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CINEMA DE BORDAS 3 _livro

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"clNEMA OE BORDAS", MANUAL 00 USUÁRl/): `1 " \1 " )^1)1` mw W I
POSSÍVEIS CAMiNHOS PARA 0 ESTUDO D[ UM +1 Ní`w r\t / \i Ü m )Vi`l/^I fYW`l u \W
".V,W
A vlslBILIDADE BRljrA Nt>` 1 H ^u .,1 n `1 \ 1 r,1^w u 1 /" n 1
'',.,",^.M ' v"
A SAc,A ÉpicA D^ i'R( )i n i u Ji<í\ ( i{i`, i i t 1 H ^w `i:
A pAlxÃ() RAL)lo(.lNr 111 ^ 1111 )^vH) l<^Nl ,1 |
' ,,1''\ nl'"''
\ RAMBÚ DA AM^/. )Ni;\ i i )^`i ) `/'+/ / / i// iw i
A,M ,,,,,,,, ' ', ,' I \ W( '1 '1 '
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o CINEMA DE BORDAS, A EST[rl(. J\ í^'Z\W Í t t ) i`^w^t iNw^
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HORROR À MiNEiRA: os FiiMFç ^`it iMiiw^" n w. l`rni`'`i V^ ' ,
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p^R^ AIÉM ltt ,` t,rNl l{tl`: Ul ,M W 1 ^hll
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N,,u'w 'h, ' ''" u,
' lM^,,'N`' \"r.J,.l'^( ''l'
1,,1..1^^ 'h. M'" 1''"
Gelson Santana
(org.)
{`Ím`Hâb®fidãMS3
Gelson Santana
(org.)
cineffiâb®ffdas3
EDLTORA a iápis
Sumário
editor: Gelson Santana
projeto gráfico: Livre Desing Studio
diagramação e capa: Mauro Teles
Revjsão: Gelson Santana
l:oto página 159: iúcío De Franciscis dos Reis Piedade
jmagemcapa..oat"JorgeTimmem0DoceAvançodaFaffi(2010),dePetter
Baiestorf
Dados lntemacionais de Calalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasjl)
Cinema de bordas 3 / Gelson San(cma ( org ) --São Paulo
Ed. a láp/s, 2014. 2" edtção
264p : 1121
Vários au(ores
1. Cine" -Brasil 2 Cinema -Brasil -His(ória Cul!ura -
Aspectos Sociais 4 Cul(ura -Brasn 5 Culiura Midiãtica
6. Culiura Popular 7. Genero no Cinema.1. Tilulo
lsBN . 978-85-6594J-66-6
CDD -7914365380981
lndices para catálogo sistemático:
1. Cinema ' Pesquisa 79143072
2,\ ed,ção
São Paulo, 2014
EDiTORA a iápis
alapis@ig.com br
4. lntrodução
``Cinema de bordas", manual do usuário:
Sobre afinidades teóricas e possíveis caminhos
12. para o estudo de um fenômeno audiovisual popular
Alfredo Suppia
38. A visibilidade bruta nos filmes de Seu Manoelzinho
Bemadette Lyra
54. A saga épica da produtora Cristo Filmes: a paixão
radiocinéfila de David Rangel
Carlos Primati
74. Rambú da Amazônia como space-off do
Rambo de Hollywood
C\elson Santàna
90. 0 cinema de bordas, a estética rrash e o paracinema
Laura Cánepa
108. Horror à mineira: os filmes assombrados de Pedralva
Lúcio De Franciscis dos Re.is Piedade
134. Zumbificando o Réquiem
Luiz Vad-m
160. Um olhar impressionista sobre Afonso Brazza
Maria lgnês Carlos Magno
176. Para além dos gêneros: humor e amor
em filmes de bordas
RosÀna de Lima Soares
204. lmagens e Sons da CUICA
Zule;ka de Paula Bueno
238. Referências bibliográficas
250. Filmes de bordas citados
260. Sobre os autores
ciNEMA DE Bof
fintrodução
Gelson Santana
Este livro não pergunta nem explica. Apenas se de-
liiu`a sobre temas e filmes capazes de dar uma amostra-
Hm do que consideramos cinema de bordas. Foi com
•.`w palavras que encerramos a lntrodução de C-/.nerria
t/t. Borc/as, publicado em 2006, que reuniu artigos de es-
iutliosos, apaixonados por um tipo específico de cinema
iii`iiférico, produzido em cidades interioranas ou lugares
tli`l`intes dos grandes centros produtivos, quase invisi`vel
i. t``palhado por todo o país. Pois hoje, seis anos depois
•. iiiais a publicação, em 2008, da coletânea C/.nema de
/Jti/.das 2, esse pensamento de mobilidade, fluidez e leve-
/.` t'` o mesmo que serve de guia a este outro livro, C`/.nema
tli. Bordas 3.
Não se pode dizer, no entanto, que as questões aqui
ii.`(ddas são as mesmas de antes ou que guardam as mes-
nub características. Até porque, de lá para cá, não foram
i)(iiicos os debates, as polêmicas, os livros, artigos, confe-
ií.iicias, mostras e muitos outros modos de investigação e
(`xi)cmsão que se articularam em torno do termo "cinema
t lt` [)ordas'', ampliaram-no, desdobraram-no e o fizeram se
( l.\rificar.
Em sua gênese, o termo cinema de bordas foi propos-
iu i)or Bernadette Lyra, em 2005, na comunicação feita à
nit`ba ``Juntando os cacos, reciclando o lixo: nas bordas do
t ii`ema brasileiro'', no lx Encontro da Sociedade Brasileira
tlt` Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine)]. À época,
`t`i.via para agrupar um conjunto de filmes deixados às
iii.`rgens pela historiografia cinematográfica brasileira ofi-
i i.`lizada e tradicional, quase sempre pautada no autoral e
' () lx Encontro da Socine ocorreu de 19 a 22 de outubro, de 2005, em São Leopoldo,
li` A comunicação citada foi publicada com o ti`tulo de "Horror, humor e sexo no
iliioma de bordas'', na revista //ha do Desterro, Florianópolis, n.51, iul-dez, 2006,
pp.131-146.
