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LETRAMENTO E NUMERAMENTO Aline Azeredo Bizello Concepções de linguagem Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir letramento com base no conceito de múltiplas linguagens. Analisar os impactos do letramento nos processos de ensino e aprendizagem. Explicar como se estabelecem as práticas avaliativas a partir do con- ceito de letramento. Introdução Na atualidade, a noção de letramento é muito aplicada na área da edu- cação. Você já refletiu sobre a relação desse conceito com a concepção de linguagem? Ao longo da história dos estudos linguísticos no Brasil, diferentes perspectivas teóricas conceituaram linguagem e orientaram o caminho do ensino da língua portuguesa e das atividades de leitura. Hoje, a concepção de linguagem como interação tem se mostrado capaz de aliar educação e letramento: a ideia é oportunizar aos estudantes o desenvolvimento da reflexão e do olhar crítico a partir da análise de ideias e mensagens presentes nos textos. Neste capítulo, você vai estudar o letramento com base no conceito de múltiplas linguagens e vai verificar os impactos do letramento nos processos de ensino e aprendizagem. Além disso, vai conhecer práticas avaliativas que levam em conta o conceito de letramento. 1 Letramento com base no conceito de múltiplas linguagens A noção de letramento surgiu no Brasil por volta dos anos 1980, a partir das discussões sobre analfabetismo brasileiro. Seu signifi cado tem relação com o termo inglês literacy: condição de ser letrado. Nos estudos sobre a educação, o conceito de letramento passou a referir-se à habilidade de ler e escrever. Contudo, a defi nição exata do conceito está em constante discussão. Segundo Soares (2004, p. 65), “[...] o letramento cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais; o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única defi nição [...]”. Dessa forma, existem várias definições de letramento, porém em todas elas há uma relação com a leitura e a escrita. Observe a definição de letramento formulada por Soares (2004, p. 39): “Resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita; o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais [...]”. Isso significa que há uma relação direta com o uso da linguagem. Afinal, é por meio da linguagem que os seres humanos se comunicam, expressam ideias, sentimentos e pensamentos, produzem e compreendem mensagens. Nesse sentido, a concepção de linguagem associa-se à definição de letramento. Assim, as diferentes concepções de linguagem dialogam com a educação. Afinal, a escolha da metodologia depende da eleição de teorias de compreensão e de interpretação da realidade. Sabe-se que cada momento histórico e social apresenta uma concepção especí- fica sobre a língua, pois a linguagem atua na sociedade, que é dinâmica e complexa. Um exemplo desse dinamismo está presente nas orientações para a condução de aulas de língua portuguesa nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação (LDBs). A LDB de 1996 parte de uma noção interacionista da língua, enquanto a de 1971 se centra na ideia de linguagem como expressão do pensamento. Fuza et al. (2011) consideram os paradigmas ideológicos elaborados por Bakhtin e Volóchinov (1992) para analisar as diferentes concepções de lin- guagem. Os paradigmas são os seguintes: Subjetivismo Idealista, Objetivismo Abstrato e concepção dialógica de lin- guagem defendida pelo Círculo de Bakhtin. Geraldi (1984), um dos estudiosos dos pressupostos bakhtinianos, no Brasil, buscou renomear tais concepções: linguagem como expressão do pensamento, linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma de interação (FUZA et al., 2011, p. 479). A concepção de linguagem como expressão do pensamento refere-se à externalização do pensamento, ou seja, a linguagem tem a função de tornar externo um conteúdo interno, psíquico. Para que isso ocorra, há um sistema linguístico pronto, acabado, isto é, a linguagem se mostra como um reflexo dos processos mentais. Concepções de linguagem2 Portanto, para essa concepção, a linguagem é monológica e individual; nenhuma atividade externa ou situação social interfere nesse processo. Logo, a fundamentação desse pensamento associa-se à tradição gramatical grega, que considera a língua imutável e determina que apenas uma variedade lin- guística é a correta. Na atualidade, observa-se essa concepção de linguagem no uso da