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Fortaleza ● Ceará Eduardo Macedo Ilustrações Eduardo Azevedo Copyright © 2018 Eduardo Macedo Copyright © 2018 Eduardo Azevedo Coordenação Editorial, Preparação de Originais e Revisão Kelsen Bravos Projeto e Coordenação Gráfi ca Daniel Dias Design Gráfi co Emanuel Oliveira Eduardo Azevedo Revisão Final Marta Maria Braide Lima Sammya Santos Araújo Conselho Editorial Maria Fabiana Skeff de Paula Miranda Sammya Santos Araújo Antônio Élder Monteiro de Sales Sandra Maria Silva Leite Antônia Varele da Silva Gama Catalogação e Normalização Gabriela Alves Gomes Governador Camilo Sobreira de Santana Vice-Governadora Maria Izolda Cela de Arruda Coelho Secretário da Educação Rogers Vasconcelos Mendes Secretária-Executiva da Educação Rita de Cássia Tavares Colares Coordenador de Cooperação com os Municípios (COPEM) Márcio Pereira de Brito Orientadora da Célula de Apoio à Gestão Municipal Gilgleane Silva do Carmo Orientador da Célula de Fortalecimento da Aprendizagem Idelson de Almeida Paiva Júnior Orientadora da Célula do Ensino Fundamental II Ana Gardennya Linard Sírio Oliveira SEDUC - Secretaria da Educação do Estado do Ceará Av. Gen. Afonso Albuquerque Lima, s/n - Cambeba Fortaleza - Ceará | CEP: 60.822-325 (Todos os Direitos Reservados) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M141f Macedo, Eduardo. A fantástica peleja entre bode Ioiô e boi Mansinho / Eduardo Mace- do; ilustrações de Eduardo Azevedo. - Fortaleza: SEDUC, 2018. 80p. il. ISBN 978-85-8171-239-0 1. Literatura infantojuvenil. I. Azevedo, Eduardo. II. Título. CDU 028.5 Aos meus fi lhos e esposa: Davi, Heitor e Riteméia. Tão amados, tão cearenses. 5 No céu onde os animais Gozam seu viver eterno, Sob um sol que irradiava Branda luz e calor terno, A bicharada amargava Um marasmo sempiterno. As onças não mais sentiam Gosto pelas capivaras, Ante a leões indolentes Porcos passavam em varas, Lobos e ovelhas pastavam Juntos nas mesmas searas. Predadores não caçavam, Presas também não fugiam. Nem sequer mesmo os mosquitos Hematófagos zumbiam, Pois seus pequeninos corpos De sangue não mais nutriam. 6 Até que uma certa vez, Um urubu altaneiro Resolveu por recorrer Ao seu santo padroeiro E partiu ao Canindé Junto com um companheiro. Depois de voar bastante Ao lado dum Carcará, Mestre urubu alcançou O sertão do Ceará. Era outubro e São Francisco1 Estava a serviço lá. A fim de não empalhar O santo na romaria, O banzeiro foi direto Lhe dizendo o que queria: — Eu vim pedir permissão Para fazer cantoria.2 9 Sem maior indagação, São Francisco autorizou E a dupla de carniceiros Ao paraíso voltou. Logo abriram inscrições; Veja quem se habilitou: Um zebuíno com fitas Nos dois chifres, amarradas, Empunhando uma viola Com sete cordas douradas E no pescoço um rosário De contas enfileiradas. Carregando uma rabeca E portando um certo cheiro De ranço, cana e tabaco, Um bode pai-de-chiqueiro Berrou que também queria Cantar em tal pardieiro. 10 Após uma reprimenda, Exigindo mais respeito, O urubu inscreveu ambos, Tendo o primeiro sujeito O nome de Boi Mansinho,3 Muito adequado ao seu jeito. O outro, um tanto devasso, Por Ioiô apresentado4 Foi logo escolhendo um banco, No que o boi pôs-se ao seu lado E foi puxando um baião,5 Tendo assim iniciado:6 Boi Mansinho — Eu sou o dito Mansinho, Boi do meu Padrinho Ciço.7 Sou dócil que nem cordeiro, Nunca causei rebuliço, Não dou trabalho a vaqueiro Nem sou rês de dar sumiço. 11 12 Bode Ioiô — Eu sou o Bode Ioiô, Mais fino pai-de-chiqueiro. Sou vadio, sou boêmio, Mulherengo e cachaceiro. Pelas ruas da cidade Perambulo o dia inteiro. BM — Pois vá logo me dizendo, Bode, se tomou cachaça, Pois pelejar com pinguço É coisa que não tem graça. Cantador que canta bêbado, Suja seu nome na praça. BI — Se não tem o que dizer, Não venha falar besteira. Pois foi bebendo e fumando Pela Praça do Ferreira Que eu ganhei uma eleição8 De forma honesta e ordeira. 13 BM — Ganhou mas nunca assumiu, Seu pleito foi debochado. Quem sabe na Roma antiga, Teria sido empossado.9 Mas aqui no Ceará Bode fica pra guisado. BI — Não acho conveniente Vir falar em culinária, Alguém que foi conduzido Para a penitenciária, Abatido em plena rua, Sem licença sanitária.10 BM — Bode, você me respeite, Se meu destino foi duro, Jamais por vontade própria Me meti num só apuro. Mais vale sofrer martírio Do que morrer imaturo. 14 BI — Falar em maturidade Quem conviveu com fanáticos Que torturam a si próprios Durante ritos lunáticos?11 Com quem não tem coerência, Não podemos ser simpáticos. BM — Existe uma diferença Entre fanatismo e fé. Você que é ímpio, talvez, Nunca saiba como é. O credo no Rei dos Reis, Em Jesus de Nazaré. BI — Bem aquém do Nazareno Está a crença dos seus. Sabemos que um tal cavalo Foi louvado como um deus.12 Quanto a ti, só falta o ouro Do bezerro dos judeus.13 15 Nesta altura Boi Mansinho Pelas ventas bufou quente. Endireitou a viola, Puxou o banco pra frente E um galope à beira-mar14 Tirou de dentro da mente. 16 BM — Seu bode safado, metido, agourento, Do mal-do-caroço, da unha mofada, Agora você paga a língua afiada, Segure a rabeca bicho fedorento. Não sei se lhe sobra desconhecimento, Mas essa mentira que está a falar Foi no Caldeirão, que é outro lugar, Pois onde eu morava era no Baixa Dantas.15 Seu verso é fornido de maldades tantas, Nos dez de galope da beira do mar. BI — Cante à beira-mar, martelo ou quadrão, Que meu improviso faz o que é preciso; Mergulha no inferno, sobe ao paraíso, Derruba serrote, soterra grotão. Se foi Baixa Dantas ou foi Caldeirão, Não é nem preciso diferenciar, O povo é o mesmo, só muda o lugar, Todos seguidores do mesmo beato. Com esse repente, mil bois eu abato, Cantando galope na beira do mar. 17 BM — Com esse repente da lâmina cega, Você não abate sequer um mocó. Nessa barba velha, vou meter um nó, Sua lira é curta, seu coice não pega. Devemos respeito pra aquele que prega O que o evangelho tem para ensinar. Em todo o planeta não houve