0
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V'
W
€roEBORDAS3
Ê no artístico e em boa parte construi'da em torno das idéjas
U de Alex Víany2 e do Gnema Novo, como o fez Glauber
Rocha3. Naquela ocasião, a autora partia das considera-
Ções sobre a existência de uma ``cultura das bordas'', ou
seja, uma cultura exclui'da do centro.4
0 termo cinema de bordas foi desde logo acejto e ado-
tado por um grupo de pesqujsadores independentes, se-
diados nas mais diversas Universjdades do país e Ínteres-
sados em examinar, catalogar, e tornar visível essa espécie
de produção que opera e transjta ljvremente nas brechas
de confluência e interfluência das formas legítimadas e
institucionalizadas pela história, teoria e crítica do cinema
no Brasi'.
Como resultado do trabalho conjunto e particípativo
desses pesqujsadores, o termo cinema de bordas ganhou
vida própria e se intensificou, tomando sua atual concep-
ção de alteridade e paralelismo, que vai muito além da-
quela característica inicjal de margjnalidade ou exclusão.
Aljás, desde o jnício, foi este o desafio do cjnema de
bordas: constituir-se no terrjtório de uma historiografia ci-
nematográfica paralela, sem passar pela tentação de con-
ceituar esse território como "cínema marginal" ou "cinema
de periferia'', nos sentidos que estes dojs termos adquiríam,
respectívamente, dentro do campo, quando passavam a
designar quer um movimento agregador de cineastas que
se dedicavam ao cjnema de viés underground e poético,
quer um conjunto de filmes fejto em centros comunitá-
2VerVIANY,Alex./ntrodt/çáoaoc/nemabras/./e/ro.RiodeJaneiro:lnstttutoNacíonal
do Livro, 1959
W ROCHA, Glauber A rpv(J/ução dí) C/riema Novo Rio de Janeiro Alhambra/
Embrafi.Ime,1980
4 Tal como a caracterizou a pesquisadora Jerusa Pires Ferreira, em seu artigo
"Heterônimo e cultura das bordas` Rul]ens luchetti'', na f?ev/.5ía U5P, n 4, dez jan.
fev.1989/1990, pp.i69-174.
CiNEMA DE Bop
t'Im L` ONGs, por indivi'duos ou grupos sociais distintos em
l)ii`ca de uma afirmação de identidades.
Assim, ao longo do tempo, foram surgindo ramifica-
(`(`}(`s, contornos, descobertas e links, verdadeiras //.nha5
t/r /'orça que, hoje, dão sustentação ao termo cinema de
lttir(Jas e às investigações dos pesquisadores do grupo e
tlr demais estudiosos centrados no universo dos estudos
i iiiiimatográficos e audiovisuais.
São essas linhas de força que ancoram os artigos que
i tiiiipõem este livro. Aqui, elas se diversificam,se entre-
l.w``im, se completam e nesse sentido continuam a tarefa
tlt``envolvida ao longo de todos esses anos, juntando-se
i it`ntos outros estudos que, por vias diversas, vêm inves-
ii*.`ndo e propondo coordenadas mais equilibradas, não
.ii)i`nas na história do cinema brasileiro, mas também na
l`i`tória das formas cinematográficas em nosso país.
Em plano geral, as investigações deste livro estão incli-
i`,idas sobre os modelos, formatos e razões desse cinema
i`{iriférico e paralelo, distante dos circuitos comerciais e ar-
ii.`iicos, capaz de driblar as precariedades do ofício, as difi-
t uldades técnicas e as deficiências orçamentárias através de
nit]dos alternativos de produção, realização e exibição. A
iii[irca mais evidente do cinema de bordas, aqui examinada,
i'` que dele resultam filmes concentrados de modo especí-
iiio em narrativas ficcionais que vão e vem também pelas
l)()rdas dos múltiplos imaginários de que se constituem.
Ninguém ignora a transformação gradativa sofridas por
( (`rtas categorias ligadas à idéia de "agreste", "da terra", do
"tudo vem da terra", do "plantando dá'', que costumavam
i)()voar o imaginário popular brasileiro. Essas categorias
•icabaram migrando para as formas de outro imaginário,
(lecorrente de uma pretensa inserção do país no espaço
iiidustrial, ou seja, no espaço que atualizou entre nós o
0
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U,
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LIJ
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OE BORDAS 3
fenômeno que os teóricos costumam chamar de culturas
de massa. Por sua vez, à força da intensa midiatização das
sociedades, hoje as culturas de massa estão se mudando
em alguma outra coisa que se para alguns pode agora ser
classificada por cultura midiática, para outros já perdeu
até mesmo os contornos dessa classificação.
Como consequência desse movimento modular e
transverso que percorre os imagjnários, as reflexões sobre
os objetos culturais encontram possjbilídades variáveis de
deslocamento. Sobretudo, se considerarmos que a aparên-
cia passa a ser a face mais escancarada do fenômeno da
mídiatização.
Esse dado teóríco possibilita a expansão da rede de re-
presentações e dos modos de investigar o mundo, pois,
com ele, a superfície do mundo desliza ligejra, muda de
posição com facjlidade, oferecendo múltjplos e variados
horizontes. Ao vjrtualizar a aparente dinâmica do mundo
em movimento, a presentificação da superfície atua sobre
os jmaginários, apagando a idéia de uma cultura vjven-
ciada como estátjca. Esta últjma, porém, permanece em
algum lugar de tais rotações, emitindo sinajs que mesclam,
desmantelam e reorganizam, a uma só vez, as imagens
crjstalizadas pelo "popularesco'', perante a pressão da mi-
djatjzação das culturas.
Devido às características especiais do cinema - mescla
de indústria de filmes com a arte de modelar o tempo, o
espaço e o movjmento, em imagens e sons - jsso ocorre de
tal modo que em países fracamente jndustrializados, como
o Brasil e vários da Amérjca Latina, o fantasma do ``popu-
Iar" sobrevive, rondando o campo cinematográfico, agj-
tando-se contjnuamente sob a capa jlusória da industrja-
Iização. Nesse cenário, certas produções culturais jamais
se concretizam unilateralmente. Elas se movem e oscilam
CINEMA DE
i`i`ii.ti o popularesco e o midiatizado. É o que acontece nos
liliut`s a que denominamos "de bordas''.
