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O depoimento de policiais militares como única prova de autoria no processo penal envolvendo crime de tráfico de drogas

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O depoimento de policiais militares como
única prova de autoria no processo penal
envolvendo crime de tráfico de drogas
Análise sobre a predominância e a dependência dos depoimentos de policiais militares para
comprovar a autoria no crime de tráfico de drogas.
RESUMO
O presente trabalho aborda a predominância da prova testemunhal no processo penal, com foco nos depoimentos dos
policiais militares, que são chaves tanto para o início do inquérito policial como para a condenação do indivíduo abordado
pelos agentes da lei.
Com base nisso, são feitas considerações acerca das características do processo penal atual, de forma a entender melhor
como a praxe forense se desenvolve, apesar das teorias sobre o assunto e como seria o modelo ideal.
Para entender melhor a prática forense, com o método indutivo, foi apurado, por meio de pesquisas cruzadas, como era a
persecução penal do tráfico de drogas na cidade de São Paulo há dez anos e como é atualmente (analisando 149 acórdãos
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, do último mês – de 05/07/2021 a 05/08/2021), sendo que, feito uma
comparação, notou-se poucas diferenças no modus operandi do referido tribunal, apesar do avanço do tempo e das
tecnologias disponíveis atualmente.
Ou seja, em ambos os casos se verificou a vital importância do papel da polícia militar no processo penal, que inicia o
inquérito pela abordagem do sujeito, em juízo reitera seus depoimentos, culminando com a condenação.
A pesquisa desenvolvida foi quali-quantitaiva, uma vez que se buscou analisar em números os acórdãos do tribunal no
último mês na capital paulista, desenvolvendo-se estatística com relação seu modo de agir, bem como se apurou o modus
operandi nos processos penais envolvendo o tráfico de drogas e a prova de autoria.
O objetivo da pesquisa é apurar como o tribunal processa o crime de tráfico de drogas atualmente, descrever como ocorre o
processo de convencimento dos magistrados, tecer críticas a respeito do sistema e estado de coisas atual, bem como
buscar meio alternativos mais seguros para impor condenações criminais.
Nesta questão, foi abordada a problemática em torno da dependência do depoimento dos policiais no processo penal, a
presunção de veracidade que tais depoimentos têm, bem como a reiteração do que foi dito na fase inquisitiva à luz da
vedação do art. 155 do Código de Processo Penal, que proíbe o juiz de condenar com base exclusivamente nos elementos
do inquérito policial.
Considerando a realização da prova, foi também abordado as formas de valoração da prova pelo juiz e como o sistema
adotado no Brasil (livre convencimento motivado do juiz) faz com que se tenha pouca segurança jurídica.
Por fim, o trabalho trouxe à luz formas alternativas de mudar o paradigma atual que estão sendo debatidas, bem como
entendimentos jurisprudenciais vanguardistas para melhorar a questão probatória no processo penal, garantindo mais
precisão na análise dos casos judiciais envolvendo o crime de tráfico de drogas.
PALAVRAS-CHAVE: testemunha, policial militar, prova, processo penal, tráfico de drogas, presunção de inocência.
ABSTRACT
The present paper addresses the predominance of the testimonial evidence in the criminal lawsuit, focusing on the officer’s
testimony, which is key to start the investigation as well as to convict the person approached by the officers of the law.
Based on this, considerations are made regarding the characteristics of the current criminal lawsuit to better understand how
the usual forensic practice occurs, despite the theories about the issue and how the ideal model would be.
To better understand the forensic practice, using the inductive method, it was found through crossed searches, how it was
the criminal prosecution on the drug trafficking in the City of São Paulo ten years ago and how it currently is, since it was
made a comparison and it was noted few differences on the way the courtroom of State of São Paulo acts, despite the
advance of time and the technologies available today.
That is to say, in both cases the vital importance of the police’s role was verified on the criminal lawsuit, which begins with
the investigation through the approach of the subject, in the courtroom they repeat their testimony, culminating with the
conviction.
The search made was quali-quantitative, because it was analyzed in numbers sentences from the courtroom in the last
month on the São Paulo Capital, developing statistics related to the way it acts, as well as to investigate its modus operandi
on the criminal lawsuits involving drug trafficking and its authorship.
The objective of the search is to investigate how the courtroom sues the drug trafficking crimes currently, to describe how
occurs the convincing process of the judges, criticize the system and its status quo, as well to seek alternative methods that
are more secure to impose criminal convictions.
In this issue, it was addressed the problematic around the dependence of the officer’s testimony in the criminal lawsuit, the
veracity presumption that these testimonies have, as well as the reiteration of what was said during the investigation
considering the prohibition on the article 155 of the Criminal Process Code, which forbids the judge to decide based only in
evidence of the investigation.
Considering the production of evidence, it was also addressed the ways of the valuation of the evidence by the judge and
how the adopted system in Brazil (free motivated convincing) makes that there is little legal security.
Finally, the paper brought to light alternatives to change the current paradigm that are being debated, as well as
jurisprudential understandings, to improve the evidential issue in the criminal lawsuit, which guarantees more precision on
the analysis of judicial cases involving drug trafficking.
KEYWORDS: witness, military officer, evidence, criminal lawsuit, drug trafficking, presumption of innocence.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda a predominância e a dependência dos depoimentos de policiais militares para comprovar a
autoria no crime de tráfico de drogas, sendo que, para melhor análise, foi feita uma exposição de como o processo penal
brasileiro foi desenvolvido originalmente e como se encontra atualmente, fazendo um contraste entre teoria e prática.
Foi verificado como a apuração do crime de tráfico de drogas era feita há dez anos, fazendo um contraste de como é feito
atualmente na cidade de São Paulo, verificando diferenças e semelhança no modus operandi do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Com base nisso, foi possível notar a dependência da prova testemunhal no processo penal, de forma que foi avaliado as
consequências do uso exacerbado desta prova e os modelos epistêmicos relacionados a ela.
Também, foi abordada a presunção de veracidade dos depoimentos dos agentes policiais, fazendo com que haja verdadeira
inversão do ônus da prova no processo penal em prejuízo o réu, que acaba tendo o ônus de provar sua inocência frente a
tais depoimentos.
Ainda, verificou-se a reiteração do depoimento de policiais militares colhidos na fase inquisitorial, de forma que, no processo
não surge nenhuma prova nova, sendo que apenas se judicializar o testemunho dos agentes da lei como forma de evitar a
violação do art. 155 do Código de Processo Penal, que estabelece que é vedada a condenação com base exclusivamente
do inquérito policial.
Assim, há uma clara redundância no procedimento, vez que, na grande maioria das vezes, os policiais militares realizam a
abordagem do sujeito, descrevendo ao delegado de polícia o que ocorreu, instaurando-se inquérito policial, que na grande
maioria das vezes somente tem tais testemunhos como elementos informativos para subsidiar a denúncia.
E, ao chegar os autos ao Ministério Público, tal órgão de persecução penal deflagra a ação penal com base em tais
testemunhos, arrolando os policiais militares como testemunhas, para que somente repitam o que foi dito na fase de
inquérito e buscar a condenação.
Durante a pesquisa,observou-se como a polícia militar constrói a verdade jurídica no processo, fazendo referências com
pesquisas cruzadas, que também observaram como era construída a narrativa policial no sentido de legitimar seu trabalho e
garantir que este surtiria o efeito desejado, condenando os indivíduos selecionados à justiça criminal.
Esse modus operandi é típico em crimes de tráfico de drogas, nos quais não há vítima direta para que seja ouvida e
corrobore o que está sendo dito, conforme se verá adiante da análise jurisprudencial do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Com base nessa problemática de procedimento redundante aceito judicialmente, foi elaborado o presente trabalho, com
objetivo de descrever o procedimento que é feito atualmente na apuração de tráfico de drogas, criticar esse modo de
proceder, com base em elementos epistemológicos, bem como expor formas mais democráticas de persecução penal, com
base em um verdadeiro sistema acusatório.
Para a realização do estudo, foi empregado o método indutivo. Ainda, foi feito um amplo estudo na doutrina processual
penal mais abalizada, bem como análise da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos
últimos meses.
Como base nisso, foca-se na violação ao citado art. 155 do Código de Processo Penal, vez que tal dispositivo estabelece a
vedação de condenação com provas exclusivamente nos elementos do inquérito policial sendo que, atualmente, há um
mero teatro processual para dar ares de legalidade à ação penal que, no fundo, conserva sua matriz inquisitiva.
Também se justifica a pesquisa, considerando que qualquer pessoa pode ser abordada por suposto delito de tráfico de
drogas, de forma que é preciso verificar e criticar o modus operandi da polícia, bem como a respectiva chancela por parte
do Ministério Público e Poder Judiciário a fim de determinar formas alternativas e mais seguras de comprovação deste
crime.
Assim, a pesquisa se mostra relevante para determinar quais standards probatórios são aceitos no processo penal para
condenar uma pessoa, considerando que é preciso prova segura acerca da autoria do crime, a fim de que todos os
cidadãos tenham a garantia de que sua presunção de inocência e todos os demais direitos serão respeitados no processo
penal.