um lugar Com outro cristão igual a Zé Lourenço.16 Respeite o beato, respeite o que penso Nos dez de galope na beira do mar. BI — Eu sei do beato, de onde ele veio, É cria do padre que foi coronel, Que no Juazeiro criou seu plantel De ovelhas devotas que lhe foram meio De vida, recurso. Viveu do alheio, Pois tudo que tinha vieram lhe dar Em troca de bênção, para se salvar, Por causa do embuste do sangue sagrado.17 Assim o Padim construiu seu reinado, Graças aos romeiros, na beira do mar. 18 BM — Então significa que os despossuídos Que no Juazeiro encontraram amparo Foram, na verdade, vítimas dum avaro Que se aproveitava dos pobres falidos? É prudente ler sobre os fatos vividos Antes desta boca espumenta falar; Foi o Padre Cícero que veio a fundar Uma das maiores cidades do estado18 Com leais romeiros, fiéis ao seu lado, Cantando galope na beira do mar. BI — Deixe a minha boca mascando seu fumo E nos detenhamos à nossa peleja. Seus ídolos, ambos, a fé sertaneja Premeram até derramar todo o sumo. Pessoas humildes, sem bens e sem rumo São presas facílimas de capturar, Qualquer prosa besta lhes pode levar A cometer crimes, serem exploradas. Eu prefiro as gentes mais civilizadas, Nos dez de galope na beira do mar. 19 BM — Os civilizados, o que cometeram Em nome da ordem e do progressismo? Levaram ao povo manso o cataclismo, Lá no Caldeirão aldeões abateram. Ataques aéreos até promoveram, Sem velhos, crianças, mulheres poupar E quando não tinham mais o que levar, Deixaram as casas de taipa queimando. O povo pacato viu tudo chorando Nos dez de galope na beira do mar. BI — O que comentou-se pela capital É que a maioria era riograndense E que, desta feita, em solo cearense, Segunda Intentona haveria, afinal.19 Aliou-se o Estado à Força Nacional Depois do capitão Bezerra expirar,20 Visando aos comunistas capturar, Getúlio mandou o capitão Macêdo Com três aviões, mil projéteis e medo,21 Nos dez de galope na beira do mar.21 BM — Se ser comunista é repartir o pão, Amparar o próximo, banir o dinheiro, Plantar para todos, rezar no cruzeiro, Então eu não posso lhe dizer que não. Porém, não aceito essa especulação De dizer que a gente iria guerrear, Se até no 14 para auxiliar O Padrinho Ciço, não fomos à guerra, Mandamos apenas o que dava a terra,22 Conforme o beato veio orientar. BI — E quanto a um tal Severino Tavares, Que com Zé Lourenço chegou a viver? No meio da mata, logrou a fazer Plano pra mandar a polícia pros ares. Espalhou seus homens por vários lugares, Com paus e com foices veio a lhes armar. No instante em que percebeu se aproximar Bezerra e a volante que vinha do Crato Matou quatro deles, sem pena, no ato, Fugindo em seguida, na beira do mar. 22 BM — O que motivou o cruento incidente Que três camponeses também vitimou, Foi a natureza má que cultivou Capitão Bezerra entre o povo da gente. Entretanto a Deus é que cabe, somente, O poder da vida, de dar ou tirar. Portanto quem matou, não deve matar, Quem pecou decida por não pecar mais. Isto vale aos homens, vale aos animais Que como você, pecam na beira do mar. BI — Pecado não tenho, pois nada declaro De Deus, se ele existe, se é ou não é, Pois não conhecendo, não faço banzé E o que não se compra não pode ser caro. Porém, quem tem fé, não é caso raro, Vive a Deus clamando para o ajudar Sem julgar se aquilo que está a rogar É justo, importante, ou a outro não fere. Portanto, acusar-me a si não confere Nos dez de galope na beira do mar. 24 No calor quente da brasa. A anta corria o pires Do apurado da casa, Mas vaca fechava a mão E galo não dava a asa. Então urubu falou: — Façam o que é preciso! Sem agrado não se canta Nem se faz bom improviso. Quem tiver dinheiro pague, Só não pague quem for liso. Nisto, ouviu-se na plateia Um relincho, de repente. Alguém fazia um pedido Para a dupla concorrente, Depositando no pires Três pratas e uma corrente. 25 Das terras orientais23 Pediu para que cantassem Pra todos os animais Um mote decassilábico 24 De versos memoriais. Numa oração que mistura Verdade e mirabolância, Os ruminantes cantaram Em completa concordância. Improvisando no mote Partiu o boi sem ganância. 26 BM — Antes que eu fosse dado a meu padrinho, Juazeiro cumpria sua sina: “Cada casa um quintal, uma oficina”, Instruía o padre a cada amiguinho.25 Nisto a vila virava um torvelinho Com hóstias que sangravam sem parar. Romeiros vinham de todo lugar, Peregrinando àquele chão sagrado. Tudo isso aconteceu num passado Em que eu fui testemunha ocular. BI — No período em que tudo arremedava, Os franceses, num tosco galicismo, Antecipando o próprio modernismo, Um grupo cearense inaugurava Uma agremiação que publicava Trabalhos de inspiração popular, Visando o “Pão do Espírito” fabricar Sem adição de fermento importado.26 Tudo isso aconteceu num passado Em que eu fui testemunha ocular. 27 BM — Meu “Padim Padre Ciço” recebeu Belo dia (que ao certo eu ignoro) A visita dum tal de Doutor Floro27 A quem rapidamente ele cedeu. Depois disso muito se sucedeu: Logo a vila vinha a se emancipar; Houve guerra, não gosto de lembrar, Sei que o Padre derrotou o Estado. Tudo isso aconteceu num passado Em que eu fui testemunha ocular. 28 BI — De manhã, comendo o pão matinal, Antônio Sales teve uma visão:28 Criaria nova associação, Seria a “Padaria Espiritual”. Com estatuto feito para tal E padeiros para o Pão amassar, Jamais veio outro grupo a se igualar… Fosse eu vivo seria associado! Tudo isso aconteceu num passado Em que eu fui testemunha ocular. 29 BM — Homens pobres produzindo e plantando, No roçado, nas croas, nos currais, Reproduzindo belos animais, Conforme a pastagem ia brotando. O povo, pra si próprio trabalhando, Fez a aristocracia se zangar, Pois mão de obra começou a faltar. Por isso o Caldeirão foi massacrado. Tudo isso aconteceu num passado Em que eu fui testemunha ocular. BI — Em apoio à sua aristocracia, Abonando o massacre campesino, Na capital cantou-se o mesmo hino Em louvor à mais pura hipocrisia.29 Artes malignas duma burguesia Que o próprio povo vive a desdenhar. Canudos, Caldeirão, qualquer lugar30 Onde o pobre desponta é desmanchado. Tudo isso aconteceu no passado, Hoje ainda é comum de observar. 