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viver e morrer em belo monte

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DOSSIÊ
ORGANIZAÇÃO: MARCELLO SCARRONE
PESQUISA HISTÓRICA: MARCELLO SCARRONE (TEXTO) E NATARAJ TRINTA (IMAGEM)
Viver e morrer
em Belo Monte
o arraial de Conselheiro tinha hierarquias
e personagens estratégicos para a rotina
e para a guerra
Ao fim de uma série de protestos contra os novos impostos republi-
canos, enfrentando a polícia baiana em vários lugarejos, Antonio
Conselheiro e seus prose1itos instalam-se em Canudos em 1893. A
peregrinação de duas décadas chega aofim. Eles vão entrincheirar-
se efortificar-se no fundo do sertão, no alto das serranias, como se
tivesse soado um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos não eram desertas e ali já exis-
tia um povoado assim chamado, à margem do Vaza-Banis, um rio
intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e sobreviveram de
uma parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para
o preparo de farinha e cana-de-açúcar para a fabricação de rapa-
dura, criando cabras. Assim se fundou o Belo Monte, nome bfblico
De onde vem a memória
Um exame sucinto dos textos que
falam em primeira mão de Canudos
evidencia, tanto nos jomais quanto
nos livros, a predominância de uma
visão "de fora", Entre os raros a
dedicar maior destaque ao interior
do anraial estão dois romances que
foram imediatamente publicados: O
rei dos jagunços, de Manuel Benício, e
Os jagunços, de Afonso Arinos, este
começando a sair em folhetins de
jomal ainda no ano da guerra,
Euclides da Cunha bebeu nessas
fontes e em outras para as reconsti-
tuições que faz em Os sertões (1902),
acrescentando suas preciosas anota-
ções como testemunha de vista na
Cademeta de campo, Bem mais tarde
surgiria Memoria/ de Vi/anova (1964),
de Nertan Macedo, depoimento
de um canudense de longo curso,
Honório Vilanova. Era inmão do cida-
dão mais importante do anraial abaixo
do Conselheiro, Antonio Vilanova, o
"chefe civil" ao lado do "chefe militar"
João Abade,
Meio século depois do fim
das hostilidades, o historiador José
Calasans se deixaria fascinar pela saga
e passaria a vida a ouvir sobreviventes,
a reunir documentação e a estudar
o assunto, A ele devemos as infor-
mações que viriam a preencher essa
importante lacuna,
o dado à cidadela que ergueram como baluarte con-
tra a República instaurada em 1889, sobrepondo-sei;.
à Canudos preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua principal na
praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua
das Casas Vermelhas, destacando-se do conjunto
L devido à cor das telhas .•As duas igrejas defronta-
~ vam-se de dois lados da praça. A primeira era a
de Santo Antônio ou Igreja Velha, consagrada em
1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom
Jesus ou Igreja Nova, de maiores proporções, não
chegaria a ser terminada. A capelinha do povoado
anterior passou a ser chamada de Santuário, pre-
servando o altar e abrigando imagens de santos.
Num quartinho anexo morava Conselheiro, e ali
seria sepultado.
Esse era o centro ao redor do qual, gradativa-
mente, se ergueria a aglomeração de casebres. A
construção em taipa ou pau a pique - barro refor-
çado com galhos - tornava a cidadela indistinguí-
vel, na mesma monotonia parda da caatinga. O
conjunto, sem um mínimo de cuidados de urba-
nização - como arruamento, calçadas, esquinas e
muito menos saneamento ou água encanada - vi-
ria a formar "um labirinto inextricável", nas pala-
vras de Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial predominava a reli-
gião. Como de hábito no sertão e em geral no inte-
rior do país, era uma religião festiva, em contraste
com a austeridade preconizada pelo líder, que não
tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes
organizavam suas vidas em torno de dois oficios
religiosos diários, à madrugada e à noitinha, e pe-
riodicamente assistiam aos conselhos do Peregri-
no, com data previamente marcada, para os quais
vinha gente até de longe. Canudos tornou-se um
centro de romaria, atraindo crentes para pedir au-
diência ao Conselheiro e fazer doações.