Em plano médio, neste livro, os autores se lançam sobre
m itiutações, contaminações, fragmentações e remixagens
tlt i` gêneros cinematográficos, vistos como formas organi-
/.itlt>ras de um pacto que se estabelece entre as produções
r u público desse tipo de realização, com características
r {`Íeitos específicos. lsso ocorre porque as adequações
Hi`iiéricas nos filmes de bordas dependem de condições
tiiit` tanto podem ser econômicas quanto estéticas. E, uma
vw que contam com as precariedades decorrentes de bai-
xt )` orçamentos, os filmes acabam por adequar os gêneros
ii,itlicionais a uma estética que pode ser mais ou menos
"iini)ura'', "mista", ``trash" ou '`tosca", dependendo da in-
itii```ão ou da pretensão de cada realizador.
Acrescenta-se a isso o fato de que a experiência do ci-
t`i`iiia de bordas está diretamente ligada ao entretenimento
itM``l. E, dentro desse espaço, de modo muito peculiar, as
li)Hiias narrativas que organizam os gêneros nesses filmes
i`\iiidados não fazem caso de estabelecer qualquer sepa-
i,```{io entre a realidade e a ficção. 0 que torna possível
(li/iy que os modos genéricos expressivos da produção
(lr hordas são pautados pela experiência midiática que os
t t ii`tamina e não pelo viés do artístico que determinaria de
inijdo clássíco uma classificação. Ou seja, os gêneros nos
lilii`es de bordas falam mais de uma vivência exercitada e
i`xi)erimentada pelos seus realizadores no universo dos fe-
i`i`iiiienos e produtos midiáticos do que de uma produção
int>positalmente estruturada sobre as categorizações tradi-
t i{inais da arte de organizar as narrativas modeladas como
l,`i()estes, musicais, comédías românticas, comédias escra-
t l`,`das, filmes de horror, de lutas marciais, entre outras
iii)iíicações. Muito mais do que uma ação capaz de dar
Bofo
à
W
€roEBORDAS3
± forma si.mbólica às experjêncjas crjadoras, no cinema de
u bordas os gêneros se apresentam como uma reação direta
e materialjzada ao tipo de espaço expressivo vjvenciado
pelos contratos dos realjzadores e sua formação. Por jsso
aparentam sempre estar repetindo e refletjndo outras re-
presentações, já anteriormente vjstas e ouvídas. Na verda-
de, os gêneros nos filmes de bordas estão mais no terreno
da experiência performátjca do que naquele da constru-
ção artística tradicional.
Em prjmeiro plano, o qiie transparece nos textos aqui
reunidos é o amoroso, respeitoso e mjnucjoso trabalho
com que são jnvestigados os detalhes da maquinação, da
combínação de imagens e sons que compõem o corpo
desses filmes desgarrados, para que eles encontrem seu
lugar de direjto nos estudos cinematográficos e não se
percam de vez no desprezo, no pouco caso ou na jndi-
ferença.
Uma djstjnção flagrante entre esta coletânea de artjgos
e as duas anteriores é o conforto e a desenvoltura com
que, agora, os artigos trabalham em cima de um referen-
cjal conceitual que se estabelece a partir do termo "cine-
ma de bordas''. Isso signífica, em prjmejra jnstância, que
antes de tudo os textos jã partem de um campo cjnema-
tograficamente pré-estabelecido, ao jnvés de ainda busca-
rem justificativas para sedimentá-lo.
Em C/.nema de Borc/as J, a ativjdade construtora Ínjcjal,
que movia os dojs volumes anteriores, estã reduzjda ao
mínimo dejxando transparecer, em seus rumos explorató-
rios, sinais evidentes de maturjdade, sem que jsso repre-
sente acomodação.
Mas é necessárjo djzer que antes que prometer um uni-
verso fechado e cristalízado, os dez artjgos que jntegram
este livro são os fragmentos de um puzzle Íncompleto, ou
CiNEMA DE Bo¢
int`ll`t>r, são testemunhas de uma ação contra o oblívio e
(i t``tiuecimento.
1 iiíim, publicando este C/.nema c/e Borc}as 3, esperamos
(iu`` cle atue com a magia renovada de um encontro,
``.`i.viiido para despertar outras iniciativas que somem
itintiscono resgate de toda essa produção periférica,
ituiii.u vezes perdida, escondida e quase invisível, mas tão
vli,il i` tão necessária aos estudos de cinema em nosso país.
C)
>
V'
W
ciNEMA DE Boí}
"Cinema de bordas'', manual
do usuário: Sobre afinidades
teóricas e possi'veis caminhos
para o estudo de um fenômeno
audiovisual popular
Alfredo Suppia
Em "An atlas of world cinema", Dudley Andrew (2006)
i)ropõe uma abordagem diferenciada do cinema mundial
t (>ntemporâneo. Como alternativa a uma análise linear ou
tirbital, com referência a centros de atenção e zonas de
iieriferia, Andrew sugere, abertamente inspirado no Af/as
t)f the European novel 1800-1900 (1998), de Franco Mo-
ietti, um novo modelo para os estudos de cinema, basea-
tlo na lógica do atlas geográfico: uma coletânea de mapas
voltados cada qual a um valor específico, mas variável.
l)essa forma, um pesquisador de cinema poderia proce-
(ler a um mapeamento do cinema mundial contemporâ-
neo com enfoque político, demográfico, linguístico etc.,
1` assim propor histórias/panoramas alternativas(os) do ci-
iiema, mais inclusivas(os) e abrangentes. A cada exemplo,
Andrew fornece um ensaio de pesquisa possível. Sugere
iambém a metáfora das "ondas" em substituição às tradi-
cionais "árvores genealógicas" constituídas a partir de ci-
nematografias nacionais (Andrew, 2006:21 -2). Sob o signo
das ``ondas" - e não das "árvores" -, as análises poderiam
perder seu caráter tradicionalmente estanque, abraçando
o hibridismo e o reconhecimento das múltiplas influên-
cias que as cinematografias nacionais têm exercido, umas
sobre as outras, ao longo de toda a história do cinema.