gramática tradicional nas atividades escolares: há regras a serem seguidas, e essas regras é que determinam a fala e a escrita corretas. Nesse contexto, é papel do professor ensinar essa variedade. Nas palavras de Fuza et al. (2011, p. 482): A concepção de língua como expressão do pensamento está relacionada às chamadas gramáticas normativo-prescritivas, que, segundo Possenti (1997, p. 64), são todas aquelas gramáticas cujo conteúdo corresponde a um conjunto de regras que devem ser seguidas e, por isso, destinam-se a ensinar os sujeitos a falarem e a escreverem corretamente, sendo os transgressores de tais regras considerados grosseiros, caipiras, incapazes de aprender. A essa concepção, Bakhtin e Volóchinov (1992) dão o nome de subjetivismo individualista. Koch (2003) acrescenta que, nessa situação, o sujeito constrói uma representação mental e deseja que ela seja captada pelo interlocutor da maneira como foi mentalizada. Nessa perspectiva, o sujeito que recebe a mensagem é passivo, enquanto aquele que a emite é quem determina o sentido da informação. Assim, nas atividades de leitura e escrita, valorizam-se a norma culta e os exercícios gramaticais. Dessa forma, a escola autoriza e legitima apenas o uso linguístico elitizado e associado à língua escrita. Nesse contexto, o aluno torna-se apenas o receptor passivo da língua, mesmo quando produz textos. Nessa perspectiva, o ensino de português centra-se na aplicação de regras gramaticais e na leitura de textos literários reconhecidos, como ocorreu no Brasil na década de 1960. Nesse caso, o texto é constituído da representação do pensamento do produtor e é visto como um produto. A partir disso, não cabe ao ouvinte questioná-lo, mas sim, exercer um papel passivo diante dele, apenas recebendo suas infor- mações. É possível relacionar essa concepção de linguagem como expressão do pensamento com a “concepção escolar” em ensino (KLEIMAN, 2000), pois ela tem como objetivo o domínio individual do código e vê a escrita como um conjunto de atividades para se apoderar da escrita (FUZA et al., 2011, p. 483). Note que essa concepção de língua determina que a leitura seja apenas um processo de extração de informações e sentidos. Aliás, a indicação de leituras 3Concepções de linguagem ocorria muitas vezes para que o aluno observasse como falar e escrever com adequação, ou seja, de acordo com a norma culta tradicional. Portanto, os fundamentos dessa concepção atribuíam a falta de domínio dos alunos sobre as normas gramaticais a uma incapacidade desses estudantes. Já na concepção de linguagem como instrumento de comunicação, as palavras-chave são elemento comunicativo. Na transmissão de uma mensa- gem, a linguagem é a ferramenta utilizada. Nessa concepção, portanto, não há interferência do meio e se privilegia a variedade linguística padrão. Isso se deve à associação à visão estruturalista da linguagem. Nesse caso, só se consideram os fatores internos da linguagem e da comunicação: o sentido da mensagem está nos elementos linguísticos disponíveis. Além de aliar-se ao Estruturalismo, a perspectiva discutida liga-se também ao Transformacionalismo, que se preocupa com as formas abstratas da língua, e à Teoria da Comunicação, que concebe a língua como um código que servirá para transmitir uma mensagem do emissor para o receptor. Logo, observamos que ela deriva da segunda linha de pensamento filosófico e linguístico dis- cutido pelo Círculo de Bakhtin, o objetivismo abstrato. Conforme Bakhtin/ Volóchinov (1992, p. 82-83), nessa orientação, “a língua é um sistema estável, imutável”, ou seja, é fechada, cujas leis são específicas e objetivas, sem haver qualquer vínculo entre o seu sistema e a sua história. Isso demonstra, como postula Travaglia (1996), que a concepção de linguagem como instrumento de comunicação separa o homem do seu contexto social, por se limitar ao estudo do funcionamento interno da língua (FUZA et al., 2011, p. 486). No Brasil, essa concepção se evidenciou nos anos 1960 (FUZA et al., 2011). Nas escolas, as atividades envolviam modelos a serem seguidos, e a leitura era apenas um processo de decodificação, isto é, os textos eram tratados como pretextos para se atingir outros objetivos, como os relacionados às questões gramaticais. Portanto, o ensino da língua era descritivo: constatava-se a exis- tência de variantes linguísticas, mas apenas a variedade padrão era tratada como forma legítima da língua. Vale ressaltar que, com essa concepção, houve uma mudança no uso de textos na escola: ocorreu uma maior diversificação, com o uso de textos midiáticos. Contudo, a linguagem era concebida como algo centrado apenas na consciência do sujeito. Já a terceira concepção de linguagem parte da ideia de interação. Bakhtin e Volóchinov (1992) consideram a linguagem como uma forma de os indivíduos estabelecerem relações sociais, ao contrário do que postulam as concepções anteriores. Weedwood (2002, p. 151) alerta que, nesse caso, “[...] o importante não é o enunciado, o produto, mas sim a enunciação, o processo verbal [...]”