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USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11 34306 sentenças entre tráfico e posseporte de drogas para consumo pessoal

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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA 
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS 
DEPARTAMENTO DE DIREITO 
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
 
 
 
Raí Fantin Dietrich 
 
 
 
 
 
 
 
USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: 
sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2021 
 
Raí Fantin Dietrich 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: 
sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal 
 
 
 
 
 
 
 
Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em 
Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade 
Federal de Santa Catarina, como requisito para a 
obtenção do título de Bacharel em Direito. 
Orientadora: Profa. Dra. Marília de Nardin Budó 
Coorientadora: Profa. Mariana Goulart 
 
 
 
 
 
 
 
 
Florianópolis 
2021 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ficha de identificação da obra 
 
 
 
 
 
Raí Fantin Dietrich 
 
 
USO TÁTICO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA LEI 11.343/06: 
sentenças entre tráfico e posse/porte de drogas para consumo pessoal 
 
 
Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de Bacharel 
em Direito e aprovado em sua forma final pelo Curso Graduação em Direito. 
 
Florianópolis, 23 de setembro de 2021. 
 
 
 
________________________ 
Prof. Luiz Henrique Cademartori, Dr. 
Coordenador do Curso 
 
Banca Examinadora: 
 
 
 
________________________ 
Profa. Marília de Nardin Budó, Dra. 
Orientadora 
Universidade Federal de Santa Catarina 
 
 
 
________________________ 
Prof.ª Karine Agatha 
Avaliadora 
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 
 
 
 
________________________ 
Prof.ª Poliana Ribeiro dos Santos 
Avaliadora 
Universidade Federal de Santa Catarina 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Sem dúvidas, o presente trabalho representa parte da minha trajetória como pessoa e 
estudante. Por isso, agradeço aqui não somente àqueles que contribuíram com a sua execução, 
mas também àqueles que contribuíram para essa caminhada, tornando-a, com certeza, 
imensamente mais feliz e prazerosa. 
Inicio pela minha família. Agradeço à minha mãe, Maristela, por me contagiar com a 
sua crença na minha capacidade para a realização desse trabalho. Agradeço ao meu pai, Luiz, 
pela grande dedicação em me ajudar com proveitosas discussões sobre o tema e atenta correção 
textual. Agradeço ao meu irmão, Cauê, pelas várias discussões e ricas trocas de experiências. 
Agradeço à minha irmã, Nina, por todo apoio, discussões, dicas de organização, e revisão 
textual. Agradeço a todos os quatro, principalmente, pelos valores construídos e pelos exemplos 
de pensamento crítico e questionador quanto ao que está posto. Eu não seria o que sou sem 
vocês. 
Agradeço à minha Coorientadora, Mariana, pela disposição em me ajudar com muito 
afinco e carinho em cada reunião, revisão e desafio. Esse trabalho não seria o mesmo sem a sua 
contribuição. 
Agradeço à minha Orientadora, Prof.ª Dra. Marília, pela exigente orientação e 
inúmeros diálogos que tanto contribuíram para a realização dessa pesquisa, desde o surgimento 
do tema até a sua conclusão. 
Agradeço à advogada e amiga Márcia, pelo imenso apoio e numerosos ensinamentos 
que tanto contribuíram não só para a realização desse trabalho, mas também para meus ideais 
como atuante no ramo do Direito. 
Agradeço também a todos meus amigos e amigas, por terem, cada um ao seu modo, 
contribuído com essa trajetória de estudos, de pesquisa, de trabalho e de vida. 
Por fim, agradeço à educação pública que, através da UFSC, foi como uma segunda 
casa para mim, me acolhendo, me acompanhando e me construindo desde o Núcleo de 
Desenvolvimento Infantil, Colégio de Aplicação, até o Centro de Ciências Jurídicas. Agradeço 
imensamente a todos os professores, colegas e demais servidores dessas instituições que foram 
tão importantes na minha formação humana e profissional. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Instead of war on poverty, They got a war on 
drugs so the police can bother me.” 
 
Tupac Amaru Shakur, 1998. 
 
 
 
RESUMO 
Mesmo após décadas de proibição, a questão das drogas segue sendo tema cada vez mais atual 
na sociedade. Isso se deve tanto à ineficácia do modelo proibicionista em resolver a questão, 
quanto ao fato de esse modelo agravar a situação com problemas como o encarceramento em 
massa e a criminalização da população pobre e preta. A atual lei de drogas (lei 11.343/06), além 
de ampliar a diferenciação entre o tratamento dado ao considerado traficante (art. 33) e ao 
considerado usuário (art. 28), prevê, como único critério para a delimitação entre as condutas, 
a necessidade do dolo específico de consumo pessoal no art. 28, enquanto para o art. 33, caput, 
bastaria o dolo genérico. De tal modo, considerando essa previsão do dolo específico na conduta 
menos gravosa, o presente trabalho busca analisar como a inversão do ônus probatório está 
sendo utilizada como tática para auferir a finalidade da droga no momento da condenação por 
tráfico de drogas. Para tanto, através de método dedutivo e de pesquisa bibliográfica e 
documental, divide-se o texto em dois capítulos. No primeiro, é apresentada uma análise crítica 
sobre as motivações e consequências da guerra às drogas, bem como discute o sistema 
processual brasileiro e a regra de distribuição do ônus da prova, através de revisão bibliográfica. 
No segundo capítulo, analisam-se detalhadamente três processos criminais da Comarca de 
Florianópolis/SC previamente selecionados por exemplificarem a problemática levantada, ou 
seja, processos que mesmo latente a dúvida quanto à finalidade da droga, decide-se pela 
condenação por tráfico, buscando demonstrar como aparece a articulação da inversão do ônus 
probatório na prática. Por fim, conclui-se apresentando as principais linhas argumentativas 
utilizadas para fundamentar a inversão do ônus da prova nos processos estudados, destacando-
se a representação dos preconceitos estruturais do sistema punitivo brasileiro, assim como a 
instrumentalização do processo penal para a realização dos objetivos políticos da guerra às 
drogas. 
 
Palavras-chave: Inversão do ônus probatório; processo penal acusatório; guerra às drogas; 
tráfico de drogas; posse ou porte de drogas para consumo pessoal. 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
Even after decades of prohibition, the drug issue continues to be an increasingly pressing issue 
in society. This is due to both the inefficiency of the prohibitionist model in solving the issue, 
and the fact that this model aggravates the situation with problems such as mass incarceration 
and the criminalization of the poor and black population. The current drug law (law 11.343/06), 
in addition to increasing the difference between the treatment given to the one considered as 
trafficker (art. 33) and the one considered as user (art. 28), provides, as the only criterion for 
the delimitation between the conducts, the need for the specific intent of personal consumption 
in art. 28, while for art. 33, caput, the generic intent would suffice. In such a way, considering 
this prediction of specific intent in the least onerous conduct, this paper seeks to analyze how 
the inversion of the burden of proof is being used as a tactic to ascertain the purpose of the drug 
at the time of conviction for drug trafficking. Therefore, through a deductive method and 
bibliographical and documentary research, the text is divided into two chapters. The first one 
points out the debate, presenting a critical analysis of the motivations and consequences of the 
war on drugs, as well as discussing the Brazilian criminal procedural systemand the rule of 
distribution of the burden of proof. The second chapter analyzes in detail three previously 
selected criminal cases of the District of Florianópolis/SC previously selected because they 
exemplify the problem raised, that is, processes that, even though the doubt about the purpose 
of the drug is latent, is decided on the conviction for trafficking, seeking to demonstrate how 
the articulation of the reversal of the burden of proof appears in practice. Finally, it concludes 
by presenting the main lines of argument used to support the inversion of the burden of proof 
in the processes studied, highlighting the representation of structural prejudices of Brazil´s 
punitive system, as well as the instrumentalization of the criminal process to achieve political 
objectives of the war on drugs. 
 
Keywords: Reversal of the burden of proof; accusatory criminal proceedings; war on drugs; 
drug trafficking; possession of drugs for personal use. 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE QUADROS 
 