Por fim, para compreender melhor o estudo, o trabalho aborda, incialmente, os elementos do inquérito policial e processo
penal, com ênfase nos procedimentos como garantias aos cidadãos. Posteriormente, é feito o estudo na jurisprudência,
descrevendo e analisando como são os casos de tráfico de drogas que chegam ao Poder Judiciário e como a prova é
valorada no processo penal e, por fim, são propostos meios para alterar o paradigma atual, de forma a buscar um processo
penal verdadeiramente democrático e acusatório.
O INQUÉRITO POLICIAL E A AÇÃO PENAL
Antes de adentrar o tema especificamente, cumpre fazer breves considerações e esclarecimentos sobre o inquérito policial
e a ação penal, notadamente como foram pensados originalmente, como isso impacta no processo penal de hoje, bem
como contrastar a teórica com a prática, que são muito diferentes.
De início, cumpre estabelecer o contraste histórico, temporal e cultural entre a Constituição Federal de 1988 e os diplomas
em matéria penal, da década de 1940, período extremamente diferente do qual se vive hoje e que impacta a matriz do
sistema penal brasileiro, em que pese alterações pontuais posteriores nos diplomas legais.
O CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E PRINCIPAIS DIPLOMAS
PENAIS
Como é de conhecimento notório, o direito penal e processo penal têm fundamento constitucional, consoante uma série de
garantias materiais e processuais estabelecidos no rol do art. 5º da Carta Magna. Entretanto, o Código Penal e Código de
Processo Penal são de 1940 e 1941, respectivamente, contraste este não só temporal, como histórico e cultural.
Isso porque, em 1940 o Brasil passava pelo Estado Novo, governo ditatorial de Getúlio Vargas, vez que em 1937 ocorreu
golpe de Estado, sendo alegado que, supostamente, haveria um plano de levante comunista, chamado de “Plano Cohen”, o
qual era um documento com conteúdo supostamente subversivo à ordem pública, que objetivava instaurar uma ditatura
comunista no Brasil.
Tal plano fundamentou o golpe de Estado, fazendo Getúlio se manter no poder. Sobre isso, o jornalista Lira Neto, no livro
“Getúlio Vargas: do Governo Provisório ao Estado novo” narra que referido plano era apenas uma manobra política:
[...] Desde o início de setembro, começara a circular nos meios militares cópias de um
hipotético plano subversivo da tomada do poder, que teria sido descoberto pelo serviço de
informações do Estado-Maior do Exército. O chamado Plano Cohen – o nome judaico era
particularmente sugestivo – detalhava supostas ações que os comunistas estariam
planejando para instituir um governo de extrema esquerda no Brasil. Ao longo de dezoito
tópicos, as diretrizes de insurreição preveriam, entre outros itens, “regras para o trabalho
de agitação das massas”, “organização de marchas coletivos de todo o operariado”,
“incentivos a saques e depredações”, “desencadeamento de uma greve geral” e “formação
de comitês de incêndio contra prédios públicos”. No caso de um fracasso do levante, o
texto recomendava o fuzilamento sumário de militares e civis situados em posições de
destaque na hierarquia governamental.
O Plano Cohen era flagrantemente falso. Fora escrito no final de agosto pelo então coronel
Olímpo Mourão Filho, chefe do serviço secreto da Associação Integralista Brasileira. De
acordo com o que admitira mais tarde o próprio Mourão, o texto teria sido redigido por ele
a pedido de Plínio Salgado, mas como um exercício teórico. (NETO, 2016, p. 304).
No que tange a tal golpe, o citado jornalista estabelece com maestria suas características, que eram voltadas à repressão
da população:
Ao longo dos 187 artigos redigidos por Francisco Campos, existiam influências notórias da
italiana Carta del Lavoro, editada na Itália por Mussolini, particularmente no que dizia
respeito à organização da economia e da política por meio de corporações profissionais.
Entretanto, o corporativismo propriamente dito jamais seria implantado no Brasil, do
mesmo modo que a prática nazifascista do partido único não vingaria durante o Estado
Novo. [...]
A proibição dos partidos tinha por finalidade extirpar, em definitivo, a política tradicional da
vida brasileira. Erradicar aquilo que nas palavras do próprio Getúlio era definido
como “ranço democrático” – ou “as filigranas doutrinárias” e as falsas noções de
liberdades públicas”. [...]
Getúlio, em seus pronunciamentos, reforçava a tese de que todos os males históricos do
país seriam originários das lutas eleitoreiras e da ocupação do Estado pelos políticos
profissionais. O novo regime, ao banir os interesses partidários, fechar o Legislativo e
transformar governadores e prefeitos em simples funcionários a serviço da União, teria
supostamente eliminado o mal pela origem, submetendo as resoluções da administração
ao primado da razão técnica.
“O Estado, segundo a ordem nova, é a Nação, e deve prescindir, por isso, dos
intermediários políticos”, justificava. Grifos meus. (NETO, 2016, p. 3181).
Ou seja, o pluralismo político e a divergência de ideias caíram por terra em seu governo, vez que, segundo o Presidente,
somente existiria um partido político, que seria o Brasil, sob o fundamento de que partidos políticos buscavam apenas se
autofavorecem, e não procuravam melhorar o país realmente.
Sobre a referida Constituição Federal de 1937, então vigente na época de edição do Código Penal e Código de Processo
Penal, o doutrinador constitucionalista Pedro Lenza também estabelece seus aspectos:
Era o início do que Vargas intitulou de “nascer da nova era”, outorgando-se a Constituição
de 1937, influenciada por ideais autoritários e fascistas, instalando a ditadura “Estado
Novo”, que só teria fim com a redemocratização pelo texto 1945, e se declarando, em todo
o país,o Estado de emergência. [...]
Além de fechar o Parlamento, o Governo manteve amplo domínio do Judiciário. A
Federação foi abalada pela nomeação dos intervententes. Os direitos fundamentais foram
enfraquecidos, sobretudo em razão da atividade desenvolvida pela “Polícia Especial” e
pelo “DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda”. Para piorar, pelo Decreto-lei n. 37,
de 02.12.1937, os partidos políticos foram dissolvidos. [...]
O direito de manifestação do pensamento foi restringido, pois previa o art. 122, 15, “a”,
que, com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia de
imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão podia ser exercida, facultando-se à
autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação. [...]
(Ademais), foi declarado o estado de emergência (art. 186), que, suspendendo direitos e
garantias individuais, só veio a ser revogado pela Lei n. 16, de 30.11.1945. (LENZA, 2014,
p. 126/131).
Nesse sentido, é possível analisar que diversas garantias constitucionais são deixadas de lado, como a liberdade de
expressão, para garantir a “paz, ordem e segurança pública”, conceitos extremamente vagos, que poderiam ser utilizados
para censurar qualquer propaganda ou informação, legitimando-a na Constituição Federal.
De outro lado, no que concerne à legislação como um todo, também sofreram impactos, notadamente os diplomas penais,
que foram editados no sentido de conferirem maior poder ao Estado e minimizar as garantias individuais. Tal fenômeno foi
bem observado pelos livros de história, como pondera o jornalista:
Os Códigos de Processo Civil e Penal passaram por revisões históricas, que
aprofundaram as medidas de segurança e o rigor da ação repressiva do Estado. Foram
reduzidos consideravelmente os direitos individuais, sob o pretexto de “neutralizar os
indesejáveis” e eliminar as “garantias” que, em tese, beneficiavam os malfeitores. No caso
do Código Penal, o modelo que serviu de inspiração à reforma brasileira foi o Código
Rocco, da Itália fascista. (NETO, 2016, p. 325).
Salienta-se, que os próprios Código de Processo Penal e Código Penal foram editados sob a espécie legislativa chamada
de “decreto-lei”, a qual é inexistente atualmente, o que mostra a exacerbada influência do Poder Executivo sobre o Poder
Legislativo, demonstrando que o Estado estava bem longe de ser considerado democrático.
Sobre o Código de Processo Penal, particularmente, é possível ver em sua exposição de motivos que foi pensado
justamente para impor a “lei e ordem”, sob o argumento de que o código vigente è época seria muito benéfico aos
criminosos:
As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em
flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias
e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária,
decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a
injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode
continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O
indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da
vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades
além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida
reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente
projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal
avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de
formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal
compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se
transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.
(CAMPOS, 1941, p. 01).
Com relação ao inquérito policial, as considerações feitas foram acertadas, considerando que tal expediente investigativo
veio justamente para conferir a garantia aos cidadãos de que não serão processados sem justa causa, ainda que pese que
o contraditório não é obrigatório nesta fase:
Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há em favor do inquérito policial, como
instrução provisória antecedendo a propositura da ação penal, um argumento dificilmente
contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados
quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja
possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e
subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação
inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou
falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Grifo meu (CAMPOS, 1941, p. 02).