. Concepções de linguagem4 Note que, para essa concepção, não há apenas uma organização mental de uma mensagem que é transmitida para o meio social. Há mais do que isso: o contexto social interfere na produção dessa mensagem. Isso significa que, nos momentos de interação verbal, o sujeito age sobre o ouvinte e reage às reações dele. Veja o que afirmam Bezerra e Luna (2016, p. 39): A linguagem tem um caráter fundador de realidade(s), e não de mera repre- sentação desta, como é sugerido nas demais concepções. É nesse sentido que, ao contrário do que entende, por exemplo, a visão estrutural, a concepção sociointeracionista compreende que as significações são distintas a cada ato de linguagem, pois são determinadas pelas condições de produção do discurso e pela conjuntura socio histórica. É, portanto, por meio de uma relação mútua entre falante e ouvinte que se constroem os sentidos. No ensino da língua materna, há uma expansão dos objetivos educacionais, pois se deseja não só que o aluno conheça a gramática de sua língua, mas também que ele saiba refletir e construir uma visão crítica sobre o mundo a partir do idioma. Nesse contexto, “A reflexão sobre a língua é feita mediante a compreensão, a análise, a interpretação e a produção de textos verbais. Desse modo, podemos considerar que, na concepção dialógica de linguagem, o discurso se manifesta por meio de textos [...]” (FUZA et al., 2011, p. 490). Como você pode notar, a concepção de linguagem como meio de interação coloca em xeque um modelo que exclui o contexto social de construção de sentidos dos textos. Assim, surge uma consonância com a noção de letramento apresentada no começo desta seção: o letramento passa a ser compreendido como prática social, que ocorre na intersubjetividade. 2 Impactos do letramento nos processos de ensino e aprendizagem A concepção que considera a linguagem como interação leva a uma refl exão crítica sobre o ensino de língua materna e provoca impactos no processo de ensino e aprendizagem, pois apresenta também uma nova concepção de letramento. Nesse caso, a preocupação não é apenas com o ler e o escrever, mas também com o uso do ler e do escrever, e isso se refere às demandas de leitura e de escrita impostas pela sociedade. Soares (2004) alerta que costuma haver uma preocupação apenas com a dimensão individual do letramento, relacionada à ideia de alfabetização, e que a dimensão social é deixada de lado. Contudo, no cotidiano escolar, é funda- 5Concepções de linguagem mental trabalhar não só os aspectos técnicos e cognitivos de ler e escrever, mas também a relação dos textos com as estruturas sociais e culturais, bem como a sua ligação com as questões de poder e ideologia. Contudo, no Brasil, o impacto da concepção social da linguagem gerou algu- mas interpretações equivocadas. Veja o que afirmam Fuza et al. (2011, p. 491): Diante da relevância atribuída ao texto, houve, após a década de 80, uma má interpretação das propostas, muitos acreditaram que não se podia mais ensinar a gramática. Porém, o método sociológico preconizado por Bakhtin/Volóchinov (1992) já entendia o estudo da língua partindo, primeiramente, do contexto social mais imediato, abordando, posteriormente, as características do gênero, para, depois, estudar as marcas linguístico-enunciativas mais relevantes. Assim, postulava-se não abandonar o ensino gramatical, mas abordá-lo de uma maneira contextualizada, cuja utilização fizesse sentido ao aluno. Com o entendimento de forma enviesada, enfocou-se apenas a leitura e a produção de textos ou o texto foi tomado como pretexto para o ensino gramatical. Além disso, como essa concepção de linguagem enfatizava o trabalho com gêneros textuais, houve a formulação de atividades que visavam a tratar do texto mecanicamente, como forma de extrair as características