Segundo Andrew, "para usar a analogia de Franco Mo-
retti, estudos de cinemas nacionais têm sido geralmente
árvores genealógicas, uma árvore por país (2000:67). Suas
raízes e troncos elaborados são raramente apresentados
como estruturas entrelaçadas. Uma abordagem mundial
como `sistema', por outro lado, demanda uma analogia
diferente, aquela das `ondas' que rolam através de culturas
adjacentes cuja proximidade entre si promove uma propa-
gação que nem mesmo a triangulação é capaz de medir
adequadamente. 0 termo de Moretti atrai um dos melho-
res exemplos de wor/c/ c/.nema: porque a Nouvelle Vague
0
ã
W
€roEBORDAS/3
Ê que flutuou no cinema francês em l959 propagou-se ao
U redor do mundo, afetando de díferentes maneiras e sob
circunstâncjas diferenciadas os cinemas da Grã-Bretanha,
Japão, Cuba, Brasil, Argentína, Tcheco-Eslováquia, lugos-
Iávia, Hungria e, posteriormente, Taiwan. Como sabemos,
sua suposta ondulação original em Paris deveu muito aos
filmes hollywoodianos que aportaram a reboque da inva-
são da Normandia de 1944, Iiteralmente rejuvenescendo
uma cansada cultura francesa" (Andrew, 2006:21-2)'.
Em meio à proposta de atlas de Andrew, um tipo de
mapa em especial chama nossa atenção: o mapa topográ-
fico. Esse tipo de cartografja tem por objetivo mapear pro-
duções audiovisuais invisi`veis aos olhos dos ``observado-
res de superfície" - aqueles que se voltam essencialmente
às duas "formações" mais proeminentes na paisagem cine-
matográfíca: (1 ) o cjnema comercial de ampla penetração,
facilmente visível porque super-exposto, ou (2) o cinema
de autor, Iouvado no meio acadêmico ou da crítica espe-
cialjzada. Segundo o autor, "mapas topográficos represen-
tam a luta por representar a profundidade, aquilo que está
escondido. As noções de 'espaço nomádico liso' de De-
Ieuze naufragam quando se olha para culturas profunda-
mente `enraizadas', jncluindo aquelas que têm escapado a
nossa atenção" (Andrew, 2006:26).
Uma tentativa de mapeamento "topográfico'' (Andrew,
2006:25-6) da produção audiovisual brasileira, em espe-
cial voltado para as ``grandes depressões", tem sido pro-
cedida por um grupo de pesquisadores interessados em
filmografias/videografias locajs ou regionais, circulantes à
margem dos aparelhos de produção, distribuição e exibi-
Ção legitimados ou institucionaljzados. Esse grupo deno-
' Todas as traduções do inglês são de responsabilidade do autor.
ciNEMA DE Bo¢
mina ``cinema de bordas" seu objeto de estudo, essencial-
mente heterogêneo e heteroglóssico.
Na apresentação do livro C`/.nema c/e BorcJas (2006),
primeira coletânea do grupo "Formas e lmagens na Co-
municação Contemporânea" (sediado na Universidade
Anhembi Morumbi, em São Paulo, e vulgarmente co-
nhecido como ``o grupo das bordas''), Bernadette Lyra e
Gelson Santana observam que "No campo do entreteni-
mento cinematográfico, o envolvímento que ocorre entre
os espectadores e um filme pode ser enquadrado em dois
modos básjco5 de comportamento do lazer: o `sérjo' e o
`trivial" (2006:9). No primeíro, o espectador exerceria do-
mínio cognitívo sobre o objeto, um determinado "controle
interpretativo'', enquanto no modo ``trivíal" a participação
meramente passiva serviria aos propósitos mais rasos do
espetáculo de diversão e passatempo (2006:9). Esse se-
gundo modo, o ``trivial'', representaria o regime típico de
jnserção do "cinema de bordas''.
``Não é à toa que de alguns filmes [de bordas] se diz
que lançam mão de recursos expressivos excessivos. Ou
seja, são `apelativos'. Esse apelo, certamente, diz respeito
às formas filmicas e às percepções que provocam nos es-
pectadores, muito próximas dos jogos `quentes' do corpo
e distantes dos i.ogos intelectuais `frios'. Por essa razão, tais
filmes são comumente assocjados ao comportamento tri-
vial do entretenimento e se vêem destitui'dos, no esquema
de valoração da experiência" (Lyra & Santana, 2006:12).
No seio do modelo de oposição entre alta e baixa cul-
tura, filmes de orientação "trivial" acabam subvalorizados
em comparação àqueles de extração ``séria''. Nesse sen-
tido, Lyra & Santana citam Hans Ulrich Gumbrecht para
assinalar ainda que "esse duplo regime mascara as tensões
que escapam pelas frestas de uma pretensa unidade do
0
>
V)
W
€roEBORDAS3
Z espaço social, ao mesmo tempo em que remete às velhas
C; questões provocadas pela djvisão corpo/espírito, acentua-
da pelo sistema de representações com que se configuram
as sociedades burguesas" (Lyra & Santana, 2006:9).
Num esforço de definição maís precisa do fenômeno
``cinema de bordas'', Marcius Freire identifica um paralelo
entre essa p,lodução audiovísual contemporânea e o Na).Í
nas artes plásticas, levantando a questão de um possível
"cinema ua).f': Nas artes plásticas uma tal postura estaria
mais jpéntificada com a ``arte bruta", essa forma de ex-
pressão definida pelo pintor Jean Dubuffet, criador do con-
ceito, como "produções de qualquer espécie - desenhos,
pinturas, bordados, figuras modeladas ou esculpidas - que
apresentam um caráter espontâneo e fortemente inventi-
vo, tão pouco devedoras quanto possível da arte habitual
ou dos estereótipos culturais, e tendo por autores pessoas
obscuras, estrangeiras aos meios artísticos profissionais''.