Outra questão que foi louvada pela exposição de motivos foi o papel mais ativo que o juiz teve quando o Código foi editado,
afirmando que seria extremamente salutar que o juiz não ficasse à mercê das partes:
Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua
intervenção na atividade processual é permitida, não somente para dirigir a marcha da
ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe
parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito
a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e
houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio
pro reo ou o non liquet. (CAMPOS, 1941, p. 04).
Conforme se verá melhor adiante, tal característica de postura ativa do juiz é típico de procedimento inquisitivo, forma
marcante em governos autoritários, no qual se busca a suposta “verdade real” a qualquer custo, ao invés de criar um
processo verdadeiramente acusatório e dispositivo, no qual o juiz é inerte e depende da atuação das partes, para que
conserve sua posição de imparcialidade.
Por fim, com relação ao código procedimental, outra alteração louvada na exposição de motivos, foi a ampliação da
possibilidade de decretação da prisão preventiva, vez que foram colocados termos extremamente vagos para seu
cabimento:
A prisão preventiva, por sua vez, desprende‑se dos limites estreitos até agora traçados à
sua admissibilidade. Pressuposta a existência de suficientes indícios para imputação da
autoria do crime, a prisão preventiva poderá ser decretada toda vez que o reclame o
interesse da ordem pública, ou da instrução criminal, ou da efetiva aplicação da lei penal.
Tratando‑se de crime a que seja cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual
ou superior a 10 (dez) anos, a decretação da prisão preventiva será obrigatória,
dispensando outro requisito além da prova indiciária contra o acusado. A duração da
prisão provisória continua a ser condicionada, até o encerramento da instrução criminal, à
efetividade dos atos processuais dentro dos respectivos prazos; mas estes são
razoavelmente dilatados. (CAMPOS, 1941, p. 04-05).
O uso exacerbado de tal medida cautelar e excepcional será melhor visto adiante, de forma que é possível verificar que a
ideia de quando o código foi pensado foi, justamente, para que a prisão preventiva pudesse ser usada quando o juiz
entendesse conveniente, sendo que, seu âmbito de atuação somente foi restringido após reformas democráticas pontuais.
Além disso, o Poder Judiciário ficou enfraquecido frente às leis mais restritivas que foram sendo criadas, de forma que,
inclusive prefeitos e governadores tiveram seu âmbito de atuação restringido com a nomeação de interventores, que eram
cargos nomeados pelo Presidente Vargas para que pudesse ter pessoas de confiança nos Estados e informar o governo
federal dos pormenores da política daquelas localidades, para evitar conflitos e controlar mais de perto.
Também, nesta mesma época foi editada a Lei das Contravenções Penais, que são consideradasespécies de infrações
penais, sendo que, a clássica doutrina afirma que as infrações penais em são divididas em crime e contravenção, sendo
estas infrações de menor gravidade, demonstrando que o Estado buscava controlar todas as condutas sociais por meio da
ameaça penal, o que demonstra como o Estado era autoritário, conforme a doutrina afirma:
Ademais, nunca é demais salientar que este período ficou marcado pela forte intervenção
do Poder Executivo, o qual intervia diretamente na elaboração das leis, sobretudo com a
expedição de decretos-leis, e a frequente violação de direitos fundamentais que à época
ainda eram escassos.
Entre esses e outros motivos, estão as causas que findaram numa edificação de uma
legislação de comportamentos tão monitorados quanto é a Lei de Contravenção Penal,
ante o pensamento daquela fase de que Estado deveria gerir todos os passos da
sociedade, inclusive nas mínimas maneiras de se portar perante o terceiro e, assim
supostamente estariam regulamentando os comportamentos típicos de complexidade que
naquela época era necessário. Grifo meu. (RODOVALHO, 2010, p. 66).
Ainda, nota-se que eram tomadas diversas medidas de cunho ditatoriais, como a instituição da Lei de Segurança Nacional,
Lei nº 38/35, que foi uma forma encontrada para censurar a imprensa. Notadamente quanto sua opinião era contrária ao
governo.
Salienta-se que, na época, toda a propaganda governamental era baseada na instituição da chamada “Lei e Ordem”,
afirmando que o governo deveria estabelecer leis fortes para manter o país unido, principalmente livre de movimentos
separatistas.
No diário de Vargas, é possível ver suas conclusões:
“O governo necessita de leis que o fortaleçam contra essa onda dissolvente de todas as
forças vivas da nacionalidade”, avaliava. “A polícia sente-se vacilante na repressão aos
delitos, pelas garantias dada pela Constituição à atividade dos criminosos e o
rigorismo dos juízes em favor da liberdade individual.” Grifo meu. (NETO, 2016, p.
198).
Desta forma, é possível notar que o então Presidente da República considerava as garantias constitucionais estorvos à
implantação da chamada ordem pública. Na mesma citada obra, é possível observar a forma de procedimento do governo:
As prisões de jornalistas e de trabalhadores suspeitos de subversão iriam se tornar
frequentes. No geral, as abordagens policiais dispensariam as formalidades previstas em
lei [...]. Além de que “a simples denúncia originava a prisão imediata do suspeito. Não era
a certeza da prática efetiva do crime, mas a mera possibilidade de um delito vir a ser
praticado que determinada o encarceramento de um indivíduo” (NETO, 2016, p. 257).
Assim, é possível perceber que quando o atual Código Penal e Código de Processo Penal foram editados, o país
passava por um período autoritário, no qual as garantias constitucionais estavam sendo minimizadas e privilegiava
a soberania do Estado.
Em âmbito diametralmente oposto foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Inicialmente, a Constituição atual foi
promulgada, editada em Assembleia Nacional Constituinte, ao contrário da Constituição de 1937, a qual havia sido
outorgada pelo Presidente da República, sem a devida representação popular.
Ainda, a Constituição atual foi editada em um momento de redemocratização do Estado Brasileiro, que se recuperava da
ditadura militar (1964-1985), sendo que, ao final desta, vários movimentos populares clamavam pelas “diretas já” para que a
população escolhesse diretamente seus representantes, e não o voto indireto para o Presidente da República.
Neste sentido, como o país tinha visto como era um Estado autoritário, o povo buscou se afastar daquele modelo e exigiu
um Estado democrático, que se consolidou na Constituição atual, que consagra garantias constitucionais individuais, que
protegem o cidadão contra o abuso do Estado, bem como garantias sociais, no sentido de prestação de serviços públicos
para a população em geral.
No que tange às principais alterações com a atual Constituição, o doutrinador Pedro Lenza sintetiza com a costumeira
maestria:
Declaração de direitos:
a) os princípios democráticos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos
estão consolidados no texto, consagrando direitos fundamentais de maneira inédita, por
exemplo, ter tornado o racismo e tortura (que já havia sido abolida – art. 179, XIX, da
Constituição de 1824) crimes inafiançáveis;
b) os direitos dos trabalhadores foram ampliados;
c) pela primeira vez se estabeleceu o controle das omissões legislativas, seja pelo
mandado de injunção (controle difuso), seja pela ADI por omissão (controle concentrado),
[...];
d) introduziu-se a ADPF – arguição de descumprimento de preceito fundamental [...];
e) outros remédios também foram previstos pela primeira vez no texto, quais sejam, o
mandado de segurança coletivo e o habeas data;
f) há previsão específica, pela primeira vez, de um capítulo sobre o meio ambiente (art.
225);
g) nesse sentido, destacam-se, dentre as funções institucionais do Ministério Público, a de
promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e
social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 127, caput, e 129,
III);
h) outra relevante função institucional do MP é a de defender judicialmente os direitos e
interesses das populações indígenas (art. 129, V);
i) importante previsão da Defensoria Pública como instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os
graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. Por força das alterações promovidas
pela Lei n. 11.448/2007, a Defensoria tornou-se parte legítima para a propositura de ação
civil pública. [...]. (LENZA, 2014, p. 143-144).
Com isso, é possível ver, de forma nítida, as diferenças entre a Constituição Federal atual e os diplomas penais da década
de 1940 que, além do grande espaço de tempo entre elas, também há filosofias e ideologias quanto à organização do
Estado completamente diferentes: a Carta Magna busca tornar o país democrático e com garantias individuais, enquanto os
diplomas penais convergiam no sentido de um Estado mais forte frente aos cidadãos.
Salienta-se que, com base nessa distinção, o processo penal e o direito penal devem se compatibilizar com a Constituição
atual, e não o oposto. Nisso bem ponderou o doutrinador Aury Lopes Junior:
Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo,
a consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que o fundamento
legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio de sua
instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo
somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a
partir da Constituição. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 34).
Assim, considerando que as leis infraconstitucionais devem se adequar à Constituição, os diplomas penais devem
se moldar à sistemática da Constituição democrática atual, e nunca o oposto. Ou seja, o direito penal deve se
adequar à dogmática constitucional e garantista do Estado atualmente ao invés de fundamentar medidas atentatórias às
liberdades individuais em disposições legais anacrônicas.
A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL
Como foi visto anteriormente, o direito penal deve se adequar à nova ordem constitucional, de forma que, como em todo
país de base democrática, o que necessita de legitimação é o poder de punir estatal e não a liberdade individual, que
decorre da própria dignidade da pessoa humana.