Quadro 1 - Caso 1 ....................................................................................................... 40 
Quadro 2 - Caso 1 SENTENÇA ................................................................................. 43 
Quadro 3 - Caso 2 ....................................................................................................... 44 
Quadro 4 - Caso 2 SENTENÇA ................................................................................. 47 
Quadro 5 - Caso 3 ....................................................................................................... 48 
Quadro 6 - Caso 3 SENTENÇA ................................................................................. 50 
Quadro 7 - Circunstâncias do delito ........................................................................... 58 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 
2 A DELIMITAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 28 
E 33 DA LEI 11.343/06 E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA ...................... 14 
2.1 Guerra às drogas e a lei 11.343/06: situando o debate ............................................... 14 
2.2 Tráfico ou posse/porte de drogas para consumo pessoal: a diferenciação quanto a 
finalidade .................................................................................................................... 23 
2.3 Sistema Acusatório e a indevida inversão do ônus da prova ..................................... 28 
3 A APLICAÇÃO DA INVERSÃO DO ONUS DA PROVA EM SENTENÇAS 
CONDENATÓRIAS NA COMARCA DE FLORIANÓPOLIS/SC .................... 38 
3.1 Apresentação dos processos selecionados para o estudo ........................................... 38 
3.2 Análise dos elementos probatórios e argumentativos utilizados para embasar as 
sentenças ..................................................................................................................... 40 
3.3 Articulação do “ônus da prova” para fundamentação da sentença ............................ 52 
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 62 
 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 65 
11 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
Com experiência de estágio em uma das varas criminais da Capital, defrontava-me 
diariamente com uma exagerada reprodução de processos quase idênticos. Flagrante, apreensão 
de drogas, prisão preventiva, conjunto probatório inteiramente baseado na palavra de policiais, 
fundamentações genéricas como “atitude suspeita” e “local conhecido pelo intenso tráfico de 
drogas”, condenação por tráfico. Não é difícil problematizar essa fórmula e perceber o quanto 
ela contribui com o encarceramento em massa, sobretudo, da população negra. 
O especial direcionamento das operações policiais para comunidades empobrecidas 
e marginalizadas em busca de flagrantes, o conceito abstrato de ordem pública como carta 
branca para prisões preventivas e a retórica da defesa da saúde pública fundamentando as 
condenações, todo o processo se mostra pautado muito mais na sua instrumentalização para a 
manutenção do poder do que na real tutela de bens jurídicos (RODRIGUES L., 2019). 
A atual Lei de Drogas, lei 11.343/06, na sua essência, não representa nenhuma 
ruptura com a base ideológica do modelo proibicionista já implementado pelas legislações 
anteriores, caracterizando-se pela forte repressão ao tráfico de drogas (CARVALHO, 2013, p. 
140). Percebe-se, entretanto, um fortalecimento da “ideologia da diferenciação” (DEL OLMO, 
1990), utilizando uma política de controle penal com relação ao tráfico e um sistema de redução 
de danos com relação ao consumo. Além disso, percebe-se, ainda, que para a diferenciação 
entre as condutas dos artigos 28 e 33, a lei optou por prever o dolo específico no delito menos 
gravoso (finalidade de consumo pessoal no art. 28), bem como não trouxe parâmetros claros 
para precisa delimitação entre as duas condutas. Essa situação gera uma tendência à aplicação 
da inversão do ônus da prova, incidindo sobre o acusado o dever de demonstrar a finalidade de 
consumo pessoal, quando o princípio da presunção de inocência atribui à acusação o ônus 
probatório no processo penal (CARVALHO, 2013, p. 324-325). Esta é a hipótese principal de 
que parte o trabalho. 
Considerando que a Constituição Federal de 1988 e a Lei 13.964/2019 evidenciam 
a escolha política pelo sistema processual penal acusatório, o qual delega à acusação o ônus 
probatório, torna-se necessário estudar como está ocorrendo a diferenciação entre as condutas 
na prática judicial, visto que essa muitas vezes não se coaduna com os princípios 
constitucionais. 
Dessa forma, a pesquisa se desenvolveu ao redor do seguinte problema: 
considerando que apurar a finalidade da droga é essencial para delimitar a tipificação da conduta 
12 
 
no artigo 33 ou no artigo 28 da lei 11.343/06, como é articulada a inversão do ônus da prova 
para fundamentar eventuais condenações por tráfico de drogas? 
De maneira geral, objetivou-se analisar como a indevida inversão do ônus da prova 
é utilizada como fundamentação na delimitação da conduta entre os referidos artigos. Para 
tanto, buscou-se investigar, no contexto da lei 11.343/06, os limites que separam as duas 
condutas; apresentar a crítica ao instituto da inversão do ônus da prova no processo penal; e por 
fim, analisar criticamente, a partir de processos previamente selecionados, como a inversão do 
ônus da prova foi articulada para fundamentar sentenças criminais envolvendo a lei 11.343/06. 
O método de abordagem utilizado foi o método dedutivo, tendo em vista que se 
partiu de premissas mais gerais para conclusões mais específicas. Já a técnica de pesquisa 
conjuga a pesquisa bibliográfica teórica com a análise de processos judiciais. Os processos 
foram selecionados por meio de busca na jurisprudência pelo site do Tribunal de Justiça de 
Santa Catarina, utilizando-se as palavras-chave “tráfico consumo desclassificação”, sendo 
escolhidos aqueles que melhor ilustravam o debate acerca da finalidade da droga entre consumo 
e comercialização. Em seguida, foi realizada consulta aos autos digitais dos processos, 
analisando os elementos probatórios produzidos e os argumentos e fundamentações da 
sentença. 
Assim, o desenvolvimento deste trabalho divide-se em dois capítulos. No primeiro, 
apresenta-se o panorama da guerra às drogas até a lei 11.343/06, problematizando tanto as 
motivações políticas e o contorno racial que construíram a proibição, como as consequências 
causadas pela sua implementação no Brasil. Em análise específica dos tipos penais das condutas 
de tráfico e posse de drogas para o consumo pessoal, expõe-se as dificuldades processuais para 
a correta delimitação da conduta decorrentesda sutil diferenciação entre elas na lei. Dessa 
forma, com esse capítulo intenta-se compreender os reais objetivos por trás da criminalização 
das drogas, para que se compreenda, também, a serviço de quem essa atua, e a quem serve essa 
dificuldade de separar, na prática o usuário do traficante. 
No segundo capítulo, faz-se uma análise detalhada de três processos criminais 
previamente selecionados pela controvérsia principal dos autos ser a finalidade da droga. Para 
tanto, inicia-se com um relato descritivo dos principais atos do processo, focando nos elementos 
de prova produzidos nos autos. Atingindo-se o fim da parte instrutória do processo, elenca-se 
os elementos produzidos e analisa-se sua capacidade de elucidar a controvérsia da destinação 
da droga. Por fim, procede-se com uma análise minuciosa da sentença, examinando-se de forma 
crítica cada fundamentação e argumentação utilizada para embasar a condenação por tráfico de 
13 
 
drogas. Assim, focando na presença ou não de elementos probatórios capazes de elucidar essa 
questão, investiga-se como foi articulada a inversão do ônus da prova na fundamentação dessas 
sentenças. 
 
 
14 
 
2 A DELIMITAÇÃO ENTRE AS CONDUTAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 28 E 33 
DA LEI 11.343/06 E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA 
 
Como já foi aludido, o principal objetivo do presente trabalho é centrado em matéria 
bastante prática, buscando estudar como o fenômeno estudado acontece na práxis, entretanto, 
para evitar resultados vazios, é indispensável analisar o fenômeno dentro do contexto da guerra 
às drogas. Apesar de ser o tráfico de drogas e o seu combate um problema mais do que 
naturalizado atualmente, é preciso entender a proibição não como uma condição natural, mas 
sim como um modelo resultado de uma série de escolhas políticas guiadas pelos mais diversos 
interesses. É por esse motivo que, mesmo não tendo o presente trabalho um enfoque histórico, 
é necessário, antes de adentrarmos nos nuances que separam as condutas do traficante e do 
usuário, e de como ocorre a delimitação na prática, abordar o contexto do desenvolvimento do 
modelo proibicionista. Busca-se, com essa breve contextualização, o esclarecimento de que 
conjuntura atual se apresenta nessa situação não por acaso, mas por cumprimento de um 
programa pré-estabelecido. 
 
2.1 GUERRA ÀS DROGAS E A LEI 11.343/06: SITUANDO O DEBATE 
 
A criminalização de certas substâncias alteradoras de consciência, mais conhecidas 
como drogas, é um fenômeno que vem percorrendo a história das sociedades humanas há 
algumas décadas. Por motivos mais econômicos e políticos do que ligados à saúde, as respostas 
sociais e as substâncias sujeitas a essas respostas variaram bastante ao longo do tempo. Como 
destaca Luciana Boiteux Rodrigues: 
 
O controle penal atual sobre as drogas tem por base a proibição do uso e da venda de 
substâncias rotuladas como “ilícitas”, por meio de um discurso de proteção da saúde 
pública e de intensificação da punição. Porém, essa distinção entre drogas lícitas e 
ilícitas deu-se por conveniência política, sem que houvesse conclusões médicas 
definitivas quanto à graduação e à avaliação concreta dos riscos de cada substância a 
ser controlada, ou mesmo sem que se tivesse proposto ou experimentado nenhum 
outro modelo intermediário, ou menos repressivo (RODRIGUES, L., 2006, p. 46). 
 
Esse modelo proibicionista, segundo a autora, adotado e imposto a todos os países 
pelas Nações Unidas presume a ideia, sem base empírica, de que a interdição de determinadas 
substâncias por meio de leis penais seria capaz de regular os gostos e o comportamento das 
pessoas em sociedade (RODRIGUES, L., 2006, p. 47). Além disso, deve-se destacar, dentre as 
demais críticas ao proibicionismo, o caráter autoritário desse modelo, que desconsidera a 
15 
 
complexidade de culturas variadas, e tenta impor os ideais de virtude e de moral de um 
determinado grupo a toda sociedade (RODRIGUES, L., 2006, p. 47). 
O marco inicial dessa história em escala internacional é 1909, quando a Liga das 
Nações – organização anterior à Organização das Nações Unidas – convoca e organiza uma 
conferência internacional, conhecida como Comissão de Xangai, para tratar sobre a questão do 
ópio (D´ELIA FILHO, 2007, p. 79). Orlando Zaccone D´Elia Filho destaca a motivação 
econômica e política por trás desta que foi uma iniciativa estadunidense, ao afirmar que, por 
mais que o discurso fosse um apelo moralista de retorno aos bons costumes, o real interesse 
político e econômico do país com a proibição do ópio era frear o desenvolvimento inglês (2007, 
p. 80). O autor explica, ainda, que de mesma natureza foram os motivos pelos quais a Inglaterra 
condicionou a sua participação na Convenção de Haia – realizada com o fim de ratificar a 
proibição estabelecida na Comissão de Xangai – à inclusão de outras substâncias na pauta do 
evento, atingindo, assim, substâncias como os derivados do ópio e a cocaína, e países como 
Alemanha, Holanda e França, que comercializavam a cocaína através da emergente indústria 
farmacêutica. 
O mesmo autor afirma que a diversidade de interesses fez com que cada país 
reagisse de uma forma diferente às resoluções proibitivas, mas foi nos EUA que a proibição se 
transformou, e ainda é, prioridade política, sempre mascarada pelo conservadorismo da 
moralidade e dos bons costumes. 
Sobre a repercussão da Convenção de Haia nos Estados Unidos, Thiago Rodrigues 
explica: 
 