"Para alguns críticos e historiadores da arte a distin-
ção entre `arte bruta' e ar£ na}f não procede, sendo ambas
pertencentes a um conjunto majs amploque poderia ser
chamado de `arte popular'. Seja como for, fica claro que
tanto os pintores na).Ís quanto nossos cineastas de bordas se
enquadram com justeza na definição de Dubuffet. Como
vimos, os primeiros e os segundos são autodidatas; des-
conhecem muitas das técnicas do meio expressivo com o
qual lidam e estas são substitui'das pelo élan intuitivo do
artista" (Freire, 2008:12-3).
Por sua vez, Lyra & Santana explicam que "o conceito
de cinema de bordas não atua em função de uma simples
oposíção, como ocorre com aquele de cinema marginal,
ao qual, mujtas vezes, cabe o epíteto de exper/.menía/, no
sentido que esse termo adquiríu ao contrapor um cinema
voltado para uma expressão individual quase que pura-
CINEMA DE Bc)¢
mente poética, a um cinema fortemente voltado para o
mercado. E não se trata, ainda, do que comumente se qua-
lifica como c/.nerna /.nocer}re, pois apresenta peculiarida-
des em que se observa uma deliberada adesão ao regime
trivial da experiência, muitas vezes de maneira explícita"
(Lyra & Santana, 2006:14).
0 fato é que a heterogeneídade e heteroglossia do "ci-
nema de bordas" acaba por reunir num mesmo peri'metro
realizadores na}'f artistas populares e parodistas experien-
tes. A própria diferenciação entre o ``cinema de bordas" e
o Gnema Marginal de um Ozualdo Candeias (A Margem,
1967), F`ogér.io Ssanzerla (0 Bandido da Luz Vermelha,
1968) ou André Luiz Oliveira (Meíeorar)go K/.d.. 0 Heróí.
/nferga/áf/.co,1970) talvez só tenha lugar sob determina-
do perspectivismo histórico, no contexto da incorporação/
apropriação por parte de um aparelho legítimo/legitima-
dor (a academia), e não em termos de comparação textual,
da ordem dos atributos inerentes a cada filme. Adiante,
Lyra & Santana observam que o objetivo principal do livro
C/.nema c/e Bordas (2006) - e por extensão do grupo de
pesquisa "Formas e lmagens na Comunicação Contempo-
rânea" - é superar a "dicotomias valorativas que privile-
giam os jogos do espírito em detrimento dos jogos do cor-
po. Desnecessário dizer que esse foco na corporalidade
vem movimentando, atualmente, uma boa parte da crítica
de cinema e as pesquisas acadêmicas, sobretudo aquelas
que se dão sob o influxo dos estudos culturais" (Lyra &
Santana, 2006:15).
A título de resumo de um esforço de definição, esclare-
cemos que o conceito "cinema de bordas" não é um movi-
mento ou escola, mas um fenômeno difuso, um "cinturão"
para efeito de pesquisa estabelecido por pesquisadores, a
partir de um método de observação. Tal ``cinturão" emer-
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BORDAS 3
ge, portanto, como conceito instrumentcil, abi.aiigendo
uma produção heterogênea (diferenças de ft)rm[i, de tema
e de formação/repertório dos realizadores). T[il produção
heterogênea, no entanto, guarda algunicis c{ii.acterísticas
partilhadas, como o fato de os filmes "de b()rdLis" serem
sempre ficcionais, manifestação de um di's(}j() popular
irrefreável de se contàr histórias. Até ag()r{i, iienlium do-
cumentário genuíno foi reivindicado por i)i``Íiiiisadores
"de bordas'', salvo ,rr}ockumeníar/.es (falsos dt]cunientários)
como No Fundo do PoÇo: a Biografia não ALirt)i.i/..(h de Edir
4_a__cedo (2005), de Marcos Bertoní. Cineastti` "Ílc` hordas"
valem-se sempre de recursos próprios ou ciii()i() t`xtrema-
mente modesto, mobilizando sua familia ou i`t)iiiuiiidade
da produção à exibição de seus filmes. Conftiriii(` vcremos
em detalhes mais adiante, o ``cinema de b()rcl.is" sugere
parentesco com os "filmes de familia" e s(? i)i.(`sta a um
duplo objetivo: (1 ) relembra experiêncicis cl()s (`nvolvidos
na produção e filmagem e (2) se abre para .i i`si)i`ctatoria-
lidade alheia, com trânsito fluído entre a esfem (l()iiiéstíca
e a esfera pública. Vale destacar que "cineiii.` clc` bordas"
não é necessariamente sinônimo de cinc`ma Í/.<i.ih. Alguns
filmes "de bordas" expõem precariedacle inírd-estrutural
e mesmo artística ou estilística da parte dc` scus realiza-
dores, outros exibem razoável domínio dd téciiica e até
certo grau de profissionalismo, enquanio iima terceira
via investe abertamente na sátira e na par(')dia, sem ne-
gligenciar o apuro técnico. Alguns filmes "de bordas" fo-
ram idealizados como obras "sérias" e realizados com os
melhores recursos disponíveis, porém provocam o riso de
espectadores atuais em virtude de precariedade técnica
e/ou artística inconteste, ou simplesmente defasagem de
costumes (mesmo produções hollywoodianas de 60 anos
atrás podem parecer algo cômicas - equivocamente Írash
- ao espectador contemporâneo). Por fim, problemas de
CINEMA DE Bo¢
definição do filme "de bordas" são análogos aos que afe-
tam demais definições de gêneros audiovisuais, tais como
o próprio fra5h, a ficção científica, o cinema independente,
o film noir etc.
Gostaríamos de sugerir que, para além dos estudos cul-
turais, uma rica variedade de molduras teóricas contempo-
râneas tem oferecido instrumental promissor para a inves-
tigação de fenômenos idênticos, similares ou equivalentes
ao que o grupo ``Formas e lmagens" convencionou chamar
"cinema de bordas".
Pelo menos três grandes domínios teóricos dos estu-
dos de cinema oferecem instrumental bastante apropria-
do ao trabalho de pesquisa com o ``cinema de bordas'':
os estudos culturais, a semiótica (revisitada) e o programa
cognitivista - com destaque para derivações e combina-
tórias desses mesmo domínios, como o semio-pragmatis-
mo (Odin,1979,1984 e 2005) ou a semiótica cognitiva
(Buckland, 2000)2. Robert Stam observa que "tanto o cog-
nitivismo como a semiologia desvalorizam as questões
relativas à avaliação e à classificação, em prol da inves-
tigação das maneiras como são compreendidos os textos.
