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GEP – Grupo de Estudos Preparatórios do Congresso de Direito Comercial PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL São Paulo 2011 2 Organizadores: Prof. Fábio Ulhoa Coelho Marcelo Guedes Nunes Breve currículo dos autores: Fábio Ulhoa Coelho, Jurista e Professor Titular da PUC-SP. André Luiz Santa Cruz Ramos, Doutorando em Direito Empresarial pela PUC-SP, Procurador Federal em exercício no CADE e Autor do livro Direito Empresarial Esquematizado Áurea Moscatini, Mestre em Direito Privado pela UNIMEP e Doutoranda em Direito Empresarial pela PUC-SP. Professora Universitária. Advogada. Daniel Shem Cheng Chen, Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP e em Direito Empresarial pela PUC/SP. Atualmente é mestrando em Direito Empresarial pela PUC/SP. Fernando Melo da Silva, Advogado, Professor Universitário, Mestre e Doutorando em Direito. Frederico Marcondes Stacchini, Possui especialização em Administração de Empresas pela FGV-SP e é Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado em São Paulo. Herbert Morgenstern Kugler, Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP. Advogado em São Paulo Ivan Vitale Lorena Jr., Advogado. Coordenador da área de Direito Empresarial da Escola Paulista de Direito – EPD. Mestre e Doutorando em Direito Comercial pela PUC-SP José Roberto Salvini, Especialista em Administração de Empresas pela FGV e Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado em São Paulo. Juliana Alves do Nascimento, Bacharel em Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005), Mestranda em Direito Comercial, Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. Associada de Motta, Fernandes Rocha - Advogados. Marcelo Guedes Nunes, Mestre e Doutorando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado em São Paulo. Marcelo Tourinho, Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado no Rio de Janeiro. Pedro Henrique Laranjeira Barbosa, Especialista e Mestrando em Direito Comercial pela PUC/SP. Advogado em Curitiba/PR. 3 ÍNDICE Princípios do direito comercial Introdução por Fábio Ulhoa Coelho....................................................................................5 Parte I - Princípios gerais do direito comercial 1) Liberdade de iniciativa Juliana Alves do Nascimento..................................................................................7 2) Liberdade de competição Juliana Alves do Nascimento.................................................................................10 3) Função social da empresa Marcelo Tourinho..................................................................................................12 Parte II – Princípios do direito societário 4) Liberdade de associação André Luiz Santa Cruz Ramos..............................................................................16 5) Autonomia patrimonial da pessoa jurídica e Limitação e subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais Áurea Moscatini....................................................................................................19 6) Princípio majoritário e a Proteção do sócio minoritário Pedro H. Laranjeira Barbosa.................................................................................29 Parte III – Princípios do direito cambiário 7) Cartularidade e Literalidade Daniel S. C. Chen..................................................................................................32 8) A Autonomia das obrigações cambiais Daniel S. C. Chen..................................................................................................35 Parte IV – Princípios do direito contratual dos empresários 9) Autonomia da vontade Frederico M. Stacchini..........................................................................................37 10) Plena vinculação dos contratantes ao contrato José Roberto Salvini..............................................................................................41 11) Proteção do contratante economicamente mais fraco nas relações contratuais assimétricas Herbert M. Kugler..................................................................................................45 12) Princípio do reconhecimento dos usos e costumes comerciais Marcelo Guedes Nunes..........................................................................................48 4 Parte V – Princípios do direito falimentar 13) Inerência do risco a qualquer atividade empresarial Fernando Melo da Silva.........................................................................................53 14) Impacto social da crise da empresa Marcelo Tourinho...................................................................................................58 15) Transparência nas medidas de prevenção e solução da crise André Luiz S.C. Ramos..........................................................................................61 16) Tratamento paritário dos credores Ivan Vitale Junior....................................................................................................65 5 Introdução “Ideologia” é uma palavra normalmente associada a algo ruim. Muito em função dos ecos da Guerra Fria, que marcou o enfrentamento dos Estados Unidos e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ao longo da segunda metade do século vinte, a palavra evoca uma vaga referência a perversas manipulações de conceitos no bojo de uma luta pelo poder. Desvestida, porém, desse seu contexto, “ideologia” surge como referência a um conjunto de valores. Não há vida em sociedade, sem que as pessoas incorporem, em razão de suas experiências nos ambientes familiar, escolar, laboral ou social, preceitos sobre o que é certo e o que é errado fazer. Os valores sintetizam regras de conduta e são cultivados e reafirmados tanto no plano verbal, como no do comportamento – mais neste ultimo que naquele. O conjunto de valores geralmente nutridos e adotados como pertinentes por um grupo de pessoas ou classe social é uma “ideologia”. Cada ramo do direito tem, neste sentido, sua “ideologia”, isto é, um conjunto de valores que visa prestigiar, por meio de normas constitucionais, legais ou regulamentares. São normas de âmbito muito largo, que se costumam chamar de princípios. Os princípios de uma disciplina jurídica formam sua ideologia. Nenhuma ideologia existe por si mesma. Para que exista, é necessário que os valores nela abrigados sejam vivenciados por um grupo expressivo de pessoas como pertinentes, corretos, justos, racionais, valiosos. Ideologias, assim, surgem e desaparecem em função da dinâmica das relações sociais. Pode-se dizer, por exemplo, que a ideologia do fundamento divino do poder real, que vicejou largamente na Europa Medieval, não existe mais; desapareceu com a afirmação e disseminação da democracia como a forma mais adequada de organização do Estado. Se um valor não é reiterado, reforçado, atualizado, no plano conceitual, ele deixa de ser, aos poucos, vivenciado. Os valores que compõem a “ideologia” do direito comercial correm, hoje, o risco de desaparecerem, no emaranhadoda complexa sociedade contemporânea. Se não insistirmos que a proteção jurídica feita ao investimento aproveita não apenas o investidor, em seus interesses individuais, mas principalmente à sociedade como um todo, aos poucos perder-se-á, 6 no espírito dos juízes e outros membros da comunidade jurídica, os valores de que depende o direito comercial para sobreviver. Sob o ponto de vista técnico, os valores de uma disciplina jurídica expressam-se por meio dos princípios próprios dela. O princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor corresponde ao valor fundamental do direito do consumidor; o princípio do poluidor-pagados, ao do direito ambiental; a indisponibilidade do interesse público, ao do direito administrativo; e assim por diante. Precisamos reverter o processo de lento desaparecimento dos valores do direito comercial, realimentando a ideologia desta disciplina. Os instrumentos neste processo são a realização de eventos periódicos e representativos, como este 1º Congresso Brasileiro de Direito Comercial, a elaboração e difusão de trabalhos doutrinários e acadêmicos, que identifiquem os princípios do direito comercial e os aprofundem, mostrando como devem ser entendidos atualmente, em cotejo com a ideologia dos demais ramos do direito que se avizinham. O Grupo de Estudos Preparatórios “Princípios do Direito Comercial”, que eu coordenei, procura, neste relatório, abrir uma picada neste tortuoso caminho de reconstrução da ideologia do direito comercial. Do grupo fizeram parte orientandos meus no Programa de Pós-graduação em Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP). Cada um ficou encarregado de considerar um ou mais princípios do direito comercial, para estudá-los no contexto de uma tentativa de sua atualização, com