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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO Raí Fantin Dietrich USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal Florianópolis 2021 Raí Fantin Dietrich USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Marília de Nardin Budó Coorientadora: Profa. Mariana Goulart Florianópolis 2021 Ficha de identificação da obra Raí Fantin Dietrich USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de Bacharel em Direito e aprovado em sua forma final pelo Curso Graduação em Direito. Florianópolis, 23 de setembro de 2021. ________________________ Prof. Luiz Henrique Cademartori, Dr. Coordenador do Curso Banca Examinadora: ________________________ Profa. Marília de Nardin Budó, Dra. Orientadora Universidade Federal de Santa Catarina ________________________ Prof.ª Karine Agatha Avaliadora Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ________________________ Prof.ª Poliana Ribeiro dos Santos Avaliadora Universidade Federal de Santa Catarina AGRADECIMENTOS Sem dúvidas, o presente trabalho representa parte da minha trajetória como pessoa e estudante. Por isso, agradeço aqui não somente àqueles que contribuíram com a sua execução, mas também àqueles que contribuíram para essa caminhada, tornando-a, com certeza, imensamente mais feliz e prazerosa. Inicio pela minha família. Agradeço à minha mãe, Maristela, por me contagiar com a sua crença na minha capacidade para a realização desse trabalho. Agradeço ao meu pai, Luiz, pela grande dedicação em me ajudar com proveitosas discussões sobre o tema e atenta correção textual. Agradeço ao meu irmão, Cauê, pelas várias discussões e ricas trocas de experiências. Agradeço à minha irmã, Nina, por todo apoio, discussões, dicas de organização, e revisão textual. Agradeço a todos os quatro, principalmente, pelos valores construídos e pelos exemplos de pensamento crítico e questionador quanto ao que está posto. Eu não seria o que sou sem vocês. Agradeço à minha Coorientadora, Mariana, pela disposição em me ajudar com muito afinco e carinho em cada reunião, revisão e desafio. Esse trabalho não seria o mesmo sem a sua contribuição. Agradeço à minha Orientadora, Prof.ª Dra. Marília, pela exigente orientação e inúmeros diálogos que tanto contribuíram para a realização dessa pesquisa, desde o surgimento do tema até a sua conclusão. Agradeço à advogada e amiga Márcia, pelo imenso apoio e numerosos ensinamentos que tanto contribuíram não só para a realização desse trabalho, mas também para meus ideais como atuante no ramo do Direito. Agradeço também a todos meus amigos e amigas, por terem, cada um ao seu modo, contribuído com essa trajetória de estudos, de pesquisa, de trabalho e de vida. Por fim, agradeço à educação pública que, através da UFSC, foi como uma segunda casa para mim, me acolhendo, me acompanhando e me construindo desde o Núcleo de Desenvolvimento Infantil, Colégio de Aplicação, até o Centro de Ciências Jurídicas. Agradeço imensamente a todos os professores, colegas e demais servidores dessas instituições que foram tão importantes na minha formação humana e profissional. “Instead of war on poverty, They got a war on drugs so the police can bother me.” Tupac Amaru Shakur, 1998. RESUMO Mesmo após décadas de proibição, a questão das drogas segue sendo tema cada vez mais atual na sociedade. Isso se deve tanto à ineficácia do modelo proibicionista em resolver a questão, quanto ao fato de esse modelo agravar a situação com problemas como o encarceramento em massa e a criminalização da população pobre e preta. A atual lei de drogas (lei 11.343/06), além de ampliar a diferenciação entre o tratamento dado ao considerado traficante (art. 33) e ao considerado usuário (art. 28), prevê, como único critério para a delimitação entre as condutas, a necessidade do dolo específico de consumo pessoal no art. 28, enquanto para o art. 33, caput, bastaria o dolo genérico. De tal modo, considerando essa previsão do dolo específico na conduta menos gravosa, o presente trabalho busca analisar como a inversão do ônus probatório está sendo utilizada como tática para auferir a finalidade da droga no momento da condenação por tráfico de drogas. Para tanto, através de método dedutivo e de pesquisa bibliográfica e documental, divide-se o texto em dois capítulos. No primeiro, é apresentada uma análise crítica sobre as motivações e consequências da guerra às drogas, bem como discute o sistema processual brasileiro e a regra de distribuição do ônus da prova, através de revisão bibliográfica. No segundo capítulo, analisam-se detalhadamente três processos criminais da Comarca de Florianópolis/SC previamente selecionados por exemplificarem a problemática levantada, ou seja, processos que mesmo latente a dúvida quanto à finalidade da droga, decide-se pela condenação por tráfico, buscando demonstrar como aparece a articulação da inversão do ônus probatório na prática. Por fim, conclui-se apresentando as principais linhas argumentativas utilizadas para fundamentar a inversão do ônus da prova nos processos estudados, destacando- se a representação dos preconceitos estruturais do sistema punitivo brasileiro, assim como a instrumentalização do processo penal para a realização dos objetivos políticos da guerra às drogas. Palavras-chave: Inversão do ônus probatório; processo penal acusatório; guerra às drogas; tráfico de drogas; posse ou porte de drogas para consumo pessoal. ABSTRACT Even after decades of prohibition, the drug issue continues to be an increasingly pressing issue in society. This is due to both the inefficiency of the prohibitionist model in solving the issue, and the fact that this model aggravates the situation with problems such as mass incarceration and the criminalization of the poor and black population. The current drug law (law 11.343/06), in addition to increasing the difference between the treatment given to the one considered as trafficker (art. 33) and the one considered as user (art. 28), provides, as the only criterion for the delimitation between the conducts, the need for the specific intent of personal consumption in art. 28, while for art. 33, caput, the generic intent would suffice. In such a way, considering this prediction of specific intent in the least onerous conduct, this paper seeks to analyze how the inversion of the burden of proof is being used as a tactic to ascertain the purpose of the drug at the time of conviction for drug trafficking. Therefore, through a deductive method and bibliographical and documentary research, the text is divided into two chapters. The first one points out the debate, presenting a critical analysis of the motivations and consequences of the war on drugs, as well as discussing the Brazilian criminal procedural systemand the rule of distribution of the burden of proof. The second chapter analyzes in detail three previously selected criminal cases of the District of Florianópolis/SC previously selected because they exemplify the problem raised, that is, processes that, even though the doubt about the purpose of the drug is latent, is decided on the conviction for trafficking, seeking to demonstrate how the articulation of the reversal of the burden of proof appears in practice. Finally, it concludes by presenting the main lines of argument used to support the inversion of the burden of proof in the processes studied, highlighting the representation of structural prejudices of Brazil´s punitive system, as well as the instrumentalization of the criminal process to achieve political objectives of the war on drugs. Keywords: Reversal of the burden of proof; accusatory criminal proceedings; war on drugs; drug trafficking; possession of drugs for personal use. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Caso 1 ....................................................................................................... 40 Quadro 2 - Caso 1 SENTENÇA ................................................................................. 43 Quadro 3 - Caso 2 ....................................................................................................... 44 Quadro 4 - Caso 2 SENTENÇA ................................................................................. 47 Quadro 5 - Caso 3 ....................................................................................................... 48 Quadro 6 - Caso 3 SENTENÇA ................................................................................. 50 Quadro 7 - Circunstâncias do delito ........................................................................... 58 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 2 A DELIMITAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 28 E 33 DA LEI 11.343/06 E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA ...................... 14 2.1 Guerra às drogas e a lei 11.343/06: situando o debate ............................................... 14 2.2 Tráfico ou posse/porte de drogas para consumo pessoal: a diferenciação quanto a finalidade .................................................................................................................... 23 2.3 Sistema Acusatório e a indevida inversão do ônus da prova ..................................... 