Ambos os movimentos recusam uma abordagem normati-
va e beletrista, compartilhando um impulso democratiza-
dor desinteressado em celebrar cíneastas individuais como
gênios ou filmes especi`ficos como obras-primas. Para Car-
roll (1998), como para Metz, toda a arte de massa é arte"
(Stam, 2003:272).
A semiótica cognitiva, conforme proposta por Warren
Buckland (2000), tem por obj'etivo reconciliar dois campos
aparentemente rivais no território dos estudos de cinema,
' Segundo Warren Buckland (2000), o semio-pragmatismo de Roger Odin seria uma
vertente da semiótica cognitiva, ladeado pelos trabalhos de Michel Colin e Dominique
Chateau.
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= por meio do resgate da dimensão lingui`sticci em análises
C} ou teorizações de corte cognitivista. ``Pelo fato de se ig-
norarem mutuamente, cognitivistas e semióticos têm de-
senvolvido teorias do cinema desequilibradas. Em nossa
busca por entender como os filmes são enteiididos, pre-
cisamos manter um equilibrio entre fatores culturais, tais
como a linguagem e outros sistemas semióticos da cultura
humana, e fatores ecológicos mais amplos. Os semióticos
cognitivos do cinema de certa maneira atingem algo desse
equilibrio, em oposição ao determinismo luií3uista da se-
miótica do cinema de Metz e o livre arbítrio e tiutonomia
racional que os cognitivistas conferem aos c`si)c`ctadores
de cinema" (Buckland,2000:15).
Buckland denomina cogri/.Í/.ve Í/./m sem/.oÍ/.f/.,im. os pesqui-
sadores que "combinam semiótica do cinema c` c.iência cog-
nitiva com o objetivo de estabelecer modelos clci i()mpetência
filmica" (2000:25). Seriam eles Francesco Casetti, o Christian
MetzdeL'Enonciationlmpersonelle,ou,lesitedLiFilm(199l),
Roger Odin, Michel Colin e Dominique Chateau.
Dentre esses pesquisadores, o que talvez ofereça uma
moldura teórica das mais adequadas e atraentes ao pes-
quisador ``de bordas" seja mesmo Roger Odin. 0 modelo
semio-pragmático de Odin, com seus conceitos de insti-
tuições, modos e operações, fornece instrumental eficiente
para a análise de um objeto tão "contexto-dependente" e
significativamente deslizante como o "cinema de bordas''.
0 resgate do papel do espectador, bem como dos modos
de leitura e institucionalização são aspectos fundamentais
para uma investigação mais profunda desse fenômeno au-
diovisual popular.
Sabemos que a abordagem semio-pragmática proposta
por Odin foi motivada em grande medida por seu interesse
nos chamados filmes domésticos ou filmes de família (f/./ms
ciNEMA 1)[ Br,p
de fam/.//e). Marcius Freire, por sua vez, vê similaridades
interessantes entre o ``cinema de bordas" e os filmes de
família. Sobre os realizadores ``de bordas", Freire comen-
ta: "Por se situarem à margem do sistema produtivo, de
modo geral, não fazem apelo às leis de incentivo à pro-
dução cinematográfica existentes no país e permanecem
confortavelmente instalados na categoria de `produtores
independentes'. Consequentemente, no maís das vezes,
realizam trabalhos pouco custosos cujos ingredientes, de
atores a cenários, são amealhados no ambiente familiar e/
ou no círculo de amigos.
A grande maioria é autodidata e tem na espontanei-
dade com que tratam os seus temas a chave mestra de
sua criação. Dão as costas à crítica especializada, não
se identificam com escolas ou movimentos e não estão
preocupados em agradar o grande público. Tampouco
estão de olho em grandes bilheterias, até mesmo porque
seu sistema de exibição passa ao largo das salas tradi-
cionais e dos circuitos comerciais estabelecidos. Seus es-
pectadores são, primeiramente, seus familiares, vizinhos
e amigos que assistem a seus filmes em sessões privadas
e em espaços alternativos, como praças públicas, centros
culturais, etc. É verdade que, já há alguns anos esse pú-
blico se expandiu com a comercialização artesanal de
fitas VHS e, em tempos mais recentes, de DVDs vendidos
em camelôs ou diretamente das mãos do diretor ou dos
membros de sua equipe. Deve ser observado, também,
que, nos últimos anos, esses filmes têm sido acolhidos
em mostras e festivais, (...).
(...) [A]ssim como nos filmes de familia, o primeiro pú-
blico a que esses filmes se destinam, os primeiros especta-
dores dispostos a preencher algo de seu tempo disponível
distraindo-se com o seu visionamento, são os familiares e
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Z ocírculodeamigospróximosdodiretoredesua equípe"
CJ (Freíre,2008:8-9).