vistas a contribuir para o reforço do valor embutido em cada um deles. O resultado é, em vista dos objetivos fixados, altamente satisfatório e esperamos todos, eu e os demais integrantes do Grupo, que nossas reflexões sirvam ao debate que terá lugar no 1º Congresso Brasileiro de Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho – Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP 7 Parte I – Princípios gerais do direito comercial 1. Liberdade de Iniciativa Juliana Nascimento A livre iniciativa é princípio constitucional tratado no caput do art. 170 da Constituição Federal, considerada direito fundamental 1 do homem por garantir o direito de acesso ao mercado de produção de bens e serviços por conta, risco e iniciativa própria do homem que empreende qualquer atividade econômica. Por definição, significa direito à livre produção e circulação de bens e serviços 2 e, consequentemente, o respeito dos demais (Estado e terceiros) a essa liberdade, garantido pelo princípio da livre concorrência. A atual interpretação da doutrina e da jurisprudência é a de que a Constituição Federal limita a exploração da atividade econômica a outros princípios elencados no art. 170 da Constituição Federal 3 . Neste sentido, o entendimento majoritário é o de que a livre iniciativa é base da ordem econômica em conjunto com a valorização do trabalho, e que o desempenho da atividade econômica, deve observar cumulativamente todos os valores relacionados nos incisos do art. 170 4 . Entretanto, tal interpretação gera restrições à liberdade de iniciativa 1 “Em segundo lugar surge a liberdade de iniciativa. Na verdade esta liberdade é uma manifestação dos direitos fundamentais e no rol daqueles devia estar incluída. [...] Equivale ao direito que todos têm de lançarem-se ao mercado da produção de bens e serviços por sua conta e risco. Aliás, os autores reconhecem que a liberdade de iniciar a atividade econômica implica a de gestão e a de empresa” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 16). 2 “O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar 2 “O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar os preços ou mesmo a forçar a sua venda em condições que não sejam as resultantes do mercado. A liberdade iniciativa exclui a possibilidade de um planejamento vinculante. O empresário deve ser o senhor absoluto na determinação de o que produzir, como produzir, quanto produzir e por que preço vender. Esta liberdade, como todas as outras de resto, não pode ser exercida de forma absoluta. Há necessidade sim de alguns temperamentos. O importante, contudo, é notar que a regra é a liberdade. Qualquer restrição a esta há de decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 16). 3 “A defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente, a função social da propriedade e os demais princípios elencados pelo art. 170 da CF como informadores da ordem econômica, bem como a lembrança da valorização do trabalho como um dos fundamentos dessa ordem, tentam refletir o conceito de que a livre iniciativa não é mais que um dos elementos estruturais da economia” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1, 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 186). 4 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. 8 econômica e distorções na aplicação do princípio da livre iniciativa, principalmente quando no caso concreto ele se apresenta em conflito com outro valor protegido constitucionalmente 5 . Curiosamente, o princípio da livre iniciativa perde de todos os princípios sociais quando sujeito à ponderação de princípios, como se pode ver na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 6 , o que nos leva à seguinte reflexão: será que a maioria dos juízes e juristas considera a livre iniciativa um princípio inferior? 7 A premissa maior aqui é a compreensão do texto constitucional 8 . A valorização do trabalho humano e a livre iniciativa são igualmente elencadas como a base da ordem econômica, a qual tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Esse trecho, porta de todo o intervencionismo protecionista e paternalista por parte do estado, informa que a existência digna deve ser alcançada com o trabalho e a livre iniciativa. Em nenhum momento está dito que o trabalhador e o empreendedor devem arcar com a existência digna daqueles que não trabalham ou não empreendem – e isso já ocorre com o pagamento de impostos, instrumento clássicode redistribuição de renda. Caso recentemente julgado no Supremo Tribunal Federal ilustra muito bem a postura protecionista do país frente à proteção da livre iniciativa e livre concorrência. O Tribunal Pleno decidiu pela manutenção do privilégio do serviço postal por razões técnicas e formais (a distinção entre monopólio e privilégio, decorrente da diferenciação entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito), ignorando a realidade de competição no setor e a experiência internacional contemporânea. Vale a pena ler a íntegra do acórdão, com destaque 5 Livre Iniciativa. Parâmetros. ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-05, Plenário, DJ de 2-6-06; ADI 3.512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-06, Plenário, DJ de 23-6-06. 6 Limitação social à liberdade de iniciativa: AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6- 2007, Plenário, DJ de 31-8-2007; ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006; ADI 3.512, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006; ADI 319-QO, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 3-3- 1993, Plenário, DJ de 30-4-1993; STA 171, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12/12/2007, Tribunal Pleno, DJ de 29-02- 2008; ADI 3512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15/02/2006, Tribunal Pleno, DJ de 23-06-2006; ADI 1950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 03/11/2005, Tribunal Pleno, DJ de 02-06-2006; RE 349686, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14/06/2005, Segunda Turma, DJ de 05-08-2005; RE 321796 Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 08/10/2002, Primeira Turma, DJ de 29-11-2002. 7 “[...] significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. [...] essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho [...]. (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 2ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006. p. 709)(grifo nosso) 8 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins trazem, na nota de rodapé nº 1 dos comentários ao art. 170 da obra Comentários à Constituição do Brasil, uma bela análise dos fundamentos do art. 170 nas constituições federais, feita por Washington Peluso Albino de Souza. SOUZA, Washington Peluso Albino de. A experiência brasileira de Constituição econômica, Revista de Informação Legislativa, 102:29-32, abr-jun, 1989, citado por BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 12-15. 9 para o voto vencido do Ministro Marco Aurélio (ADPF 46, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, julgamento em 5-8-09, Plenário, DJE de 26-2-10). O cerne da questão reside no pensamento político dominante. Não está claro para muitos que a livre iniciativa é princípio fundamental por ser essencial para o desenvolvimento do país e não inferior a princípios sociais. O prêmio Nobel de economia Amartya Sen destaca em sua obra Development as Freedom a importância da escolha social para o desenvolvimento. Ele argumenta que a liberdade individual – em todos os campos da expressão do indivíduo e não apenas do ora analisado enfoque econômico da liberdade de iniciativa – deve ser encarada como um comprometimento social. Para ele, uma sociedade saudável é aquela habitada por indivíduos com a capacidade de escolher e de construir boas vidas com suas escolhas. O seu conceito de justiça, publicado ano passado no livro The Idea of Justice, requer que cada cidadão seja equipado com uma ampla gama de “capacidades” (que ele define como o “poder de fazer algo”) para que seja considerado responsável pelo seu próprio bem estar, ou, em nossa linguagem constitucional, sua existência digna 9 . Neste sentido, os eminentes juristas Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins demonstram um pensamento de lucidez admirável na interpretação do caput do art. 170 10 . Em nossa opinião, essa é a melhor interpretação possível do texto constitucional e deve prevalecer sobre a jurisprudência e doutrina mais festejadas. 9 SEN, Amartya; tradução Laura Teixeira Motta. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 10 “O que se poderia perguntar é se é possível organizar-se a justiça social dentro de um regime de liberdade de iniciativa. A nosso ver não existe uma contradição visceral entre essas idéias. É certo que jogadas a si mesmas as forças da produção podem caminhar num sentido inverso ao da justiça, contudo, ainda assim, os Estados que mais têm avançado na melhoria da condição humana são justamente aqueles que adotam a liberdade de iniciativa. Ao Estado pode caber um papel redistribuidor da renda nacional. O que não é aceitável é ver-se uma contradição entre a liberdade de iniciativa e a justiça social a ponto de se afirmar que esta última só é atingível na medida em que se negue a primeira” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 18). 10 2. Liberdade de Competição Juliana Nascimento Como explicado acima, o princípio da livre concorrência, tratado no art. 170, IV e no art. 173, § 4º 11 , é manifestação do princípio fundamental da livre iniciativa. Na lição de Yves Guyon, a obrigação de liberdade de concorrência se acrescenta à obrigação de lealdade na competição 12 . No Brasil, o Professor Fabio Ulhoa Coelho discorre sobre a importância dos efeitos da prática empresarial para a verificação e concorrência abusiva; se a atividade econômica resulta em dominação de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de lucros ela é considerada abusiva e, portanto, ilícita 13 . A competição pura é o fim do princípio e objeto da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994. “Desnecessário se torna encarecer ainda mais os altos fins visados por meio da defesa da liberdade de mercado. Vale a pena transcrever aqui a opinião de Luís Cabral de Moncada: “O objectivo (sic) das leis de defesa da concorrência é o de assegurar uma estrutura e comportamento concorrenciais dos vários mercados no pressuposto de que é o mercado livre que, selecionando os mais capazes, logra orientar a produção para os setores susceptíveis de garantir uma melhor satisfação das necessidades dos consumidores e, ao mesmo tempo, a mais eficiente afetação dos recursos econômicos disponíveis, que é como quem diz, os mais baixos custos e preços. A concorrência é assim encarada como o melhor processo de fazer circular e orientar livremente a mais completa informação econômica, quer ao nível do consumidor, quer ao nível de produtores, assim esclarecendo as respectivas preferências. É por isso que a sua defesa é um objectivo de política econômica” (Direito econômico, 2. ed. Coimbra Ed., p. 313)”14 O estado conta com modelos econômicos de mercado livre e de competição saudável para servir de parâmetro para sua atuação fiscalizatória e de repressão ao abuso de poder econômico. A análise acessível que Fábio Nusdeo faz sobre as falhas de mercado leva-nos a 11 Art. 173. [...] § 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. 12 “Dans un système juridique dominé par le principle de la liberté du commerce et de l‟industrie, il ne devrait pas exister de réglementation de la concurrence. Eneffet celle-ci devrait se suffire à elle-même, les commerçants médiocres étant éliminés par le libre jeu des règles du marché. L‟experience montre cependant qu‟une concurrence absolument libte engendre des désordres et finit par se détruire elle-même car d‟éliminations en éliminations elle aboutit à la création de monopoles. [...]. Classiquement cette invention avait pour objet le maintien de la loyaté de la concurrence, car dans la guerre commerciale tous les coups ne sont pas autorisés. [...]. A l‟obligation traditionnelle de loyale concurrence est venue s‟ajouter l‟obligation nouvelle de libre concurrence, qui est atuellement l‟un des thèmes majeurs de la politique économique” (GUYON, Yves. Droit des Affaires: Droit commercial general et Sociétés. Paris: Ed. Economica, 1980. P. 757-758). 13 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1, 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 209. 14 (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 27) 11 concordar com a sua conclusão no sentido de que “[...] à percepção de que a mecânica operacional do mercado, tal como imaginada pelos clássicos, corresponde mais a um modelo simplificado do que a uma realidade facilmente encontradiça em cada caso concreto”15, que o autor chama de “concorrência perfeita”, a que o estado busca adequar a realidade, impedindo as conseqüências indesejáveis das distorções identificadas. Entretanto, o estado brasileiro, ao fazer política econômica, não raro extrapola ao incutir objetivos não econômicos em medidas de controle e intervenção na economia, onerando a iniciativa privada e prejudicando a liberdade de concorrência. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vem corrigindo diversos casos de fixação de preços pelo estado em clara ofensa aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência e se posicionando no sentido de que não é legal a fixação de preços abaixo do valor de mercado 16 . Este entendimento ainda se mostra tímido, uma vez que a fixação de preços não é necessária para o funcionamento de nenhum mercado e gera graves distorções na ordem econômica 17 . A proposta teórica é refletir sobre a necessidade de intervenção do estado na economia e na livre concorrência. A atuação dos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência já é suficiente e bem orientada no sentido de promover ambiente institucional/legal que favoreça o livre funcionamento dos mercados e estimule o investimento privado. Qualquer medida intervencionista caminha no sentido oposto ao desenvolvimento econômico. 15 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. P. 167. 16 AI 683098, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 01-06-2010, Segunda Turma, DJ de 25-06-2010; RE 583992, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 26-05-2009, Segunda Turma, DJ de 12-06-2009; RE 422941, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 06/12/2005, Segunda Turma, DJ de 24-03-2006; RE 226836, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 12/09/2000, Segunda Turma, DJ de 13-10-2000. 17 Neste sentido, HAYEK, Friedrich A. von. The road to serfdom: text and documents. The definitive edition. Edited by Bruce Caldwell. The University of Chicago Press, 2007. 12 3. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA Marcelo Tourinho No Brasil, a expressão função social aparece nas Constituições de 1934 (art.113), 1946 (art. 147), 1967 (art.157, III), 1969 (art.160, III) e 1988 (arts.5º, XXIII, 170, 182 e 186), relacionadas à função social da propriedade e dos contratos. Embora sem previsão expressa, a doutrina entende ter sido ela acolhida pelo Código Civil de 2002 18 , seja em razão do expresso reconhecimento da função social de outros dois institutos vinculados ao exercício da empresa, o contrato (art. 422, CC) e a propriedade 19 (art. 1228, §1º, CC), de cujo cumprimento não pode o empresário se escusar, seja em virtude dos critérios dirigentes da interpretação do diploma civil de 2002, que são a eticidade, a socialidade e a operabilidade 20 . Aplicada à empresa, a função social somente passa a ser expressamente prevista com a edição de Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), em seus artigos 116 e 154 21 . Trata-se de figura de difícil definição, cujo conteúdo não pode ser depreendido a partir dos dispositivos a ela aplicáveis. Conceito bastante difundido entre a doutrina é o de que por função social deve-se entender o respeito aos direitos e interesses dos que se situam em torno da empresa 22 , também conhecidos como stakeholders 23 , conceito esse que inclui acionistas, 18 Vide Enunciado 53, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal: “Deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa”. Jornadas de Direito Civil: Enunciados aprovados. Disponível em <http://www.jf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296>. Acesso em 30/01/2011. 19 A noção da função social da empresa prende-se, ou tem por base, a noção de função social da propriedade, nos termos do artigo 170, III, da Constituição Federal de 1988 (SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, ). 20 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO Bruno Paiva, Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 857, p. 11-28 mar./2007, p. 17. 21 “Art. 116. [...]. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. “Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. (...)” 22 BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 284. No mesmo sentido, BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 134. 23 Stakeholder é qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser afetado pela conquista dos objetivos de uma empresa, como, por exemplo, acionistas, credores, gerentes, empregados, consumidores, fornecedores, comunidade local e o público em geral.(EVAN, W.; FREEMAN, R.E., “A Stakeholder Theory of the Modern Corporation : Kantian Capitalism”. In: T. Beauchamp and N. Bowie, Ethical Theory and Business, Englewood Cliffs, NJ, 1988, p. 103). Sobre o tema: ALKHAFAJI, A. F.. A Stakeholder Approach to Corporate Governance. Managing in a Dynamic Environment. Westport, CT: Quorum Books, 1989; MITCHEL, Ronald K.; AGLE, Bradley R.; WOOD, Donna J. Toward a Theory of Stakeholder Identification and Salience: Defining the Principle of Who and What Really Counts. Academy of Management Review, v. 22, n. 4, p. 853- 886, 1997. 