30 Ao final do último berro, Ioiô secou a garganta. Debaixo da sua barba Vinha caminhando a anta. Ele se abaixou e disse: — Tem cana aqui pra quem canta? Gargalhou bicho do mato, Da cidade e da fazenda. Urubu ficou zangado E deu-lhe outra reprimenda. Prosseguindo, ele pediu Um quadrão por encomenda.31 32 BM — Nosso compadre urubu BI — Que tem a canela branca, BM — Mas nada tem com carranca, BI — Essa só tem com zebu. BM — O que dizer sobre tu? BI — Sou um grande garanhão. BM — No inferno, aqui mesmo não, BI — Pois aqui tudo é pecado! Isso é quadrão perguntado, Isso é responder quadrão. BI — Que passa no Juazeiro? BM — Um lugar muito magnífico! BI — Não esqueça o frigorífico. BM — É do bode o paradeiro. BI — Quem foi que morreu primeiro? BM — Diga em qual situação. BI — O bode ou o boi capão? BM — Você ‘stá muito enganado! Isso é quadrão perguntado, Isso é responder quadrão. 33 BM — Sou um touro zebuíno. BI — Porém, nem com cabra pode. BM — Isso só se eu fosse um bode BI — Sem barba e do chifre fino. BM — Não passa de um libertino BI — Só não banco o ermitão. BM — Sempre fui um bom cristão BI — Com um harém dedicado. Isso é quadrão perguntado, Isso é responder quadrão. BI — Eu sou do tipo maltês BM — Do malte que vem do uísque? BI — Prefiro que não se arrisque BM — Pra não perder o freguês. BI — Eu pago no fim do mês BM — Com juros e correção BI — Alcatra, filé, coxão, BM — E também rabo arrancado!32 Isso é quadrão perguntado, Isso é responder quadrão. 34 BM — Tu já foste um engenheiro? BI — Nunca gostei de serviço. BM — Mas já me disseram isso. BI — Conversa de presepeiro. BM — E a história do seresteiro? BI — De quando caí no chão? BM — Quando escutou a canção…33 BI — Foi cauim mal fermentado. Isso é quadrão perguntando, Isso é responder quadrão. 35 BI — Que diz dessa cantoria? BM — Digo que melhor não há. BI — Só vindo do Ceará BM — Dupla de tanta mestria. BI — Canto com toda alegria BM — Pra cobra, tatu, veado, BI — Mas fique ressabiado BM — Quando cantar pra Cancão.34 Isso é quadrão perguntado, Isso é responder quadrão. 36 Neste instante um jabuti, Que vinha mexendo a mão Desde o início da peleja, Arrancou um patacão De dentro do casco velho E juntou à apuração. O bicho, bicentenário, De notória experiência, Pediu para os cantadores Cantarem com eloquência “Que me falta fazer mais”, Decassílabo de ciência. 35 37 38 BM — Eu vivi lá no Sítio Baixa Dantas, Dá saudade toda vida que penso Em Don’Ana, beato Zé Lourenço, Nos roçados, nos pomares, nas plantas. Entre humildes homens, mulheres santas, Fui criado à parte dos animais. Para mim os cuidados eram tais Porque era “o boi do Padrinho Ciço”. Sendo assim, depois que fiz tudo isso, O que é que me falta fazer mais? Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 39 BI — Eu cheguei em Fortaleza tangido Pela seca do 15 com meu dono. Percorri os caminhos do abandono, Vi o êxodo do povo sofrido. Ao chegar na capital fui vendido A uma empresa de peles animais,36 Porém, como sou simpático demais, Resolveram me ter como mascote. Por isso canto com razão o mote: O que é que me falta fazer mais? Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 40 BM — Apesar de ser um touro zebu, No cabresto ia onde me levavam. Junto ao pé do mourão nem me amarravam E diziam “que boi mansinho és tu”. Pra comer me davam manga, caju E soltavam-me pelos milharais. Dos meus chifres fizeram castiçais, Pondo velas para rezar benditos. Fui no mundo um dos touros mais bonitos, O que é que me falta fazer mais? Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 41 BI — Todo dia terminava o serviço E do Peixe proCentro eu me mandava. Semelhante a ioiô, ia e voltava, Nome e fama ganhei por causa disso. Entre as gentes andava sem enguiço, Vez em quando imitava os vendavais, Alevantando as saias das vestais Pra espiar o que debaixo existia.37 Isso tudo no meu tempo eu fazia, O que é que me falta fazer mais? Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 42 BM — Ao “Padim” me deu Delmiro Gouveia,38 Por valioso animal reprodutor Para aumentar do rebanho o valor, O que logo despencou pela areia. Inventaram uma conversa feia, De que tinham dotes medicinais Os rejeitos dos meus órgãos renais, O que soube Floro Bartolomeu. Ligeiro um magarefe me abateu Não restando a mim nada fazer mais. Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 43 BI — Veja bem como funciona o destino: Meu patrão na empresa também foi Doutor Delmiro, ex-dono do Boi, Visionário, homem de imenso tino. 39 Não fui morto, assim me quis o destino, Eu caí pelos males figadais E subi para as plagas divinais, Mas, meu corpo, levaram pra empalhar. No museu, quem quiser vai me encontrar, O que é que me falta fazer mais? Mas o que é que me falta fazer mais, Se o que eu fiz até hoje ninguém faz? 44 Com refrão acompanhado Pela plateia completa Terminou mais um estilo Que agrada ouvinte e poeta. Logo veio informação De quanto rendeu a meta. Urubu e carcará, Mais a anta calcularam O quanto os bichos do céu Aos cantadores doaram. A soma foi tão diversa Que todos se admiraram. Entre os metais a presença De grãos, açúcar e sal. Patacas, vinténs e réis Do Brasil colonial, Dobrões, denários romanos E moedas de 1 real. 45 Na verdade, não seria De causar admiração, Já que na plateia estavam Bichos de toda nação. Desde de antes da antiguidade Até o tempo em questão. Citemos alguns dos quais Vivem em nossa memória: Incitatus, Cacareco E Tião tiveram glória40 Na política e por ela Ingressaram na história. O Rabicho da Geralda Com a Vaca do Burel, Corta-Chão e o Mandingueiro, Corredores de tropel, Rompe-Ferro, Ventania E outros bichos do Cordel.41 47 Também estavam presentes A serpente desgraçada,42 Que subiu até ali Sem que ninguém visse nada. De Balaão à jumenta Que vivia na pancada. Esses são suficientes Para termos uma ideia De quantos compareceram Para ver tal epopeia: No céu dos bichos jamais Reuniu-se igual plateia. Então, pra finalizar Afamada cantoria, Os ruminantes cantaram Versos em apologia A si próprios, exaltando Sua própria maestria. 