O governo estadunidense utilizou, de forma estratégica, a assinatura do Convênio de 
Haia para pressionar o Congresso Nacional a adaptar as leis nacionais, consideradas 
pelo poder Executivo ainda frágeis e restritas. A tática era simples: nós (os EUA) ao 
nos comprometermos internacionalmente, iniciando novas normas sobre o controle de 
drogas, temos o dever de adequar nossas leis internas, tornando-as mais rígidas. Bem-
sucedida, a manobra auxiliou na aprovação, em 1914, do Harrison Narcotic Act, lei 
mais complexa e severa que os acordos internacionais já assinados e que investia na 
proibição explícita de qualquer uso de psicoativos considerados sem finalidades 
médicas. Da Lei Harrison deve se mencionar uma importante novidade: o texto criava 
as figuras do traficante e do viciado, respectivamente aquele que produz e 
comercializa a drogas psicoativas irregularmente e aquele que consomo sem 
permissão médica. O traficante deveria ser preso e encarcerado; o usuário, 
considerado doente, deveria ser tratado (mesmo que compulsoriamente) 
(RODRIGUES, T., 2003, p. 30). 
 
Para compreendermos sob quais influências se desenvolveu a repressão às drogas 
internacionalmente, é bastante didático analisar o contexto do proibicionismo na experiência 
16 
 
estadunidense. Nessa é marcante a associação de determinadas drogas a determinados grupos 
sociais marginalizados, como o ópio aos chineses, a maconha aos mexicanos, a cocaína aos 
negros e o álcool aos irlandeses (RODRIGUES T., 2003). Esses estereótipos morais e médicos, 
bem como a proibição, sempre tiveram alvos muito bem delimitados, servindo como mais uma 
ferramenta para o Estado vigiar e controlar as classes por ele consideradas ameaças (D´ELIA 
FILHO, 2007). O controle sobre essas populações foi impulsionado nos anos seguintes, com a 
aprovação de leis como a Lei Seca em 1919 (revogada em 1933), o Marijuana Tax Act em 
1937, o Boggs Act em 1951 e o Narcotics Control Act em 1956. 
Paralelamente a isso, internacionalmente, ocorre em 1936, a Conferência de 
Genebra, onde se impõe aos países signatários o modelo de dura repressão aplicado pelos 
Estados Unidos, obrigando, inclusive, a criação de departamentos estatais próprios para o 
combate ao tráfico de drogas. Essa geopolítica da droga que se desenvolve a partir da política 
internacional de proibição, assim como na questão interna de cada país, vai ser utilizada pelos 
países dominantes como ferramenta de controlesobre os demais (D´ELIA FILHO, 2007). 
Já no decurso da década de 1960, em conjunto com o contexto de efervescência 
política da “contracultura”, ocorre a expansão da indústria farmacêutica nos países 
desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos. Surgem o LSD e outras drogas psicodélicas 
e o aumento do consumo da maconha, ultrapassando as barreiras dos guetos e periferias e 
passando a alcançar jovens de classe média e alta (DEL OLMO, 1990). Essa difusão do 
consumo de drogas para as classes mais altas da sociedade tem um importante papel no 
estabelecimento do modelo médico-sanitário, deixando de tratar o consumo de drogas como 
crime e passando a considerá-lo como dependência, em consequência, seus consumidores como 
vítimas. 
Internacionalmente, essa mudança de modelo pode ser percebida na Convenção 
Única sobre Estupefacientes realizada em 1961, que reforça a ideologia de diferenciação a partir 
de um modelo médico-jurídico que se caracteriza por distinguir o traficante como criminoso e 
o consumidor como doente. Sobre esta mudança, Rosa Del Olmo explica: 
 
O problema da droga se apresentava como uma “luta entre o bem e o mal”, 
continuando o estereótipo moral, com o qual a droga adquire perfis de “demônio”; 
mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora, criando-se o pânico devido aos 
“vampiros” que estavam atacando tantos “filhos de boa família”. Os culpados tinham 
de estar fora do consenso e ser considerados “corruptores”, daí o fato do discurso 
jurídico enfatizar na época o estereótipo criminoso, para determinar as 
responsabilidades, sobretudo o escalão terminal, o pequeno distribuidor, seria visto 
como incitador ao consumo, o chamado pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo 
geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo como 
“delinquente”. O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria 
17 
 
qualificado de “doente” graças a difusão do estereótipo da dependência, de acordo 
com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado modelo médico-
sanitário (DEL OLMO, 1990, p. 34). 
 
Durante a década de 1970, o discurso médico-jurídico sobrepõe o discurso moral, 
considerando que era impossível aceitar que tantos jovens fossem desprovidos de virtudes. Com 
e a explosão de movimentos de lei e ordem e a declaração de guerra às drogas, o tráfico de 
drogas e a figura do traficante passam a ser vistos como inimigo interno (D´ELIA FILHO, 
2007). No mesmo sentido versa Rosa Del Olmo: 
 
O consumo de drogas não podia ser visto como uma simples “subcultura”, a droga e 
seus protagonistas haviam mudado. Tinha de ser visto como um “vírus contagioso”. 
A maconha coletivizava o consumo a ser usada em ato público, compartilhado e 
comunitário. Deve se lembrar, por exemplo, dos hippies e do consumo maciço de 
maconha nos festivais de música ao ar livre como o famoso festival de Woodstock. 
Era a arma por excelência que os jovens haviam encontrado para responder ao desafio 
da ordem vigente nos países desenvolvidos. Não é estranho então que se começasse a 
falar de droga em matéria de segurança, como inimigo interno (DEL OLMO, 1990, p. 
34). 
 
No contexto brasileiro, o caminho percorrido pela proibição das drogas não foi 
muito distinto. Também subscrito da Convenção de Haia o Brasil confirmou sua adesão à 
proibição com a incriminação do ópio, morfina e cocaína nos Decretos nº 2.861 de 1914 e 
11.481 de 1915. Anos mais tarde, veio o Decreto 20.930 de 1932, alterado pelo Decreto 24.505 
de 1934, revogado pelo Decreto-Lei 891 de 1938, que conduziria ao artigo 281 do Código Penal 
de 1940. Conforme narra Roberta Pedrinha, “a alternância de decretos na década de 30 
reverbera as sucessivas tendências das Convenções Internacionais, como a de Haia (1912) e as 
de Genebra (1925, 1931 e 1936), que confirmaram a influência sofrida pelo Brasil” (2008, p. 
5490). 
Uma distinção que deve ser apontada, entretanto, é esta feita por Luciana Boiteux 
acerca do início do movimento pela proibição das drogas no Brasil. 
 
De forma um pouco diferente do que aconteceu nos EUA onde a criminalização do 
uso e do comércio de drogas decorreu de uma “ação preventiva” promovida por 
grupos específicos, em especial juristas, políticos e religiosos que ficaram à frente da 
política proibicionista, no Brasil o grupo que mais pressionou pelo controle penal das 
drogas foi marcadamente o dos médicos legistas e psiquiatras (RODRIGUES, L., 
2006, p. 135-136). 
 
Avançando um pouco no tempo, após três anos de vigência do Decreto-lei 385/68, 
que equiparava as sanções aplicadas aos traficantes e consumidores, a lei 5.726/71 fez com que 
18 
 
o Brasil incorporasse de vez o modelo médico-jurídico, deixando de tratar os consumidores 
como criminosos (D´ELIA FILHO, 2007). 
Entretanto, a real aplicação desta “ideologia da diferenciação” nunca seria possível 
no cone sul, tendo em vista a falta de recursos e investimentos necessários para o tratamento 
médico dos usuários. A importação dessa ideologia, sem as devidas adaptações à realidade 
socioeconômica e cultural latino-americana, serviu apenas para definir estereótipos (DEL 
OLMO, 1990, p. 35). A autora continua: 
 
[...] tudo dependia na América Latina de quem a consumia. Se eram os habitantes de 
favelas, seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornava 
agressivos. Se eram “meninos de bem”, a droga os tornava apáticos. Daí que aos 
habitantes das favelas fosse aplicado o estereótipo criminoso e fossem condenados a 
severas penas de prisão por traficância, apesar de só levarem consigo um par de 
cigarros; em troca, os “meninos de bem”, que cultivavam a planta em sua própria casa, 
como aconteceu em inúmeras ocasiões, eram mandados para alguma clínica particular 
para em seguida serem enviados aos Estados Unidos porque eram “doentes” e seriam 
sujeitos à tratamento, de acordo com o discurso médico tão em moda (DEL OLMO, 
1990, p. 46). 
 