13 empregados e comunidade 24 . José Edwaldo Tavares Borba apresenta o seguinte exemplo de aplicação do conceito: “Jamais, no entanto, poderá o interesse do empregado ser sacrificado sob o argumento de que a redução do quadro aumentará o lucro,ou como processo de substituição de empregado antigo – de remuneração mais elevada – por empregado novo – de remuneração mais baixa. Práticas dessa natureza correspondem ao sacrifício do trabalho em proveito do capital e, como tal, conflitam com o já referido art. 116, parágrafo único, que colocou capital, trabalho e comunidade em posição de equilíbrio 25 .” Após a edição da Lei 6.404/76, foi grande a movimentação da doutrina em torno do artigo 116, mas este infelizmente teve pouca aplicação prática 26 . É difícil determinar, a partir da jurisprudência nacional, a extensão, os deveres positivos e as prerrogativas que decorrem da função social da empresa. A função social da empresa é utilizada, no mais das vezes, em sentido genérico, sem que seja explicitado seu conteúdo. No sentido que lhe é dado nos arts. 116 e 154 da Lei das S.A., pode ser identificada com a exigência de um comportamento “idôneo e probo” de controladores e dos administradores das pessoas jurídicas27. A expressão ganha maior densidade quando tratada em processos de recuperação judicial e falências, nos quais é aplicada com vistas à preservação da empresa em crise, caso em que e passa a ser identificada com a importância da preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país 28 . O conteúdo da função social, não obstante o esforço da doutrina e o tratamento jurisprudencial, permanece impreciso – para alguns vazio do ponto de vista axiológico29 – 24 Modesto Carvalhosa inclui no conceito o respeito aos consumidores e aos concorrentes. (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 3º volume, Artigos 138 a 205. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 276). Lamy, um dos autores da lei das S.A.., entende que a função social “há que traduzir-se na busca atenta e permanente da conciliação do interesse empresarial com o interesse público; no atendimento aos reclamos da economia nacional, como um todo, na identificação da ação empresarial com as reivindicações comunitárias – numa palavra, na observância de uma ética empresarial, que, afinal, é o que distingue o aventureiro do empresário” (A Função Social da Empresa. Revista de Direito Administrativo, nº 190. Rio de Janeiro: Renovar. p. 59. out./dez. 1992). 25 Op. Cit. p.136. 26 FORGIONI, Paula Andréa; OLIVEIRA, Jonathan Mendes de; RODRIGUEZ, Caio Farah; Interpretação dos negócios empresariais. In: Wanderley Fernandes. (Org.). Série GVlaw Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 143. 27 STJ, REsp 1130103 / RJ, Ministro Relator Castro Meira, julgado em 30/08/2010. 28 STJ, AgRg no CC 105215/MT, Ministro Relator Luiz Felipe Salomão, julgado em 02/12/2010; STJ, REsp 1201912, Ministro Relator OG Fernandes, julgado em 30/09/2010; STJ, CC 73380/SP, Ministro Relator Helio Quaglia Barbosa, julgado em 28/11/2007; STJ, EREsp 111294 / PR, Ministro Relator Castro Filho, julgado em 28/06/2006 29 Vide a crítica de AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O princípio da Boa-fé nos Contratos. In: CEJ, v.9, p.43. 14 e mantêm-se como uma porta aberta para seu uso arbitrário, pois quanto maior a abertura do conceito, maiores as possibilidades de interpretações divergentes 30 . A questão é bastante relevante, especialmente tendo-se em conta o atual cenário 31 de desrespeito à pessoa jurídica 32 , incompreensão das particularidades relativas aos negócios comerciais 33 e desprestígio do próprio do direito comercial. É preciso ter em mente, como concepção crítica, que o recurso à função social (hoje vista como um avanço ou superação de um modelo “individualista”) é algo que, ao longo da história, mostrou-se característico também de regimes não democráticos 34 . Além disso, subordinar a atividade empresarial a interesses que não o daqueles que detêm o seu capital, significa, em primeiro lugar, insegurança jurídica – já que não é possível se saber a quem e em que medida deverá a atividade empresarial atender ou privilegiar – e, em segundo lugar, um incentivo perverso àquele que deseja empreender e criar novos negócios, e que, para tanto, gastará tempo e recursos, suportando integralmente os riscos do negócio, sem que o produto desse esforço responda necessariamente a interesses convergentes com os dele. Um administrador que seja obrigado a gastar recursos com a comunidade local, com o meio-ambiente, com a cultura ou com a redução da desigualdade social, está, em última análise, gastando os recursos dos acionistas (capital investido), dos consumidores (já que seus produtos ficarão mais caros) e dos próprios trabalhadores (já que a capacidade de pagamento 30 Como bem adverte Luiz Fernando de Freitas Santos, é razoável imaginar-se a existência de uma distância de anos-luz entre o que um socialista e um neoliberal percebem como sendo a expressão concreta de princípios, tais como o da função social dos contratos, segurança jurídica ou da livre iniciativa. (A tipicidade no direito administrativo sancionador: Balalada de la Justiça y la Ley. In: OSÓRIO, Fábio Medina (Org.). Direito Sancionador: Sistema Financeiro Nacional. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 276.) 31 Luciano Benetti Timm arrisca estabelecer o que seria quase um consenso na doutrina jurídica nacional acerca do sentido da função social, quanto aos contratos, apontando que a maioria dos autores por ele analisados entende a função social como a expressão, no âmbito dos contratos, dos ditames da “justiça social” próprios do Welfare State. (Direito, economia e a função social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no mercado de crédito. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. v.33. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 15-31. jul./set.2003). 32 Para um panorama sobre o uso (indiscriminado) da desconsideração da personalidade jurídica vide NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007. 33 FORGIONI, Paula. (Et.al). Op. Cit. 34 Sua origem em um diploma legal pode ser atribuída à Constituição Mexicana de 1917, inspirada pelo movimento anarco- sindicalista, vencedor da revolução ocorrida naquele país (COMPARATO, Fábio Konder. A constituição Mexicana de 1917. Disponível em HTTP://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm). Em 1919, a função social apareceria na Constituição de Weimar, albergando interesses de grupos comunistas e fascistas que surgiram para rivalizar com os partidos liberais clássicos na Alemanha devastada pela Primeira Guerra (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Função Social no Direito Privado e Constituição. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 61, 2006. p 156). No mesmo sentido, Rachel Sztajn demonstra, ainda, como a propriedade, à época do fascismo italiano, nada mais era do que um meio de facilitar a intervenção ou controle do Estado sobre a atividade econômica ou a propriedade fundiária (A função social do contrato e o direito da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, p. 36) 15 de maiores salários restará prejudicada) 35 . Não que esses deveres devam ser esquecidos e abandonados, mas é importante que se note que os interesses dos próprios stakeholders podem não ser convergentes entre si. O estudo contemporâneo da função social da empresa deve fugir do discurso retórico que o vem acompanhando e buscar, primordialmente, o aprofundamento da investigação e descrição das múltiplas funções e utilidades da atividade empresarial, a fim de sopesar com maior precisão e consciênciaa eventual conveniência de se privilegiar um ou outro interesse a ser tutelado pela empresa. 35 É sempre válido relembrar a clássica crítica de Milton Friedman em “The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits” New York Times, September 13, 1970, Section 6 (Magazine). Uma visão crítica pode também ser encontrada em SMITH, D. G. “The Shareholder Primacy Norm” (1998) 23 Journal of Corporate Law 277; STOUT “Bad and Not-So-Bad Arguments for Shareholder Primacy” (2002) 75 South California Law Review 1189; FISCH “Measuring Efficiency in Corporate Law : The Role of Shareholder Primacy” 31 J Corp L 637 (2006); KEAY, “Shareholder Primacy in Corporate Law. Can it Survive? Should it Survive?, disponível em http://ssrn.com/abstract=1498065. 