Ou seja, em um país democrático, a liberdade é a regra e a prisão é a exceção, devidamente fundamentada, e nunca
o oposto, como pugnam movimentos populares de lei e ordem. Sobre isso bem preleciona o mestre Aury Lopes Junior:
A perigosa viagem discursiva que nos está sendo (im)posta atualmente pelos movimentos
repressivistas e as ideologias decorrentes faz com que, cada vez mais, a “liberdade” seja“provisória” (até o CPP consagra a liberdade provisória...) e a prisão cautelar (ou mesmo
definitiva) uma regra. Ou, ainda, aprofundam-se a discussão e os questionamentos sobre
a legitimidade da própria liberdade individual. Principalmente no âmbito processual penal,
subvertendo a lógica do sistema jurídico-constitucional. [...]
Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a
intervenção estatal e não a liberdade individual. [...]
A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria
dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e
tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de
Direito em que vivemos. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 35).
Desta forma, não se deve alterar o discurso, no sentido de ser necessário fundamentar do porquê um réu pode permanecer
em liberdade durante o processo penal, vez que esta é a regra. Na realidade, deve sempre ser fundamentado do porquê
determinado réu precisa ficar em medida cautelar prisional, vez que a liberdade é a regra e prisão é exceção.
Ainda, importante salientar que o processo penal como um todo é uma garantia ao cidadão, que, além de saber quais os
procedimentos que serão feitos, com seus direitos a eles inerentes, há um tempo para que se pondere sobre o ocorrido,
evitando-se verdadeiras vinganças institucionalizadas.
É que o afirma Aury Lopes Junior, continuando seu raciocínio da citação anterior:
Não podemos sacrificar a necessária maturação, reflexão e tranquilidade do ato de julgar,
tão importante na esfera penal. Tampouco acelerar o ponto de atropelar os direitos e as
garantias do acusado. Em última análise, o processo nasce para demorar (racionalmente,
é claro), como garantia contra julgamentos imediatos, precipitados e no calor da emoção.
[...]
A urgência conduz a uma inversão do eixo lógico do processo, pois, agora, primeiro
prende-se para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do processo
(que somente poderia decorrer de uma sentença, após decorrido o tempo de
reflexão que lhe é inerente), que jamais poderá ser revertido, não só porque o tempo
não volta, mas também porque não voltam a dignidade e a intimidade violentadas no
cárcere. [...]
Nessa linha, evidencia-se o cenário de risco e aceleração que conduz a tirania de urgência
no processo penal. Essa nova carga ideológica do processo exige especial atenção diante
da banalização da excepcionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a processual
exige uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão, obviamente incompatível com
o epidérmico e simbólico tratamento de urgência. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 48-53).
Assim, deve haver um equilíbrio entre o trâmite processual e a maturação sobre os fatos que estão sendo apurados,
devendo obedecer à razoável duração do processo, para que não se faça juízos precipitados e injustos, verdadeira
vingança institucionalizada, mas que não fique na mora judicial e se efetive a tutela jurisdicional tardiamente.
A NECESSIDADE DE AUTONOMIA DOGMÁTICA DO PROCESSO PENAL
Além de o processo ser um fator legitimador, é também necessário, pois não existe a aplicação de pena sem o devido
processo legal, ou seja, a pena não é uma consequência somente do delito, mas também do processo.
Sobre isso, afirma Aury Lopes Junior: 
Em relação ao direito penal, a autonomia obtida é suficiente, até porque, como define
Carnelutti, delito e pena são como cara e coroa da mesma moeda. Como o são direito
penal e processual penal, unidos pelo “princípio da necessidade” – nulla poena sine iudicio
– tão bem definido por Gomez Orbaneja. [...]
Já no campo penal tudo é diferente. O direito penal não é autoexecutável e não tem a
realidade concreta fora do processo. É castrado. Se alguém for vítima de um crime, a pena
não cai direta e imediatamente na cabeça do agressor. O direito penal não tem eficácia
imediata e precisa, necessariamente, do processo penal para se efetivar, pois o processo
é um caminho necessário e inafastável para chegar na pena. (LOPES JR., 2021, p. 67),
Ainda, segundo o mesmo autor, tomando como base as lições de Carnelutti, escrito no artigo intitulado “Cenerentola”,
Cinderela, da fábula infantil, afirma que o direito penal foi como a Cinderela, de forma que sempre tinha que fazer um
esforço para caber nas roupas das irmãs, o direito civil e processual civil.
Neste sentido, o autor ressalta a importância da independência dogmática do processo penal, citando diversos exemplos,
como: no processo penal, a forma é garantia de poder, de forma que não se pode importar o princípio do pás de nulité sans
grief, pois a mera inobservância do procedimento já é um prejuízo para o réu, apesar de a ação ser autônoma ao direito
material, no processo penal, não há como ter uma cisão tão nítida, vez que é preciso demonstrar o mínimo de autoria e
indícios de materialidade para deflagrar a ação penal.
Também, afirma que não se deve falar nas clássicas condições da ação (notadamente interesse processual), pois o
processo penal é uma necessidade para imposição da pena; tampouco deve se falar em lide penal, vez que não há
propriamente uma pretensão resistida, mas sim, uma pretensão acusatória do poder condicionado de punir; a jurisdição é
uma garantia ao cidadão e um limite de poder; a imparcialidade do juiz é essencial, pois está pairando sobre o réu a
possibilidade de sanção criminal, com isso, o juiz não deve buscar provas ou mesmo analisar as investigações preliminares,
sob pena de ficar contaminado.
Sobre a imparcialidade, o referido autor afirma que “o ativismo judicial mata o Processo Penal. Juiz ator, que vai atrás da
prova, desequilibra a balança, mata o contraditório e fulmina a imparcialidade” (LOPES JR., 2021, p. 70), o que demonstra a
essencialidade de um juiz que respeite sua posição e deixe a cargo das partes a produção probatória, salientando o ônus
da prova do Ministério Público em provar a culpa do réu.
Tal posição contraria totalmente o que foi pensado para o Código de Processo Penal, como foi visto na exposição de
motivos, vez que foi elogiada pelo autor a possibilidade de o juiz tomar medidas de ofício, típico de procedimento inquisitivo.
Enfim, diversas são as “adaptações” feitas pela teoria geral do processo para que o processo penal consiga ter parte nesta
teoria geral. Entretanto, diversas peculiaridades do processo penal se perdem meio a tal teoria. Assim, por ser um ramo
específico, deve ter sua autonomia dogmática e seus institutos próprios respeitados.
AS CARACTERÍSITICAS DO DIREITO/PROCESSO PENAL BRASILEIRO
Como foi visto no primeiro tópico, tanto o Código Penal quanto o Código de Processo Penal são datados da década de
1940, momento em que o Brasil passava por um período de governo autoritário de Getúlio Vargas.
Nesse sentido, em que pese as diversas alterações dos diplomas legais para torná-los mais democráticos e compatíveis
com a ordem social vigente atualmente, o sistema conserva suas bases e diretrizes daquele período, sem contar na prática
forense que, muitas vezes, acaba dando mais valor aos diplomas penais que a própria Constituição.
Neste sentido, é ponderado pela doutrina:
O processo penal brasileiro deveria se constitucionalizar e democratizar, abrindo-se para a
esfera protetiva ali estabelecida, bem como se convencionalizando. Sem embargo, a
prática forense, fruto de uma forte cultura inquisitória arraigada, opera em sentido inverso:
comprime a esfera de proteção constitucional e convencional para entrar na forma
autoritária do código. [...]
A banalização do direito penal gera uma enxurrada diária de acusações, muitas por
condutas absolutamente irrelevantes, outras por fatos que poderiam ser objeto do
direito administrativo sancionador ou de outras formas de resolução de conflitos e,
ainda, uma quantidade imensa de acusações por condutas aparentemente graves e
relevantes, mas carentes de justa causa, sem um suporte probatório suficiente para
termos um processo penal (emdecorrência da má qualidade da investigação
preliminar, também fruto – no mais das vezes – da incapacidade de dar conta do
imenso volume de notícias-crimes). Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 92-93).
Ou seja, nota-se que atualmente o processo penal passa por sérios problemas, notadamente o número exagerado de
crimes a se investigar, sem quantidades suficientes de pessoal nas polícias, de forma que há que perder tempo com
condutas mínimas, como o uso de drogas, momento em que poderia focar em produzir uma investigação mais robusta para
os crimes mais graves, como homicídio, latrocínio, entre outros.
A falta de investigação mais profunda dos crimes será abordado mais adiante no trabalho, momento em que será debatido
a prova policial no processo penal, que assume protagonismo, em virtude de ausência de produção de outras provas mais
concretas.
Outra característica marcante no processo penal é a ampla utilização das medidas cautelares, notadamente a prisão
preventiva, por ser a mais grave e passa a sensação à população de que algo está sendo efetivamente feito e, quando uma
pessoa é réu e um processo penal, há a sensação generalizada de impunidade e que “não vai dar em nada”, ou mesmo
quando se descobre um crime e não foi imediatamente preso, a população em geral afirma que “não deu em nada”, apesar
de o processo estar tramitando regularmente.