48 BI — Sou repentista de feira, Meu improviso é ligeiro. Cantador que diz besteira Comigo vai pro bueiro. Tenho meu ranço apurado, Se topo com um coitado Tenho pena do revés. É treze com doze, é onze com dez, É nove com oito, é sete com seis, É cinco com quatro, Mais um, mais dois e mais três. Com o freio da rabeca Vou mostrar como se breca O cantador de vocês.43 49 50 BM — Sete cordas de viola44 São correntes inquebráveis Pra prender bode gabola, Repentistas descartáveis. Abuse da mansidão, Porém, tema meu bordão De treze mil cascavéis. É treze com doze, é onze com dez, É nove com oito, é sete com seis, É cinco com quatro, Mais um, mais dois e mais três. No veneno do meu pinho, Mato igual um passarinho O cantador de vocês. 51 BI — Quando eu canto o povo vibra, A plateia colabora. Recebo em real, em libra, Cem, duzentos, noves fora. O povo fica contente, Valorizando o repente E também os menestréis. É treze com doze, é onze com dez, É nove com oito, é sete com seis, É cinco com quatro, Mais um, mais dois e mais três. Eu vou dar, por piedade, A metade da metade Pro cantador de vocês. BM — Eu sou um touro cristão, Seguidor do evangelho, Sempre partilhei o pão Com adulto, novo e velho. A toda essa bicharia Cantamos com alegria, Cumprimos nossos papéis. É treze com doze, é onze com dez, É nove com oito, é sete com seis, É cinco com quatro, Mais um, mais dois e mais três. Ele pode é ser ateu, Porém, cantou como eu, O cantador de vocês. 53 À última estrofe do Boi, O Bode não deu rebate. Ficava assim evidente Que terminava em empate. Ambos receberam louros Naquele poético embate. A partilha do apurado Se deu em três partes, veja: Um terço ficou pro Boi, Um pro Bode, um pra Igreja De São Francisco das Chagas, Que permitiu a peleja. Escrevi tal pergaminho, Mesclando fatos vividos A outros não ocorridos Com Ioiô e com Mansinho, Espécimes da memória Do Ceará, terra de história, Onde eu trilho meu caminho. NOTAS EXPLICATIVAS, HISTÓRICAS E LITERÁRIAS 1. A romaria de São Francisco das Chagas é uma das maiores do Brasil e ocorre, anualmente, no município cearense de Canindé, geralmente, no mês de outubro, quando são realizadas as novenas em devoção ao santo. Os pontos mais visitados são a estátua e a basílica de São Francisco. Ela reúne, anualmente, milhares de fiéis oriundos de diversas regiões do país, que seguem à cidade em comboios de carros, motos, caminhões, por meio de cavalgadas e, até mesmo, a pé. Longe de se restringir ao seu aspecto religioso, as festas de São Francisco são um evento que vem promovendo a cultura popular há décadas, fomentando, dentre outras modalidades, a cantoria e o cordel e servindo de ponto de partida a artistas canindeenses e cearenses. 2. As cantorias ou pelejas são disputas realizadas entre repentistas, poetas improvisadores de versos, que geralmente se acompanham de violas. Embora a rabeca tenha sido também utilizada, atualmente, caiu em desuso. Caracterizam-se por desafios nos quais um deles formula uma estrofe improvisada e o outro responde, também em improviso. As formas poéticas utilizadas são extremamente variadas, diferenciadas 55 entre si pelo número de versos, estrutura de rimas e bordões, nas quais diversos temas e intenções são explorados: atualidades, costumes, geografia, política, escárnio, apologia etc. Têm origem ibérica e africana e se desenvolveram no Nordeste brasileiro. 3. Boi Mansinho foi um touro zebuíno de propriedade do Padre Cícero Romão Batista. Extremamente dócil, foi presente do industrial Delmiro Gouveia ao sacerdote, sendo dado, em seguida, ao beato José Lourenço para ser criado no Sítio Baixa Dantas como reprodutor bovino. Devido à sua origem e temperamento, era adornado, banhado e alimentado de forma diferenciada pelos moradores do sítio, com destaque a popular conhecida por “Don’Ana”. 4. Bode Ioiô foi assim batizado por “subir e descer” todos os dias da Praia do Peixe (atual Praia de Iracema), onde vivia, ao Centro da capital cearense. O caprino emigrou para Fortaleza com um grupo de retirantes que fugia da terrível seca de 1915. Ele popularizou-se pela sua sociabilidade e conquistou a simpatia dos fortalezenses, garantindo livre trânsito pelas ruas da cidade. Tomador de cachaça e apreciador de charutos, vivia em meio à boemia, nos bares e serenatas de então. 56 5. Os acompanhamentos de viola entoados durante os repentes são chamados de “baiões de viola” e seguem o que é definido em notação musical por “compasso binário”. Dizem os repentistas que ele é essencial ao “tempero” da mente durante os desafios. 6. A peleja entre os dois animais inicia com uma apresentação na forma de sextilha, construção poética, extremamente, popular no cordel, que consta de uma estrofe formada por seis versos de sete sílabas poéticas (heptassilábicos), rimados somente entre os versos pares, ou seja, segundo, quarto e sexto. A notação que indica as rimas da sextilha é ABCBDB. 7. Padre Cícero Romão Batista foi um sacerdote católico que nasceu no município cearense do Crato, em 1844, e faleceu na cidade que ajudou a fundar, Juazeiro do Norte, no ano de 1934. Ordenado padre no Seminário da Prainha, escola religiosa que formou outros grandes nomes da história do Ceará, no natal de 1871 recebeu a incumbência de celebrar uma Missa do Galo no povoado de Juazeiro, localidade então pertencente ao município do Crato. Já no ano seguinte, em decorrência da sua imediata identificação com o povo do lugar, muda-se para lá em definitivo, sobre o que alegaria, maistarde, 57 ter recebido em sonho esta missão do próprio Jesus Cristo. Com a força dos seus sermões e um carisma inigualável, conforme intervinha junto aos populares sua fama se espalhava e, ajudado pelas notícias dos supostos milagres da hóstia, a pequena localidade passaria a receber gente dos arredores e além, resultando no ajuntamento de pessoas que, trinta e dois anos depois, constituiriam o município de Juazeiro do Norte. 