16 Parte II – Princípios do direito societário 4. Liberdade de Associação André Luiz Santa Cruz Ramos O direito empresarial pode ser entendido, sucintamente, como o regime jurídico especial de direito privado que disciplina a atividade econômica (empresa) e seus agentes econômicos (empresários). Antes de iniciar qualquer estudo ou proposta de estudo sobre o direito empresarial e seus valores e princípios, é imprescindível estabelecer, a priori, qual o regime de mercado escolhido pelo ordenamento jurídico geral no qual esse direito empresarial se insere. Pois bem. De acordo com a nossa atual Constituição Federal, parece-nos claro que o ordenamento jurídico brasileiro adota o regime capitalista de mercado, já que a Lei Fundamental reconhece a livre iniciativa como pilar da ordem econômica (art. 170, caput), a qual tem por princípios, dentre outros, a propriedade privada (art. 170, II) e a livre concorrência (art. 170, IV). Ademais, a Carta Magna ainda prevê que o Estado, em princípio, não explorará diretamente atividade econômica (art. 173, caput) e que o planejamento estatal da economia é meramente indicativo para o setor privado (art. 174, caput). Partindo-se, pois, da premissa de que o direito empresarial brasileiro está inserto num ordenamento jurídico geral capitalista, é fácil supor que os princípios e valores constitucionais que fundamentam esse regime capitalista de mercado são também princípios e valores fundamentais do direito empresarial. E um desses princípios e valores é, justamente, a liberdade de associação, a qual, a propósito, é também assegurada expressamente na Constituição Federal, em seu art. 5º, XVII e XX. Um regime capitalista só funciona se ele assistir ao pleno e genuíno funcionamento do livre mercado, em que a propriedade privada é reconhecida e protegida e os agentes econômicos são livres para atuar por meio de trocas voluntárias 36 . Assim, pode-se dizer que o direito empresarial, num ordenamento jurídico capitalista, deve permitir – e garantir – a 36 Atualmente, porém, tanto a propriedade privada quanto a liberdade para a realização de trocas voluntárias estão fortemente limitadas, em nome de um “modismo” jurídico chamado função social. 17 efetiva cooperação entre os agentes econômicos por meio de acordos voluntários, sobretudo acordos que envolvam a associação desses agentes econômicos para fins lícitos. É importante lembrar que a liberdade de associação está na raiz do direito empresarial, já que foi a partir da associação dos comerciantes burgueses que surgiram as conhecidas Corporações de Ofício medievais, cujos estatutos representaram, segundo os doutrinadores, a primeira tentativa de sistematização das regras comerciais 37 . Como princípio constitucional, a liberdade de associação possui dois vetores: (i) positivo, que garante a todo e qualquer cidadão o direito de associar-se livremente, sem nenhuma restrição por parte do Estado; (ii) negativo, que assegura a todo e qualquer cidadão os direitos de não se associar e de se desassociar, sem nenhuma imposição por parte do Estado. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal 38 . Veja-se que, em ambos os sentidos – positivo e negativo – a liberdade de associação repele a interferência estatal, ressalvadas apenas as expressas situações excepcionais descritas no próprio texto constitucional: associação para fim ilícito ou paramilitar. Portanto, pode-se dizer que a autonomia da vontade, no que tange à liberdade de associação, deve ser plena, evitando-se ao máximo a interferência estatal nessa seara, seja por meio de atividade legislativa 39 ou jurisdicional 40 . Ponto interessante sobre a liberdade de associação é que ela, aplicada ao direito empresarial, não deve ser assegurada apenas às pessoas naturais – como defendem alguns 37 “As fontes do ius mercatorum eram os estatutos das corporações mercantis, o costume mercantil e a jurisprudência da cúria dos mercadores. (...) O costume nascia da constante prática contratual dos comerciantes: as modalidades consideravam vantajosas convertiam-se em direito; as cláusulas contratuais transformavam-se, uma vez generalizadas, no conteúdo legal dos contratos. Por último, os comerciantes designados pela corporação compunham os tribunais que decidiam as controvérsias comerciais.”: GALGANO, Francesco. História do direito comercial. Tradução de João Espírito Santo. Lisboa: Editores, 1990, p. 40. O que se vê, hodiernamente, é a intervenção cada vez maior do Estado nas relações privadas, sobretudo as relações econômicas, algo que o direito empresarial deveria repelir, em respeito e homenagem à sua própria história. Não se deve permitir que o “meio econômico” (trocas voluntárias dentro de um livre mercado) seja subjugado pelo “meio político” (expropriação violenta da riqueza de terceiros) na tarefa de oferecer aos indivíduos às possibilidades de satisfação de suas necessidades: OPPENHEIMER, Franz. The State. New York: Vanguard Press, 1914. 38 “Ao lado, portanto, da liberdade positiva – liberdade de associar-se livremente sem oposição por parte do Estado –, consagrou a nova Carta a liberdade negativa, ou seja, a de não ser compelido a associar-se ou a manter-se associado, situação absolutamente incompatível com a liberdade de associar-se, implicando impossibilidade de a lei impor um ato de adesão ou de permanência em uma associação. [...].Já não há espaço para a concepção de um imperativo sistema centralizado de arrecadação e distribuição dos direitos autorais, inexistindo dúvida de que a lei, em agredir a nova disciplina constitucional sobre a liberdade de associação (incisos XVII e XXI do artigo 5.o da CF) e sobre a exclusividade do autor sobre o direito de utilização, publicação e reprodução de suas obras (inc. XXVII do dispositivo citado), já não pode compelir os titulares desses direitos a reunirem-se, diretamente ou por via de suas associações, numa entidade única, para vê-los arrecadados e distribuídos.” (STF, ADIn nº 2.054-DF, Relator Min. Ilmar Galvão, RTJ 191/78). 39 Não se deve admitir, por exemplo, que leis restrinjam ou limitem a liberdade de associação, como tem ocorrido com a liberdade de contratar, submetida muitas vezes ao cabresto do dirigismo contratual. 40 Embora não tenha tratado especificamente do tema liberdade de associação, um recente julgado do STJ ilustra bem a importância de o Judiciário não se imiscuir em questões relacionadas à vida de organismos associados constituídos livremente: STJ, MC 14.561/BA, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/09/2008, DJe 08/10/2008. No acórdão, consagrou-se a intervenção mínima do Judiciário em questões societárias. 18 juristas 41 –,mas também às pessoas jurídicas. Afinal, é fato que no mercado a atuação das pessoas jurídicas (sociedades empresárias) é cada vez maior e mais relevante que a atuação individual das pessoas naturais (empresários individuais). 42 41 “A liberdade de associação, como a de reunião, é direito individual. Não pode invocar liberdade de associação, direito do homem, qualquer pessoa jurídica.”: MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Tomo IV. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1963, p. 480. 42 “A liberdade legítima é a ação desobstruída de acordo com nossa vontade, limitada pelo igual direito de terceiros.” (Thomas Jefferson) 19 5. Autonomia Patrimonial da Pessoa Jurídica e Limitação e Subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais Áurea Moscatini Destina-se o presente estudo à exposição breve acerca do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica e também da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais, como vêm sendo estudados, interpretados e aplicados, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência. A verdade é que até pouco tempo justificou-se a forma como vinham sendo aplicados, pelas regras do neoliberalismo, diante dos valores estabelecidos, pois sua principal função foi a de garantir a independência e limitação do patrimônio dos investidores e assim o direito de mantê-lo intacto, com a invasão no patrimônio dos sócios, como, por exemplo, diante da afronta à lei, ao contrato ou em casos de fraude declaradamente comprovada. Dentro de uma visão individualista e apoiada na proteção do direito da propriedade, até então, não ocorreu qualquer problema, mas atualmente, o quadro que se apresenta é bem diferente. Esses princípios vêm sendo colocados de lado, muitas vezes, desprestigiados, que não dizer desprezados, especialmente pelas áreas do Direito que protegem interesses dos chamados credores não negociáveis, como os consumidores e os trabalhadores. O Direito Comercial como Ciência somente se justifica, desde que seus princípios estejam fortalecidos e, por esta razão, é o momento de buscar novos caminhos dentro dos valores emergentes da sociedade de hoje para que se solidifique como ciência. Importante demonstrar que os princípios da autonomia patrimonial e da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais são importantes, a fim de que os investimentos continuem sendo feitos, o que garantirá via de conseqüência a sobrevivência da figura do empresário, na forma de