Luciana Boiteux Rodrigues (2006, p. 134), da mesma forma, aponta para essa 
dificuldade em países em desenvolvimento. Afirma a autora que o controle penal das drogas no 
Brasil, país onde a polícia é violenta e corrupta, o serviço de saúde pública precarizado, e o 
sistema penitenciário lotado, apenas reforçaram esses problemas nacionais. 
No plano internacional, processos importantes impulsionavam uma mudança de 
comportamento com relação às drogas. Para Rosa Del Olmo (1990) a Guerra do Vietnã e o alto 
consumo de heroína dos militares e ex-combatentes norte-americanos contribuíram para a 
substituição do “inimigo interno” representado pelo tráfico para um “inimigo externo” 
personalizado na figura dos países asiáticos e sul-americanos produtores. 
Esse discurso, segundo Thiago Rodrigues (2003), aceita oficialmente a divisão dos 
países entre produtores de drogas ilícitas e consumidores, ou seja, assim como a mesma 
diferenciação feita na política criminal interna, entre agressores e vítimas. Isso faz com que os 
países que se denominam como vítimas passem a tratar a questão das drogas como questão de 
segurança nacional, resultando, inclusive, na declaração do então presidente Richard Nixon 
identificando os psicoativos ilícitos como inimigo nº 1 da América e declarando guerra às 
drogas em 1971. 
Sobre a década de 1980, Orlando Zaccone D´Elia Filho afirma: 
 
Paralelamente à ascensão do “narcotráfico”, o socialismo dava sinais de falência no 
início dos anos 80, assim como as ditaduras militares latino-americanas apoiadas 
19 
 
pelos EUA. A ideologia da Segurança Nacional, surgida no período pós-Segunda 
Guerra Mundial, quando o mundo ficou dividido em dois “blocos”, estava ameaçada. 
Como justificar a intervenção americana no plano internacional com o fim do 
comunismo? (D´ELIA FILHO, 2007, p. 95). 
 
Conforme explica Thiago Rodrigues (2003, p. 73), a nova ameaça utilizada pelo 
governo norte-americano para preencher o vazio deixadopelo discurso da ameaça comunista, 
é o narcotráfico, justificando, assim, a continuidade da sua intervenção no plano internacional. 
Esse novo modelo repressivo-bélico de abordar a questão das drogas, fortalecidos 
pelos Movimentos de Lei e Ordem, quando aplicado na América Latina, estabeleceu sistemas 
penais potencialmente genocidas, onde o traficante de drogas se torna o inimigo público número 
um, ao mesmo tempo em que a seletividade punitiva continua a atuar com os mesmos 
estereótipos para definir quem são os traficantes e quem são os consumidores (D´ELIA FILHO, 
2007). 
Importante perceber o papel dessa união entre a “ideologia da diferenciação” e a 
aplicação desses estereótipos no sistema penal referente às drogas para a seletividade punitiva. 
Dessa maneira, ainda que o consumo de drogas tenha atingido todas as classes sociais, 
utilizando-se dessa diferenciação a brutalidade punitiva poderia continuar atingindo somente as 
populações marginalizadas. Por isso, uma legislação que não estabelece critérios bem definidos 
sobre como diferenciar a figura do traficante do consumidor está sempre sujeita a ser utilizada 
como mais um instrumento para a concretização da seletividade do sistema. Quanto a 
problemática dessa seletividade, Orlando Zaccone D´Elia Filho discorre: 
 
A posição precária no mercado de trabalho, as deficiências de socialização familiar, o 
baixo nível de escolaridade, presentes entre os que ocupam uma posição inferior na 
sociedade, são, não como se costuma apontar, causas da criminalidade, mas sim 
características desfavoráveis, que, identificando seus portadores com o estereótipo do 
criminoso, terão influência determinante naquele processo de seleção dos que vão 
desempenhar o papel de criminosos (D´ELIA FILHO, 2007). 
 
Considerando que esses estereótipos atuam no imaginário de toda população, 
incluindo-se aqueles que têm o cumprimento da lei penal como ofício, sua aplicação se torna 
ainda mais escancarada em situações em que a lei deixa grande margem para a 
discricionariedade desses agentes. Sobre uma dessas situações, de diferenciação entre traficante 
e usuário, desenvolve Maria Lúcia Karam: 
 
No caso de crimes relativos a drogas, o peso destas características aparece claramente, 
inclusive no que se refere à distinção entre consumidor e traficante. É comum 
encontrar casos em que a única “prova” do tráfico é o desemprego ou subemprego 
daquele que é surpreendido na posse de drogas, visto como naturalmente traficante, 
20 
 
por se supor que, estando desempregado ou subempregado, não teria condições de 
adquirir a substância para uso pessoal (KARAM, 1991, p. 58). 
 
No Brasil, durante esse período, ocorrem movimentos importantes ligados ao 
direito penal que resultam em mudanças legislativas igualmente relevantes. Em 1984, a 
Reforma Penal altera significativamente a parte geral do Código Penal de 1940, bem como edita 
a Lei de Execuções Penais (7.210/84) (RODRIGUES, L., 2006, p. 154). Quatro anos mais tarde, 
é promulgada a Constituição Democrática de 1988, marcada pelo extenso rol de direitos e 
garantias fundamentais. Entretanto, paradoxalmente, no mesmo contexto desses importantes 
marcos para uma política penal considerada liberal, é possível notar, também, um movimento 
de endurecimento das penas associadas a legislação de drogas (RODRIGUES, L., 2006, p. 154). 
Como resultado de tal movimento, pode-se destacar a introdução do conceito de crime hediondo 
no texto constitucional e a própria Lei dos Crimes Hediondos, lei 8.072/90, a qual equipara o 
crime de tráfico de drogas a esta categoria. Sobre o período discorre Luciana Boiteux 
Rodrigues: 
 
Nesse momento histórico, o endurecimento do sistema penal não mais possuía a 
característica observada nos regimes ditatoriais, tendo se moldado aos novos tempos 
e adotado uma nova roupagem, ao fundar sua tática autoritária na “ideologia da 
segurança urbana” (RODRIGUES, L., 2006, p. 155). 
 
Quanto às drogas, a legislação sobre o assunto, desde a revogada lei 6.368/76 até a 
edição da lei 11.343/06, demonstra o fortalecimento da “ideologia de diferenciação”, sendo que 
não só fica evidente na distinção das condutas previstas para os consumidores e traficantes, mas 
também no distanciamento cada vez maior entre as sanções previstas para essas condutas 
(D´ELIA FILHO, 2007). Enquanto o tráfico hoje é crime equiparado a crime hediondo, a posse 
de drogas para consumo pessoal é considerada infração de menor potencial ofensivo, não mais 
sujeita à pena privativa de liberdade. Sobre a lei 11.343/06, afirma Rachel Pilati: 
 
A análise da Lei 11.343/06 permite auferir o recrudescimento da repressão ao crime 
de tráfico de drogas. A pena mínima do crime de tráfico (art. 33 da Lei 11.343/06) foi 
aumentada de 03 para 05 anos de reclusão. Tendo em vista a existência de 
qualificadoras, a reprimenda provavelmente será fixada acima do mínimo legal de 05 
anos. E o caput do artigo 33, por sua vez, tipificou os verbos “transportar” e “expedir”, 
que caracterizam apenas o início da execução. Isso impede a distinção entre tentativa 
e consumação: os vários verbos que configuram o tráfico impedem que exista a 
tentativa (PILATI, 2011, p. 84) 
 
Com o endurecimento da legislação, as consequências da escolha pelo modelo 
proibicionista, que já podiam ser percebidas nos números da população carcerária do Brasil, 
refletem a mesma intensificação. Conforme dados do Infopen de 2015 (BRASIL, 2017), entre 
21 
 
os quatro países com a maior população carcerária do mundo – Estados Unidos, Brasil, China 
e Rússia, respectivamente – o Brasil foi o que mais aumentou a sua taxa de aprisionamento nos 
anos entre 1995 e 2015. O país registrou um aumento de 258%, passando de 95 para 342 o 
número de pessoas presas para cada 100 mil habitantes, enquanto os Estados Unidos, segundo 
maior aumento, registraram uma alteração de apenas 18% no mesmo período. O impacto dos 
delitos relacionados a drogas na realidade carcerária nacional é sensível. Ainda de acordo com 
o relatório do Infopen de 2015: 
 
Ao analisarmos a distribuição de crimes ao longo da história do levantamento do 
Infopen, verifica-se expressivo aumento no número absoluto de pessoas presas 
acusadas ou condenadas por crimes ligados ao tráfico de drogas, sendo que a 
incidência deste tipo penal cresceu 447% entre os anos de 2005 e 2015 no Brasil. No 
mesmo período, o número de incidências ligadas aos crimes de homicídio simples e 
qualificado cresceu 158% (BRASIL, 2017). 
 