8. Bode Ioiô era tão popular, entre os alencarinos, que chegou a ser o nome mais votado para vereador nas eleições municipais de Fortaleza, em 1922. 9. Conta-se que o imperador romano Caio Calígula, que reinou entre os anos 37 e 41 d.C., teria nomeado seu cavalo preferido, Incitatus, como senador do império. 10. Boi Mansinho viveu na primeira comunidade religiosa liderada pelo beato José Lourenço, no Sítio Baixa Dantas, pedaço de terra arrendada, habitada e cultivada por sertanejos que viviam em regime comunitário. Em decorrência de conflito de interesses, uma vez que o lugar prosperou e arrebanhou populares que passavam a viver dignamente com os frutos do próprio trabalho, a aristocracia e igreja locais começaram a espalhar 58 boatos que logo alcançariam a capital cearense, de que lá havia práticas fanáticas de adoração ao Boi, como uma entidade sagrada, uma vez que era propriedade do Padre Cícero. Dizia-se até que ali se bebia a urina do animal como panaceia a todo e qualquer mal. Floro Bartolomeu, braço político do padre, a fim de mostrar provas de civilidade, em 1912, mandou prender o beato e ordenou que trouxessem o boi para ser sacrificado em frente à penitenciária de Juazeiro, no que encaminhou os cortes do animal abatido para serem vendidos no açougue. Conta-se, ainda, que por dias a carne do Mansinho foi ofertada como única refeição ao beato que, embora sentisse fome, negou-se a comê-la. 11. Comunidades messiânicas como a do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, a de Canudos, a de Pau de Colher etc., foram constituídas por pessoas simples que se uniram ao redor de lideranças religiosas como os beatos José Lourenço e Antônio Conselheiro. Nelas, todos trabalhavam para o sustento comum e professavam sua fé de forma independente, sem a interferência da igreja oficial. Dessa forma, se por um lado surgiu a possibilidade de práticas extremas como a penitência, onde o fiel se automutilava a fim de obter a purificação dos pecados, por outro incomodava o clero e a sociedade 59 locais, que perdiam o controle religioso, social e econômico sobre tais indivíduos. São esses credos e ritos que caracterizam o que é chamado por muitos de “catolicismo sertanejo”. 12. Na época em que existiram as comunidades lideradas pelo beato José Lourenço foram vítimas de muitos boatos em que eram feitas acusações de fanatismo. Além do próprio Boi Mansinho, chegaram a circular boatos de que um cavalo estava sendo idolatrado, inclusive, dizia- se que raspas de seus cascos estavam sendo utilizadas no preparo de chás milagrosos. 13. O bezerro de ouro foi um ídolo criado por Aarão para o povo hebreu durante o período em que Moisés subiu o Monte Sinai para receber as tábuas da lei mosaica. É tido como símbolo da idolatria a um falso deus. 14. O “galope à beira-mar” é um estilo de cantoria caracterizado por estrofes de dez versos hendecassílabos (de onze sílabas poéticas) cujas rimas dos versos sexto, sétimo e décimo terminam com a sílaba tônica “ar”, com o objetivo de rimar com o bordão, geralmente, “Nos dez de galope na beira do mar”. A estrutura de rima das estrofes é ABBAACCDDC. Aqui o Boi deixa a sextilha a 60 fim de vencer o Bode num estilo mais complexo e já inicia em escárnio, vingando-se das acusações que ele lhe fez de fanatismo. 15. A comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi o segundo grupo messiânico liderado pelo beato José Lourenço. Ela existiu entre os anos de 1926 e 1937 e foi fundada logo após a experiência do Sítio Baixa Dantas. Sua história foi extremamente dramática, pois em decorrência da morte do Padre Cícero, em 1934, passou a ser alvo duma desconstrução moral feita pela imprensa cearense que culminou na invasão de 11 de setembro de 1936, quando as casas do arraial foram queimadas, populares foram presos e violentados, e no subsequente massacre. O Caldeirão foi reiteradamente comparado a Canudos, como forma de justificar sua periculosidade e os meios pelos quais deveria ser desfeito. 16. José Lourenço Gomes da Silva foi um paraibano nascido em Pilões de Dentro, no ano de 1872. Homem de alta estatura, pele escura, muito carismático e sempre bem falado por todos que relatam tê-lo conhecido. Foi arrendatário do pedaço de terra do Sítio Baixa Dantas, no Crato, onde, sob proteção do amigo Padre Cícero, fundou sua primeira comunidade, de onde, 35 anos 61 depois, seguiu com seus adeptos a uma localidade mais afastada onde fundaria a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. 17. O fenômeno conhecido por “Milagre da Hóstia” ocorreu pela primeira vez em Juazeiro, no ano de 1889. Durante as missas celebradas por Padre Cícero, no ato da comunhão, a hóstia que o sacerdote oferecia à beata Maria de Araújo se transformava em sangue. O fato foi motivo de grande alarido na região e em todo o estado do Ceará, resultando em duas expedições investigativas enviadas pela arquidiocese de Fortaleza e culminou na ida do próprio padre ao Vaticano. O suposto milagre teve consequências distintas para Cícero: rendeu sua excomunhão da Igreja Católica, porém, foi responsável pelas levas de peregrinos que passaram a viajar a Juazeiro, muitos dos quais lá ficaram e ajudaram a formar o núcleo populacional da cidade. Desde então fundou-se a tradição romeira que perdura até hoje e chega a levar mais de dois milhões de fiéis por ano à “cidade sagrada”. 18. Com quase 270 mil habitantes, Juazeiro do Norte é a terceira maior cidade do Estado do Ceará, ficando atrás somente da capital e do município de Caucaia, da Região Metropolitana de Fortaleza. 