estruturais de cada gênero. Contudo, a questão não é apenas inserir diferentes gêneros no ensino da língua materna, mas associá-los ao letramento crítico, ou seja, o intuito é levar os alunos à reflexão crítica sobre os significados produzidos por cada texto de acordo com seu gênero. Nesse sentido, não é suficiente levar diferentes gêneros e textos midiáticos para a sala de aula sem problematizar as entrelinhas desses textos. Há questões sociais, culturais e ideológicas envolvidas e que devem ser analisadas. Ainda no tocante ao uso de gêneros na sala de aula, Fuza et al. (2011, p. 493) afirmam o seguinte: No processo de ensino e aprendizagem da língua materna, os gêneros são tomados como objetos de ensino (BRASIL, 1998) e, por isso, são responsáveis pela seleção dos textos que serão trabalhados como unidades de ensino (ROJO, 2000). Nesse sen- tido, valemo-nos da orientação de Dolz e Schneuwly (2004, p. 60-61), ao proporem cinco agrupamentos de gêneros: narrar, relatar, argumentar, expor e instruir, que tomam por base três critérios: os domínios sociais de comunicação, a homogenei- dade quanto às capacidades de linguagem e a retomada a distinções tipológicas. Com esse tipo de proposta, o professor de língua portuguesa deve desenvolver atividades de análise de textos que considerem a observação do contexto de produção, do conteúdo temático, da forma de composição e das marcas linguístico- -enunciativas. Dessa forma, é possível aliar a leitura e a escrita ao ensino gramatical. Concepções de linguagem6 Essa visão de linguagem está em sintonia com os estudos da linguística textual. Koch e Elias (2010) alertam que a escrita implica mais do que a apropriação das regras da língua, o pensamento e as intenções do escritor. Para ela, a escrita diz respeito à interação entre escritor e leitor, “[...] levando em conta, é verdade, as intenções daquele que faz uso da língua para atingir seu intento sem, contudo, ignorar que o leitor com seus conhecimentos é parte constitutiva desse processo [...]” (KOCH; ELIAS, 2010, p. 34). Aliás, a orientação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) vai ao encontro dessas ideias, pois assume a perspectiva da linguagem como atividade humana que faz parte da interação entre os sujeitos. Observe: As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferen- tes linguagens: verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e, contemporaneamente, digital. Por meio dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais. Nessas interações, estão imbricados conhecimentos, atitudes e valores culturais, morais e éticos (BRASIL, 2017, p. 63). Dessa forma, a leitura não pode ser tratada como um processo fechado, pois ela está constantemente aberta à reinterpretação e à recriação. Afinal, o leitor, na busca de compreender o texto, reelabora significados que são construídos de forma colaborativa. Assim, o texto é refeito no conflito entre diferentes interpretações; logo, a leitura não pode ser tratada como se fosse apenas uma. O significado do texto não é estático nem pode ser predefinido, por isso se pode conceituar a leitura como um processo social que envolve autor, leitor e relações sociais. Com essa perspectiva, o letramento é visto como prática social. Como afirma Moita Lopes (2005, p. 50), há “uma relação intrínseca entre letramentos e os processos de construção identitária”. Nesse sentido, cada prática social em que o indivíduo se engaja constrói sua identidade. Essa identidade interferirá na construção de sentidos tanto no processo de leitura quanto no de escrita. Aliás, essa identidade não é individual, pois interfere na construção da identidade dos interlocutores, ou seja, os sentidos são criados de forma intersubjetiva. Essa visão impacta as práticas de letramento na escola, pois elas são constru- ídas também fora da sala de aula e surgem das interações e comunicações entre interlocutores. Portanto, se os significados não estão no texto, não é possível propor práticas de letramento na escola que se limitem a decodificar textos. Supõe-se que é necessário construir sentidos em negociações intersubjetivas, ou 7Concepções de linguagem seja, propor práticas que permitam trocas entre os sujeitos, construção de rela- ções intertextuais com textos orais e escritos, entrecruzamento de culturas, etc. Como os significados construídos estão situados em um contexto social, é importante também que se reflita sobre