28 3 A APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ONUS DA PROVA EM SENTENÇAS CONDENATÓRIAS NA COMARCA DE FLORIANÓPOLIS/SC .................... 38 3.1 Apresentação dos processos selecionados para o estudo ........................................... 38 3.2 Análise dos elementos probatórios e argumentativos utilizados para embasar as sentenças ..................................................................................................................... 40 3.3 Articulação do “ônus da prova” para fundamentação da sentença ............................ 52 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 65 11 1 INTRODUÇÃO Com experiência de estágio em uma das varas criminais da Capital, defrontava-me diariamente com uma exagerada reprodução de processos quase idênticos. Flagrante, apreensão de drogas, prisão preventiva, conjunto probatório inteiramente baseado na palavra de policiais, fundamentações genéricas como “atitude suspeita” e “local conhecido pelo intenso tráfico de drogas”, condenação por tráfico. Não é difícil problematizar essa fórmula e perceber o quanto ela contribui com o encarceramento em massa, sobretudo, da população negra. O especial direcionamento das operações policiais para comunidades empobrecidas e marginalizadas em busca de flagrantes, o conceito abstrato de ordem pública como carta branca para prisões preventivas e a retórica da defesa da saúde pública fundamentando as condenações, todo o processo se mostra pautado muito mais na sua instrumentalização para a manutenção do poder do que na real tutela de bens jurídicos (RODRIGUES L., 2019). A atual Lei de Drogas, lei 11.343/06, na sua essência, não representa nenhuma ruptura com a base ideológica do modelo proibicionista já implementado pelas legislações anteriores, caracterizando-se pela forte repressão ao tráfico de drogas (CARVALHO, 2013, p. 140). Percebe-se, entretanto, um fortalecimento da “ideologia da diferenciação” (DEL OLMO, 1990), utilizando uma política de controle penal com relação ao tráfico e um sistema de redução de danos com relação ao consumo. Além disso, percebe-se, ainda, que para a diferenciação entre as condutas dos artigos 28 e 33, a lei optou por prever o dolo específico no delito menos gravoso (finalidade de consumo pessoal no art. 28), bem como não trouxe parâmetros claros para precisa delimitação entre as duas condutas. Essa situação gera uma tendência à aplicação da inversão do ônus da prova, incidindo sobre o acusado o dever de demonstrar a finalidade de consumo pessoal, quando o princípio da presunção de inocência atribui à acusação o ônus probatório no processo penal (CARVALHO, 2013, p. 324-325). Esta é a hipótese principal de que parte o trabalho. Considerando que a Constituição Federal de 1988 e a Lei 13.964/2019 evidenciam a escolha política pelo sistema processual penal acusatório, o qual delega à acusação o ônus probatório, torna-se necessário estudar como está ocorrendo a diferenciação entre as condutas na prática judicial, visto que essa muitas vezes não se coaduna com os princípios constitucionais. Dessa forma, a pesquisa se desenvolveu ao redor do seguinte problema: considerando que apurar a finalidade da droga é essencial para delimitar a tipificação da conduta 12 no artigo 33 ou no artigo 28 da lei 11.343/06, como é articulada a inversão do ônus da prova para fundamentar eventuais condenações por tráfico de drogas? De maneira geral, objetivou-se analisar como a indevida inversão do ônus da prova é utilizada como fundamentação na delimitação da conduta entre os referidos artigos. Para tanto, buscou-se investigar, no contexto da lei 11.343/06, os limites que separam as duas condutas; apresentar a crítica ao instituto da inversão do ônus da prova no processo penal; e por fim, analisar criticamente, a partir de processos previamente selecionados, como a inversão do ônus da prova foi articulada para fundamentar sentenças criminais envolvendo a lei 11.343/06. O método de abordagem utilizado foi o método dedutivo, tendo em vista que se partiu de premissas mais gerais para conclusões mais específicas. Já a técnica de pesquisa conjuga a pesquisa bibliográfica teórica com a análise de processos judiciais. Os processos foram selecionados por meio de busca na jurisprudência pelo site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, utilizando-se as palavras-chave “tráfico consumo desclassificação”, sendo escolhidos aqueles que melhor ilustravam o debate acerca da finalidade da droga entre consumo e comercialização. Em seguida, foi realizada consulta aos autos digitais dos processos, analisando os elementos probatórios produzidos e os argumentos e fundamentações da sentença. Assim, o desenvolvimento deste trabalho divide-se em dois capítulos. No primeiro, apresenta-se o panorama da guerra às drogas até a lei 11.343/06, problematizando tanto as motivações políticas e o contorno racial que construíram a proibição, como as consequências causadas pela sua implementação no Brasil. Em análise específica dos tipos penais das condutas de tráfico e posse de drogas para o consumo pessoal, expõe-se as dificuldades processuais para a correta delimitação da conduta decorrentesda sutil diferenciação entre elas na lei. Dessa forma, com esse capítulo intenta-se compreender os reais objetivos por trás da criminalização das drogas, para que se compreenda, também, a serviço de quem essa atua, e a quem serve essa dificuldade de separar, na prática o usuário do traficante. No segundo capítulo, faz-se uma análise detalhada de três processos criminais previamente selecionados pela controvérsia principal dos autos ser a finalidade da droga. Para tanto, inicia-se com um relato descritivo dos principais atos do processo, focando nos elementos de prova produzidos nos autos. Atingindo-se o fim da parte instrutória do processo, elenca-se os elementos produzidos e analisa-se sua capacidade de elucidar a controvérsia da destinação da droga. Por fim, procede-se com uma análise minuciosa da sentença, examinando-se de forma crítica cada fundamentação e argumentação utilizada para embasar a condenação por tráfico de 13 drogas. Assim, focando na presença ou não de elementos probatórios capazes de elucidar essa questão, investiga-se como foi articulada a inversão do ônus da prova na fundamentação dessas sentenças. 14 2 A DELIMITAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 28 E 33 DA LEI 11.343/06 E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA Como já foi aludido, o principal objetivo do presente trabalho é centrado em matéria bastante prática, buscando estudar como o fenômeno estudado acontece na práxis, entretanto, para evitar resultados vazios, é indispensável analisar o fenômeno dentro do contexto da guerra às drogas. Apesar de ser o tráfico de drogas e o seu combate um problema mais do que naturalizado atualmente, é preciso entender a proibição não como uma condição natural, mas sim como um modelo resultado de uma série de escolhas políticas guiadas pelos mais diversos interesses. É por esse motivo que, mesmo não tendo o presente trabalho um enfoque histórico, é necessário, antes de adentrarmos nos nuances que separam as condutas do traficante e do usuário, e de como ocorre a delimitação na prática, abordar o contexto do desenvolvimento do modelo proibicionista. Busca-se, com essa breve contextualização, o esclarecimento de que conjuntura atual se apresenta nessa situação não por acaso, mas por cumprimento de um programa pré-estabelecido. 2.1 GUERRA ÀS DROGAS E A LEI 11.343/06: SITUANDO O DEBATE A criminalização de certas substâncias alteradoras de consciência, mais conhecidas como drogas, é um fenômeno que vem percorrendo a história das sociedades humanas há algumas décadas. Por motivos mais econômicos e políticos do que ligados à saúde, as respostas sociais e as substâncias sujeitas a essas respostas variaram bastante ao longo do tempo. Como destaca Luciana Boiteux Rodrigues: O controle penal atual sobre as drogas tem por base a proibição do uso e da venda de substâncias rotuladas como “ilícitas”, por meio de um discurso de proteção da saúde pública e de intensificação da punição. Porém, essa distinção entre drogas lícitas e ilícitas deu-se por conveniência política, sem que houvesse conclusões médicas definitivas quanto à graduação e à avaliação concreta dos riscos de cada substância a ser controlada, ou mesmo sem que se tivesse proposto ou experimentado nenhum outro modelo intermediário, ou menos repressivo (RODRIGUES, L., 2006, p. 46). Esse modelo proibicionista, segundo a autora, adotado e imposto a todos os países pelas Nações Unidas presume a ideia, sem base empírica, de que a interdição de determinadas substâncias por meio de leis penais seria capaz de regular os gostos e o comportamento das pessoas em sociedade (RODRIGUES, L., 2006, p. 47). Além disso, deve-se destacar, dentre as demais críticas ao proibicionismo, o caráter autoritário desse modelo, que desconsidera a 15 complexidade de culturas variadas, e tenta impor os ideais de virtude e de moral de um determinado grupo a toda sociedade (RODRIGUES, L., 2006, p. 47). O marco inicial dessa história em escala internacional é 