Nota-se, inclusive, que na exposição de motivos, foi justamente motivo de nota a ampliação dos casos em que seria aceita
a prisão preventiva, sendo louvada tal alteração, para que o juiz pudesse analisar no caso concreto sua pertinência.
A prisão preventiva é marcante no tráfico de drogas, de forma que o discurso institucional (tanto do Ministério Público como
do Poder Judiciário) é que o “Estado deve tomar posições enérgicas para combater tal crime”, que é “nefasto para a
sociedade” que coloca a “saúde pública em xeque”, que é “equiparado a crime hediondo”, que “a pena mínima supera
quatro anos, sendo cabível a segregação cautelar”, entre outros.
Ou seja, basta analisar as decisões que proferem as decretações de prisão preventiva, na grande maioria em conversão de
flagrante em audiências de custódias e, pode-se ver claramente que a prisão preventiva acaba sendo fundamentada em
expressões genéricas, que serve para motivar toda e qualquer decisão, sem se analisar detidamente o caso concreto e
porque a cautelar segregacionista seria necessária naquela situação.
No estudo realizado por Maria Gorete de Jesus, no qual observou a construção da verdade jurídica a partir dos policiais
militares nos casos de tráfico de drogas, foi assim concluído com relação ao uso da prisão preventiva:
Manutenção da prisão preventiva: garantia da ordem pública
Pesquisas mostram que nos casos de acusação de tráfico de drogas, a principal
justificativa utilizada para manutenção da prisão provisória é a necessidade de garantir a
“ordem pública” (ibidem, p.89).
Por ser um conceito vago e indefinido, são os operadores do direito que preenchem o
significado deste termo, e fazem isto utilizando um “jogo discursivo extralegal”, que reúne
avaliações sobre a periculosidade da pessoa acusada, os problemas sociais causados
pela droga e a necessidade de defesa da sociedade (ibidem, p.130). Um dos juízes
entrevistados disse que existe em torno do conceito “ordem pública” um “subjetivismo”:
“existe uma coisa que opera, e é perversa, que é o subjetivismo do juiz. Na lei, há de
se manter a prisão para garantir a ordem pública, mas ninguém sabe o que é ordem
pública ninguém sabe o que é” (JUIZ 3).
Argumentos conjunturais – o tráfico
A defesa da sociedade representa o foco central de tais manifestações. Há avalições
sobre o aumento da criminalidade, os danos sociais causados pelas drogas e outros
argumentos que descrevem um cenário dramático da violência e do crime na sociedade.
[...]
Durante uma audiência de custódia, o juiz disse ao acusado: “a sociedade espera de
mim que eu a defenda de pessoas como você”. Ou seja, é como se este juiz dissesse
que precisa prender para defender a sociedade dos riscos que a pessoa representa. A
prisão é tida como importante para a manutenção da credibilidade no funcionamento da
justiça criminal. E continuou “se eu te soltar, o policial que te prendeu vai se sentir
desprestigiado, e a gente sempre escuta que a polícia prende, e o juiz solta, e a
sociedade acredita nisto, preciso mostrar que não é assim que funciona”. Mais uma
vez a sociedade é enunciada como o público ao qual o juiz precisa se manifestar, e faz
isso através da prisão. Além disso, o famoso jargão “a polícia prende, o juiz solta” é
descrito como um mito que precisa ser desfeito. [...]
Há uma certa “identificação” dos juízes com os policiais, (o mesmo acontece com relação
aos promotores). Ambos são membros do Estado, dizem atuar em “defesa da sociedade”
e pela “ordem pública”. Ambos necessitam um do outro para serem reconhecidos pela
sociedade como importantes para a resolução de conflitos e para a proteção social. Este
pode ser outro fator explicativo da crença dos juízes nos policiais, há uma empatia fundada
no reconhecimento de semelhanças. [...]
Prisão para assegurar a conveniência da instrução criminal
Podemos dizer que a condição socioeconômica tem efeitos em três níveis: o primeiro é a
incriminação, em que sua situação social será transformada em “indicio” para a definição
do crime como tráfico de drogas; o segundo é o procedimento, em que o tratamento
dispensado pelos operadores será diferenciado entre uma e outra pessoa a depender do
status e classe social; o terceiro diz respeito à instrução criminal, em que a condição
socioeconômica entra no cálculo da segurança de que a pessoa acusada responderá ao
processo, sendo assim necessária a residência fixa e trabalho lícito. [...]
Os promotores e juízes não irão ao local onde ocorreu a prisão para saber, por
outras pessoas, como foi a ocorrência. Não é este o papel desses operadores. Eles
recebem inicialmente os relatos feitos pelos policiais, posteriormente, os relatos do
acusado e eventualmente os relatos das demais testemunhas. Aliás, o sistema de
justiça criminal pode ser pensado como um “sistema de crenças e práticas”
(SCHRITZMEYER, 2012, p.92). Grifos meus. (DE JESUS, 2016, p. 175-176, 178, 183, 190
e 193).
Nesse sentido, não se analisa a necessidade da prisão preventiva em face das circunstâncias especiais do caso,
mas sim, do crime em si que se apura, se for tráfico de drogas, a probabilidade de ficar preso preventivamente é
muito grande, por ser um crime abstratamente grave.
Sobre esse fenômeno, é analisado pela doutrina:
A crise de credibilidade do processo e jurisdição conduz à ampliação dos casos de prisão
preventiva, a menos liberdade no processo, menos direitos e garantias processuais e mais
eficiência (leia-se: atropelamento procedimental). Em suma, conduz à ilusão de que,
acelerando de forma utilitarista os processos, restringindo recursos, limitando o uso de
habeas corpus e ampliando o espaço de justiça negocial, se chega o mais rápido possível
a uma pena, de preferência sem precisar do processo. [...]
A prisão preventiva também tem sido distorcida para forçar acordos de delação premiada
(mostrando a outra dimensão da crise a seguir tratada, da [in]eficácia da liberdade no
processo penal), na seguinte (dis)função: delata para não ser preso; ou delata para ser
solto, ou, ainda, é solto para delatar. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 93-94, 102).
O mesmo autor argumenta que é comum que o réu seja mantido preso sob o fundamento de garantir a ordem pública, caso
em que não se trata mais do processo, mas sim, este acaba exercendo verdadeira função de polícia do Estado (LOPES
JR., p. 123).
Dessa forma, percebe-se que ocorre uma verdadeira inversão de valores constitucionais, no qual a regra deveria ser a
liberdade e a prisão em casos excepcionais, não sendo isso que acontece na prática, conforme se verá melhor adiante na
análise jurisprudencial.
A referida pesquisa de Maria Gorete de Jesus citou um caso de um juiz dedireito que ia contra a corrente de majoritária de
creditar palavra aos policiais militares e converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, de forma que tal juiz sofreu
denúncias na Corregedoria do Tribunal de Justiça, por intermédio dos promotores de justiça e, com isso, foi impedido de
exercer sua função nas varas criminais:
As decisões deste juiz passaram a ser questionadas, sobretudo por promotores de justiça,
que decidiram “representá-lo” junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça, órgão
correcional dos magistrados. A representação tinha como motivação central o fato do juiz
“prender pouco e soltar muito”, sobretudo os casos de tráfico de drogas. Após tal ação, o
juiz foi afastado do Fórum Criminal Central e deixou de ser designado para atuar nas varas
criminais daquele Fórum, sendo colocado para atuar em uma vara da área cível.
O caso deste juiz suscitou uma série de questionamentos, sobretudo com relação à
independência dos juízes. Revelou também uma pressão no interior do campo jurídico
para tornar as prisões a regra, e não a exceção. E colocou em evidência o campo de
imunidade da narrativa policial. (DE JESUS, 2016, p. 200).
Tal juiz foi ouvido e disse que:
No começo da minha carreira eu entendia a narrativa policial como algo central, porque
você vai vendo jurisprudência no sentido de dizer que os policiais têm fé pública, que são
funcionários públicos, e a própria doutrina valida muito isso [...]. Colocando na balança eu
ia na corrente de acreditar na palavra do policial. Mas isso sempre me incomodou muito.