Analisando a distribuição das pessoas privadas de liberdade por tipo penal, percebe-
se que o conjunto de crimes relacionados a tráfico de drogas representava, em 2015, 26% entre 
os homens e 63% entre as mulheres (BRASIL, 2017). Apenas dois anos mais tarde, em 2017, 
já é possível notar o aumento dessas porcentagens, sendo 29,26% entre os homens e 64,48% 
entre as mulheres (BRASIL, 2019). 
Para correta análise do fenômeno do encarceramento em massa no Brasil, é 
imprescindível fazer certos recortes como o de gênero, classe e raça, visto que intimamente 
interligados entre si e com o fenômeno discutido. Como os dados citado acima apontam, não 
escapa aos olhos a enorme representatividade dos delitos de tráfico de drogas entre as mulheres 
privadas de liberdade. Isso ocorre devido ao fato da divisão de gênero, que não se limitando ao 
âmbito do mercado formal, operar da mesma maneira na organização do tráfico, conforme 
aponta Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (2018). Logo, pelo fato de as mulheres ocuparem, 
majoritariamente, posições periféricas ou subsidiárias na estrutura do tráfico, estariam mais 
vulneráveis à criminalização, visto que a coerção estatal tem mais alcance sobre esse estrato da 
hierarquia (SOARES; ILGENFRITZ, 2002). Como indicativo de classe, registra-se que 51,3% 
da população carcerária possui o Ensino Fundamental incompleto (BRASIL, 2019, p. 34). Os 
dados evidenciam, damesma forma, o direcionamento racial desse encarceramento. 
O racismo estrutural1 se mostra constantemente como um fator determinante na 
justiça criminal brasileira. De acordo com dados do Infopen de 2017, pessoas negras e pardas 
 
1 De acordo com Silvio Almeida (2019, p. 31-33), a concepção estrutural do racismo se caracteriza pelo 
entendimento de que esse é um componente orgânico da estrutura social, materializando-se através do modo 
“normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. 
22 
 
representam 63,64% da população presa (17,37% negros e 46,27 pardos), enquanto 35,48% são 
brancos. A proporção de toda a população do Brasil, na mesma época, se mostra diferente, onde 
negros e pardos representam 55,4% e brancos 43,6% (BRASIL, 2019). 
Percebe-se, que o direcionamento aqui retratado, é apenas o reflexo do racismo que 
atua de maneira a estruturar as relações institucionais. Ao reconhecer a população negra como 
suspeita, todo o aparato vigilante do Estado se dirige a esse grupo, resultando em mais 
abordagens, mais flagrantes, mais investigações, mais processos e, por fim, mais condenações. 
Nessa linha apontam Sinhoretto et al: 
 
Além da produção da desigualdade racial nos resultados da letalidade policial, a 
pesquisa constatou ainda que a vigilância policial é operada de modo racializado. Os 
dados sobre as prisões em flagrante indicam que a maioria dos presos é composta de 
negros. Em Minas Gerais e São Paulo, a taxa de flagrantes de negros é mais que o 
dobro da verificada para brancos. Estes dados expressam que a vigilância policial 
privilegia as pessoas negras e as reconhece como suspeitos criminais, flagrando em 
maior intensidade as suas condutas ilegais, ao passo que os brancos gozam de menor 
vigilância da polícia para suas atividades criminais. A filtragem racial está entranhada 
nas próprias estratégias do policiamento (SINHORETTO et al., 2014, p. 152). 
 
Ainda mais grave, a filtragem racial se manifesta da mesma forma nos casos que 
sequer chegam ao judiciário, ou seja, nos casos em que a ação policial, ao invés de resultar em 
flagrante, resulta em morte: 
 
Comparando-se as taxas de letalidade policial dentro de cada grupo de cor/raça das 
vítimas, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais (onde foi possível a 
obtenção de dados), a desproporção entre vítimas brancas e negras foi constatada em 
todos os locais. Nos estados em que há maiores taxas de letalidade policial (Rio de 
Janeiro e São Paulo), a discrepância entre negros e brancos mortos é ainda maior. 
Quanto maior o número de mortes produzidas pela atividade policial, mais evidente a 
filtragem racial de negros se torna, especialmente entre os jovens (SINHORETTO et 
al., 2014, p. 152). 
 
Desse modo, assim como o modelo proibicionista intensifica o encarceramento em 
massa da população, o aparato da guerra às drogas potencializa, da mesma forma, a atuação 
racista das políticas de repressão e do controle social (RODRIGUES, L., 2019). Nesse sentido, 
a lei 11.343/06 vem não só como símbolo de continuidade desse sistema, mas também como 
um fortalecimento do da ideologia aplicada até então. Conforme destaca Luciana Boiteux 
(2019): 
 
A tragédia do racismo se fortalece com a proibição e ainda se alimenta da farsa da 
guerra às drogas, que reproduz a lógica escravocrata de imposição de dor e de 
sofrimento e de negação ao direito de existência digna à população negra. Por isso se 
diz que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. A guerra às drogas é uma 
guerra contra pessoas, mas não contra todas, é uma guerra contra negros e negras, para 
os quais a única política social disponível é a política penal e a violência de Estado 
(RODRIGUES, L., 2019). 
23 
 
 
Um dos pontos sensíveis da lei em comento, no qual se destaca esse especial 
direcionamento da política penal, é, justamente, a diferenciação entre traficante e usuário. Por 
ser questão bastante nebulosa, tanto na lei, quanto na práxis, e permeada por grande 
discricionariedade dos policiais e dos juízes, fica evidente a materialização dos grupos alvos do 
encarceramento e da guerra às drogas. Como aponta Juliana Borges (2019, p. 66), aspectos 
sociais, políticos, territoriais, raciais e de gênero possuem total influência no momento de 
diferenciar os sujeitos entre traficantes ou consumidores perante o sistema de justiça penal. 
 
2.2 TRÁFICO OU POSSE/PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL: A 
DIFERENCIAÇÃO QUANTO À FINALIDADE 
 
A lei 11.343/06, no artigo 1º, institui o SISNAD (Sistema Nacional de políticas 
Públicas sobre Drogas), e no artigo 4º traz os princípios pelos quais este será guiado, dos quais 
se destaca o inciso I: “o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente 
quanto à sua autonomia e à sua liberdade;”. Dessa lei, importam para o presente estudo os 
artigos 28 e 33, os quais preveem os crimes de porte ou posse de drogas para consumo pessoal 
e tráfico de drogas respectivamente. Dispõe o artigo 28: 
 
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, 
para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação 
legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: 
I - advertência sobre os efeitos das drogas; 
II - prestação de serviços à comunidade; 
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 
 
Mais adiante, ainda na lei 11.343/06, dispõe o artigo 33: 
 
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, 
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, 
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que 
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou 
regulamentar: 
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 
1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. 
 
Trata-se aqui de tipos penais mistos alternativos, visto que preveem diversas 
condutas, sendo que a prática de qualquer uma delas já consuma o crime, cujo bem jurídico que 
se busca tutelar, em ambos, é a saúde pública, uma vez que se intenta evitar a circulação e 
disseminação das drogas (CARVALHO, 2013). 
Thiago Augusto Carvalho
24 
 
 Sobre a comparação destes dois tipos penais devem ser feitos três apontamentos. 
O primeiro é a materialização da ideologia da diferenciação (DEL OLMO, 1990), tendo em 
vista a enorme diferença entre as penas previstas para cada conduta, 5 a 15 anos para o tráfico 
e apenas penas restritivas de direitos para o crime de porte ou posse para consumo pessoal. Não 
apenas nas penas, as duas condutas se distanciam também nas categorias de delitos nas quais 
são classificadas. Enquanto o tráfico é crime equiparado a crime hediondo, o delito de posse ou 
porte para consumo é infração de menor potencial ofensivo, distinção essa que possui uma série 
de implicações quanto a restrições de direitos e benefícios na execução da pena. 
O segundo é a ausência de tipos penais intermediários com graduações de sanções 
proporcionais à lesão do bem jurídico tutelado. Como aponta Salo de Carvalho (2013, p. 320), 
é possível visualizar que os verbos nucleares do art. 33 importar, exportar, remeter, produzir, 
fabricar, vender e expor à venda significam um potencial lesivo consideravelmente maior 
quando comparados com os verbos adquirir, oferecer, preparar fornecer gratuitamente, ter em 
depósito, transportar, trazer consigo, guardar e entregar a consumo. Entretanto, 
independentemente do distinto potencial lesivo, a pena cominada é a mesma, 05 a 15 nos. 
Assim, discorre o autor: 
[...] entre o mínimo e o máximo da resposta penal verifica-se a existência de zona 
cinzenta intermediária cuja tendência, em decorrência dos vícios advindos do 
dogmatismo jurídico e da expansão do senso comum punitivo, é a de projetar a 
subsunção de condutasdúbias em alguma das inúmeras ações puníveis presentes nos 
18 (dezoito) verbos nucleares integrantes do tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas, 
assim como foi a tradição incriminadora durante o longo período de vigência da Lei 
6.368/76 (CARVALHO, 2013, p. 315). 
 
Conforme Luciana Boiteux (2006, p. 163), ao ampliar o distanciamento entre as 
respostas penais, amplia-se, também o grande fosso entre as camadas mais altas e mais baixas 
da população. Para os viciados que traficam para conseguir manter o seu vício, pertencentes 
aos estratos mais desfavoráveis da sociedade, a resposta é prisão fechada. Para os usuários que 
possuem condições de comprar droga sem traficar, a despenalização. 
 O terceiro apontamento, no qual deve ser posto especial atenção, é que as condutas 
típicas dos dois artigos, ou seja, os verbos que integram a definição do crime, possuem absoluta 
correlação. De fato, todos os cinco verbos que caracterizam o art. 28 – adquirir, guardar, ter em 
depósito, transportar e trazer consigo – estão também previstos no art. 33. 
É devido justamente a essa similaridade entre as elementares objetivas dos crimes 
que, nos casos em que a conduta praticada esteja presente em ambos os tipos penais, os limites 
entre um delito e outro estão colocados no campo da elementar subjetiva, ou seja, o dolo 
específico (CARVALHO, 2013, p. 317). Entretanto, a legislação optou por trazer o dolo 
25 
 
específico, a finalidade especial de agir, somente no art. 28, no delito de porte ou posse para 
consumo, enquanto para o art. 33, delito de tráfico de drogas, basta o dolo genérico. Dessta 
maneira, conforme bem aponta Salo de Carvalho (2013, p. 319), para a caracterização do 
segundo basta a prática de qualquer um dos verbos presentes no caput, pouco importando a 
finalidade; enquanto para a caracterização do primeiro, é necessário que a prática dos verbos 
previstos tenha a finalidade específica de consumo pessoal comprovada. 
Essa escolha por posicionar a elementar subjetiva no delito menos gravoso, 
favorece que, na prática, venha a ocorrer uma inversão do ônus da prova, uma vez que, para 
não configurar o crime de tráfico, recai sobre o réu a responsabilidade de comprovar que a sua 
finalidade na atuação era a de consumo pessoal, enquanto o correto seria que fosse distribuído 
à acusação o ônus de demonstrar que a ação do acusado possuía outra finalidade, que não 
direcionada a seu uso próprio. 
O mesmo diploma legal traz no § 2º do art. 28 os critérios a serem observados pelo 
juiz a fim de determinar se destinação da droga era à de consumo pessoal ou não. 
 