À medida que a guerra se avizinha, começa a
acorrer gente de todos os quadrantes da região.
Multiplicam-se as cartas dos canudenses chaman-
do parentes e amigos para virem em seu socorro.
Muita gente pelo sertão abandona seus pagos para
acudir Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no séquito: gente
de posses havia se livrado de tudo para acompa-
nhar o Peregrino. Embora não fosse uma comuni-
dade exatamente igualitária - havendo distinção
visível entre mais ricos e mais pobres, dada pela
aparência das casas - preservavam-se ali traços
de igualdade. O mais marcante era a inexistência
de propriedade privada da terra. Quem chegasse
podia erguer sua choça sem pagar nada a nin-
guém. Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos
em donativo pelo Conselheiro, eram repassados
aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse funcional, alguma
estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por as-
sim dizer, era a Guarda Católica. Constituida por
12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o mais porque
formava o quadro de imediato apoio a Conselhei-
ro. Os guardas andavam uniformizados, armados e
municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se como
sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia.
Em seguida vinha a Companhia do Bom Jesus ou
Santa Companhia, bem mais numerosa, contan-
do de 1.000 a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas
chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia Benta)
cuidava da administração da residência e do bem-
estar do Conselheiro. Ele quase não comia. Apenas
o suficiente para manter-se vivo, mas observando
total abstinência.
O arraial contava com uma professora, de
modo a não descurar da educação das crianças. O
próprio Conselheiro frequentara escola, sabendo
ler, escrever e até rudimentos de latim. Um secre-
tário, Leão Ramos, atendia ao líder como escriba.
Havia um curandeiro, Manuel Quadrado, perito
em remédios silvestres e em simpatias. E José
Félix, o Taramela, servia de criado e homem de
confiança, como chaveiro e guarda das igrejas.
Tornou-se renomado por sua fantasia sem peias,
que o levava a inventar casos mirabolantes sobre
a subida aos céus de tantos canudenses mortos,
que afirmava ter presenciado.
Na página 16, xilogra-
vura de Adir Botelho,
de 1985. Na página
anterior, fotografia de
Flávio de Barros mos-
tra uma igreja destru-
ída. Acima litografia
do arraial de Canudos
em 1897.
Constituída por 12 apóstolos, a Guarda Católica
sobrepunha-se a tudo o mais porque formava
o quadro de imediato apoio a Conselheiro
Como a rotina incluía a guerra, destacou-se um
"chefe militar": João Abade, encarregado supremo
das operações bélicas e da Guarda Católica, cha-
mado de Chefe do Povo e Comandante da Rua.
Paralelamente, havia um "chefe civil", Antônio
Vilanova, abastado comerciante responsável pela
boa ordem da comunidade.
Saiba Mais
ARAS, José. Sangue
de Irmãos. Cordel.
Feira de Santana, BA:
EMAGRAE,2009.
BOMBINHO, Manuel
Pedro das Dores.
Canudos, história em ver-
sos - Relato Inédito de
testemunha ocular. Org.
de Marco Antônio Villa.
São Carlos: EdUFSCar,
2002.
CALASANS, José.
Cartografia de Canudos.
Coleção Memória da
Bahia. Salvador, BA:
EGBA, 1997.
VILLA Marco Antonio
(org.). Canudos, hlstóna em
versos de Manuei Pedra
das Dores Bomb/eho. São
Paulo: HedralEdufscar/
Imprensa Ofioal, 2002.
Músico
CD Co udos (Gereba)
CD Motuto do Cacorobó
(Bião de Canudos)
CDs Toques de Canudos
e Do Belo Mame ao
Cocorobó (Banda de
Pífanos de Bendegó)
Filmes
Deus e o Diabo na Terra
do Sol (Glauber Rocha,
1964)
Guenra de Canudos
(Sérgio Rezende, 1997)
Paixão e Guerra no
Sertão de Canudos
(Antônio Olavo, 1993)
Houve combatentes ilustres. Como o pernam-
bucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua
imaginação tática ao elaborar ardis guerrilheiros.
Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário
dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da
Guarda Católica e um dos 12 apóstolos. O historia-
dor José Calasans ainda o conheceu, nos anos 50,
e com ele teve muitas conversas, que granjearam
sua admiração. Inválido das pernas, observou certa
vez: "Faz pena um homem como eu morrer sen-tado". Antônio Beatinho ficou conhecido porque
negociou a rendição de 300 pessoas, entre mulhe-
res, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias
dos combates. É do resultado dessa negociação a
mais famosa foto da guerra, mostrando a multidão
"Não Ihes bastavam seis mil mannlIchers
e seis mil sabres; e o golpear de doze
mil braços, e o acalcanhar de doze mil
cotumos; e seis mil revólveres; e vinte
canhões, e milhares de granadas, e
milhares de shrapnels; e os degolamen-
tos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e
dez meses de combates, e cem dias de
canhoneio contínuo; e o esmagamento
das ruínas; e o quadro indefinível dos
templos denrocados; e, por fim, na cis-
calhagem das imagens rotas, dos altares
abatidos, dos santos em pedaços - sob
a impassibilidade dos céus tranquilos e
claros - a queda de um ideal ardente,
a extinção absoluta de uma crença
consoladora e forte ..."
Euclides da Cunha, Os sertões (1902).
andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação
foi recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já residia em Canudos
antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma
fazenda nas cercanias e era dono de loja. Seu filho e
xará, com um punhado de valentes e as bênçãos do
pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de
Matadeira, pertencente ao exército, tombando mor-
to ali mesmo, É um dos episódios mais referidos
da campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o sineiro Timoti-
nho, que desafiava o exército insistindo em tocar
o sino da Igreja Velha todas as tardes, quando a
fuzilaria das tropas inimigas se concentrava nele.
Um dia, dois tiros de canhão acertaram a torre,
que desmoronou, jogando o sino à distância e ani-
quilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que labutaram na
arquitetura sacra do Conselheiro - que durante as
duas décadas de peregrinação capitaneou a cons-
trução ou o reparo de igrejas, cemitérios, calçadas
e açudes por toda aquela região - o nome mais im-
portante que a história reteve é o de Manuel Faus-
tino, mestre de obras e entalhador que presidiu
aos trabalhos da Igreja Nova. Antônio Fogueteiro,
como a alcunha indica, fabricava fogos, a que o
povo do sertão em geral, e o de Canudos em parti-
cular, era muito afeiçoado.
~ sua figura estava o esforço admirável que uma po-
~ pulação carente de tudo desenvolveu para se orga-
-c
~ nizar, resistindo à opressão e à exploração, além de
~ inventar formas alternativas de vida em comum.
-c
~ Com a guerra, o dia a dia do arraial foi total-
I
~ mente degradado. Belo Monte, cujos habitantes
5 passavam a vida em oração e penitênci paraS!
~ "salvar a alma", conforme diziam, foi transforma-
ug
iii•• O sineiro Timotinho desafiava o exército insistindo em
tocar o sino da Igreja Velha todas as tardes, quando a
fuzilaria das tropas inimigas se concentrava nele
Os dois irmãos Ciriaco, os combatentes negros
Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas
após o fim da guerra. Servindo de guia em Canu-
dos ao historiador José Calasans (1915-2001), torna-
ram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio Conselheiro
substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de
polícia, reunindo em sua pessoa o poder das três
autoridades que mandavam no sertão. Por trás de
do em antevisão do Inferno. Em vez do Paraíso a
que todos aspiravam, com as promessas das bem-
aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o
ferro e o fogo dos canhões, o incêndio do casario e
a degola indiscriminada. H
Na página anterior,
uma casa de ser-
tanejos. Ao lado,
uma gravura do
americano Grover
Chapman sobre o
tema de Canudos.
Abaixo, foto de
Evandro Teixeira, que
refez a trajetória de
Conselheiro.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO É PROFESSORA EMÉ-
RITA DA FFLCH-USP E AUTORA DE O IMPÉRIO DO BELO
MONTE. VIDA E MORTE DE CANUDOS. SÃO PAULO: EDITORA
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 200 I.

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