1909, quando a Liga das Nações – organização anterior à Organização das Nações Unidas – convoca e organiza uma conferência internacional, conhecida como Comissão de Xangai, para tratar sobre a questão do ópio (D´ELIA FILHO, 2007, p. 79). Orlando Zaccone D´Elia Filho destaca a motivação econômica e política por trás desta que foi uma iniciativa estadunidense, ao afirmar que, por mais que o discurso fosse um apelo moralista de retorno aos bons costumes, o real interesse político e econômico do país com a proibição do ópio era frear o desenvolvimento inglês (2007, p. 80). O autor explica, ainda, que de mesma natureza foram os motivos pelos quais a Inglaterra condicionou a sua participação na Convenção de Haia – realizada com o fim de ratificar a proibição estabelecida na Comissão de Xangai – à inclusão de outras substâncias na pauta do evento, atingindo, assim, substâncias como os derivados do ópio e a cocaína, e países como Alemanha, Holanda e França, que comercializavam a cocaína através da emergente indústria farmacêutica. O mesmo autor afirma que a diversidade de interesses fez com que cada país reagisse de uma forma diferente às resoluções proibitivas, mas foi nos EUA que a proibição se transformou, e ainda é, prioridade política, sempre mascarada pelo conservadorismo da moralidade e dos bons costumes. Sobre a repercussão da Convenção de Haia nos Estados Unidos, Thiago Rodrigues explica: O governo estadunidense utilizou, de forma estratégica, a assinatura do Convênio de Haia para pressionar o Congresso Nacional a adaptar as leis nacionais, consideradas pelo poder Executivo ainda frágeis e restritas. A tática era simples: nós (os EUA) ao nos comprometermos internacionalmente, iniciando novas normas sobre o controle de drogas, temos o dever de adequar nossas leis internas, tornando-as mais rígidas. Bem- sucedida, a manobra auxiliou na aprovação, em 1914, do Harrison Narcotic Act, lei mais complexa e severa que os acordos internacionais já assinados e que investia na proibição explícita de qualquer uso de psicoativos considerados sem finalidades médicas. Da Lei Harrison deve se mencionar uma importante novidade: o texto criava as figuras do traficante e do viciado, respectivamente aquele que produz e comercializa a drogas psicoativas irregularmente e aquele que consomo sem permissão médica. O traficante deveria ser preso e encarcerado; o usuário, considerado doente, deveria ser tratado (mesmo que compulsoriamente) (RODRIGUES, T., 2003, p. 30). Para compreendermos sob quais influências se desenvolveu a repressão às drogas internacionalmente, é bastante didático analisar o contexto do proibicionismo na experiência 16 estadunidense. Nessa é marcante a associação de determinadas drogas a determinados grupos sociais marginalizados, como o ópio aos chineses, a maconha aos mexicanos, a cocaína aos negros e o álcool aos irlandeses (RODRIGUES T., 2003). Esses estereótipos morais e médicos, bem como a proibição, sempre tiveram alvos muito bem delimitados, servindo como mais uma ferramenta para o Estado vigiar e controlar as classes por ele consideradas ameaças (D´ELIA FILHO, 2007). O controle sobre essas populações foi impulsionado nos anos seguintes, com a aprovação de leis como a Lei Seca em 1919 (revogada em 1933), o Marijuana Tax Act em 1937, o Boggs Act em 1951 e o Narcotics Control Act em 1956. Paralelamente a isso, internacionalmente, ocorre em 1936, a Conferência de Genebra, onde se impõe aos países signatários o modelo de dura repressão aplicado pelos Estados Unidos, obrigando, inclusive, a criação de departamentos estatais próprios para o combate ao tráfico de drogas. Essa geopolítica da droga que se desenvolve a partir da política internacional de proibição, assim como na questão interna de cada país, vai ser utilizada pelos países dominantes como ferramenta de controlesobre os demais (D´ELIA FILHO, 2007). Já no decurso da década de 1960, em conjunto com o contexto de efervescência política da “contracultura”, ocorre a expansão da indústria farmacêutica nos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos. Surgem o LSD e outras drogas psicodélicas e o aumento do consumo da maconha, ultrapassando as barreiras dos guetos e periferias e passando a alcançar jovens de classe média e alta (DEL OLMO, 1990). Essa difusão do consumo de drogas para as classes mais altas da sociedade tem um importante papel no estabelecimento do modelo médico-sanitário, deixando de tratar o consumo de drogas como crime e passando a considerá-lo como dependência, em consequência, seus consumidores como vítimas. Internacionalmente, essa mudança de modelo pode ser percebida na Convenção Única sobre Estupefacientes realizada em 1961, que reforça a ideologia de diferenciação a partir de um modelo médico-jurídico que se caracteriza por distinguir o traficante como criminoso e o consumidor como doente. Sobre esta mudança, Rosa Del Olmo explica: O problema da droga se apresentava como uma “luta entre o bem e o mal”, continuando o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfis de “demônio”; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos “vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o fato do discurso jurídico enfatizar na época o estereótipo criminoso, para determinar as responsabilidades, sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria visto como incitador ao consumo, o chamado pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo como “delinquente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria 17 qualificado de “doente” graças a difusão do estereótipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo médico- sanitário (DEL OLMO, 1990, p. 34). Durante a década de 1970, o discurso médico-jurídico sobrepõe o discurso moral, considerando que era impossível aceitar que tantos jovens fossem desprovidos de virtudes. Com e a explosão de movimentos de lei e ordem e a declaração de guerra às drogas, o tráfico de drogas e a figura do traficante passam a ser vistos como inimigo interno (D´ELIA FILHO, 2007). No mesmo sentido versa Rosa Del Olmo: O consumo de drogas não podia ser visto como uma simples “subcultura”, a droga e seus protagonistas haviam mudado. Tinha de ser visto como um “vírus contagioso”. A maconha coletivizava o consumo a ser usada em ato público, compartilhado e comunitário. Deve se lembrar, por exemplo, dos hippies e do consumo maciço de maconha nos festivais de música ao ar livre como o famoso festival de Woodstock. Era a arma por excelência que os jovens haviam encontrado para responder ao desafio da ordem vigente nos países desenvolvidos. Não é estranho então que se começasse a falar de droga em matéria de segurança, como inimigo interno (DEL OLMO, 1990, p. 34). No contexto brasileiro, o caminho percorrido pela proibição das drogas não foi muito distinto. Também subscrito da Convenção de Haia o Brasil confirmou sua adesão à proibição com a incriminação do ópio, morfina e cocaína nos Decretos nº 2.861 de 1914 e 11.481 de 1915. Anos mais tarde, veio o Decreto 20.930 de 1932, alterado pelo Decreto 24.505 de 1934, revogado pelo Decreto-Lei 891 de 1938, que conduziria ao artigo 281 do Código Penal de 1940. Conforme narra Roberta Pedrinha, “a alternância de decretos na década de 30 reverbera as sucessivas tendências das Convenções Internacionais, como a de Haia (1912) e as de Genebra (1925, 1931 e 1936), que confirmaram a influência sofrida pelo Brasil” (2008, p. 5490). Uma distinção que deve ser apontada, entretanto, é esta feita por Luciana Boiteux acerca do início do movimento pela proibição das drogas no Brasil. De forma um pouco diferente do que aconteceu nos EUA onde a criminalização do uso e do comércio de drogas decorreu de uma “ação preventiva” promovida por grupos específicos, em especial juristas, políticos e religiosos que ficaram à frente da política proibicionista, no Brasil o grupo que mais pressionou pelo controle penal das drogas foi marcadamente o dos médicos legistas e psiquiatras (RODRIGUES, L., 2006, p. 135-136). Avançando um pouco no tempo, após três anos de vigência do Decreto-lei 385/68, que equiparava as sanções aplicadas aos traficantes e consumidores, a lei 5.726/71 fez com que 18 o Brasil incorporasse de vez o modelo médico-jurídico, deixando de tratar os consumidores como criminosos (D´ELIA FILHO, 2007). Entretanto, a real aplicação desta “ideologia da diferenciação” nunca seria possível no cone sul, tendo em vista a falta de recursos e investimentos necessários para o tratamento médico dos usuários. A importação dessa ideologia, sem as devidas adaptações à realidade socioeconômica e cultural latino-americana, serviu apenas para definir estereótipos (DEL OLMO, 1990, p. 35). A autora continua: [...] tudo dependia na América Latina de quem a consumia. Se eram os habitantes de favelas, seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornava agressivos. Se eram “meninos de bem”, a droga os tornava apáticos. Daí que aos habitantes das favelas fosse aplicado o estereótipo criminoso e fossem condenados a severas penas de prisão por traficância, apesar de só levarem consigo um par de cigarros; em troca, os “meninos de bem”, que cultivavam a planta em sua própria casa, como aconteceu em inúmeras