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à 
natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se 
desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos 
antecedentes do agente. 
 
Como se pode perceber, foi adotado um modelo discricionário, onde o julgador 
possui uma gama de critérios para fazer a valoração da forma como bem entender, sem estar 
sujeito a fatores determinantes. Ocorre que essa discricionariedade concedida ao juiz, 
desacompanhada do devido cumprimento do ônus argumentativo, possibilita decisões 
verdadeiramente arbitrárias no tocante a diferenciação entre traficante e consumidor, onde fica 
evidente os preconceitos e a seletividade intrínseca ao sistema penal brasileiro (DINU; 
MELLO, 2017, p. 197). 
Conforme consta em publicação do Projeto Pensando o Direito do Ministério da 
Justiça: 
 
O tipo penal do tráfico qualifica-se como tipo aberto, estabelece penas 
desproporcionais e não diferencia as diversas categorias de comerciantes de drogas 
observadas na realidade social. Além disso, a Lei não é clara quanto à distinção entre 
a tipificação do uso e do tráfico, e o resultado disso é que o Poder Judiciário, além de 
aplicar uma Lei punitiva e desproporcional, concede amplos poderes ao policial que 
primeiro tem contato com a situação. A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda 
comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do 
Judiciário. Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões 
com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes (BRASIL, 
2009, p. 107-108). 
26 
 
 
De fato, a problemática dessa discricionariedade dada aos agentes de segurança 
pública no Brasil vem sendo apontada por diversos estudos. Marcelo da Silveira Campos (2015, 
p. 185) destaca que o processo de atribuição pelos agentes policiais da qualidade de “suspeito” 
a um sujeito antes da abordagem baseia-se em estereótipos e estigmas geralmente submetidos 
à pobreza urbana. Essa capacidade que os policiais declaram adquirir junto com a experiência 
no trabalho, é chamada por eles de “tirocínio policial”, e se define pela eficácia da intuição de 
um policial experiente na identificação de um suspeito (DUARTE et al., 2014). Sobre esse 
subjetivismo os autores afirmam: 
 
O subjetivismo nas abordagens policiais de suspeitos não pode ser, simplesmente, 
identificado com um “tirocínio” que consegue de modo refinado e intuitivo perceber 
suspeitos. Ao invés disso, o subjetivismo relaciona-se com um amplo espaço de 
discricionariedade que permite ao policial errar várias vezes, fazendo inúmeras 
abordagens, até que consiga alcançar seu “objetivo” e, ao mesmo tempo, com um 
conjunto de informações que confirmam e reforçam estereótipos sociais sobre grupos 
sociais e lugares. 
Ainda que a pesquisa não seja conclusiva, a referência aos sinais exteriores de 
pertencimento à dada classe social e a dado grupo raça/cor como critérios de suspeição 
surgem do conjunto da análise, inclusive da leitura qualitativa de alguns processos 
que não foram referidos neste texto. Preconceitos raciais e econômicos não são 
excludentes, assim como não são preconceitos raciais e de gênero. Porém, no contexto 
do sistema penal, a identificação entre criminalidade e negritude parece ter um sentido 
demasiado forte em nossos padrões culturais e, ao mesmo tempo, um impacto muito 
grande no cotidiano das pessoas identificadas socialmente como negras (pretas ou 
pardas) (DUARTE et al., 2014, p. 115-116). 
 
Diante desse panorama, conceder a discricionariedade de determinar se a conduta 
era de tráfico ou de porte para o consumo pessoal aos agentes policiais, como ocorre na prática, 
significa ceder mais espaço para a atuação desses filtros da seletividade penal. Acreditar que os 
indivíduos que atuam e representam um sistema carregado de preconceitos para com a 
população negra e marginalizada seriam capazes de fazer a distinção entre as condutas de 
maneira diversa seria negar os dados apresentados pela realidade. Ainda que a capitulação do 
flagrante como tráfico de drogas não impeça a futura desclassificação para a conduta de porte 
para consumo, visto que não vincula o promotor nem o juiz, a prática evidencia o peso da 
tipificação feita pelos policiais. Como afirma Luciana Boiteux: 
 
Outra característica da aplicação da pena por tráfico no Rio é a ausência de controle 
judicial efetivo sobre a tipificação, pois é a polícia, no momento da prisão em 
flagrante, que define quem é traficante. São raros os casos em que há desclassificação 
para o delito de posse de drogas. Ou seja, tanto o Ministério Público como os juízes 
chancelam a atuação policial, embora, pelas características encontradas nos processos, 
possamos afirmar que muitos dos condenados como traficantes devem ser, na 
realidade, usuários pobres moradores de favelas confundidos como traficantes 
(RODRIGUES, L., 2015). 
 
27 
 
Ademais, a autora destaca, ainda, que a relevância da atuação dos policiais 
responsáveis pela abordagem não se limita apenas à tipificação do flagrante, mas esses possuem 
papel central também na instrução criminal que segue. Com efeito, o que a prática e as pesquisas 
atestam, é que, em processosde tráfico, é bastante comum que todo o conjunto probatório esteja 
baseado na palavra dos policiais, tanto na fase inquisitorial, quanto na fase judicial. Luciana 
Boiteux discorre: 
 
De acordo com a análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela 
montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são 
questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arroladas 
na denúncia. Por outro lado, os juízes, de forma repetitiva, baseiam-se apenas nas 
palavras do policial para condenar o acusado. O baixo número de absolvições em 
primeira instância também comprova essa tese (RODRIGUES, L., 2015). 
 
Em números, pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de 
Janeiro na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana verificou a mesma situação. Aponta 
a pesquisa que em 94,95% dos casos relacionados a drogas analisados ocorreu o depoimento 
de algum agente de segurança pública. Ainda, considerando os casos em que os agentes de 
segurança pública eram os únicos a prestar depoimento nos autos, alcançou-se a porcentagem 
de 62,33% (HABER; MACIEL, 2018). 
Essa discricionariedade permeada por discriminações estruturais aparece 
igualmente em todo sistema de justiça criminal, sendo bastante evidente, sobretudo, nas 
decisões judiciais. Conforme pesquisa realizada no estado de São Paulo, que analisou mais de 
20 mil sentenças de primeiro grau para tráfico de drogas proferidas em 2017, em 49 das 50 
comarcas com mais de 100 julgados a proporção de sentenciados negros em relação aos brancos 
foi maior que a proporção entre negros e brancos nos municípios (DOMENICI; BARCELOS, 
2018). 
Na cidade de São Paulo, por exemplo, o estudo apontou que enquanto a proporção 
da população do município é de 37% negros e 61% brancos, a proporção entre os julgados por 
tráfico é praticamente invertida, 63,6% eram negros e 36,4% eram brancos (DOMENICI; 
BARCELOS, 2019). Da mesma forma, o mesmo estudo realizado na cidade de São Paulo 
também aponta para o fato de a população negra ser processada, em média, com quantidades 
menores de drogas: 
 
Entre os réus brancos foram apreendidas, na mediana, 85 gramas de maconha, 27 
gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o réu é negro, a medida é inferior 
nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de 
crack (DOMENICI; BARCELOS, 2019). 
 
28 
 
 Assim, considerando, a similaridade entre os tipos penais – art. 28 e art. 33 da lei 
11.343/06 –, a imprecisão dos critérios trazidos pelo § 2º do art. 28 e a problemática dos filtros 
aplicados à discricionariedade dos atuantes do sistema penal, analisar os princípios pelos quais 
essa tomada de decisão deve ser guiada é mais do que necessário. 
 
2.3 SISTEMA ACUSATÓRIO E A INDEVIDA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA 
 
Já elencadas as implicações da guerra às drogas e do direcionamento seletivo do 
sistema punitivo, é patente a problematicidade da arbitrariedade nessa importante diferenciação 
das condutas de tráfico e consumo pessoal. O problema se torna ainda mais sério quando se 
percebe o verdadeiro abismo entre os tratamentos penais dados ao traficante e ao usuário e que 
toda a distinção entre uma conduta e outra está sujeita à incerta demonstração da subjetividade 
da finalidade da droga. Desse modo, esclarecer as diretrizes que devem ser seguidas pelo 
julgador/julgadora no momento da decisão é essencial para a proteção dos direitos fundamentais 
dos acusados. Conforme afirma Salo de Carvalho: 
 
Se absolutamente diferenciadas as sanções e os tratamentos penal, processual penal e 
penitenciário dos crimes de tráfico e porte para o consumo, necessário definir chaves 
de interpretação constitucionais que permitam caracterizar, com o mínimo de precisão 
possível, tais desvios puníveis, intentando reduzir os custos e os danos causados pela 
vagueza da estrutura criminalizadora (CARVALHO, 2013, p. 315). 
 