Não obstante, de certa maneira o ``ciiii`m[i de bordas"
parece desafiar a categoria dos filmes de familia delineada
por Odin. As oito características textuais ciuc` estimulam
o espectador a ler um filme doméstico como tcil podem
ser conferidas em "Rhétorique du film de famille" (1979):
(1 ) ausência de c/osm? ("fechamento''), (2) temporalidade
linear descontínua, (3) indeterminação especial, (4) narra-
tiva dispersa, (5) saltos, (6) imagens borradas, iii()vjmentos
bruscos de camera, panorâmicas hesitantes, e dssim por
diante, (7) remissão à camera e, finalmente, (8) o som de
um filme doméstico pode ser inaudível, irregulcir ou com-
pletamente ausente (Buckland, 2000:102-3). Muitas dessas
características podem ser constatadas em filmes "de bor-
das'', como na série Rambú (produzida por Rubens Pereira
da Silva e estrelada pelo amazonense Aldenyr Trindade
Fortes), ou nos filmes de Manoel Loreno, o Seu Manoelzi-
nho (cineasta popular de Mantenópolis, interior do Espírito
Santo). Segundo Odin, "o filme doméstico tem, de fato,
a particularidade de ser feito para ser visto por aqueles
que vivenciaram (ou viram) o que é representado na tela"
(Odin,1979:356). Dessa forma, os filmes domésticos não
teriam a necessidade primária de estabelecer uma diegese
coerente porque todos os eventos filmados são previamen-
te conhecidos (vividos) pelos espectadores. Cabe ao filme
doméstico apenas reviver as memórias do espectador so-
bre sua própria experiência. Apenas ouÍ`ç/.c/ers (não-mem-
bros da familia) percebem o filme doméstico como uma
narrativa fragmentada. Para os membros da familia, o fil-
me doméstico gera prazer justamente por meio da pobreza
narrativa e diegética de suas imagens. "0 home mov/.e re-
lembra uma série prévia de eventos; ele não necessita nar-
rar esses eventos" (Buckland, 2000:103). Portanto, dentro
clNEM^ 1)1 ',,J¢
da moldura teórica proposta por Odin, o filme doméstico
é marcado pela ausência das operações de diegetização
e narrativização. Exatamente por isso, Odin é crítico dos
cineclubes que encorajam cjneastas domésticos a adotar
as técnicas do modo ficcional, e i.ustamente nesse momen-
to o ``cinema de bordas'', enquanto gênero ou fenômeno
de produção audiovisual, oferece um desafio ao modelo
semio-pragmático de Odin. Porque o "cinema de bordas"
é um hilJrído ou, talvez, um gênero a meio caminho en-
tre o modo doméstico (o do filme de familia) e o modo
ficcionalizante, ou mesmo o modo dinâmico3. 0 filme
"de bordas" é, assim como o filme de familia, essencial-
mente voltado para o deleite espectatorial dos envolvidos
em sua realização. Não raro os realizadores de um filme
"de bordas" são, coincidentemente, uma familia ou uma
pequena comunidade (filmes de Felipe Guerra e Seu Ma-
noelzinho, por exemplo). Embora possa apresentar muitos
(senão todos) os elementos textuais caracteri`sticos do filme
de familia elencados por Odin, o esforço ficcionalizante
na maioria (senão na totalidade) do "cinema de bordas"
é também bastante marcado. Nesse sentido, o filme ``de
bordas" presta-se a um duplo objetivo: não só relembra as
experiências dos envolvidos na filmagem, como também
se abre para a espectatorialidade alheia à da comunídade
que o realizou. Cumpre a função de filme de familia e fil-
me ficcional (e eventualmente dinâmico) ao mesmo tem-
po. Talvez a abordagem semio-pragmática do "cinema de
3 Em "Du spectateur fictionalisant" (ig88), odin trata o modo dinâmico como uma
derívação da instituição do cinema comercial. Embora exíbidos em salas comerciais,
os filmes associáveis ao modo dinâmico não criam o efeito ficcional porque não
incorporam todas as operações necessárias para tal. Odin menciona filmes como SÍc7r
Wcir5, 77on, Cobrcí, as séríes Mod Mox e Rocky, mas destaca a versão Moroder do
Meíropo//s de Fritz Lang. A principal diferença entre os modos dinâmico e ficcional é
que, neste último, o espectador "ressoa" ou ``vibra" (resonotes) aos eventos narrados
e, no modo dinâmico, o espectador vibra com os sons e imagens (Buckland, 2000: 104).
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B0RDAS 3
bordas" possa contrjbuirpara a formulação de ainda outro
modo a ser acoplado ao modelo de Odin: o dos filmes
"comunitários'', um gênero híbrido ou transicional, a meio
caminho entre a esfera doméstica e a esfera pública.
Parece óbvio que tal caráter (ou potencial) público dos
filmes "de bordas" venha se beneficiando do aporte de
tecnologias digitais mais acessíveis, maleáveis e eficien-
tes para a divulgação de conteúdo. Henry |enkins sugere
que "o cinema digital é um novo capítulo da complexa
história das interações entre cineastas amcidtjres e mi'dia
comercial" (2000:200), e suas observações a respeito da
produção audiovisual amadora nos EUA também são úteis
para uma análise mais detida do caso brasileiro.
Segundo jenkins, ``a produção digital de filmes alterou
muitas das condições que levaram à marginalização as ini-
ciativas anteriores - a web fornece um ponto de exibição,
levando o cineasta amador do espaço provado ao espaço
público; a edição digital é muito mais siniples que a edi-
ção do Super-8 ou do vi'deo e, portanto, abre c`spaço para
artistas amadores remodelarem seu material de forma mais
direta; o computador pessoal possibilitou cio cíneasta ama-
dor até imítar os efeitos especiais associados a sucessos
de Hollywood, como Guerra nas Esrre/as. (...) Esses filmes
continuam amadores, no sentido de que são feitos com
orçamento baixo, produzidos e distribui'dos em contextos
não comerciais e criados por cineastas não profissionais
(embora muitas vezes sejam pessoas que desejam entrar
na esfera comercial). Contudo, muitos dos criadores clás-
sicos de filmes amadores desapareceram. Esses filmes não
são mais caseiros, e sim públicos - públicos porque, desde
o início, são destinados a espectadores que vão além do
círculo imediato de amigos e conhecidos; públicos em seu
conteúdo, que envolve a recriação de mitologias popula-
clNI=M^ " ",,í`
res; e públicos em seu diálogo com o cinema comei.cidl"
(Jenkins, 2009:200).