Ainda mais quando a gente vai conhecendo a realidade, da lógica de guerra às drogas, é
uma lógica muito polarizada. É natural que um dos lados, ao construir a sua versão da
realidade faça uma narrativa que faça sentido, que dê legitimidade a sua ação. O policial é
um agente da segurança pública, e existe uma lógica de guerra, ele vai apresentar uma
narrativa voltada para garantir a prisão do acusado. Por isso eu passei a adotar uma
jurisprudência, uma doutrina, que por mais minoritária que fosse, me subsidiava para
decidir não apenas com base na palavra do policial, mas buscando outros elementos. Ou
seja, a palavra do policial não é algo absoluto, é apenas um dos elementos que deve
ser observado a partir de outras provas. Quando eu comecei a atuar contra a corrente,
não utilizando os argumentos de senso comum, fui sendo destacado. Eu utilizava mais a
jurisprudência e doutrina minoritárias que relativizavam a palavra do policial. Essas
jurisprudências eram referentes a casos envolvendo pessoas com maior poder aquisitivo,
que conseguiam bons advogados para fazerem seus casos chegarem aos tribunais
superiores. Isso começou a chamar muito a atenção, porque não havia nenhum outro juiz
que decidia na mesma linha que eu, vamos dizer assim, garantista. Os juízes garantistas
não atuavam no plantão, então eu era o único, e isso começou a incomodar. Diziam que
eu era o juiz que soltava. Eu estava atuando no plantão, e isso incomodou os “caras”
[promotores], de ter alguém que nada contra a corrente. Daí eles se juntaram e fizeram
uma representação e conseguiram me tirar de lá. Daí você vê a lógica do sistema. Eu
tenho certeza que isso aconteceu especialmente por conta das minhas decisões nos
casos de tráfico. E o judiciário, que deveria ser cuidadoso com a garantias fundamentais, e
atuar de forma independente, funciona na lógica da guerra às drogas (JUIZ 12). Grifo meu.
(DE JEUS, 2016, p. 200-201).
Para ser ter uma ideia do uso abusivo da prisão preventiva, em 2013 foi realizada pesquisa pela Associação pela Reforma
Prisional (ARP) e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Ucam (CESeC), na qual se constatou que 98% das
prisões em flagrante por tráfico de drogas são mantidas no Rio de Janeiro, número quase absoluto, superior, ainda,
ao do crime de homicídio, que tem taxa de 93% de manutenção das prisões.
Com base nisso, a doutrina mais abalizada afirma que é essencial a audiência de custódia, de preferência presencial, para
que o juiz possa ter contato com o réu diretamente, verificar o caso e apurar a necessidade ou não da decretação da prisão
preventiva.
Na oportunidade, é importante esclarecer a fundamentalidade do princípio do ne procedat iudex ex officio, o qual afirma que
o juiz não deve agir de ofício, sendo que, tal expressão não deve ser considerada somente no momento de deflagração do
processo penal, que deve ocorrer por meio da denúncia do Ministério Público e não de ato propriamente do juiz, de forma
que o juiz deve se manter igualmente inerte durante o restante do processo.
Ou seja, a partir do momento em que o juiz começa a realizar atos de ofício, sem provocação das partes, quer dizer que
tem, ao menos, uma ideia dos fatos, e quer corroborar tais ideias para que possa fundamentar sua sentença
posteriormente. Sobre isso, Aury Lopes Junior estabelece que o processo penal é realmente democrático quando a
gestão da prova fica exclusivamente com as partes, e não com o juiz.
Ainda, convém citar suas preciosas lições:
Esse afastamento estrutural exige que a esfera de atuação do juiz não se confunda com a
esfera de atuação das partes, constituindo uma vedação a que o juiz tenha iniciativa
acusatória e também probatória. [...] O ne procedat iudex ex officio deve ser levado a
sério e, obviamente, demarcar a posição do juiz durante todo o processo e não
apenas no início. O ativismo judicial, o condenar sem pedido, o buscar provas de ofício,
tudo isso produz um deslocamento estrutural que fulmina a posição do juiz por sacrificar o
princípio supremo do processo: a imparcialidade. Não se pode, repetimos, pensar a
estrutura sistêmica do processo e a posição do juiz, de forma desconectada da
imparcialidade. Grifo meu. (LOPES JR., 2021, p. 104).
Ainda, o mesmo autor continua em suas considerações, afirmando que, mais do que o juiz ter efetivamente a
imparcialidade, deve ter uma aparência de imparcial, de forma que deve ficar estruturalmente distante das partes
para que o processo penal não caia em descrédito perante a sociedade.
Para garantir o verdadeiro processo democrático e acusatório, foi inserido no Código de Processo Penal, o art. 3º-A pela Lei
nº 13.964/2019 (conhecida como pacote anticrime), que estabelece “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a
iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” – grifo meu
(BRASIL, 2019).
Em que pese a novel inovação legislativa, até o presente momento, o texto se encontra suspenso pela medida liminar
deferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.298 do Distrito Federal,
promovida pela Associação dos Magistrados do Brasil, a qual tal inovação legislativa promoveria grande alteração na rotina
de trabalho dos fóruns brasileiros e que daria a entender que os magistrados estariam sendo parciais em seus julgados
criminais.
Na realidade, a nova lei apenas busca adequar o processo penal brasileiro à Constituição Federal brasileira e seu regime
acusatório, entretanto, há movimentos de oposição, como a citada associação, o que demonstra a cultura inquisitiva no
Brasil.
Ademais, não se está afirmando que os juízes agem propositalmente de má-fé e não têm imparcialidade e são sempre
inclinados a condenar o réu. O que se afirma é que o juiz que atua no inquérito policial, notadamente tomando
decisões quanto à quebra de sigilo bancário, decretação da prisão preventiva, entre outros incidentes, fica
contaminado.
Isso porque, desde a portaria inaugural do inquérito ou auto de prisão em flagrante, os magistrados estão em contato direto
com a hipótese acusatória, notadamente em longas investigações, quando se pede várias vezes a dilação do prazo para
finalização do inquérito, bem como invoca a tutela jurisdicional para decidir durante o inquérito, sendo que, na grande
maioria das vezes, somente terá contato com a versão defensiva após o recebimento da denúncia, na resposta acusação,
que se destina principalmente à absolviçãosumária.
Nisso estabelece a doutrina mais abalizada:
O juiz brasileiro – por culpa da estrutura processual adotada até então – já inicia o processo
completamente contaminado e sem a necessária originalidade cognitiva, na medida em que a
“prevenção” fixa a competência. [...] A reforma trazida pela Lei nº 13.964/2019 pretende
exatamente romper com essa estrutura inquisitória e superar esses problemas. [...]
Daí, uma vez mais, a imprescindibilidade do sistema doble juez, ou seja, que o juiz que atua na
fase investigatória não seja o mesmo que depois instrua e julga. É a evidência de que o juiz das
garantias (art. 3º-B e ss.) e a prevenção como causa de exclusão da competência (nesta
perspectiva de não ser o mesmo juiz) são instrumentos absolutamente necessários. Grifo meu,
(LOPES JR, 2021, p. 105-106).
Ou seja, o referido autor afirma que, ao contrário do que estabelece a legislação vigente, a partir do momento em
que o juiz toma decisões em determinado inquérito, ele não deve ficar prevento a ele, mas sim deve ser excluído
para que o caso não seja julgado por um juiz contaminado pelos elementos de convicção inseridos no bojo da
investigação.
Ainda, o autor continua o raciocínio, citando a teoria da dissonância cognitiva desenvolvida na psicologia, que explica a
reação do indivíduo ao ter que tomar uma decisão decorrente de teses totalmente distintas.
Em linhas introdutórias, a teoria da ‘dissonância cognitiva’ desenvolvida na psicologia
social, analisa as formas de reação de indivíduo diante de duas ideias, crenças ou
opiniões antagônicas, incompatíveis, geradoras de uma situação desconfortável, bem
como a forma de inserção de elementos de ‘consonância’ (mudar uma das crenças ou as
duas para torna-las compatíveis, desenvolver novas crenças ou pensamentos, etc.) que
reduzam a dissonância e, por consequência, a ansiedade e o estresse gerado. Pode-se
afirmar que o indivíduo busca – como mecanismo de defesa do ego – encontrar um
equilíbrio em seu sistema cognitivo, reduzindo o nível de contradição entre o seu
conhecimento e sua opinião. É um anseio por eliminação das contradições cognitivas,
explica Schünemann. [...]
É de supor – afirma Schünemann – que ‘tendencialmente o juiz a ela [a imagem já
construída] se apegará de modo que ele tentará confirma-la na audiência (instrução), isto
é, tendencialmente deverá superestimar as informações consoantes e menosprezar
informações dissonantes.’
Para diminuir a tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva, haverá dois efeitos
(Schünemann):
a) efeito inércia ou perseverança: mecanismo de autoconfirmação das hipóteses,
superestimando as informações anteriormente consideradas corretas (como as
informações fornecidas pelo inquérito ou denúncia, tanto que ele as acolhe para aceitar a
acusação, pedido de medida cautelar, etc.);
b) busca seletiva de informações: onde se procuram, predominantemente, informações
que confirmam a hipótese que em algum momento prévio foi aceita (acolhida pelo ego),
gerando o efeito confirmador-tranquilizador.
A partir disso, Schünemann desenvolve uma interessante pesquisa de campo que acaba
confirmando várias hipóteses, entre elas, a já sabida – ainda que empiricamente – por
todos: quanto maior for o nível de conhecimento/envolvimento do juiz com a
investigação preliminar e o próprio recebimento da acusação, menor é o interesse
dele pelas perguntas que a defesa faz para a testemunha e (muito) mais provável é a
frequência com que ele condenará.