ocasiões, eram mandados para alguma clínica particular para em seguida serem enviados aos Estados Unidos porque eram “doentes” e seriam sujeitos à tratamento, de acordo com o discurso médico tão em moda (DEL OLMO, 1990, p. 46). Luciana Boiteux Rodrigues (2006, p. 134), da mesma forma, aponta para essa dificuldade em países em desenvolvimento. Afirma a autora que o controle penal das drogas no Brasil, país onde a polícia é violenta e corrupta, o serviço de saúde pública precarizado, e o sistema penitenciário lotado, apenas reforçaram esses problemas nacionais. No plano internacional, processos importantes impulsionavam uma mudança de comportamento com relação às drogas. Para Rosa Del Olmo (1990) a Guerra do Vietnã e o alto consumo de heroína dos militares e ex-combatentes norte-americanos contribuíram para a substituição do “inimigo interno” representado pelo tráfico para um “inimigo externo” personalizado na figura dos países asiáticos e sul-americanos produtores. Esse discurso, segundo Thiago Rodrigues (2003), aceita oficialmente a divisão dos países entre produtores de drogas ilícitas e consumidores, ou seja, assim como a mesma diferenciação feita na política criminal interna, entre agressores e vítimas. Isso faz com que os países que se denominam como vítimas passem a tratar a questão das drogas como questão de segurança nacional, resultando, inclusive, na declaração do então presidente Richard Nixon identificando os psicoativos ilícitos como inimigo nº 1 da América e declarando guerra às drogas em 1971. Sobre a década de 1980, Orlando Zaccone D´Elia Filho afirma: Paralelamente à ascensão do “narcotráfico”, o socialismo dava sinais de falência no início dos anos 80, assim como as ditaduras militares latino-americanas apoiadas 19 pelos EUA. A ideologia da Segurança Nacional, surgida no período pós-Segunda Guerra Mundial, quando o mundo ficou dividido em dois “blocos”, estava ameaçada. Como justificar a intervenção americana no plano internacional com o fim do comunismo? (D´ELIA FILHO, 2007, p. 95). Conforme explica Thiago Rodrigues (2003, p. 73), a nova ameaça utilizada pelo governo norte-americano para preencher o vazio deixadopelo discurso da ameaça comunista, é o narcotráfico, justificando, assim, a continuidade da sua intervenção no plano internacional. Esse novo modelo repressivo-bélico de abordar a questão das drogas, fortalecidos pelos Movimentos de Lei e Ordem, quando aplicado na América Latina, estabeleceu sistemas penais potencialmente genocidas, onde o traficante de drogas se torna o inimigo público número um, ao mesmo tempo em que a seletividade punitiva continua a atuar com os mesmos estereótipos para definir quem são os traficantes e quem são os consumidores (D´ELIA FILHO, 2007). Importante perceber o papel dessa união entre a “ideologia da diferenciação” e a aplicação desses estereótipos no sistema penal referente às drogas para a seletividade punitiva. Dessa maneira, ainda que o consumo de drogas tenha atingido todas as classes sociais, utilizando-se dessa diferenciação a brutalidade punitiva poderia continuar atingindo somente as populações marginalizadas. Por isso, uma legislação que não estabelece critérios bem definidos sobre como diferenciar a figura do traficante do consumidor está sempre sujeita a ser utilizada como mais um instrumento para a concretização da seletividade do sistema. Quanto a problemática dessa seletividade, Orlando Zaccone D´Elia Filho discorre: A posição precária no mercado de trabalho, as deficiências de socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, presentes entre os que ocupam uma posição inferior na sociedade, são, não como se costuma apontar, causas da criminalidade, mas sim características desfavoráveis, que, identificando seus portadores com o estereótipo do criminoso, terão influência determinante naquele processo de seleção dos que vão desempenhar o papel de criminosos (D´ELIA FILHO, 2007). Considerando que esses estereótipos atuam no imaginário de toda população, incluindo-se aqueles que têm o cumprimento da lei penal como ofício, sua aplicação se torna ainda mais escancarada em situações em que a lei deixa grande margem para a discricionariedade desses agentes. Sobre uma dessas situações, de diferenciação entre traficante e usuário, desenvolve Maria Lúcia Karam: No caso de crimes relativos a drogas, o peso destas características aparece claramente, inclusive no que se refere à distinção entre consumidor e traficante. É comum encontrar casos em que a única “prova” do tráfico é o desemprego ou subemprego daquele que é surpreendido na posse de drogas, visto como naturalmente traficante, 20 por se supor que, estando desempregado ou subempregado, não teria condições de adquirir a substância para uso pessoal (KARAM, 1991, p. 58). No Brasil, durante esse período, ocorrem movimentos importantes ligados ao direito penal que resultam em mudanças legislativas igualmente relevantes. Em 1984, a Reforma Penal altera significativamente a parte geral do Código Penal de 1940, bem como edita a Lei de Execuções Penais (7.210/84) (RODRIGUES, L., 2006, p. 154). Quatro anos mais tarde, é promulgada a Constituição Democrática de 1988, marcada pelo extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Entretanto, paradoxalmente, no mesmo contexto desses importantes marcos para uma política penal considerada liberal, é possível notar, também, um movimento de endurecimento das penas associadas a legislação de drogas (RODRIGUES, L., 2006, p. 154). Como resultado de tal movimento, pode-se destacar a introdução do conceito de crime hediondo no texto constitucional e a própria Lei dos Crimes Hediondos, lei 8.072/90, a qual equipara o crime de tráfico de drogas a esta categoria. Sobre o período discorre Luciana Boiteux Rodrigues: Nesse momento histórico, o endurecimento do sistema penal não mais possuía a característica observada nos regimes ditatoriais, tendo se moldado aos novos tempos e adotado uma nova roupagem, ao fundar sua tática autoritária na “ideologia da segurança urbana” (RODRIGUES, L., 2006, p. 155). Quanto às drogas, a legislação sobre o assunto, desde a revogada lei 6.368/76 até a edição da lei 11.343/06, demonstra o fortalecimento da “ideologia de diferenciação”, sendo que não só fica evidente na distinção das condutas previstas para os consumidores e traficantes, mas também no distanciamento cada vez maior entre as sanções previstas para essas condutas (D´ELIA FILHO, 2007). Enquanto o tráfico hoje é crime equiparado a crime hediondo, a posse de drogas para consumo pessoal é considerada infração de menor potencial ofensivo, não mais sujeita à pena privativa de liberdade. Sobre a lei 11.343/06, afirma Rachel Pilati: A análise da Lei 11.343/06 permite auferir o recrudescimento da repressão ao crime de tráfico de drogas. A pena mínima do crime de tráfico (art. 33 da Lei 11.343/06) foi aumentada de 03 para 05 anos de reclusão. Tendo em vista a existência de qualificadoras, a reprimenda provavelmente será fixada acima do mínimo legal de 05 anos. E o caput do artigo 33, por sua vez, tipificou os verbos “transportar” e “expedir”, que caracterizam apenas o início da execução. Isso impede a distinção entre tentativa e consumação: os vários verbos que configuram o tráfico impedem que exista a tentativa (PILATI, 2011, p. 84) Com o endurecimento da legislação, as consequências da escolha pelo modelo proibicionista, que já podiam ser percebidas nos números da população carcerária do Brasil, refletem a mesma intensificação. Conforme dados do Infopen de 2015 (BRASIL, 2017), entre 21 os quatro países com a maior população carcerária do mundo – Estados Unidos, Brasil, China e Rússia, respectivamente – o Brasil foi o que mais aumentou a sua taxa de aprisionamento nos anos entre 1995 e 2015. O país registrou um aumento de 258%, passando de 95 para 342 o número de pessoas presas para cada 100 mil habitantes, enquanto os Estados Unidos, segundo maior aumento, registraram uma alteração de apenas 18% no mesmo período. O impacto dos delitos relacionados a drogas na realidade carcerária nacional é sensível. Ainda de acordo com o relatório do Infopen de 2015: Ao analisarmos a distribuição de crimes ao longo da história do levantamento do Infopen, verifica-se expressivo aumento no número absoluto de pessoas presas acusadas ou condenadas por crimes ligados ao tráfico de drogas, sendo que a incidência deste tipo penal cresceu 447% entre os anos de 2005 e 2015 no Brasil. No mesmo período, o número de incidências ligadas aos crimes de homicídio simples e qualificado cresceu 158% (BRASIL, 2017). Analisando a distribuição das pessoas privadas de liberdade por tipo penal, percebe- se que o conjunto de crimes relacionados a tráfico de drogas representava, em 2015, 26% entre os homens e 63% entre as mulheres (BRASIL, 2017). Apenas dois anos mais tarde, em 2017, já é possível notar o aumento dessas porcentagens, sendo 29,26% entre os homens e 64,48% entre as mulheres (BRASIL, 2019). Para correta análise do fenômeno do encarceramento em massa no Brasil, é imprescindível fazer certos recortes como o de gênero, classe e raça, visto que intimamente interligados entre si e com o fenômeno discutido. Como os dados citado acima apontam, não escapa aos olhos a enorme representatividade dos delitos de tráfico de drogas entre as mulheres privadas de liberdade. Isso ocorre devido ao fato da divisão de gênero, que não se limitando ao âmbito do mercado formal, operar da mesma maneira na organização do tráfico, conforme aponta Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (2018). Logo, pelo fato de as mulheres ocuparem, majoritariamente, posições periféricas ou subsidiárias na estrutura do tráfico, estariam mais vulneráveis à criminalização, visto que a coerção estatal tem mais alcance sobre esse estrato da hierarquia (SOARES; ILGENFRITZ, 2002). Como indicativo de classe, registra-se que 51,3% da população carcerária possui o Ensino Fundamental incompleto (BRASIL, 2019, p. 34). Os dados evidenciam, damesma forma, o direcionamento racial desse encarceramento. O racismo estrutural1 se mostra constantemente como um fator determinante na justiça criminal brasileira. De acordo com dados do Infopen de 2017, pessoas negras e pardas 1 De acordo com Silvio Almeida (2019, p. 31-33), a concepção estrutural do racismo se caracteriza pelo entendimento de que esse é um componente orgânico da estrutura social, materializando-se através do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. 