come e digere na perfeição, sem nunca sentir necessidades mentais.” Lobato descrevia os negros como incapazes de pensar. Ele escreveu apenas um romance, “o choque das raças” ou “o presidente negro”. Publicado em 1926, Lobato compõe uma trama futurista onde os Estados Unidos elegem um presidente negro após a vitória da eugenia em 2228, entrando no problema racial mais forte de sua história. O romance, que mostra o amor entre Atyrton e Jane, demonstra uma proposta de materializar um casamento ideal entre a eugenia e o futuro. O preconceito se evidencia pela noção de superioridade inata de um grupo sobre outro, ideias que tanto o autor quanto o personagem de seu romance aderem ostensivamente, sendo dele derivada a prática discriminatória contida em diversos trechos do romance panfletário. O livro, no entanto, foi um fracasso de vendas nos Estados Unidos e teve pouca repercussão no Brasil. Apesar de Lobato estar, à época do lançamento, com muitas expectativas positivas em relação ao livro, o que se viu foi um grande repúdio do público estadunidense ao exemplar devido ao seu conteúdo controverso, que mostrava a crueldade dos brancos norte-americanos aos negros, que no desfecho da história são todos esterilizados. Uma das características mais marcantes de Lobato é a sua ambiguidade, pois o mesmo autor que propõe a formação de uma Ku Klux Klan brasileira era um forte defensor do fim da escravidão. Para Diwan (2007), ora Lobato foi reacionário, ora moderno, e por vezes ambos simultaneamente. No primeiro livro acima citado, Problema Vital, Lobato cai em uma redenção em relação a Jeca Tatu nos últimos capítulos, afirmando que o caipira “não é Jeca Tatu, mas está Jeca Tatu”. Então passa a colocar a figura de Jeca como um homem que está doente por conta da ineficiência estatal em prover saneamento básico e higiene para a população. Conclui-se que, apesar da ambiguidade lobatiana ser um fator marcante em sua vida, Monteiro Lobato de fato foi fiel por muito tempo aos ideais eugenistas. Além de ser um admirador de Renato Kehl, a quem lhe atribuía o título de “um espírito brilhante, voltado para causas tão nobres por ter um estilo verdadeiramente eugênico”, Lobato também flertou com eugenistas internacionais, como August Weismann. A redenção de Lobato, que muitos dos seus seguidores o atribuem também pode ser questionada. Pois, para Lobato, a indolência e pouca produtividade atribuída ao brasileiro passaram a ser associadas às más condições de vida, mas o negro prosseguiu sendo visto pelo intelectual como um ser inferior. Adiciona-se também que sua literatura, mesmo que infantil, contribuiu por longos anos para que estereótipos racistas fossem perpetuados pela sociedade dado a fama de Lobato sua e aceitação pelo público geral. Pois, se o “o choque das raças” não teve a repercussão esperada pelo autor, sua saga infanto-juvenil até hoje continua a fazer sucesso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Diwan, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. Editora Contexto, 2007. 2. Bizzo, Nélio. O paradoxo social-eugênico, genes e ética. Revista USP, (24), 28-37. 1995. 3. Moraes, Pedro. O Jeca e a cozinheira: raça e racismo em Monteiro Lobato. Revista de Sociologia e Política, Curitiba,n. 8, p. 99-112, 1997. 4. Lobato, Monteiro. Fragmentos, opiniões e miscelâneas. Globo Livros. 2012.
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