62 19. A Revolução Comunista de 1935, pejorativamente classificada como “intentona” pelos opositores de então, foi um levante popular que ocorreu nos estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Rio de Janeiro durante o governo de Getúlio Vargas. Tinha por objetivo a tomada do poder e respectiva instauração de um governo popular, além da nacionalização de empresas, realização da reforma agrária e outras medidas de cunho socialista. Os militares potiguares foram os primeiros a se mobilizar e no 21º Batalhão de Caçadores a sublevação durou de 23 a 27 de novembro daquele ano, quando instauraram o Comitê Popular Revolucionário. Como muitos rio- grandenses-do-norte haviam emigrado para o Caldeirão na esperança da vida comunitária e livre, com a morte do Padre Cícero, em 1934, o boato de que os camponeses de lá planejavam um novo levante revolucionário comunista foi utilizado para justificar a invasão e a consequente destruição do povoado. 20. José Gonçalves Bezerra foi o militar responsável pela primeira expedição oficial ao Caldeirão. Disfarçado de negociante e acompanhado de um civil, seguiu a comunidade, em 1936, com a intenção de investigar se os camponeses estavam se armando para um levante e, apesar de evidência alguma de armamentos ter sido 63 encontrada, retornou, em seguida, com uma força volante de 150 homens que realizaram a desocupação do arraial, seguida de saque e incêndio das habitações. Nesse ato, como o beato José Lourenço havia fugido, os militares torturaram pessoas em busca de informações sobre seu paradeiro e mataram seu estimado cavalo, o Trancelim. Essas atitudes extremamente violentas marcaram o povo do lugar que após a invasão passou a viver pelas matas dos arredores, sendo uma parte com o beato e outra sob liderança de Severino Tavares, membro influente da comunidade recém-desfeita, cujo grupo, favorável à luta armada, planejou e realizou uma emboscada para matar o Capitão Bezerra, que sucumbiu juntamente com um filho, o sargento Anacleto, e mais dois homens que compunham a volante.21. Ainda em 1937, o ministro da guerra do presidente Getúlio Vargas e futuro presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, autorizou um ataque aéreo ao Caldeirão e arredores, que foi comandado pelo capitão aviador José Macedo. Três aviões sobrevoaram e bombardearam o lugar e, em seguida, uma expedição por terra perseguiu e matou os remanescentes. Assim, sem resistência nem possibilidade de fugir, mais de 400 pessoas foram mortas num massacre sem precedentes na história do país. Os 64 familiares das vítimas jamais puderam sepultar seus mortos, pois as forças oficiais enterraram os corpos em vala comum que jamais foi encontrada. 22. Em 1914, Padre Cícero, Floro Bartolomeu, José Marrocos, Padre Alencar Peixoto e outras autoridades locais encabeçaram a chamada “Sedição de Juazeiro”, movimento político que abalou o solo cearense e resultou na emancipação e fundação do município de Juazeiro do Norte, então território ligado ao Crato. A partir de um sério confronto com forças oficiais que sitiaram a cidade, um exército formado por sertanejos fiéis à figura do Padre Cícero saiu vitorioso e marchou até a capital cearense, depondo o então governador Franco Rabelo e restituindo o poder ao oligarca Nogueira Acioly, político ligado aos coronéis do interior do estado. Nesse episódio,o beato José Lourenço, pacifista, contrário a qualquer tipo de violência, negou-se a enviar homens ao combate, restringindo- se a fornecer alimentos produzidos na comunidade para a cidade sitiada. Mais tarde, após a invasão do Caldeirão, também foi contrário a Severino Tavares, que arregimentou parte dos remanescentes do arraial para o confronto com as forças oficiais. 65 23. Referência à jumenta de Balaão, animal falante que aparece no Livro dos Números, do Velho Testamento. Mais à frente, no poema, a personagem é referida diretamente. 24. Mote é um estribilho, bordão ou tema sugerido pela plateia durante as cantorias. Neste caso, o mote foram os populares versos “Tudo isso aconteceu num passado / Em que eu fui testemunha ocular”, cujo tema foi cantado em martelo agalopado, que é uma construção composta por dez versos decassilábicos (de dez sílabas poéticas) com estrutura de rimas ABBAACCDDC. 25. O carisma que tinha Padre Cícero para com seus fiéis - a quem chamava de “amiguinhos” - foi responsável pelo incrível ajuntamento de gente ao seu redor. Miseráveis, jagunços, pequenos negociantes, pessoas de fé, muitos, recém-convertidos ao “catolicismo sertanejo” do padre, eram alvo dos sermões de palavras simples e objetivas que ele formulava. Enquanto alguns buscavam a proteção do “Padim”, como era carinhosamente chamado, outros viam a possibilidade de prosperar juntamente com o vertiginoso crescimento de Juazeiro. “Quem roubou, não roube mais”, “quem matou, não mate mais”, “cada quintal, uma oficina” são exemplos das palavras que o padre dirigia às multidões. 66 26. Na virada do século XIX ao XX, um grupo de artistas e intelectuais cearenses fundou um dos movimentos artísticos-literários mais importantes do Brasil: a Padaria Espiritual. Com trinta anos de antecipação à Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em 1922, o movimento que primava por temas nacionais e populares, tecia fortes críticas sociais e se opunha vigorosamente ao estrangeirismo vigente, caracterizado, principalmente, pela adoção de valores franceses. Seu estatuto, que conta com 48 itens, evidencia o caráter irreverente e genial da agremiação, que era constituída por um “padeiro-mor”, padeiros, forneiros e amassadores, que editaram entre os anos de 1891 e 1896 o jornal literário “O pão”, periódico que viria a lançar grandes nomes da literatura cearense e nacional como Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno e Adolfo Caminha. Entre os itens mais interessantes do estatuto estão as determinações que proíbem o uso de palavras estrangeiras e a menção a animais não nativos nas obras dos associados, e o seu “artigo 26”, que define como “inimigos naturais dos padeiros – o clero, os alfaiates e a polícia”. Ainda hoje a Padaria Espiritual inspira gerações de leitores e escritores por todo o país. 67 27. Floro Bartolomeu foi um médico baiano nascido em 1876. Chegou a Juazeiro motivado por notícias a respeito da mina de cobre do Coxá, que ficava em terras de propriedade do Padre Cícero. Tornou-se rapidamente amigo do padre e virou seu braço direito em questões políticas, tendo liderado as tropas juazeirenses durante os eventos que culminaram na Sedição de Juazeiro. Deputado federal, foi responsável pela convocação de Lampião e seu bando à presença de Padre Cícero, a fim de lhe dar patente de capitão e armá-lo para combater a Coluna Prestes em passagem pela região. 