22 representam 63,64% da população presa (17,37% negros e 46,27 pardos), enquanto 35,48% são brancos. A proporção de toda a população do Brasil, na mesma época, se mostra diferente, onde negros e pardos representam 55,4% e brancos 43,6% (BRASIL, 2019). Percebe-se, que o direcionamento aqui retratado, é apenas o reflexo do racismo que atua de maneira a estruturar as relações institucionais. Ao reconhecer a população negra como suspeita, todo o aparato vigilante do Estado se dirige a esse grupo, resultando em mais abordagens, mais flagrantes, mais investigações, mais processos e, por fim, mais condenações. Nessa linha apontam Sinhoretto et al: Além da produção da desigualdade racial nos resultados da letalidade policial, a pesquisa constatou ainda que a vigilância policial é operada de modo racializado. Os dados sobre as prisões em flagrante indicam que a maioria dos presos é composta de negros. Em Minas Gerais e São Paulo, a taxa de flagrantes de negros é mais que o dobro da verificada para brancos. Estes dados expressam que a vigilância policial privilegia as pessoas negras e as reconhece como suspeitos criminais, flagrando em maior intensidade as suas condutas ilegais, ao passo que os brancos gozam de menor vigilância da polícia para suas atividades criminais. A filtragem racial está entranhada nas próprias estratégias do policiamento (SINHORETTO et al., 2014, p. 152). Ainda mais grave, a filtragem racial se manifesta da mesma forma nos casos que sequer chegam ao judiciário, ou seja, nos casos em que a ação policial, ao invés de resultar em flagrante, resulta em morte: Comparando-se as taxas de letalidade policial dentro de cada grupo de cor/raça das vítimas, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (onde foi possível a obtenção de dados), a desproporção entre vítimas brancas e negras foi constatada em todos os locais. Nos estados em que há maiores taxas de letalidade policial (Rio de Janeiro e São Paulo), a discrepância entre negros e brancos mortos é ainda maior. Quanto maior o número de mortes produzidas pela atividade policial, mais evidente a filtragem racial de negros se torna, especialmente entre os jovens (SINHORETTO et al., 2014, p. 152). Desse modo, assim como o modelo proibicionista intensifica o encarceramento em massa da população, o aparato da guerra às drogas potencializa, da mesma forma, a atuação racista das políticas de repressão e do controle social (RODRIGUES, L., 2019). Nesse sentido, a lei 11.343/06 vem não só como símbolo de continuidade desse sistema, mas também como um fortalecimento do da ideologia aplicada até então. Conforme destaca Luciana Boiteux (2019): A tragédia do racismo se fortalece com a proibição e ainda se alimenta da farsa da guerra às drogas, que reproduz a lógica escravocrata de imposição de dor e de sofrimento e de negação ao direito de existência digna à população negra. Por isso se diz que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. A guerra às drogas é uma guerra contra pessoas, mas não contra todas, é uma guerra contra negros e negras, para os quais a única política social disponível é a política penal e a violência de Estado (RODRIGUES, L., 2019). 23 Um dos pontos sensíveis da lei em comento, no qual se destaca esse especial direcionamento da política penal, é, justamente, a diferenciação entre traficante e usuário. Por ser questão bastante nebulosa, tanto na lei, quanto na práxis, e permeada por grande discricionariedade dos policiais e dos juízes, fica evidente a materialização dos grupos alvos do encarceramento e da guerra às drogas. Como aponta Juliana Borges (2019, p. 66), aspectos sociais, políticos, territoriais, raciais e de gênero possuem total influência no momento de diferenciar os sujeitos entre traficantes ou consumidores perante o sistema de justiça penal. 2.2 TRÁFICO OU POSSE/PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL: A DIFERENCIAÇÃO QUANTO À FINALIDADE A lei 11.343/06, no artigo 1º, institui o SISNAD (Sistema Nacional de políticas Públicas sobre Drogas), e no artigo 4º traz os princípios pelos quais este será guiado, dos quais se destaca o inciso I: “o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade;”. Dessa lei, importam para o presente estudo os artigos 28 e 33, os quais preveem os crimes de porte ou posse de drogas para consumo pessoal e tráfico de drogas respectivamente. Dispõe o artigo 28: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Mais adiante, ainda na lei 11.343/06, dispõe o artigo 33: Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. Trata-se aqui de tipos penais mistos alternativos, visto que preveem diversas condutas, sendo que a prática de qualquer uma delas já consuma o crime, cujo bem jurídico que se busca tutelar, em ambos, é a saúde pública, uma vez que se intenta evitar a circulação e disseminação das drogas (CARVALHO, 2013). Thiago Augusto Carvalho 24 Sobre a comparação destes dois tipos penais devem ser feitos três apontamentos. O primeiro é a materialização da ideologia da diferenciação (DEL OLMO, 1990), tendo em vista a enorme diferença entre as penas previstas para cada conduta, 5 a 15 anos para o tráfico e apenas penas restritivas de direitos para o crime de porte ou posse para consumo pessoal. Não apenas nas penas, as duas condutas se distanciam também nas categorias de delitos nas quais são classificadas. Enquanto o tráfico é crime equiparado a crime hediondo, o delito de posse ou porte para consumo é infração de menor potencial ofensivo, distinção essa que possui uma série de implicações quanto a restrições de direitos e benefícios na execução da pena. O segundo é a ausência de tipos penais intermediários com graduações de sanções proporcionais à lesão do bem jurídico tutelado. Como aponta Salo de Carvalho (2013, p. 320), é possível visualizar que os verbos nucleares do art. 33 importar, exportar, remeter, produzir, fabricar, vender e expor à venda significam um potencial lesivo consideravelmente maior quando comparados com os verbos adquirir, oferecer, preparar fornecer gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar e entregar a consumo. Entretanto, independentemente do distinto potencial lesivo, a pena cominada é a mesma, 05 a 15 nos. Assim, discorre o autor: [...] entre o mínimo e o máximo da resposta penal verifica-se a existência de zona cinzenta intermediária cuja tendência, em decorrência dos vícios advindos do dogmatismo jurídico e da expansão do senso comum punitivo, é a de projetar a subsunção de condutasdúbias em alguma das inúmeras ações puníveis presentes nos 18 (dezoito) verbos nucleares integrantes do tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas, assim como foi a tradição incriminadora durante o longo período de vigência da Lei 6.368/76 (CARVALHO, 2013, p. 315). Conforme Luciana Boiteux (2006, p. 163), ao ampliar o distanciamento entre as respostas penais, amplia-se, também o grande fosso entre as camadas mais altas e mais baixas da população. Para os viciados que traficam para conseguir manter o seu vício, pertencentes aos estratos mais desfavoráveis da sociedade, a resposta é prisão fechada. Para os usuários que possuem condições de comprar droga sem traficar, a despenalização. O terceiro apontamento, no qual deve ser posto especial atenção, é que as condutas típicas dos dois artigos, ou seja, os verbos que integram a definição do crime, possuem absoluta correlação. De fato, todos os cinco verbos que caracterizam o art. 28 – adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo – estão também previstos no art. 33. É devido justamente a essa similaridade entre as elementares objetivas dos crimes que, nos casos em que a conduta praticada esteja presente em ambos os tipos penais, os limites entre um delito e outro estão colocados no campo da elementar subjetiva, ou seja, o dolo específico (CARVALHO, 2013, p. 317). Entretanto, a legislação optou por trazer o dolo 25 específico, a finalidade especial