sociedade ou individual, o que é muito importante para a sociedade e mais ainda para a sobrevivência do próprio homem, como ser social que é. Não se pode esquecer que o homem necessita da imposição de normas que garantam sua tranqüilidade no convívio social e especialmente lhe garantam os bens, com a crescente evolução tecnológica a que está acostumado. Se por um lado existem fortes investimentos na área tecnológica, por outro lado, verifica-se a aproximação de um mal inevitável, como as mudanças climáticas, as quais representam grandes catástrofes, com fortes 20 impactos ambientais, sociais e econômicos, o que num curto espaço de tempo, fará com que o homem dispute por água e comida e não petróleo ou bens sofisticados tecnologicamente, como se imaginava, anteriormente. Daniela Campos Liborio di Sarno sugere que definição de uma política pública sobre os itens centrais, a tecnologia para alteração de matriz energética, a redução de emissão de carbono, os diagnósticos com métodos aprovados internacionalmente, parece estar longe das competências locais e regionais. Entretanto, pode-se conseguir a redução de emissão de carbono por meio da eficiência do trânsito, com duração menor para os deslocamentos urbanos. Pode-se viabilizar uma eficiência energética estimulando o uso de energia solar nas novas construções ou produzindo energia nos aterros sanitários. A impermeabilização do solo urbano também é outro fator de alteração de microclima que pode exigir uma disponibilidade energética maior, trazer uma incidência maior de alterações climáticas. O uso e ocupação do solo é elemento chave para o desenvolvimento do clima e seu adensamento deve ser controlado rigidamente pelo Estado como uma forma de não agravar as condições climáticas das grandes regiões urbanas. Considerando que a ocupação de encostas, beiras de rios a áreas alagadiças é feita pela população de baixíssima renda, são estas pessoas que sofrerão, em primeira instância, as conseqüências do clima. As políticas públicas precisam ser revistas urgentemente para se adequarem às novas circunstâncias. O aquecimento pode ser global, mas as conseqüências serão sempre locais. 43 Evidente que todas essas providências demandaram, sem dúvida alguma, muita pesquisa, capital, trabalho, que efetivamente encontra-se no setor privado Assim, as políticas públicas podem refletir em incentivos e proteção a esse setor, que já está capacitado para atender às demandas emergenciais. Neste sentido, o mundo encontra-se carente de investimentos, que representem a simples garantia de sobrevivência do ser humano e um dos agentes importantes neste contexto, sem dúvida nenhuma, é o empresário, sendo o responsável pela circulação de riquezas. Especialmente o Brasil, na condição de país em desenvolvimento, onde os impactos sofridos já são mais que evidentes, necessita de um engajamento de todos, não só das autoridades públicas, mas sim um envolvimento social de maior envergadura para suportar essas dificuldades. 43 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito Ambiental e Urbanístico: Panorama Jurídico Sobre As Mudanças Climáticas e o Aquecimento Global: Algumas Considerações. Editora Fórum, 2010. 60p. 21 O Direito visa o equilíbrio nas relações sociais, uma vez que suas normas efetivamente representam a proteção de valores consagrados pela sociedade, assim importante é a preocupação com a proteção da atividade empresarial, que tem papel significativo neste contexto, já que o Estado não tem como suprir todas as deficiências e necessidades, principalmente em situações de risco acentuado, como dos impactos das mudanças climáticas. Tal questão apresenta-se, inicialmente, de forma tranqüila e despida de qualquer pretensão, mas essa simples lição, que nos acompanha desde os primeiros estudos da Ciência do Direito, mostra que o seu enfraquecimento, fatalmente, desembocará no desequilíbrio social, se não ficarmos atentos ao chamado para o fortalecimento de seus princípios, os quais têm como a principal tarefa de disciplinar e, por que não dizer, preservar a fonte produtora, no caso, a empresa. Segundo as lições do Prof. Fábio Ulhoa Coelho, “cada ramo jurídico assenta-se em valores próprios traduzidos pelos seus princípios.”44 E assim, chamando a atenção para o fato de que os valores do Direito Comercial estão esgarçados, merecendo momento de reflexão e análise, importante será destacar idéias, mecanismos que justifiquem a aplicação de tais princípios, diante do quadro que se estabelece a cada momento. Por fim, pretende-se demonstrar que em sendo fortalecidos esses princípios que se referem à atividade empresarial, seus agentes se sentirão motivados a não só continuar investindo, mas também aumentarão tais investimentos, garantindo-se preços justos, produtos de qualidade e, especialmente, proporcionando a todos uma sociedade mais justa ecom qualidade de vida, pois são os responsáveis não só pelos avanços tecnológicos, como também pela sobrevivência do ser humano, quando garantem os itens de subsistência, principalmente em situações de perigo. É importante destacar que os princípios são vetores, diretrizes a serem seguidas e que traçam as noções básicas do ordenamento jurídico, vinculando as atividades de aplicação e interpretação da ciência jurídica. Interessantíssima a distinção feita por Rizzatto Nunes, entre princípio e valor: “O princípio é, assim, um axioma inexorável e que, do ponto de vista do Direito, faz parte do próprio linguajar desse setor de conhecimento (...). O valor sofre toda influência de 44Fábio Ulhoa Coelho, O Futuro do direito comercial , Ed. Saraiva, 2010, p.7 22 componente histórico, geográfico, pessoal, social, local, etc. e acaba se impondo mediante um comando de poder que estabelece regras de interpretação – jurídicas ou não”.45 E ainda nas lições do Prof. Alaor Café, quando aborda a gênese da norma demonstra que ela deve brotar dos anseios da sociedade, deve refletir os seus interesses: “A norma não é simplesmente o que é linguisticamente, mas também o que pode e deve ser no mundo real da comunidade jurídica à qual pertence. Ela é enquanto pode e deve ser cumprida neste mundo. Se a norma de direito não pudesse ser cumprida, nem devesse ser cumprida na comunidade jurídica, então não seria norma jurídica. ... A norma jurídica não é só válida (e existente) por compor um sistema normativo em seu contexto hierárquico positivado. Ela exige um componente empírico, com fundamento nos fatos socioculturais, para que seu estudo e hermenêutica não se resumam a um mero capítulo da lógica. A verdade de sua validade não é a coerência sistêmica. Há necessidade de verificação empírica para apurar-se a validade da norma jurídica.” 46 Ao tratar especificamente da questão relacionada à empresa no Código Civil Brasileiro, Rachel Sztajn, 47 citando Dagan, enfatiza que valores públicos devem informar as normas de Direito Privado, não deixando de lado o foco das relações a que disciplinam, que são as horizontais, desde que as expectativas e pretensões sociais apareçam como fundamento do Direito Privado. Não justifica-se mais a aplicação dos princípios em análise mediante uma visão eminentemente individualista, mas sim, diante de sua integração a de valores coletivos, dada a sua importância num quadro de responsabilidade social. Ao citar, a autora, Oppo 48 , o qual afirma que se está diante de um Direito de Mercado, onde explica que “a liberdade de iniciativa e utilidade social compreende valores como segurança, dignidade dos seres humanos e dever de solidariedade, pelo que considera ser a utilidade social limite à iniciativa econômica; que as normas concorrenciais, ao penalizarem o exercício de poder no mercado, são, igualmente, limitação à liberdade de iniciativa.” Neste sentido, vê-se que existe uma preocupação de cunho nacional e internacional de que o Direito Privado é dotado de valores específicos, e não sendo mais a propriedade e sim o bem-estar coletivo, deve-se procurar novas maneiras de interpretação. 45 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002. 46 ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e Direito. Editora Manole, 2010. 435p 47 SZTAJN, Rachel. Revista do Advogado n° 96: Codificação, decodificação, recodificação: a empresa no Código Civil brasileiro. AASP, 2008. 