os processos de leitura e escrita no cenário contemporâneo, marcado pela cibercultura. Se a comunicação não se limita à escrita e, no mundo virtual, pode ocorrer de forma tanto assíncrona quanto síncrona, novas demandas de comportamento letrado surgem, e essas demandas dependem do contexto social. Além disso, surgiram novos discursos midiáticos e, como afirma Lévy (1995), há um dilúvio de informações. Será que apenas o letramento escrito dará conta das exigências de comunicação da contemporaneidade? Para Veiga-Neto (2002, p. 178), “[...] torna-se [...] cada vez mais difícil continuar imaginando nosso mundo como um espaço social único, unitário e homogêneo [...]”. Portanto, é preciso refletir sobre multiletramentos para que todos aprendam a ser letrados nesse mundo constituído de uma variedade de discursos midiáticos e de mensagens multissemiotizadas. Aliás, essa é a orientação da BNCC (BRASIL, 2017, p. 80): O Eixo da Análise Linguística/Semiótica envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas de análise e avaliação consciente, durante os processos de leitura e de produção de textos (orais, escritos e multissemióticos) [...] Já no que diz respeito aos textos multissemióticos, a análise levará em conta as formas de composição e estilo de cada uma das linguagens que os integram, tais como plano/ângulo/lado, figura/fundo, profundidade e foco, cor e intensidade nas imagens visuais estáticas, acrescendo, nas imagens dinâmicas e performances, as características de montagem, ritmo, tipo de movimento, duração, distribui- ção no espaço, sincronização com outras linguagens, complementaridade e interferência etc. ou tais como ritmo, andamento, melodia, harmonia, timbres, instrumentos, sampleamento, na música. Dessa forma, se o letramento não gira em torno apenas do texto impresso, é necessário abrir espaço para outros textos na sala de aula a fim de associá-los ao letramento crítico. Os discursos midiáticos presentes nos variados meios de comunicação, principalmente os da televisão e da internet, também carregam conteúdo ideológico e favorecem a leitura crítica. Qual é o impacto dessa proposta de letramento no processo de ensino e aprendizagem? Certamente, serão exigidas novas demandas de comportamento letrado. Isso problematiza as práticas pedagógicas, pois, atualmente, elas ainda prio- rizam o texto impresso e costumam desvincular a língua do contexto social. Quando se propõem atividades escolares baseadas numa visão de linguagem neutra, se excluem as questões sociais, psicológicas, culturais e ideológicas Concepções de linguagem8 que permeiam a comunicação. Entretanto, a linguagem é utilizada exatamente para que as pessoas realizem algo no mundo social, isto é, para que construam a realidade e a sua subjetividade. Isso não significa que, no processo de ensino e aprendizagem da língua materna, não se utilizem diferentes concepções de leitura e linguagem. Veja o que afirmam Fuza et al. (2011, p. 498): Da mesma forma, especificamente, cremos que as concepções de leitura também dialogam entre si, corroborando Menegassi e Angelo (2005) ao postularem que, no trabalho com a leitura em sala de aula, é importante aproveitar características das concepções de leitura que são úteis à situação de interação. Assim, a prática da leitura interacionista configura-se como processo que implica a participação ativa do leitor e do texto para a construção do significado e para a produção de sentidos do enunciado. Aliás, os diferentes paradigmas de linguagem podem coexistir no ensino de língua materna. O importante é que os docentes dominem essas diferentes concepções para compreender as práticas de linguagem em sala de aula e utilizá-las nas práticas de letramento. A BNCC é o documento mais recente com orientações para a prática docente (BRASIL, 2017). Confira-o na íntegra no link a seguir. https://qrgo.page.link/rFr6B 3 Práticas avaliativas a partir do conceito de letramento Todo processo de aprendizagem formal envolve três ações docentes: plane- jamento, mediação e avaliação. Portanto, o processo de letramento também requer que o professor planeje, faça a mediação e avalie. Assim, se o letramento se associa ao desenvolvimento de uma linguagem vista como prática social, as estratégias de aprendizagem elaboradas pelo professor devem privilegiar atividades que considerem o contexto e a interação. Mas você sabe como planejar o processo de avaliação? 