de agir, somente no art. 28, no delito de porte ou posse para consumo, enquanto para o art. 33, delito de tráfico de drogas, basta o dolo genérico. Dessta maneira, conforme bem aponta Salo de Carvalho (2013, p. 319), para a caracterização do segundo basta a prática de qualquer um dos verbos presentes no caput, pouco importando a finalidade; enquanto para a caracterização do primeiro, é necessário que a prática dos verbos previstos tenha a finalidade específica de consumo pessoal comprovada. Essa escolha por posicionar a elementar subjetiva no delito menos gravoso, favorece que, na prática, venha a ocorrer uma inversão do ônus da prova, uma vez que, para não configurar o crime de tráfico, recai sobre o réu a responsabilidade de comprovar que a sua finalidade na atuação era a de consumo pessoal, enquanto o correto seria que fosse distribuído à acusação o ônus de demonstrar que a ação do acusado possuía outra finalidade, que não direcionada a seu uso próprio. O mesmo diploma legal traz no § 2º do art. 28 os critérios a serem observados pelo juiz a fim de determinar se destinação da droga era à de consumo pessoal ou não. § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Como se pode perceber, foi adotado um modelo discricionário, onde o julgador possui uma gama de critérios para fazer a valoração da forma como bem entender, sem estar sujeito a fatores determinantes. Ocorre que essa discricionariedade concedida ao juiz, desacompanhada do devido cumprimento do ônus argumentativo, possibilita decisões verdadeiramente arbitrárias no tocante a diferenciação entre traficante e consumidor, onde fica evidente os preconceitos e a seletividade intrínseca ao sistema penal brasileiro (DINU; MELLO, 2017, p. 197). Conforme consta em publicação do Projeto Pensando o Direito do Ministério da Justiça: O tipo penal do tráfico qualifica-se como tipo aberto, estabelece penas desproporcionais e não diferencia as diversas categorias de comerciantes de drogas observadas na realidade social. Além disso, a Lei não é clara quanto à distinção entre a tipificação do uso e do tráfico, e o resultado disso é que o Poder Judiciário, além de aplicar uma Lei punitiva e desproporcional, concede amplos poderes ao policial que primeiro tem contato com a situação. A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do Judiciário. Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes (BRASIL, 2009, p. 107-108). 26 De fato, a problemática dessa discricionariedade dada aos agentes de segurança pública no Brasil vem sendo apontada por diversos estudos. Marcelo da Silveira Campos (2015, p. 185) destaca que o processo de atribuição pelos agentes policiais da qualidade de “suspeito” a um sujeito antes da abordagem baseia-se em estereótipos e estigmas geralmente submetidos à pobreza urbana. Essa capacidade que os policiais declaram adquirir junto com a experiência no trabalho, é chamada por eles de “tirocínio policial”, e se define pela eficácia da intuição de um policial experiente na identificação de um suspeito (DUARTE et al., 2014). Sobre esse subjetivismo os autores afirmam: O subjetivismo nas abordagens policiais de suspeitos não pode ser, simplesmente, identificado com um “tirocínio” que consegue de modo refinado e intuitivo perceber suspeitos. Ao invés disso, o subjetivismo relaciona-se com um amplo espaço de discricionariedade que permite ao policial errar várias vezes, fazendo inúmeras abordagens, até que consiga alcançar seu “objetivo” e, ao mesmo tempo, com um conjunto de informações que confirmam e reforçam estereótipos sociais sobre grupos sociais e lugares. Ainda que a pesquisa não seja conclusiva, a referência aos sinais exteriores de pertencimento à dada classe social e a dado grupo raça/cor como critérios de suspeição surgem do conjunto da análise, inclusive da leitura qualitativa de alguns processos que não foram referidos neste texto. Preconceitos raciais e econômicos não são excludentes, assim como não são preconceitos raciais e de gênero. Porém, no contexto do sistema penal, a identificação entre criminalidade e negritude parece ter um sentido demasiado forte em nossos padrões culturais e, ao mesmo tempo, um impacto muito grande no cotidiano das pessoas identificadas socialmente como negras (pretas ou pardas) (DUARTE et al., 2014, p. 115-116). Diante desse panorama, conceder a discricionariedade de determinar se a conduta era de tráfico ou de porte para o consumo pessoal aos agentes policiais, como ocorre na prática, significa ceder mais espaço para a atuação desses filtros da seletividade penal. Acreditar que os indivíduos que atuam e representam um sistema carregado de preconceitos para com a população negra e marginalizada seriam capazes de fazer a distinção entre as condutas de maneira diversa seria negar os dados apresentados pela realidade. Ainda que a capitulação do flagrante como tráfico de drogas não impeça a futura desclassificação para a conduta de porte para consumo, visto que não vincula o promotor nem o juiz, a prática evidencia o peso da tipificação feita pelos policiais. Como afirma Luciana Boiteux: Outra característica da aplicação da pena por tráfico no Rio é a ausência de controle judicial efetivo sobre a tipificação, pois é a polícia, no momento da prisão em flagrante, que define quem é traficante. São raros os casos em que há desclassificação para o delito de posse de drogas. Ou seja, tanto o Ministério Público como os juízes chancelam a atuação policial, embora, pelas características encontradas nos processos, possamos afirmar que muitos dos condenados como traficantes devem ser, na realidade, usuários pobres moradores de favelas confundidos como traficantes (RODRIGUES, L., 2015). 27 Ademais, a autora destaca, ainda, que a relevância da atuação dos policiais responsáveis pela abordagem não se limita apenas à tipificação do flagrante, mas esses possuem papel central também na instrução criminal que segue. Com efeito, o que a prática e as pesquisas atestam, é que, em processosde tráfico, é bastante comum que todo o conjunto probatório esteja baseado na palavra dos policiais, tanto na fase inquisitorial, quanto na fase judicial. Luciana Boiteux discorre: De acordo com a análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arroladas na denúncia. Por outro lado, os juízes, de forma repetitiva, baseiam-se apenas nas palavras do policial para condenar o acusado. O baixo número de absolvições em primeira instância também comprova essa tese (RODRIGUES, L., 2015). Em números, pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana verificou a mesma situação. Aponta a pesquisa que em 94,95% dos casos relacionados a drogas analisados ocorreu o depoimento de algum agente de segurança pública. Ainda, considerando os casos em que os agentes de segurança pública eram os únicos a prestar depoimento nos autos, alcançou-se a porcentagem de 62,33% (HABER; MACIEL, 2018). Essa discricionariedade permeada por discriminações estruturais aparece igualmente em todo sistema de justiça criminal, sendo bastante evidente, sobretudo, nas decisões judiciais. Conforme pesquisa realizada no estado de São Paulo, que analisou mais de 20 mil sentenças de primeiro grau para tráfico de drogas proferidas em 2017, em 49 das 50 comarcas com mais de 100 julgados a proporção de sentenciados negros em relação aos brancos foi maior que a proporção entre negros e brancos nos municípios (DOMENICI; BARCELOS, 2018). Na cidade de São Paulo, por exemplo, o estudo apontou que enquanto a proporção da população do município é de 37% negros e 61% brancos, a proporção entre os julgados por tráfico é praticamente invertida, 63,6% eram negros e 36,4% eram brancos (DOMENICI; BARCELOS, 2019). Da mesma forma, o mesmo estudo realizado na cidade de São Paulo também aponta para o fato de a população negra ser processada, em média, com quantidades menores de drogas: Entre os réus brancos foram apreendidas, na mediana, 85 gramas de maconha, 27 gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o réu é negro, a medida é inferior nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de crack (DOMENICI; BARCELOS, 2019). 28 Assim, considerando, a similaridade entre os tipos penais – art. 28 e art. 33 da lei 11.343/06 –, a imprecisão dos critérios trazidos pelo § 2º do art. 28 e a problemática dos filtros aplicados à discricionariedade dos atuantes do sistema penal, analisar os princípios pelos quais essa tomada de decisão deve ser guiada é mais do que necessário. 