Por tudo isso, representa um avanço gigantesco a inserção dos arts. 3º-A a 3º-F pela Lei
nº 13.964/2019, que finalmente consagra expressamente: o sistema acusatório no CPP; o
juiz das garantias, que não atua de ofício e que, posteriormente, não será o mesmo a
instruir e julgar; e, ainda, o sistema de exclusão (ou não inclusão) das peças do inquérito
no processo. Grifo meu. (LOPES JR, 2021, p. 107-109 e 116).
Assim, considerando a teoria da dissonância cognitiva, bem como considerando a forma como o inquérito policial e o
processo penal é feito no Brasil, o juiz fica a todo momento em contato com a versão acusatória, passando a criar uma
imagem mental sobre o ocorrido, de forma que, ao tomar conhecimento da versão defensiva, via de regra, somente na
resposta à acusação, momento em que a versão acusatória já está maturada no âmago do juiz.
Além do mais, outro fator importante para que o juiz possa conservar a sua versão de imparcialidade, é necessário que a
gestão da prova seja eminentemente das partes, não do juiz, uma vez que todos os processos de países democráticos, o
juiz conserva sua posição inerte e não prejudica sua posição distante das partes:
A imparcialidade cai por terra quando se atribuem poderes instrutórios (ou investigatórios
ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é característica essencial do princípio
inquisitivo, que leva, por consequência, a fundar um sistema inquisitório. A
gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz conduz à figura do juiz-ator (e não
espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do
processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por
derradeiro, a imparcialidade, sempre recordando que não se pode pensar o sistema
acusatório desconectado do princípio da imparcialidade e do contraditório, sob pena
de incorrer em grave reducionismo. A imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e
sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de
possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de
acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória. Grifo meu.
(LOPES JR, p. 117, 2021).
Desta feita, outra característica marcante do direito processual penal brasileiro é a gestão da prova eminentemente com o
juiz, sempre sob o argumento de que o juiz é o destinatário final da prova e, com isso, ele deveria verificar quais provas são
pertinentes, podendo, inclusive, realizar determinadas provas de ofício, como oitiva de testemunhas, entre outros.
Isso macula o sistema acusatório, como foi bem ponderado pelo doutrinador, uma vez que se o juiz está buscando
determinada prova, quer dizer que ele já tem o seu convencimento firmado sobre os fatos, querendo corroborá-los com as
provas que busca.
O protagonismo judicial pode ser observado também nas oitivas de testemunhas, que, apesar de o Código de Processo
Penal estabelecer claramente em seu art. 212 que as partes perguntarão diretamente às testemunhas, devendo o juiz
questionar somente pontos complementares. Entretanto, em muitas audiências, nota-se que o juiz inicia a inquirição da
testemunha, de forma que as partes perguntam após as perguntas formuladas pelo magistrado, invertendo totalmente a
ordem que o estatuto processual penal previu.
No mesmo sentido, é comum ver na praxe é a formulação de perguntas indiretas, passando pelo juiz, para que este então
questione a testemunha, quando na realidade o código estabelece de forma nítida que o questionamento será feito
diretamente, com protagonismo das partes, não do juiz, devendo obedecer ao sistema do chamado cross examination.
Sobre isso, afirmam Flaviane Baldasso e Gustavo N. Ávila, em seu trabalho denominado “a repercussão do fenômeno das
falsas memórias na prova testemunhal: uma análise a partir dos julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul”:
[...] Não basta que a lei trate da matéria. Se isso fosse suficiente para se tomar
consciência a respeito de temáticas tão importantes ao processo penal, que podem
culminar na restrição de um direito fundamental do cidadão tal qual é a liberdade, não se
teria ainda hoje, passados nove anos da alteração legislativa que implantou o sistema de
cross-examination no Código de Processo Penal, juízes presidindo a tomada de
depoimento, como se num sistema presidencialista inquisitivo ainda estivessem.
(BALDASSO, Ávila, 2018, p. 36).
Desta feita, temos mais um exemplo de sistemática do código que busca torná-lo mais acusatório, com a gestão
probatóriadas partes, mas os juízes em geral, arraigados na cultura inquisitiva, acabam tomando para si a gestão,
sempre sob o argumento de que eles são o destinatário da prova, voltando ao modelo inquisitivo dos Estados
autoritários.
Outro caso que costumeiramente ocorre nas cortes brasileiras é o juiz querer assumir papel de vingador social, atuando de
forma exacerbada, praticando atos que são verdadeiramente das partes, como determinar a juntada de determinada prova,
bem como praticar atos de ofício, o que não deveria ocorrer, seja para beneficiar a acusação ou o réu. Tal ativismo judicial é
claramente heranças do sistema inquisitório brasileiro.
Como claro exemplo, há o então juiz Sérgio Moro, que era o juiz responsável pelos casos da operação lava-jato, quebrou
sua imparcialidade ao passar a discutir as teses com os procuradores, bem como ter uma curiosa proximidade entre eles,
informando quando ocorreria os atos processuais, informalmente, fora da intimação do Diário Oficial.
Nesta feita, em pouco tempo tal juiz proferiu inúmeras condenações e virou herói nacional, notadamente pelas
condenações serem vinculadas a membros de determinado partido e, quando o partido de oposição chegou ao poder, Moro
foi convidado para ser Ministro da Justiça, aceitando tal convite, demonstrando clara posição político-partidária.
Ainda, em referidas operações policiais sobre corrupção, considerando que as pessoas investigadas são políticos ou
conhecidos, é comum a espetacularização do trabalho tanto da polícia, como do juiz. Ou seja, o processo penal ou a
investigação ficam sob o holofote, sendo que, a qualquer ato praticado ou prisão decretada, a mídia noticia rapidamente os
fatos.
E, com base na narrativa da mídia, cria-se a opinião pública, as pessoas passam a debater fervorosamente se as decisões
e os trâmites estão acertados, apesar da grande maioria ser leigo no assunto. Usualmente, quando se decreta uma prisão,
é louvado, entretanto, quando se concede habeas corpus ou outra medida que não é constritiva, vem à tona bordões como
“o Brasil é país de impunidade”, “o crime compensa”, entre outros, sem sequer entender qual foi a fundamentação jurídica
utilizada naquele caso.
Além disso, qualquer pessoa que tenta explicar a decisão e os fundamentos utilizados em caso de uma concessão de
habeas corpus ou expedição de alvará de soltura, poucas são as pessoas que se dispõem a realmente buscar entender, de
forma que, a grande massa usualmente critica o juiz/desembargador, afirmando que ele não sabe tomar decisões ou que
possivelmente ele teria sido corrompido.
Assim, a espetacularização do processo penal é uma constante, principalmente em casos famosos, como o caso Isabella
Nardoni, de Suzane Richthofen, Tatiane Spitzner, etc., os quais são noticiados a todo momento, a qualquer ato processual.
No caso de Suzane, por exemplo, todo ano em ela é agraciada com o direito de saída temporária, inerente ao regime
semiaberto e aqueles que ostentam bom comportamento carcerário, a população em geral critica o Poder Judiciário, de
forma que, apesar de ser salutar que as pessoas passem a se interessar pelo direito ou pela política, é necessário
compreender além do senso comum, e buscar entender os fundamentos de tais ramos, que são autênticas ciências.
Desta feita, feitas breves considerações acerca de como o processo penal foi pensado em contraste com sua situação
atual, bem como a explicitação de algumas teorias a ele relacionadas, passa-se a analisar como são feitas as apurações
dos crimes de tráfico de drogas no Brasil, com foco no depoimento dos policiais militares como sendo única prova para
comprovar a autoria do crime do acusado.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TRÁFICO DE DROGAS
Atualmente, é de conhecimento notório que a questão das drogas é tratada na Lei nº 11.343/2006, a qual institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção de usuários e dependentes de drogas, e estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao
tráfico ilícito, além de definir os tipos penais, regulamenta o procedimento específico.
A lei é considerada uma troca de paradigma, ao não punir com pena privativa de liberdade o usuário de drogas, que teve
viés médico, ao contrário da lei antiga, de forma que, no art. 28 que trata da matéria o crime de uso de drogas é punido com
advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviço à comunidade, bem como medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo.
De outro lado, as penas do tráfico de droga e seus crimes relacionados foi fixada em patamar alto, com pena de reclusão de
5 a 15 anos, além do pagamento de quinhentos a mil dias-multa. Ainda, o tipo penal prevê 19 condutas típicas, punindo
todas as condutas relacionadas à cadeia produtiva e comercial dos tóxicos, sendo que, por ser um tipo misto alternativo,
basta que o agente pratique uma das condutas para que incorra no crime.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sendo crime comum, sendo a pena aumentada de um sexto a dois terços no caso
do agente se prevalecer de função pública ou no desempenho de função de educação, poder familiar, guarda ou vigilância,
dada à maior gravidade. O sujeito passivo será a coletividade, de forma que o bem jurídico tutelado é claramente a saúde
pública.