9Concepções de linguagem É comum que se considere a avaliação escolar como uma ação que serve para medir os conhecimentos escolares, verificando se os alunos os apre- enderam ou não. Contudo, essa concepção de avaliação privilegia o ensino tradicional, que não considera o contexto nem as condições sociais. Contudo, se o letramento é encarado como um fenômeno que está além da decodificação de textos escritos e que considera as práticas de leitura e escrita no contexto social da linguagem, a avaliação assume outra perspectiva. Veja: As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não alfabetizado, passam a ser [...] apenas um tipo de prática — de fato, dominante — que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita (KLEIMAN, 2008, p. 19). Se o letramento fosse apenas alfabetização, haveria uma sintonia com o enfoque tradicional, que considera o estudante um receptor passivo dos con- teúdos e vê seus erros como algo indesejável. Nesse caso, a falha determina uma reprovação. Já a perspectiva construtivista considera o erro como um elemento que funciona como uma ligação para a construção do conhecimento. Nesse sentido, é preciso que haja sintonia das práticas de letramento com uma avaliação que cumpra três funções básicas: diagnosticar (investigar), controlar (acompanhar) e classificar (valorar). Para tanto, há três avaliações possíveis: diagnóstica, formativa e somativa. A função diagnóstica se refere à observação que o professor faz a respeito dos conhecimentos prévios dos alunos. Geralmente, ela ocorre nos primeiros contatos entre o docente e os estudantes ou nas primeiras etapas de contextualização e mobilização sobre um assunto. A partir desse diagnóstico, é possível identificar o ponto atual para seguir em direção às novas etapas de aprendizagem. Nas palavras de Luckesi (2000, p. 9), “[...] para avaliar, o primeiro ato básico é o de diagnosticar, que implica, como seu primeiro passo, coletar dados relevantes, que configurem o estado de aprendizagem do educando ou dos educandos [...]”. Essa avaliação não requer nota, mas uma constatação e uma tomada de decisão: Caso um objeto seja qualificado como satisfatório, o que fazer com ele? Caso seja qualificado como insatisfatório, o que fazer com ele? O ato de avaliar não é um ato neutro que se encerra na constatação. Ele é um ato dinâmico, que implica a decisão de “o que fazer”. Sem esse ato de decidir, o ato de avaliar não se completa. Ele não se realiza (LUCKESI, 2000, p. 8). Concepções de linguagem10 Quando se trata de letramento, há um vínculo direto da leitura com o contexto de uso real, ou seja, os alunos interagem com a cultura letrada antes mesmo de frequentarem a escola. Dessa forma, eles iniciam o processo de aprendizagem sem depender da escola e do professor. Veja o que afirma Ferrero (2000, p. 34): Se pensarmos que a criança aprende só quando é submetida a um ensino sistemático, e que a sua ignorância está garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas, se pensarmos que as crianças são seres que ignoram que devem pedir permissão para começar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora não tenha sido dada a elas a autorização institucional para tanto. Isso não significa que a escola não tenha importantes papéis no processo de letramento dos alunos. Afinal, se o professor planeja atividades baseadas no conhecimento prévio de cada aluno e sabe analisar constantemente seu próprio trabalho, as condições para o processo de letramento tornam-se favoráveis. A função formativa da avaliação se refere à regulação do processo de ensino e aprendizagem. Essa regulação diz respeito à melhoria da aprendizagem dos alunos. Para tanto, o professor se autoavalia e avalia sua prática pedagógica como forma de verificar os ajustes que devem ser feitos no processo. Quando o professor é capaz de constatar o que seus alunos não conseguiram desenvolver e busca alternativas para suprir as necessidades e dificuldades desses alunos, a avaliação está se realizando de acordo com sua verdadeira função: a de auxiliar o estudante a construir sua aprendizagem de forma positiva. Apenas no final do processo de avaliação é que surge a avaliação soma- tiva. Ela tem a função de verificar o resultado e fornecer ao professor dados para tomar medidas a longo prazo. É evidente que esse tipo de avaliação se aproxima da tradicional valoração, porém o professor deve fazer esse julga- mento de forma qualitativa: com a análise de cada etapa para a identificação dos avanços e das habilidades que não foram desenvolvidas. A intenção é contribuir com o crescimento do aluno. Vale ressaltar que a avaliação somativa não tem finalidade classificatória, e sim de verificação para medidas a longo prazo. Contudo, ainda se vê nas escolas, inclusive nos anos iniciais, a realização da avaliação somativa com a finalidade de classificar os alunos de acordo com níveis de aproveitamento previamente estabelecidos. Entretanto, como afirma Luckesi (1999, p. 172), O julgamento é um ato que distingue o certo do errado, incluindo o primeiro e excluindo o segundo. A avaliação tem por base acolher uma situação, para, então (e só então) ajudar a sua qualidade, tendo em vista dar-lhe suporte de 11Concepções de linguagem mudança, se necessário. Podemos entender avaliação escolar como um ato amoroso, na medida em que a avaliação tem por objetivo diagnosticar e incluir o educando, pelos mais variados meios, no curso da aprendizagem satisfatório, que integre todas as suas experiências de vida. Como a prática avaliativa se concretiza no cotidiano? Por meio de ins- trumentos que ajudem a informar as reais situações de cada aluno para que o professor viabilize alternativas adequadas ao processo de aprendizagem. O portfólio e o diário de classe são instrumentos fundamentais que auxi- liam professores, alunos e até mesmo familiares a acompanhar o processo de aprendizagem. O portfólio apresenta anotações, experiências que o aluno vivenciou em sala de aula, registros sobre a realização de trabalhos, alguns trabalhos pon- tuais, articulações entre temas, etc. O importante é que mostre evidências dos conhecimentos construídos no processo, estratégias que o aluno utilizou para aprender e também estratégias que o professor indicou. O diário de classe deve apresentar informações dos alunos e revelar o caminho percorrido por eles para alcançar a aprendizagem. Além disso, é por meio do diário de classe que se pode observar o registro do planejamento e das estratégias de aprendizagem elaboradas pelo professor. Com a leitura e a análise desse instrumento, o docente pode refletir sobre sua atuação e fazer as modifi- cações necessárias para ajudar seus alunos a desenvolverem sua aprendizagem. Em suma, a prática avaliativa deve ser permanente no trabalho docente. Afinal, apenas a reflexão sobre o processo de aprendizagem do aluno e o trabalho escolar pode construir mudanças significativas. O objetivo é que o letramento ocorra não apenas nos anos iniciais do ensino fundamental, mas também ao longo da vida escolar. BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BEZERRA, R. G.; LUNA, T. S. Concepções de linguagem: uma análise preliminar do discurso docente e das práticas em sala de aula. 2016. Disponível em: http://www.encontros- devista.com.br/Artigos/art_03_152.pdf. Acesso em: 27 jan. 2020. BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site. pdf. Acesso em: 27 jan. 2020. Concepções de linguagem12 Os links para sites da Web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. FERRERO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo; Cortez, 2000. FUZA, Â. F. et al. Concepções de linguagem e o ensino da leitura em língua materna. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 14, n. 2, p. 479–501, 2011. KLEIMAN, A. B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 2008. KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2010. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: [s. n.], 1995. LUCKESI, C. C. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e preposições. São Paulo: Cortez, 1999. LUCKESI, C. C. O que é mesmo o ato de avaliar a aprendizagem? Pátio, Porto Alegre, n. 12, p. 6–11, 2000. MOITA LOPES, L. P. Interdisciplinaridade e intertextualidade: leitura como prática social. In: SEMINÁRIO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL PORTUGUÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA, 3., 1996, Niterói. Anais [...]. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1996. p. 1–9 SOARES, M. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, V. M. (org.). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2004. VEIGA-NETO, A. De geometrias, currículo e diferenças. Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 79, p. 163–186, 2002. WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola Editorial. 2002 13Concepções de linguagem