2.3 SISTEMA ACUSATÓRIO E A INDEVIDA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA Já elencadas as implicações da guerra às drogas e do direcionamento seletivo do sistema punitivo, é patente a problematicidade da arbitrariedade nessa importante diferenciação das condutas de tráfico e consumo pessoal. O problema se torna ainda mais sério quando se percebe o verdadeiro abismo entre os tratamentos penais dados ao traficante e ao usuário e que toda a distinção entre uma conduta e outra está sujeita à incerta demonstração da subjetividade da finalidade da droga. Desse modo, esclarecer as diretrizes que devem ser seguidas pelo julgador/julgadora no momento da decisão é essencial para a proteção dos direitos fundamentais dos acusados. Conforme afirma Salo de Carvalho: Se absolutamente diferenciadas as sanções e os tratamentos penal, processual penal e penitenciário dos crimes de tráfico e porte para o consumo, necessário definir chaves de interpretação constitucionais que permitam caracterizar, com o mínimo de precisão possível, tais desvios puníveis, intentando reduzir os custos e os danos causados pela vagueza da estrutura criminalizadora (CARVALHO, 2013, p. 315). Assim, para a definição dessas chaves de interpretação, atenta-se para o sistema constitucional e processual penal brasileiro. Segundo Camilin Poli (2019, p. 329), é possível definir o processo penal como um conjunto de atos preordenados, no qual se busca a reconstituição de um fato, por meio de provas, com a finalidade do acertamento do caso penal. Ao definir o processo dessa forma, logo se nota a importância da reconstituição do fato e, consequentemente, das provas para a formatação do processo, visto que esse vai se construir a partir delas. Assim, afirma a autora: “Desde esse ponto de vista, sistema processual e iniciativa probatória estão indissociavelmente vinculados” (POLI, 2019, p. 329). Desse modo, no sistema inquisitório, a figura do julgador/julgadora reúne em si duas funções diferentes, a de julgar e a de acusar, sendo sua a iniciativa probatória, marcada pela busca da verdade (POLI, 2019). Assim, pode-se dizer que ao julgador/julgadora é dado o papel de protagonista na relação processual, enquanto as partes possuem uma atuação secundária. Nesse sentido explica Jacinto Coutinho: 29 Excluídas as partes, no processo inquisitório o réu vira um pecador, logo, detentor de uma “verdade” a ser extraída. Mais importante, aparentemente, que o próprio crime, torna-se ele objeto de investigação. É sobre si que recaem as atenções, os esforços do inquisidor. Dententor da “verdade”, dela deve dar conta. Eis a razão por que a tortura ganhou a importância que ganhou, e a confissão virou regina probationum (COUTINHO, 2009, p. 105) (grifos no original). Com o olhar que se tem sobre o processo penal na atualidade, mesmo superando o emprego da tortura, é bastante fácil, agora, notar a problemática por trás desse sistema. Ao conceber a produção de provas, ponto central como destacado acima, de maneira unilateral e centrada na pessoa do julgador/julgadora, fica evidente que o resultado será certamente contaminado pela parcialidade desse que possui o papel principal no processo. Como destaca Camilin Poli (2019): “quem procura quer encontrar algo, vez que se não busca pelo que se não deseja”, é inquestionável a conclusão de que a produção de provas será completamente voltada apenas para a confirmação da hipótese inicial do julgador/julgadora. Salientando a utilidade desse sistema para aqueles que estão no poder, Jacinto Coutinho alude: Ao permitir – sobremaneira – que se manipule as premissas (jurídicas e fáticas), interessa e sempre interessou aos regimes de força, às ditaduras, aos senhores do poder. Podendo-se orientar o êxito, faz-se o que quiser. É o reino do solipsismo, por excelência. Daí ter durado por tanto tempo; e seguir intacto, em muitos pontos, ainda que os novos tempos, pela realidade, duramente o tenham atingido, mormente por lhe desmascarar o falso discurso (COUTINHO, 2009, p. 106). O sistema acusatório, por outro lado, guiado pelo princípio dispositivo, constrói-se a partir de funções bem divididas. A acusação compete a tarefa de acusar e produzir provas acerca da responsabilidade penal do acusado/acusada; a Defesa compete a tarefa de exercer a defesa técnica, empenhar para o respeito aos direitos do acusado/acusada e produzir as provas que achar necessárias; e ao julgador/julgadora compete a tarefa de valorar as provas e teses apresentadas e julgar o caso de maneira imparcial (POLI, 2019, p. 332). Geraldo Prado, na mesma linha, destaca o caráter antagônico entre os sistemas: A construção teórica do princípio acusatório há de consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as diferenças devem ser extraídas. Assim, se na estrutura inquisitória o juiz “acusa”, na acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro do processo, cuidando de preservara nota de imparcialidade que deve marcar a sua atuação (PRADO, 2005, p. 174-175). O mesmo autor expõe que a diferença entre os dois sistemas também se dá, também na finalidade do processo. O processo inquisitório era construído a partir da função primordial de realizar o direito penal material, ou seja, para concretizar o poder punitivo, por isso o 30 juiz/juíza exercia encargo de segurança pública (PRADO, 2005, p. 173). Entretanto, percebe- se que tal entendimento não se coaduna mais com a finalidade atribuída ao processo penal atualmente. Trata-se, na contemporaneidade, “de assegurar que o exercício legítimo do poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja implementado de acordo com princípios éticos adotados expressa ou implicitamente na Carta Constitucional” (PRADO, 2005, p. 27). Dessa forma, o vínculo entre direito, processo e democracia é essencial para a fixação de validade das normas jurídicas pelas quais se estrutura o sistema processual. Em relação ao sistema penal, esta ligação é especialmente importante, visto que só um poder enraizado na soberania popular e limitado constitucionalmente teria legitimidade para afetar tão duramente a vida de uma pessoa (PRADO, 2005, p. 27). Nessa perspectiva afirma o autor: O processo assim, em um Estado democrático e, principalmente, em uma sociedade também democrática, revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não da ação isolada de um só, ainda que este um — mesmo sendo o juiz — atue informado pela disposição de encontrar a solução mais justa, ou, dito com outras palavras, apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este um atue para o povo (PRADO, 2005, p. 70). Por esse motivo, a mudança de paradigma com relação à função do processo penal se mostra tão relevante. Somente ao entender o processo penal como forma de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao Estado punitivo, abandonando a visão puramente instrumental do processo, é que se pode desenvolver um sistema que busque a efetivação do princípio democrático. No mesmo sentido desenvolve Aury Lopes Júnior: Por fim, o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal) (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 45-46). Definir o sistema processual penal adotado no Brasil apresenta certas dificuldades, dentre as quais está, notadamente, o fato de o Código de Processo Penal ser de 1941, enquanto a Constituição Federal é de 1988. Afirma Jacinto Coutinho que, assim como foram os fundamentos históricos que formaram os dois sistemas, a opção, seja por um sistema ou pelo outro, é política (COUTINHO, 2009). Logo, ao olharmos as diretrizes fixadas pela Constituição de 1988, instrumento que representa as escolhas políticas constituintes da atual democracia 31 brasileira, esta teria claramente, ainda que de forma tácita, optado pelo sistema acusatório. Conforme Geraldo Prado: Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção da inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou (PRADO, 2005, p. 300-301). Já analisando o Código de Processo Penal, no entendimento de Nucci (2016), o sistema processual poderia ser classificado como misto, visto que na fase pré-processual prevaleceria o sistema inquisitivo, descomprometido com o contraditório, enquanto na fase do processo judiciário seria acusatório. Com efeito, Jacinto Coutinho (2009) é categórico ao afirmar que não existem mais sistemas processuais puros, sendo todos, sem exceções, mistos, visto que mesmo sendo regidos por um princípio inquisitivo ou dispositivo, possuem elementos provenientes do outro sistema. Nesse sentido, deve-se buscar no núcleo de cada sistema o princípio informador para que se possa classificar como predominantemente inquisitório ou acusatório (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 54). É realizando essa análise que Camilin Poli classifica: [...] como se pode verificar na estrutura processual penal brasileira, são muitas as possibilidades de atuação de ofício pelo juiz (v.g. decretação de prisão e demais medidas cautelares, oitiva de testemunhas não indicadas pelas partes, decretação de busca e apreensão, ordem de sequestro de bens, alteração da classificação jurídica do fato, condenação quando do pedido de absolvição pelo Ministério Público, etc.), as quais demonstram a prevalência dos elementos inquisitórios no ordenamento jurídico pátrio, bem como na práxis processual penal (POLI, 2019, p. 334). Dessa forma, percebe-se que a efetiva aplicação de um sistema predominantemente acusatório é, até o momento, apenas uma promessa que somente um novo Código de Processo penal e um novo fundo cultural mais democrático poderiam tornar realidade (PRADO, 2005, p. 301). Ainda que um novo Código pudesse, verdadeiramente, trazer inúmeros avanços nessa direção, é sabido que mudanças legislativas pouco resolvem quando desacompanhadas de uma real mudança cultural, que, tragicamente, parece ainda distante na realidade brasileira atual. De todo modo, entende-se que, assim como os demais princípios previstos pela Constituição Federal, como o da dignidade da pessoa humana e o princípio democrático, o princípio acusatório deve ser entendido como um ideal, um norte a ser seguido, para que guie 32 as mudanças legislativas e jurisprudenciais, buscando sempre uma maior adequação do processo penal brasileiro com este sistema. Efetivamente em um Estado de direito não pode haver outro processo senão o acusatório, de modo que possibilite a distribuição das funções processuais entre três sujeitos, garantindo o contraditório entre as partes e a imparcialidade do juiz/juíza (GRINOVER, 1982, p. 56). Diante disso, é possível perceber certo movimento legislativo direcionado ao estabelecimento do sistema acusatório no processo penal pátrio. Quanto a este movimento, é possível destacar o projeto do Novo Código de Processo Penal brasileiro (Projeto de Lei no Senado nº 156/2009 e Projeto de Lei na Câmara nº 8.045/2010) que prevê no seu art. 4º: “O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da autuação probatória do órgão de acusação.”