28. Antônio Sales nasceu em Paracuru, Ceará, no ano de 1868. Foi romancista e poeta, além de político. Certa feita, durante o café da manhã, teve a visão que resultou na ideia de criar a Padaria Espiritual: ao pão que alimenta o corpo deveria corresponder um que alimentasse a alma, porém, não aquele ofertado pelas religiões, mas um alimento literário, crítico, de inspiração irreverente e original. 29. Durante as agitadas décadas de 1910, 20 e 30, as notícias e boatos que corriam o Ceará e o Brasil destratando a comunidade do Caldeirão, tiveram em Fortaleza ampla receptividade. As diferenças que havia 68 entre a capital e o interior do estado se encontravam potencializadas desde a deposição do então governador Franco Rabelo pelas tropas de Floro Bartolomeu. A população alencarina, que era massivamente contrária ao oligarca Nogueira Acioly, considerava os interioranos do sul do estado como fanáticos retrógrados e ignorantes. 30. Canudos foi a maior comunidade messiânica da história nacional. Localizava-se no sertão da Bahia, às margens do Rio Vaza-Barris, e em seu auge contou com mais de 25 mil pessoas. Seu líder, o cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido por Antônio Conselheiro, resistiu gloriosamente a três combates contra as forças legais da república, motivadas, como de costume, por interesses oligarcas e elitistas, sendo derrotado apenas no quarto embate, que resultou no massacre de cerca de 20 mil sertanejos e na morte do próprio Conselheiro. O episódio, ocorrido entre os anos de 1896 e 1897, inspirou uma das maiores obras literárias do Brasil: “Os sertões”, de Euclides da Cunha, que foi correspondente de imprensa durante as campanhas militares no arraial. 31. O “quadrão perguntado” é um estilo poético do repente formado por perguntas e respostas alternadas 69 entre os dois cantadores, num total de oito versos heptassilábicos (de sete sílabas poéticas), de forma que ao final ambos cantam juntos o refrão “Isso é quadrão perguntado / Isso é responder quadrão”. Sua estrutura de rimas pode ser AABBAACCDDC ou ABBAACCDCD. 32. Bode Ioiô foi encontrado morto nas ruas da cidade no ano de 1931. Devido à sua popularidade passou de mascote urbano a símbolo da irreverência cearense, o que resultou em seu empalhamento e consequente inclusão no acervo do Museu do Ceará, quando, no ano de 1996, teve o rabo arrancado por algum visitante irresponsável. Mesmo morto o bode continuou a ser motivo de anedotas e duas versões para sua morte surgiram: uma delas dizia que ele havia morrido de cirrose hepática, devido ao abuso de bebidas, e outra afirmava que teria sido vítima de crime passional, tendo sido morto por algum marido enciumado cuja esposa havia lhe traído com ele! 33. Um dos episódios mais curiosos ocorridos com o Bode Ioiô trata da suposta reencarnação da alma do engenheiro Paulo de Castro Laranjeira em seu corpo caprino. Conta-se que o homem sofria de uma paixão não correspondida por uma bela moça da sociedade 70 fortalezense e em uma determinada noite do ano de 1897, com o peito dilacerado de amor, durante uma serenata em que cantava a modinha “Teu desprezo” diante da janela, da musa, ele tirara a própria vida, incidente que ficou marcado na história de Fortaleza. Anos depois, diz-se que vinha Ioiô caminhando pelas ruas e ao se aproximar dum grupo de boêmiosque cantarolava a tal modinha, o bicho caiu em crise epilética. Os seresteiros pararam para acudi-lo e, restabelecido o bode, quando tornaram a cantar a música, o animal sofreu nova crise convulsiva. Pronto, foi o suficiente para que Ioiô ficasse associado à figura do engenheiro Laranjeira para sempre. 34. Cancão de Fogo é um dos personagens mais tradicionais da literatura de cordel brasileira. Trata-se de um “amarelinho”, espécie de sabichão que apesar de parecer bobo, sempre passa a perna nas pessoas, a exemplo de João Grilo, Pedro Malasartes e outros. 35. A modalidade “que me falta fazer mais” é um estilo de repente cantado com melodia, composto por martelos improvisados e alternados pelos pelejadores, intercalados pelo refrão de onze sílabas poéticas “Mas o que é que me falta fazer mais, / Se o que eu fiz até hoje ninguém faz?”, 71 cantado em conjunto entre cada estrofe. Geralmente trata de fatos inventados, mirabolantes, que os poetas dizem ter feito para tirar vantagem dos parceiros de cantoria. 36. Ao chegar a Fortaleza, fugindo da famosa seca do 15, Bode Ioiô foi comprado pela filial da empresa britânica Rossbach Brazil Company, uma indústria de exportação de peles de animais. Não se sabe ao certo se ele seria abatido para fornecer couro, mas o fato é que Ioiô acabou se tornando a mascote da empresa, ficando responsável por “limpar” o terreno da instalação, comendo o mato e as gramíneas excedentes. 37. Durante suas andanças pelo centro de Fortaleza, Ioiô era acusado de levantar com os chifres as saias de moças que por ali passavam. 38. Delmiro Gouveia nasceu no município do Ipu, Ceará, e foi um dos pioneiros da indústria brasileira. À margem do Rio São Francisco ele construiu a primeira hidrelétrica do Nordeste, segunda do país. Foi um grande fabricante de linhas, inclusive, chegando a desbancar a famosa marca escocesa, “Corrente”. Presenteou Padre Cícero com o Boi Mansinho por volta do ano 1900. Foi morto em 1917 sob suspeita de assassinato encomendado pelos seus concorrentes. 72 39. O elo que entrecruza o destino dos animais repentistas nesta fantástica peleja é Delmiro Gouveia, aqui chamado de “patrão” por Ioiô, uma vez que foi representante no Brasil da empresa que o comprou da família de retirantes, e presenteou o amigo Padre Cícero o touro reprodutor zebuíno, Boi Mansinho. 