124p. 48 Ob. Cit. 23 No que se refere especificamente à questão dos princípios da autonomia patrimonial, verifica-se que o princípio da autonomia patrimonial vem sendo desprestigiado. Observa-se, em resumo, que quando os credores são bancos, fornecedores, ou seja, outros empresários, os sócios não são responsabilizados, não havendo a invasão no patrimônio. Segundo os ensinamentos de Fabio Ulhoa Coelho 49 , a responsabilização dos sócios tem se verificado em casos em que não há os pressupostos de fraude e diante de credores não empresários, acabando, pois, com as bases do instituto. Em seguida 50 , sustenta que as bases para a motivação jurídica em fortalecer tais princípios dizem respeito primeiro à limitação das perdas, que não devem ultrapassar o investimento feito, pois representa fator essencial para a atividade econômica capitalista. Em seguida sustenta-se pelo custo da atividade econômica, pois o preço a ser pago pelo consumidor sofrerá com o repasse de redução de custos e prática de preços elevados, ao adquirir produtos de baixa qualidade a preços mais caros. Afirma não se justificar o afastamento da autonomia patrimonial diante da mera inadimplência, exigindo-se a comprovada utilização da mesma. 51 Ainda, segundo referido autor, ao abordar a questão da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios 52 , demonstra que referido tema é uma questão de direito-custo, pois os capitalistas se afastariam de segmentos que exigem altos aportes na área tecnológica e o preço das inovações suportados pelos consumidores seria bem alto, para cobrir os seus custos e gerar os lucros capazes de cobrir o risco da perda do patrimônio. Evidente que a fuga do consumidor, via de regra, fará com que haja menos circulação de riquezas. Segundo Fábio Ulhoa Coelho a quebra da sociedade será a perda do credor, pois é perfeitamente previsível que toda empresa está sujeita ao risco do insucesso e é, para ele, justo que todos os agentes econômicos suportem o prejuízo. 49 COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de Direito Comercial, volume 2 Direito de Empresa, Sociedades. São Paulo, 14ª edição, Saraiva, 2010, pagina 23. 50 Ob. Cit., pagina 40. 51 Ob. Cit., página 41 52 Ob. Cit., página 413 24 Outra questão levantada pelo autor diz respeito à falta de textos legislativos reguladores da perda da autonomia patrimonial em relação aos credores não negociais. Concluindo, então, que “na tutela dos direitos dos consumidores, na proteção da concorrência e na repressão a práticas lesivas ao meio ambiente, a imputação da responsabilidade aos sócios deve atender aos pressupostos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Os empregados e demais credores não negociais, por fim, enquanto não editada regra que os beneficie expressamente, devem ter os seus direitos creditórios, perante a sociedade limitada, sujeitos à regra da autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade do sócio 53”. A questão de que o Direito Comercial necessita de princípios próprios, já foi objeto de discussões ao longo dos anos, o que foi destacado por Paula A. Forgioni. 54 Destacou que não se pode prosseguir numa sociedade onde um desconfia do outro, onde todos os envolvidos não estão protegidos pelo manto do Direito, em caso de qualquer eventualidade, se exige maior segurança. Fábio Konder Comparato, defende que reconhecimento claro e consequente de que controle empresarial não é propriedade implica uma verdadeira revolução copernicana no estatuto da empresa, que passa de objeto a sujeito de direito. Com essa substituição do centro de gravidade, é o empresário que deve servir à empresa, e não o contrário. E então, propõe a instituição democrática da empresa, onde o lucro deixaria de ser fruto da propriedade do capital, sendo repartido por todos os que concorreram com seus esforços e recursos para a produção do resultado. Procura colocar ao final que isso até pode parecer loucura,mas se justifica diante dos acontecimentos sócio-econômicos, onde princípios como o da autonomia patrimonial afastaria a responsabilidade dos sócios, pois a empresa personalizada, tal como a fundação, tornar-se-ia um patrimônio finalístico. 55 Interessante posicionamento, porém difícil de se sustentar. A Doutrina já chama a atenção para que o grande desafio que se impõe aos estudiosos do Direito Comercial é o de conciliar o econômico e o social, com o fim último de garantir o devido cumprimento de normas que representem efetivamente os anseios sociais, garantindo- se, via de conseqüência a convivência harmônica. 53 Ob. Cit., página 419 54 Cf. FORGIONI, Paula A.; A Interpretação dos negócios empresariais no novo código civil brasileiro. in RDM 130/7 55Comparado Konder Fábio, Direito Empresarial – Estudos e Pareceres, , 1990, Ed. Saraiva 25 Em análise à jurisprudência pudemos perceber que realmente o princípio da autonomia patrimonial e da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade estão sendo aplicados de forma equivocada. Neste sentido, julgados acerca de direitos do consumidor, onde sem mesmo serem atendidos aos ditames do artigo 50 do Código Civil, determina-se a desconsideração da personalidade jurídica. 56 Em pior situação encontram-se os julgados na esfera trabalhista, que inadvertidamente invadem, de antemão os bens particulares dos sócios pelas dívidas sociais, em flagrante desrespeito à lei e aos princípios aqui estudados. 57 Uma vez ou outra, localiza-se decisões esparsas que respeitam efetivamente o disposto no artigo 50 do Código Civil, qual seja, de que se forem nomeados bens à penhora por parte da empresa executada, não há que se invadir o patrimônio particular dos sócios 58 , que, no entanto, não são regra, infelizmente. 56 AGRAVO DE INSTRUMENTO.CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.Obstáculo ao ressarcimento de danos ao consumidor. Relação de consumo.Aplicação do art. 28, § 5º, do CDC. Teoria Menor da Desconsideração. Sócio minoritário, detentor de apenas 1% das cotas e sem poder de administração.Responsabilidade pessoal, mas subsidiária em relação ao sócio administrador, que exercia os poderes de gestão da empresa. Interpretação à luz da excepcionalidade da medida e do Enunciado nº 7 do CJF. Conformação da Teoria Menor aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.Excesso de execução reconhecido.Afastados dos cálculos a cobrança de valores abrangidos pela gratuidade de justiça. Alegação de impenhorabilidade de bem de família rejeitada, porquanto determinada apenas penhora sobre direitos hereditários. Decisão parcialmente reformada.RECURSO PROVIDO EM PARTE (TJSP, Agravo de Instrumento nº 4012757020108260000 SP, Relator: Paulo Alcides, julgado em 16/12/2010) 57 “AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO. CITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PROCESSUAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO DEVEDOR. 1. Não procede a alegada nulidade da citação, visto que a Corte de origem consignou que esta ocorreu validamente, tanto que a executada indicou bens à penhora, rejeitados pela exequente, sendo certo que não foram encontrados outros bens da pessoa jurídica, razão por que a execução voltou-se contra o patrimônio pessoal dos sócios. 2. A aplicação da teoria da despersonalização advém do descumprimento das obrigações decorrentes do contrato de trabalho e da falta de bens suficientes da empresa executada para satisfação das obrigações trabalhistas. Correta a constrição dos bens da ora agravante, considerando sua condição de sócia da executada durante a relação de emprego da autora, bem como a inexistência de patrimônio da empresa executada capaz de garantir a execução, conforme salientado na decisão proferida pelo Tribunal Regional. Agravo de Instrumento a que se nega provimento”. (TRT 15 Processo: AIRR - 262840- 52.2000.5.02.0076 Data de Julgamento: 18/08/2010, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/08/2010) e 58 Voto do desembargador Eurico Cruz Neto: “(...) A desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa somente se justifica quando há prova incontestável de que os sócios agiram com abuso (artigo 50 do CC). Durante toda a instrução processual não restou demonstrado qualquer elemento de prova que pudesse atestar a inidoneidade financeira do primeiro reclamado e nem que os seus sócios estivessem agindo de forma a dilapidar-lhe o patrimônio. Por óbvio que os créditos trabalhistas devem ser privilegiados. Contudo, a desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa deve observar os requisitos legais, sob pena de aniquilarmos o conceito de pessoa jurídica.