. E ainda, a lei 13.964/19, chamada de “pacote anticrime”, que apesar de diversas críticas, trouxe a figura do juiz de garantias, de modo a preservar a imparcialidade do julgador/julgadora do mérito da causa, bem como incluiu o art. 3º-A ao vigente Código de Processo Penal2, o qual possui redação praticamente idêntica ao art. 4º do projeto acima citado. Sobre esse importante avanço, afirma Aury Lopes Júnior: [...] agora podemos afirmar que o processo penal brasileiro é legal (art. 3º-A do CPP) e constitucionalmente acusatório, mas para efetivação dessa mudança é imprescindível afastar a vigência de vários artigos do CPP e mudar radicalmente as práticas judiciárias. É preciso, acima de tudo, queos juízes e tribunais brasileiros interiorizem e efetivem tamanha mudança (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 71). Outro ponto que merece ser destacado, na distinção entre os princípios inquisitório e acusatório, é o conceito de verdade buscada pelo processo penal. Sobre esse, Luigi Ferrajoli (2014, p. 562) atenta para o fato do caráter monista e monológico do processo penal no sistema inquisitório corresponder a uma concepção igualmente monista da verdade. Ou seja, acredita- se que a verdade é absoluta, substancial e única, e alcançá-la é o único objetivo do processo penal inquisitório. No modelo acusatório, por outro lado, segue o autor, a verdade é concebida como formal e relativa, e deve ser buscada, como em qualquer pesquisa empírica, através do procedimento de erro e prova. A principal garantia de sua consecução é consequentemente confiada a máxima exposição das hipóteses acusatórias à falsificação pela defesa, isto é, ao livre desenvolvimento do conflito entre as duas partes do processo, portadoras de pontos de vista contrastantes exatamente porque titulares de interesses opostos. No conflito, 2 Com a concessão de Liminar na Medida Cautelar nas ADI's n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 pelo Min. FUX, está suspensa, sine die, a eficácia do art. 3º-A do Código de Processo Penal, bem como a implementação da figura do juiz de garantias. 33 ademais, o primeiro movimento compete à acusação. Sendo a inocência assistida pelo postulado de sua presunção até prova em contrário, é essa prova contrária que deve ser fornecida por quem a nega formulando a acusação. Daí o corolário do ônus acusatório da prova expresso pelo axioma nulla accusatio sine probatione (FERRAJOLI, 2014, p. 562). Nesta mesma linha, assumindo que a única verdade possível de se alcançar é a verdade processual, entende-se que é a esta que as provas se direcionam. Como os fatos em si simplesmente são, não sendo possível considerá-los verdadeiros ou falsos, o que se debate no processo são os enunciados sobre o fato, aquilo que foi alegado no processo. Desse modo, as provas são utilizadas para comprovar aquilo que foi alegado, e não o fato em si (BADARÓ, 2003, p. 159-160). Da mesma forma, sintetizando, Carlos Fonseca Monnerat (2005, p. 76) define a prova judicial como “a demonstração dos fatos alegados, em juízo”. No mesmo sentido discorre Camilin de Poli: Assim, se no processo se chega sempre uma versão sobre o(s) fato(s), se o juiz ao julgar escolhe entre uma das versões apresentadas, que é somente a parte e não o todo, e se a verdade está no todo, é claro que no processo se atua com alguma coisa que não é a verdade. Portanto, no processo não se trata do fato em si (‘real’, ‘verdadeiro’), mas do que se diz (ou se pode dizer) sobre ele. Logo, o conhecimento que chega [no processo] é sempre parcial (POLI, 2019, p. 329-330). Quanto à maneira de valorar as provas, a doutrina aponta três sistemas de valoração de provas. O legal, o de livre convicção e o da persuasão racional. O sistema adotado atualmente pela legislação brasileira é o sistema da persuasão racional, onde o juiz/juíza é livre para atribuir a valoração das provas da maneira que melhor entender, desde que de forma racional e fundamentada, sempre adstritamente àquilo presente nos autos (MONNERAT, 2005, p. 88). Esse sistema deve também prever as regras as quais o juiz/juíza deve se atentar em caso de dúvidas, sendo precisamente neste ponto que se revela a importância da distribuição do ônus da prova. Conforme Gian Antonio Micheli (1961, p. 3), para melhor compreendermos esta questão, é necessária uma busca histórica. a) numa primeira fase, o ajuizamento de uma demanda coloca o adversário em posição de desculpar-se ou defender-se; b) em um segundo estágio, o juiz estabelece qual das partes deve produzir a prova em juízo, com base em regras de experiência, que lhe ditam qual das partes está em melhor posição para produzir determinada prova; c) numa terceira fase, tais regras se solidificam e em contraposição à prova direta se forma a prova contrária, direcionada a combater os resultados da primeira; d) a combinação do conteúdo dos itens b e c gera o dogma de que a necessitas probandi é considerada sob a ótica exclusiva da atividade probatória individual, de tal maneira que as regras de distribuição do ônus da prova se manifestam como regras de prova legal; e) no último estágio, essa atividade das partes perde sua importância como condição necessária para conseguir um resultado favorável, adquirindo importância o ônus da prova como regra de juízo, a ser aplicada quando o juiz não se encontra em 34 condições de decidir de outra maneira o caso em exame (MICHELI, 1961, p. 6 apud MONNERAT, 2005, p. 93-94). De fato, a doutrina aponta para dois aspectos distintos do ônus da prova. O subjetivo, ligado à atividade das partes e o objetivo, ligado à regra de julgamento. O aspecto subjetivo do ônus da prova, também chamado de ônus da prova subjetivo, diz respeito à responsabilidade das partes de buscar fontes de provas para juntarem ao processo, ou seja, é o incentivo processual de que a parte defenda seus interesses com elementos probatórios, para que seus argumentos não fiquem apenas no campo das alegações (MONNERAT, 2005, p. 96). Por essa definição que a produção de provas se caracteriza como um ônus às partes, pois se cumprido, pode trazer uma vantagem daquela parte no processo, mas se não exercitado, pode, da mesma forma, pôr a parte em uma situação de desvantagem (MONNERAT, 2005, p. 90). Esse aspecto do ônus da prova se materializa no sistema processual penal na figura do art. 156 do Código de Processo Penal. Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (grifou-se) Entretanto, o mesmo artigo, ao conferir poderes probatórios ao juiz/juíza, além de representar um dos mencionados elementos inquisitórios no nosso processo penal, também demonstra um dos motivos pelos quais o caráter subjetivo do ônus da prova vem sofrendo atenuações. Carlos Fonseca Monnerat é categórico ao afirmar: A partir do momento em que se admite que o processo civil e, muito mais, o processo penal não estão sob a égide de um princípio dispositivo, e estando claro que ao juiz são concedidos poderes instrutórios, parece perder sentido o chamado ônus subjetivo da prova (MONNERAT, 2005, p. 98). Essa atenuação deriva do princípio da aquisição da prova, que dispõe que uma vez realizada a prova, esta poderá ser utilizada tanto para benefício quanto para prejuízo de qualquer uma das partes. Por isso, afirma-se que não existe mais um ônus subjetivo absoluto da prova, visto que ao não cumprir com este ônus, a parte não restará necessariamente em posição de desvantagem, uma vez que o ônus pode vir a ser cumprido pela outra parte ou até mesmo pelo juiz/juíza de ofício (DINAMARCO, 2004, p. 206). O aspecto objetivo, ou ônus objetivo da prova, por outro lado, é uma regra de julgamento, relacionado não às partes, mas ao juiz/juíza, a ser utilizada quando no momento de 35 julgar, ainda permaneça em dúvida (MONNERAT, 2005, p. 97). Essa regra de julgamento deriva diretamente da vedação do non liquet, a qual impõe que o juiz/juíza não pode se abster de decidir nenhuma ação por considerar não haver elementos suficientes para o seu convencimento (MONNERAT, 2005, p. 95). Trata-se do princípio da indeclinabilidade, uma vez que o Estado assumiu o monopólio da resolução de conflitos, todos
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