Assim, para a definição dessas chaves de interpretação, atenta-se para o sistema 
constitucional e processual penal brasileiro. Segundo Camilin Poli (2019, p. 329), é possível 
definir o processo penal como um conjunto de atos preordenados, no qual se busca a 
reconstituição de um fato, por meio de provas, com a finalidade do acertamento do caso penal. 
Ao definir o processo dessa forma, logo se nota a importância da reconstituição do fato e, 
consequentemente, das provas para a formatação do processo, visto que esse vai se construir a 
partir delas. Assim, afirma a autora: “Desde esse ponto de vista, sistema processual e iniciativa 
probatória estão indissociavelmente vinculados” (POLI, 2019, p. 329). 
Desse modo, no sistema inquisitório, a figura do julgador/julgadora reúne em si 
duas funções diferentes, a de julgar e a de acusar, sendo sua a iniciativa probatória, marcada 
pela busca da verdade (POLI, 2019). Assim, pode-se dizer que ao julgador/julgadora é dado o 
papel de protagonista na relação processual, enquanto as partes possuem uma atuação 
secundária. Nesse sentido explica Jacinto Coutinho: 
 
29 
 
Excluídas as partes, no processo inquisitório o réu vira um pecador, logo, detentor de 
uma “verdade” a ser extraída. Mais importante, aparentemente, que o próprio crime, 
torna-se ele objeto de investigação. É sobre si que recaem as atenções, os esforços do 
inquisidor. Dententor da “verdade”, dela deve dar conta. Eis a razão por que a tortura 
ganhou a importância que ganhou, e a confissão virou regina probationum 
(COUTINHO, 2009, p. 105) (grifos no original). 
 
Com o olhar que se tem sobre o processo penal na atualidade, mesmo superando o 
emprego da tortura, é bastante fácil, agora, notar a problemática por trás desse sistema. Ao 
conceber a produção de provas, ponto central como destacado acima, de maneira unilateral e 
centrada na pessoa do julgador/julgadora, fica evidente que o resultado será certamente 
contaminado pela parcialidade desse que possui o papel principal no processo. Como destaca 
Camilin Poli (2019): “quem procura quer encontrar algo, vez que se não busca pelo que se não 
deseja”, é inquestionável a conclusão de que a produção de provas será completamente voltada 
apenas para a confirmação da hipótese inicial do julgador/julgadora. Salientando a utilidade 
desse sistema para aqueles que estão no poder, Jacinto Coutinho alude: 
 
Ao permitir – sobremaneira – que se manipule as premissas (jurídicas e fáticas), 
interessa e sempre interessou aos regimes de força, às ditaduras, aos senhores do 
poder. Podendo-se orientar o êxito, faz-se o que quiser. É o reino do solipsismo, por 
excelência. Daí ter durado por tanto tempo; e seguir intacto, em muitos pontos, ainda 
que os novos tempos, pela realidade, duramente o tenham atingido, mormente por lhe 
desmascarar o falso discurso (COUTINHO, 2009, p. 106). 
 
O sistema acusatório, por outro lado, guiado pelo princípio dispositivo, constrói-se 
a partir de funções bem divididas. A acusação compete a tarefa de acusar e produzir provas 
acerca da responsabilidade penal do acusado/acusada; a Defesa compete a tarefa de exercer a 
defesa técnica, empenhar para o respeito aos direitos do acusado/acusada e produzir as provas 
que achar necessárias; e ao julgador/julgadora compete a tarefa de valorar as provas e teses 
apresentadas e julgar o caso de maneira imparcial (POLI, 2019, p. 332). Geraldo Prado, na 
mesma linha, destaca o caráter antagônico entre os sistemas: 
 
A construção teórica do princípio acusatório há de consumar-se mediante oposição ao 
princípio inquisitivo. São antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois 
modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as diferenças devem ser 
extraídas. 
Assim, se na estrutura inquisitória o juiz “acusa”, na acusatória a existência de parte 
autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro 
do processo, cuidando de preservara nota de imparcialidade que deve marcar a sua 
atuação (PRADO, 2005, p. 174-175). 
 
O mesmo autor expõe que a diferença entre os dois sistemas também se dá, também 
na finalidade do processo. O processo inquisitório era construído a partir da função primordial 
de realizar o direito penal material, ou seja, para concretizar o poder punitivo, por isso o 
30 
 
juiz/juíza exercia encargo de segurança pública (PRADO, 2005, p. 173). Entretanto, percebe-
se que tal entendimento não se coaduna mais com a finalidade atribuída ao processo penal 
atualmente. Trata-se, na contemporaneidade, “de assegurar que o exercício legítimo do poder 
punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja implementado de acordo com princípios 
éticos adotados expressa ou implicitamente na Carta Constitucional” (PRADO, 2005, p. 27). 
Dessa forma, o vínculo entre direito, processo e democracia é essencial para a 
fixação de validade das normas jurídicas pelas quais se estrutura o sistema processual. Em 
relação ao sistema penal, esta ligação é especialmente importante, visto que só um poder 
enraizado na soberania popular e limitado constitucionalmente teria legitimidade para afetar tão 
duramente a vida de uma pessoa (PRADO, 2005, p. 27). Nessa perspectiva afirma o autor: 
 
O processo assim, em um Estado democrático e, principalmente, em uma sociedade 
também democrática, revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não da 
ação isolada de um só, ainda que este um — mesmo sendo o juiz — atue informado 
pela disposição de encontrar a solução mais justa, ou, dito com outras palavras, 
apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este um atue para o povo (PRADO, 
2005, p. 70). 
 
Por esse motivo, a mudança de paradigma com relação à função do processo penal 
se mostra tão relevante. Somente ao entender o processo penal como forma de garantir os 
direitos fundamentais do indivíduo frente ao Estado punitivo, abandonando a visão puramente 
instrumental do processo, é que se pode desenvolver um sistema que busque a efetivação do 
princípio democrático. No mesmo sentido desenvolve Aury Lopes Júnior: 
 
Por fim, o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço 
do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do 
poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o 
respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se 
defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, 
legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo 
desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias 
constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal) (LOPES 
JÚNIOR, 2019, p. 45-46). 
 
Definir o sistema processual penal adotado no Brasil apresenta certas dificuldades, 
dentre as quais está, notadamente, o fato de o Código de Processo Penal ser de 1941, enquanto 
a Constituição Federal é de 1988. Afirma Jacinto Coutinho que, assim como foram os 
fundamentos históricos que formaram os dois sistemas, a opção, seja por um sistema ou pelo 
outro, é política (COUTINHO, 2009). Logo, ao olharmos as diretrizes fixadas pela Constituição 
de 1988, instrumento que representa as escolhas políticas constituintes da atual democracia 
31 
 
brasileira, esta teria claramente, ainda que de forma tácita, optado pelo sistema acusatório. 
Conforme Geraldo Prado: 
 
Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público 
a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a 
todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de 
lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção da 
inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e 
imparcial, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, 
embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou (PRADO, 
2005, p. 300-301). 
 
Já analisando o Código de Processo Penal, no entendimento de Nucci (2016), o 
sistema processual poderia ser classificado como misto, visto que na fase pré-processual 
prevaleceria o sistema inquisitivo, descomprometido com o contraditório, enquanto na fase do 
processo judiciário seria acusatório. Com efeito, Jacinto Coutinho (2009) é categórico ao 
afirmar que não existem mais sistemas processuais puros, sendo todos, sem exceções, mistos, 
visto que mesmo sendo regidos por um princípio inquisitivo ou dispositivo, possuem elementos 
provenientes do outro sistema. Nesse sentido, deve-se buscar no núcleo de cada sistema o 
princípio informador para que se possa classificar como predominantemente inquisitório ou 
acusatório (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 54). É realizando essa análise que Camilin Poli 
classifica: 
 
[...] como se pode verificar na estrutura processual penal brasileira, são muitas as 
possibilidades de atuação de ofício pelo juiz (v.g. decretação de prisão e demais 
medidas cautelares, oitiva de testemunhas não indicadas pelas partes, decretação de 
busca e apreensão, ordem de sequestro de bens, alteração da classificação jurídica do 
fato, condenação quando do pedido de absolvição pelo Ministério Público, etc.), as 
quais demonstram a prevalência dos elementos inquisitórios no ordenamento jurídico 
pátrio, bem como na práxis processual penal (POLI, 2019, p. 334). 
 