40. O rinoceronte Cacareco e o macaco Tião foram animais de zoológico que, assim como ocorreu com o Bode Ioiô, tiveram massiva votação de protesto em eleições de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Cacareco, um rinoceronte fêmea, foi eleito vereador em 1959 com a soma de cerca de 100 mil votos, enquanto Tião foi o terceiro mais votado para prefeito em 1988, totalizando cerca de 400 mil votos, o que só foi possível porque na época de tais eleições, o voto era feito em cédula de papel onde o eleitor escrevia a caneta. 41. Nesta passagem são mencionados bichos que figuraram em poemas da tradição oral e do cordel de épocas diversas: Rabicho da Geralda foi um boi bravio, barbatão, que consta em resgate feito pelo escritor José de Alencar no século XIX e é considerado precursor do tema de gestas de gado do cordel; Vaca do Burel protagoniza outra coleta popular feita pelo folclorista pernambucano 73 Sílvio Romero; Corta-Chão é o touro brabo do romance de cordel “A gesta do touro Corta-Chão”, de Eduardo Macedo; Mandingueiro é a estrela do clássico cordel de Luiz da Costa Pinheiro, “O boi mandingueiro e o cavalo misterioso”; e Rompe-Ferro e Ventania são dois cachorros presentes no clássico “Juvenal e o dragão”, daquele que é considerado o pai do cordel brasileiro, o poeta paraibano Leandro Gomes de Barros. 42. Referência à serpente bíblica que, em dupla com a jumenta de Balaão, são os únicos dois animais falantes que aparecem no livro sagrado do cristianismo. Se no Velho Testamento, que tem origem hebraica, o réptil aparece como símbolo da sabedoria, no Novo Testamento ele é transformado no diabo, opositor de Deus e da sua criação. 43. “O cantador de vocês” é um estilo composto por dez versos heptassilábicos improvisados, onde se canta o seguinte refrão entre os versos sexto e sétimo: “É treze com doze, é onze com dez, / É nove com oito, é sete com seis, / É cinco com quatro, / Mais um, mais dois e mais três”. A modalidade é derivada da embolada e tem como motivo o deboche ou valorização de um poeta pelo outro. Nesse caso, apesar de começarem em tom de “arenga”, 74 Ioiô e Mansinho terminam elogiando um ao outro a fim de encerrar o espetáculo de forma amistosa e honrosa. 44. O encordoamento da viola nordestina utilizada pelos cantadores repentistas tem um total de sete cordas, afinadas conforme a afinação padrão do violão (E-B- G-D-A-E), porém, com diferenças: embora os calibres das cordas variem, as primeiras quatro - de “mi” a “ré” - seguem o violão, enquanto as três últimas cordas são afinadas todas em uníssono, em tom “lá”, para serem tocadas juntas. 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O massacre do Caldeirão: história oral do 11 de setembro de 1936. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2016. ÂNGELO, Assis. A presença dos cordelistas e cantadores repentistas em São Paulo. São Paulo: Ibrasa, 1996. CUNHA, Euclides da. Canudos: diário de uma expedição. 2ª edição. São Paulo: Martin Claret, 2013. ROMARIAS. Disponível em <http://www. santuariodecaninde.com/> Acesso em 18/10/2017. DO SÍTIO BAIXA DANTAS À FAZENDA CALDEIRÃO. Disponível em <http://www.overmundo.com.br/overblog/ do-sitio-baixa-dantas-a-fazenda-caldeirao> Acesso em 24/10/2017. O MASSACRE DO CALDEIRÃO DO BEATO LOURENÇO. Disponível em <http://www.vermelho.org.br/ noticia/248228-11 - 24-10-17 25-10-17> Acesso em 24/10/2017. 76 LISTA DE MUNICÍPIOS DO CEARÁ POR POPULAÇÃO. Disponível em <http://www.cearaagora.com.br/site/lista- de-municipios-do-ceara-por-populacao/> Acesso em 26/10/2017. CAPITÃO ZÉ BEZERRA E A TRAGÉDIA DO CALDEIRÃO. Disponível em <http://cariricangaco.blogspot.com. br/2014/06/capitao-ze-bezerra-e-tragedia-do.html> Acesso em 26/10/2017. BODE IOIÔ, ILUSTRE RETIRANTE DA SECA DE 1915, COMPLETA UM SÉCULO DA CHEGADA A FORTALEZA. Disponível em <http://tribunadoceara.uol.com.br/ noticias/perfil-2/bode-ioio-ilustre-retirante-da-seca-de- 1915-completa-um-seculo-da-chegada-a-fortaleza/> Acesso em 27/10/2017. NO DIA EM QUE O BODE IOIÔ VIROU GENTE. Disponível em <http://calamus-scribae.blogspot.com.br/2012/05/no- dia-em-que-o-bode-ioio-virou-gente.html> Acesso em 27/10/2017. TARCÍSIO HOLANDA. O massacre do Caldeirão. Jornal do Brasil, 01/02/1981, Caderno Especial, página 2. Eduardo Azevedo Nasci e moro em Fortaleza. Sou graduado em Geografi a pela Universidade Estadual do Ceará. Sou professor da rede municipal de ensino de Fortaleza, como também sou ilustrador de livros por vocação. Comecei minha carreira artística no início dos anos 2000, desenhando capas de folhetos de literatura de cordel para a editora Tupynanquim, onde ilustrei meus primeiros livros. Mas foi em 2006 que decidi me tornar ilustrador profi ssional quando ilustrei os livros de literatura infantil “A Branca de Neve em Cordel” e o “Sapo com medo d’água”. Fui vencedor do Prêmio Luís Sá na categoria Quadrinhos do Edital da SECULT de 2011, com a obra “A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás”, também pela Tupynanquim editora. Coordenei o 3º Festival de Ilustração de Fortaleza que ocorreu durante a XII edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará. Participo, ainda, das coleções do Paic, Prosa e Poesia desde o começo. Eduardo Macedo Saudações! Meu nome é Eduardo Macedo. Sou poeta, xilógrafo e compositor cearense. Apesar de ter nascido na capital, costumo cantar e entalhar o sertão que carrego na alma. Sou fi lho de pais interioranos, cada um de um extremo oposto do estado, o que acabou me rendendo um pé na Chapada do Araripe e outro na Serra do Arapari. Já publiquei diversos títulos em cordel e, sempreque escrevo, cuido de valorizar a cultura e a memória brasileiras, nordestinas e do Ceará, pois assumi, desde sempre, um compromisso com a minha própria história e com o meu próprio povo.
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