(...)” (TRT 15ª Região, Recurso Ordinário nº: 0942-2008-097-15-00-1, Relator: Desembargador Enrico Cruz Neto, julgado em: 01/09/2009) "AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - Recurso contra r. decisão que indeferiu pedido de desconsideração da personalidade jurídica - A desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional que somente pode ser aplicada quando demonstrada a prática de irregularidades e fraudes pelos sócios - Decisão mantida- Recurso improvido." (TJSP, Agravo nº 990.10.141164-4 Data de julgamento: 03/08/2010, Relatora: VIVIANI NICOLAU, 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo) 26 Nas questões tributárias, com base em textos legais, vem se observando, diante dos ditames da própria lei tributária a solidariedade entre empresa e sócio-administrador, desde que tenham praicado atos com excesso de poder ou em afronta à lei. 59 Enfim, o grande problema está realmente localizado na esfera trabalhista, que além dos perigosos entendimentos jurisprudenciais a que destacamos, vêm celebrando convênios para o fim de proceder a penhoras on-line e, mais, com a Receita Federal para acessar a dados pessoais, quebrando-se o sigilo bancário, que segundo sua ótica, vem propiciar melhora na prestação jurisdicional. E mais recentemente, o TRT da 15ª Região celebrou convênio referente ao protesto extrajudicial das decisões em fase de execução na esfera trabalhista. Mais uma atrocidade, haja vista que, mesmo na fase de liquidação inúmeras questões de ordem processual poderão ser suscitadas, acarretando, inclusive, em possível liquidação zero. Assim, não existe mais o respeito a limites impostos, inclusive, de ordem constitucional. Enfim, o momento demanda enorme esforço por parte dos estudiosos e operadores do Direito Comercial e exige rapidez no agir, especialmente, para evitar que essas posturas desprovidas de qualquer amparo legal, porém alicerçadas em princípios próprios, como especialmente, o de proteção ao hipossuficiente, no Direito do Trabalho, acabem por comprometer a força produtiva da empresa, levando ao colapso toda a sociedade. Diante do quadro apresentado, fácil ficou de constatar que se o princípio não se mantém por si, necessária a sua interpretação em consonância com outro princípio. O que se verifica é que o fato de esquecer-se da aplicação correta dos princípios ora em análise, o investidor tome caminhos outros, quiçá indesejáveis e até mesmo lesivos à sociedade, provocando um círculo vicioso, que desemboca no aumento de conflitos. A proteção e devida aplicação dos princípios da autonomia patrimonial e da responsabilidade subsidiária dos sócios representa o fortalecimento e a manutenção da fonte produtora, que representa a garantia de todos os credores e de toda a sociedade. Isto porque a técnica a qualo empresário está acostumado é a de todos nós, o comodismo ou o repasse, o 59 “É dominante no STJ a tese de que o não-recolhimento do tributo, por si só, não constitui infração à lei suficiente a ensejar a responsabilidade solidária dos sócios, ainda que exerçam gerência, sendo necessário provar que agiram os mesmos dolosamente, com fraude ou excessos de poderes. (STJ, AgRg no RESP n. 346.109/SC, Relatora: Ministra Eliana Calmon, julgado em: 19/03/2002)” e “Os sócios gerentes são responsáveis, por substituição, pelos créditos referentes a obrigações tributárias decorrentes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei,contrato social ou estatutos, ou quando tenha ocorrido a dissolução irregular da sociedade, comprovada, porém a culpa. 2. O simples inadimplemento de obrigações tributárias não caracteriza infração legal” (REsp n. 724.077/SP, Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 20.10.2005) 27 que implica em atingir direitos metaindividuais, pois, como demonstrado, a falta de bens e serviços afeta toda a coletividade, Estado, trabalhadores, consumidores, etc. “São interesses metaindividuais que, sendo inatingível o grau de agregação e organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo (v.g., o interesse à pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g., os consumidores). Caracterizam-se pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua transitoriedade ou transformação em virtude de alteração na situação fática que os ensejou. ... Embora necessariamente compartilhado por todos, não pode ser quantificado e dividido entre membros determinados da coletividade. Simplesmente repercutem no bem- estar de todos ou mesmo na própria sobrevivência da sociedade. Vale dizer, se o interesse individualizável merece a tutela jurídica, essa proteção deve ser potencializada quando uma pluralidade de titulares, conquanto não-definível, esteja sendo afetada. 60 Na verdade, ao fortalecer os princípios de Direito Comercial, não se está defendendo exclusivamente o patrimônio privado e sim um patrimônio que gera bem-estar à coletividade, mesmo porque, seguindo a sociologia de Durkheim, a empresa é parte integrante desta, sua falta causa graves danos à mesma, ficando lançada a idéia propulsora para recozer tais princípios, com o intuito de que se enfraquecidos não afetam drasticamente o grande investidor, mas toda a sociedade. Sendo isto o que explica a sociologia jurídica à luz dos ensinamentos de Durkheim: "Na solidariedade característica de uma sociedade industrial, os indivíduos desenvolvem funções especializadas, diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, interdependentes. Durkheim, para esclarecer essa solidariedade, usa a metáfora do corpo, segundo a qual cada membro e cada órgão, embora desempenhem funções diferentes, estão mutuamente relacionados de forma que a soma das partes compõem um todo integrado e homogêneo. Exatamente por isso, Durkheim chamou essa solidariedade de orgânica. Ela, sendo característica das sociedades modernas e industriais, ao mesmo tempo está relacionada com os grandes grupos sociais que atingem alto grau de diferenciação interna e necessitam, por 60 SHIMURA, Sérgio. Tutela Coletiva e sua efetividade. Editora Método, 2006. 27, 28p. 28 essa razão, que as funções coletivas sejam partilhadas e cada indivíduo possa desempenhar atividades totalmente diferentes, mas perfeitamente indispensáveis para a coletividade." 61 Assim, pode-se dizer que a sociedade como um todo vive em uma "simbiose", onde cada grupo integrante faz sua parte e contribui significativamente para os outros. Nesse contexto entram também as figuras dos empresários, como peças chaves sem as quais não há a possibilidade de uma convivência harmônica. Sem a presença da empresa não há como garantir uma sociedade livre, justa e solidária, nos termos preconizados no artigo 3º da Constituição Federal, afinal a população não terá empregos, desencadeando um efeito dominó, pelo qual não haverá como garantir respectivamente os outros objetivos dos incisos seguintes. Comprovando, aqui, que a função social da empresa é muito mais ampla do que se imagina, o que se repete nos direitos sociais previstos no artigo 6º, do mesmo diploma legal supracitado, devendo, pois serem garantidos os limites impostos pelo princípio da autonomia patrimonial. 61 LOCRE, Adriana A.; FERREIRA, Helder R. S.; SOUZA, Luis Antonio S.; IZUMINO, Wania Pasinato. Sociologia Jurídica, Porto Alegre, Síntese, 1999, página 51. 29 6. Princípio Majoritário e a Proteção do Sócio Minoritário Pedro Henrique Laranjeira Barbosa O princípio majoritário foi e ainda pode-se afirmar que é um dos pilares fundamentais do direito comercial pátrio e estrangeiro, mas que vem sofrendo, no âmbito interno, algumas modificações ante a globalização, a nova realidade do mercado de capitais brasileiro e a aplicação de alguns conceitos e princípios da governança corporativa. A “majority rule” 62 está intimamente ligada ao direito de voto nas sociedades empresárias e é tida por alguns autores como a “democracia societária”, justificada, principalmente, pela impossibilidade de se conseguir, na ampla maiorias da vezes, a convergência da unanimidade dos sócios em uma deliberação de interesse geral 63 , conduzindo a um melhor andamento e desenvolvimento da empresa. Todavia, o princípio não traduz, como se pode pensar, uma relação de parentesco com a democracia no campo da organização estatal, mas sim está diretamente conectada ao risco do empreendimento, estabelecendo, como regra geral, que cada participação no capital social corresponde a um voto e a maioria desta participação é quem definirá os rumos sociais. 64 Em razão dos potenciais abusos que tal formulação do direito pode ocasionar em desfavor da própria sociedade empresária e dos minoritários, a lei estabelece algumas exceções para determinadas deliberações sociais 65 , punições severas quanto ao abuso do poder do voto, proibição do voto em hipóteses de conflito de interesses, além de inúmeros direitos em prol dos minoritários, restando consagrado, portanto, o princípio de proteção ao minoritário. Não restam dúvidas que os princípios majoritário e o de proteção ao minoritário são amplamente protegidos e de fundamental importância em nosso ordenamento jurídico 66 , 62 Termo amplamente utilizado no direito norte-americano para designar o princípio majoritário consagrado em nosso sistema jurídico. 63 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por Ações, v. II, p. 112. Ver COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5a. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008; 64 COELHO, Fábio Ulhoa. “Democratização” das Relações Entre os Acionistas In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 48/49. 65 Na lei das sociedades anônimas é possível destacar uma deliberação que demanda a unanimidade dos acionistas, aquela prevista no art.
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