Dessa forma, percebe-se que a efetiva aplicação de um sistema predominantemente 
acusatório é, até o momento, apenas uma promessa que somente um novo Código de Processo 
penal e um novo fundo cultural mais democrático poderiam tornar realidade (PRADO, 2005, 
p. 301). Ainda que um novo Código pudesse, verdadeiramente, trazer inúmeros avanços nessa 
direção, é sabido que mudanças legislativas pouco resolvem quando desacompanhadas de uma 
real mudança cultural, que, tragicamente, parece ainda distante na realidade brasileira atual. 
De todo modo, entende-se que, assim como os demais princípios previstos pela 
Constituição Federal, como o da dignidade da pessoa humana e o princípio democrático, o 
princípio acusatório deve ser entendido como um ideal, um norte a ser seguido, para que guie 
32 
 
as mudanças legislativas e jurisprudenciais, buscando sempre uma maior adequação do 
processo penal brasileiro com este sistema. 
Efetivamente em um Estado de direito não pode haver outro processo senão o 
acusatório, de modo que possibilite a distribuição das funções processuais entre três sujeitos, 
garantindo o contraditório entre as partes e a imparcialidade do juiz/juíza (GRINOVER, 1982, 
p. 56). Diante disso, é possível perceber certo movimento legislativo direcionado ao 
estabelecimento do sistema acusatório no processo penal pátrio. Quanto a este movimento, é 
possível destacar o projeto do Novo Código de Processo Penal brasileiro (Projeto de Lei no 
Senado nº 156/2009 e Projeto de Lei na Câmara nº 8.045/2010) que prevê no seu art. 4º: “O 
processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa 
do juiz na fase de investigação e a substituição da autuação probatória do órgão de acusação.”. 
E ainda, a lei 13.964/19, chamada de “pacote anticrime”, que apesar de diversas 
críticas, trouxe a figura do juiz de garantias, de modo a preservar a imparcialidade do 
julgador/julgadora do mérito da causa, bem como incluiu o art. 3º-A ao vigente Código de 
Processo Penal2, o qual possui redação praticamente idêntica ao art. 4º do projeto acima citado. 
Sobre esse importante avanço, afirma Aury Lopes Júnior: 
 
[...] agora podemos afirmar que o processo penal brasileiro é legal (art. 3º-A do CPP) 
e constitucionalmente acusatório, mas para efetivação dessa mudança é 
imprescindível afastar a vigência de vários artigos do CPP e mudar radicalmente as 
práticas judiciárias. É preciso, acima de tudo, queos juízes e tribunais brasileiros 
interiorizem e efetivem tamanha mudança (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 71). 
 
Outro ponto que merece ser destacado, na distinção entre os princípios inquisitório 
e acusatório, é o conceito de verdade buscada pelo processo penal. Sobre esse, Luigi Ferrajoli 
(2014, p. 562) atenta para o fato do caráter monista e monológico do processo penal no sistema 
inquisitório corresponder a uma concepção igualmente monista da verdade. Ou seja, acredita-
se que a verdade é absoluta, substancial e única, e alcançá-la é o único objetivo do processo 
penal inquisitório. No modelo acusatório, por outro lado, segue o autor, a verdade é concebida 
como formal e relativa, e deve ser buscada, como em qualquer pesquisa empírica, através do 
procedimento de erro e prova. 
 
A principal garantia de sua consecução é consequentemente confiada a máxima 
exposição das hipóteses acusatórias à falsificação pela defesa, isto é, ao livre 
desenvolvimento do conflito entre as duas partes do processo, portadoras de pontos 
de vista contrastantes exatamente porque titulares de interesses opostos. No conflito, 
 
2 Com a concessão de Liminar na Medida Cautelar nas ADI's n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 pelo Min. FUX, está 
suspensa, sine die, a eficácia do art. 3º-A do Código de Processo Penal, bem como a implementação da figura do 
juiz de garantias. 
33 
 
ademais, o primeiro movimento compete à acusação. Sendo a inocência assistida pelo 
postulado de sua presunção até prova em contrário, é essa prova contrária que deve 
ser fornecida por quem a nega formulando a acusação. Daí o corolário do ônus 
acusatório da prova expresso pelo axioma nulla accusatio sine probatione 
(FERRAJOLI, 2014, p. 562). 
 
Nesta mesma linha, assumindo que a única verdade possível de se alcançar é a 
verdade processual, entende-se que é a esta que as provas se direcionam. Como os fatos em si 
simplesmente são, não sendo possível considerá-los verdadeiros ou falsos, o que se debate no 
processo são os enunciados sobre o fato, aquilo que foi alegado no processo. Desse modo, as 
provas são utilizadas para comprovar aquilo que foi alegado, e não o fato em si (BADARÓ, 
2003, p. 159-160). Da mesma forma, sintetizando, Carlos Fonseca Monnerat (2005, p. 76) 
define a prova judicial como “a demonstração dos fatos alegados, em juízo”. No mesmo sentido 
discorre Camilin de Poli: 
 
Assim, se no processo se chega sempre uma versão sobre o(s) fato(s), se o juiz ao 
julgar escolhe entre uma das versões apresentadas, que é somente a parte e não o todo, 
e se a verdade está no todo, é claro que no processo se atua com alguma coisa que não 
é a verdade. Portanto, no processo não se trata do fato em si (‘real’, ‘verdadeiro’), mas 
do que se diz (ou se pode dizer) sobre ele. Logo, o conhecimento que chega [no 
processo] é sempre parcial (POLI, 2019, p. 329-330). 
 
Quanto à maneira de valorar as provas, a doutrina aponta três sistemas de valoração 
de provas. O legal, o de livre convicção e o da persuasão racional. O sistema adotado atualmente 
pela legislação brasileira é o sistema da persuasão racional, onde o juiz/juíza é livre para atribuir 
a valoração das provas da maneira que melhor entender, desde que de forma racional e 
fundamentada, sempre adstritamente àquilo presente nos autos (MONNERAT, 2005, p. 88). 
Esse sistema deve também prever as regras as quais o juiz/juíza deve se atentar em 
caso de dúvidas, sendo precisamente neste ponto que se revela a importância da distribuição do 
ônus da prova. Conforme Gian Antonio Micheli (1961, p. 3), para melhor compreendermos esta 
questão, é necessária uma busca histórica. 
 
a) numa primeira fase, o ajuizamento de uma demanda coloca o adversário em posição 
de desculpar-se ou defender-se; b) em um segundo estágio, o juiz estabelece qual das 
partes deve produzir a prova em juízo, com base em regras de experiência, que lhe 
ditam qual das partes está em melhor posição para produzir determinada prova; c) 
numa terceira fase, tais regras se solidificam e em contraposição à prova direta se 
forma a prova contrária, direcionada a combater os resultados da primeira; d) a 
combinação do conteúdo dos itens b e c gera o dogma de que a necessitas probandi é 
considerada sob a ótica exclusiva da atividade probatória individual, de tal maneira 
que as regras de distribuição do ônus da prova se manifestam como regras de prova 
legal; e) no último estágio, essa atividade das partes perde sua importância como 
condição necessária para conseguir um resultado favorável, adquirindo importância o 
ônus da prova como regra de juízo, a ser aplicada quando o juiz não se encontra em 
34 
 
condições de decidir de outra maneira o caso em exame (MICHELI, 1961, p. 6 apud 
MONNERAT, 2005, p. 93-94). 
 
De fato, a doutrina aponta para dois aspectos distintos do ônus da prova. O 
subjetivo, ligado à atividade das partes e o objetivo, ligado à regra de julgamento. O aspecto 
subjetivo do ônus da prova, também chamado de ônus da prova subjetivo, diz respeito à 
responsabilidade das partes de buscar fontes de provas para juntarem ao processo, ou seja, é o 
incentivo processual de que a parte defenda seus interesses com elementos probatórios, para 
que seus argumentos não fiquem apenas no campo das alegações (MONNERAT, 2005, p. 96). 
 Por essa definição que a produção de provas se caracteriza como um ônus às partes, 
pois se cumprido, pode trazer uma vantagem daquela parte no processo, mas se não exercitado, 
pode, da mesma forma, pôr a parte em uma situação de desvantagem (MONNERAT, 2005, p. 
90). Esse aspecto do ônus da prova se materializa no sistema processual penal na figura do art. 
156 do Código de Processo Penal. 
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado 
ao juiz de ofício: 
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas 
consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e 
proporcionalidade da medida; 
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de 
diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (grifou-se) 
 
Entretanto, o mesmo artigo, ao conferir poderes probatórios ao juiz/juíza, além de 
representar um dos mencionados elementos inquisitórios no nosso processo penal, também 
demonstra um dos motivos pelos quais o caráter subjetivo do ônus da prova vem sofrendo 
atenuações. Carlos Fonseca Monnerat é categórico ao afirmar: 
 
A partir do momento em que se admite que o processo civil e, muito mais, o processo 
penal não estão sob a égide de um princípio dispositivo, e estando claro que ao juiz 
são concedidos poderes instrutórios, parece perder sentido o chamado ônus subjetivo 
da prova (MONNERAT, 2005, p. 98). 
 
Essa atenuação deriva do princípio da aquisição da prova, que dispõe que uma vez 
realizada a prova, esta poderá ser utilizada tanto para benefício quanto para prejuízo de qualquer 
uma das partes. Por isso, afirma-se que não existe mais um ônus subjetivo absoluto da prova, 
visto que ao não cumprir com este ônus, a parte não restará necessariamente em posição de 
desvantagem, uma vez que o ônus pode vir a ser cumprido pela outra parte ou até mesmo pelo 
juiz/juíza de ofício (DINAMARCO, 2004, p. 206). 
O aspecto objetivo, ou ônus objetivo da prova, por outro lado, é uma regra de 
julgamento, relacionado não às partes, mas ao juiz/juíza, a ser utilizada quando no momento de 
35 
 
julgar, ainda permaneça em dúvida (MONNERAT, 2005, p. 97). Essa regra de julgamento 
deriva diretamente da vedação do non liquet, a qual impõe que o juiz/juíza não pode se abster 
de decidir nenhuma ação por considerar não haver elementos suficientes para o seu 
convencimento (MONNERAT, 2005, p. 95). Trata-se do princípio da indeclinabilidade, uma 
vez que o Estado assumiu o monopólio da resolução de conflitos, todos

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