A consumação pode variar de acordo com o verbo previsto, podendo ser instantânea (vender, adquirir, oferecer, etc.) ou
permanente (transportar, trazer consigo, ter em depósito, etc.) sendo que, neste último caso, a prisão em flagrante pode
ocorrer em qualquer momento, inclusive podendo entrar no domicílio por estar configurado o estado flagrancial, conforme a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 1.398.920/RS, HC 307.779/SP).
A tentativa, por sua vez, é possível, porém difícil de ocorrer na prática, vez que diversos atos preparatórios do crime foram
tipificados como infração autônoma, vez que a lei foi criada com claro intuito de forte repressão ao tráfico de tóxicos.
Para que o esteja presente o elemento subjetivo do crime, é necessário que o dolo do agente seja de entregar a outrem,
seja a título oneroso ou gratuito, de forma que a lei não fixa critérios objetivos para determinar se a droga era destinada ao
comércio ou ao uso, para que seja possível que o juiz verifique o caso concretamente.
Nisso o art. 28, § 2º da lei de drogas estabelece que, para determinar se a droga se destinava ao consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e a quantidade de substância apreendida, ao local e as condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e aos antecedentes do agente.
Desta forma, as informações serão obtidas no momento da abordagem, havendo casos em que a diferença entre o uso e o
tráfico pode ser tênue e depende somente da interpretação do magistrado.
Sobre isso, estabelece os doutrinadores Victor Eduardo Rios Gonçalves e José Paulo Baltazar Junior:
Todas as figuras relacionadas ao tráfico de entorpecentes são dolosas. Pressupõem,
também, prova de que a intenção do agente é a entrega da droga a outrem, a título
gratuito ou oneroso. Essa prova pode ser feita pela quantidade de entorpecente, pela
forma de acondicionamento (em várias porções individuais prontas para entrega ao
consumo alheio), pela variedade da droga (o mero usuário não traz consigo diversos tipos
de drogas), pelo comportamento do acusado (parado em via pública aguardando
compradores), por interceptações telefônicas, pela apreensão de listas de clientes etc. É
evidente que, quando o sujeito é flagrado durante a própria venda, a questão é muito mais
facilmente solucionada no âmbito probatório. (GONÇALVES, JUNIOR, p. 95, 2020).
Além do mais, conforme se verá melhor adiante, quem fará o relato de como ocorreu o flagrante ou a investigação
será o policial, de forma que o agente público dará as informações que considera relevante para formar o
convencimento do juiz, podendo frisar aspectos que se inclinampara que seja caracterizado o crime mais gravoso.
A lei não define o que é droga especificamente, sendo que definiu como “substâncias ou produtos capazes de causar
dependência, especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”
(BRASIL, 2006) de forma que o crime de tráfico de drogas se trata de norma penal em branco, vez que precisa de
complemento em outro diploma legal, que se encontra na Portaria SVS 344/1998.
Por fim, o elemento normativo do tipo consiste na falta de autorização ou estar em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, de forma que as pessoas em geral não têm autorização para realizar atos ligados às drogas, sendo que, caso
haja autorização expressa, como em casos de pesquisas, obviamente não se caracterizará o crime.
Visto o tratamento legal do tráfico de drogas atualmente, mister se faz verificar qual a praxe forense de apuração e
processamento do crime na prática.
COMO ERA A APURAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS HÁ DEZ ANOS
Antes de adentrar a valoração do depoimento do policial militar no âmbito, é essencial analisar e compreender como
ocorrem os casos que chegam ao conhecimento do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, notadamente na capital, onde, obviamente, há maior incidência deste crime.
Sobre isso, foi feito um estudo do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), intitulado
“prisão provisória e Lei de Drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo”, no qual foi
analisado 667 autos de detenção por porte de entorpecentes na capital paulista de novembro e dezembro de 2010 e janeiro
de 2011, apesar do grande lapso temporal, foram analisados processos mais recentes, confrontando-se os dados.
No que tange ao perfil das ocorrências, foi analisada a abordagem, apreensão, testemunhas e provas, bem como o
enquadramento feito. Da abordagem, nota-se que 85,63% delas foram feitas por policiais militares, 9,58% da polícia civil,
1,8% de agente penitenciário, 1,5% por guarda civil municipal e 0,6% pela polícia federal.
Nas abordagens, 82,28% foram realizadas na via pública, 12,46% na residência, 2,25% em estabelecimento comercial,
1,95% em estabelecimento prisional e 1,05% outros. Da motivação da abordagem, 62,28% foram decorrentes de
patrulhamento, 24,10% de denúncia, 4,19 para averiguar outro crime, 2,25 outros, 1,80 revista na penitenciária.
Nos casos de patrulhamento, a abordagem comumente é justificada por estar o sujeito em “atitude suspeita”, de forma que
os policiais afirmam que há diversas formas de identificar possíveis suspeitos. Já as denúncias anônimas, que
representaram porção significativa, ocorrem quando pessoa não identificada afirma que um indivíduo com determinadas
características está realizando o tráfico de drogas em determinado local.
Tais abordagens e denúncias foram questionadas por defensores, que afirmaram que elas podem ser utilizadas para
justificar arbitrariedades em face dos cidadãos, principalmente os mais pobres, moradores de bairros periféricos.
Como se verá melhor mais adiante, na esmagadora maioria dos casos, não há uma investigação duradoura para
colher informações sobre o tráfico, tanto que, conforme demonstrou a pesquisa, a maioria dos casos se dá
mediante abordagem de patrulhamento, sendo que, um fator que contribui para essa falta de investigação é a
precariedade da polícia civil. Sobre isso, foi bem ponderado no estudo:
Os delegados apontaram uma série de precariedades na estrutura da Polícia Civil, tais
como: falta de plano de carreira, estrutura e condições de trabalho, que deixam o policial
civil desmotivado para realizar atividades que exigem uma atenção e dedicação maior
desse profissional. Além disso, há falta de investimento em inteligência e tecnologias de
investigações, que tem como consequência as dificuldades da polícia em apreender os
grandes traficantes. De acordo com o delegado, o policial civil não tem um efetivo como o
da Polícia Militar, e nem a estrutura dela. O entrevistado questionou o fato de o Brasil, em
pleno Estado Democrático de Direito, ainda apresentar uma polícia militarizada, sendo isso
um paradoxo. Acrescentou que o próprio fato de existirem duas polícias, subordinadas a
dois comandos distintos, atrapalha a tentativa de se efetivar uma política de segurança
pública adequada à realidade atual do país, pois ambas apresentam tensões e conflitos
que prejudicam o cidadão. No caso de tráfico de drogas o conflito é constante,
especialmente quando o assunto diz respeito ao tipo de enquadramento do delito, se porte
para uso ou se tráfico. (JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 43, 2011).
Foi analisado, também, a região da cidade de São Paulo em que os flagrantes ocorreram, sendo que 38,54% ocorreram na
zona leste, 21,18% na zona sul, 13,39% na zona norte, 12,20% no centro e 9,08% na zona oeste, além de 5,51% sem
informação.
Apurou-se que 69,21% das abordagens a pessoa foi abordada sozinha, 22,49% foram abordadas duas pessoas e 8,40%
três ou mais pessoas. Sobre a predominante ausência de demais pessoas foi ponderado no estudo:
Se a pessoa estava traficando seria lógico, em razão da natureza do crime de tráfico de
drogas, que o usuário, ou qualquer outra pessoa que presenciasse o fato, fosse conduzido
ao Distrito Policial (DP) para constar como testemunha. O Capítulo 3.2. demonstrará que
este fato não é motivo de questionamento dos operadores, ao contrário, raramente
há algum tipo de menção ao fato de a pessoa ter sido presa sozinha e o processo
contar apenas com a versão dos policiais que efetuaram o flagrante. Grifo meu.
(JESUS, OI, ROCHA, LAGATTA, p. 44, 2011).
Analisou-se que em 82,48% dos casos não houve entrada na casa e 17,52% houve entrada, sendo que alguns ocorreram
por meio da “entrada franqueada”, no qual o acusado teria permitido a entrada de policiais militares e a minoria se deu
decorrente de abordagem em via pública e posteriormente entrada na casa. Sobre isso, houve muita discussão se a
entrada na residência sem o consentimento do morador seria ilegal, sendo que a jurisprudência predominante do Supremo
Tribunal Federal é que o tráfico, na modalidade ter em depósito, é crime permanente e, como estaria em flagrante delito, a
entrada seria permitida.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça realizou uma alteração de paradigma no HC 598.051/SP, ao ser proposto o
prazo de um ano para que a polícia seja aparelhada com equipamentos de gravação para que possa saber exatamente
como foi que ocorreu a abordagem, sob pena de continuar a fragilizar a inviolabilidade de domicílio.
O acórdão teve as seguintes conclusões:
As considerações e os argumentos expostos neste voto facilitam responder aos
questionamentos feitos de início, de modo a concluir que:
1. Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard
probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de
fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de
maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
2. O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de
natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio
onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em
situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de
mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou
a própria droga) será destruída ou ocultada.
3. O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e
a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de
qualquer tipo de constrangimento ou coação.
4. A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na
residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com
declaração assinada pela pessoa que autorizou

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