Aplicado a uma análise conj.untural do ``cinema de bor-
das" no Brasil, o trecho citado acima não só sugere alguma
explicação sobre o fenômeno da crescente publicidade da
produção audiovisual considerada caseira, como também
indica onde os filmes "de bordas" devem ser procurados:
na zona "(...) que envolve a recriação de mitologias popu-
lares", de ``(...) diálogo com o cinema comercial" (Jenkins,
2000:200). É nesse sentido que o `'cinema de bordas'' mais
genuíno não se dilui completamente na grande massa do
"cinema amador" ou "cinema caseiro'', nem tampouco
se confunde com um cinema autoral de vanguarda. Por
exemplo, um filme como Toy So/d/.ers (1996), de Kyle Cas-
sidy4, citado por jenkins (2000:208-9) como representativo
do movimento Pixelvision5, dificilmente seria reivindica-
do como exemplo confortável de um "cinema de bordas'',
uma vez que "os melhores filmes em Pixelvision foram
aceitos no mundo da arte, e a câmera tem fãs até entre
cineastas comerciais" Oenkins, 2000:211 ). Mas não é exa-
tamente pelo fato de ser reconhecido como arte que um
filme como Toy So/c//.ers não se encaixa confortavelmente
ao mosaico dos filmes ``de bordas" (e vice-versa), mas em
virtude de, no filme de Cassidy, a "recriação de mitologias
4Jenkins observa que "roy So/d/.ers possui a intimidade de um f`lme caseiro, embora
tenha sido refeito décadas depois das lembranças do próprio diretor. Cassidy fez
o filme, aclamado pela crítica, com sua câmera Pixelvision 2000, que tem estojo e
lentes de plástico, funciona com pilhas AA e grava imagens numa fita de áudio
normal. A câmera Pixelvision, da Fisherprice, vendida entre ig87 e 1989 por US$
100, é a filmadora mais barata iá fabricada" (2000:208). roy So/d/.ers está disponível
no YouTube em http ://www.youtu be com/watch?v=RUcwi4pq-9U.
5Jenkins assinala que "0 movimento Pixelvision é o equivalente artist`co do Culto
à Carga: uma tecnologia descartada e abandonada por seu fabricante chega, de
foi.ma imprevista, a mãos dedicadas, e hoje podemos ver o resultado de duas
décadas de elaboração, já que os adoradores conseguiram transformar os `defeitos'
dessa tecnologia em características desejáveís e desenvolveram um novo modo de
expressão em torno de suas propriedades singulares" (2000;209).
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OE BORDAS 3
populares" e o "(...) diálogo com o cinema comercjal'' se-
rem mujto
ausentes.
mais sutis e depurados, senão completamente
Vale destacar que o fenômeno aqui entendjdo por "ci-
nema de bordas" não é exclusividade nacíonal, encontra
paralelos em djversas regiões do mundo e pode receber ou-
tras denomjnações. Um fenômeno de certa maneira sjmi-
lar ao "cinema de bordas" no Brasil é o mercado de vi'deo
nígerjano, conhecido por "Nollywood". Para ilustrar sua
argumentação a favor do ``mapa topográfico", Dudley An-
drewrefere-sejustamenteaofenômenodovídeonaNigéria
(Andrew, 2006:26). Segundo ele, "desde 1990 centenas de
roteiros nigerianos (mais de 500 o ano passado) têm sido
rodados em vídeo em Yoruba e lbo; fitas VHS (seu único
modo de existêncía) são comercjalizadas na cidade, depojs
levadas de bjcicleta por velhas rotas de comércio para vi-
Ias ao redor do país. Nenhum festival exibe esses filmes,.
nenhum crítjco os resenha. Sua reputação víaja de boca
em boca, dentro dos limjtes nacionais, geralniente trjbajs.
Este, o mais bem sucedido mercado de imagens de todo o
contjnente afrícano, tem sído jnvisível para nós... ausente
de nossas telas e, até poucos anos atrás, ausente de nossa
literatura acadêmica. Uma das únicas jiidústrjas audiovisu-
ais não-subsidiadas víáveis no mundo, os fjlmes em vi'deo
nigerjanos estão fora do mapa" (Aiidrew, 2006:26).
Françojse Balogun, por sua vez, observa que ``a Njgé-
ria foí um dos primejros países a desenvolver uma produ-
ção sjgnifícativa de filmes em vi'deo" (Balogun, 2007:193).
0 fenômeno da produção em vi'deo na Nigéria tem algu-
mas cojncidêncías com o paralelo brasileiro - o "cinema
de bordas" também esteve, até poucos anos atrás, total-
mente exclui'do do mapa do audiovisual brasjleiro, igno-
rado sobretudo pela crítica acadêmica. Por ser um país de
CiN[MA DE Bc)¢
dimensões continentais, várias regiões brasileiras apresen-
tam cenário infra-estrutural e demanda por imagens locais
equivalentes ao caso nigeriano. A maior diferença é que,
ao contrário da Nigéria, no Brasil essa produção em vídeo
não assumiu o ``centro" do mercado audiovisual - perma-
nece "de bordas'', embora fenômenos como o YouTube
e similares introduzam peculiaridades mais recentes ao
panorama. Uma razão para a ``permanência bordeira" da
produção brasileira de vi'deo poderia ser buscada, talvez,
na eficiência comercial da televisão brasileira.
Coincidências de mercado e modo de produção avan-
Çam para a temática dos produtos. Assim como boa parte
dos vi'deos nigerianos versam sobre temas religiosos, fol-
clóricos ou simplesmente fantásticos, no Brasil o "cinema
de bordas" é terreno fértil para filmes de zumbi, delírios
paranormais e aventuras extraordinárias, muitas delas pon-
tuadas por elementos do sincretismo religioso, permitindo
incursões curiosas no campodas ``deglutições" e ``regurgi-
tações" ("deglurregurgitações'') de gênero.
Por sua vez, coincidências do objeto extrapolam para
o âmbito dos analistas. 0 próprio trabalho de estudiosos
como Françoise Balogun coincide com o dos pesquisado-
res "de bordas'': equivalências de fundo teóríco e similitu-
des no trato com seu objeto. Senão vejamos. Segundo Ba-
logun, ``a produção de filmes em vi'deo na Nigéria, embora
severamente criticada, é a expressão autêntica das iden-
tidades do país. As deficiências técnicas não conseguem
ofuscar a inventividade dos roteiros. Trata-se também de
produções totalmente independentes, uma vez que a Ni-
géria - diferentemente da África francófona, onde a indús-
tria do cinema foi subsidiada pela França, sobretudo por
meio do Ministério da Cooperação - nunca recebeu ai.uda
alguma dos antigos mandatários dos tempos de colônia
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B0RDAS 3
ou de qualquer fonte estrangeira, pelo menos no que djz
respeito à produção de filmes. Na verdade, a produção de
filmes em vi'deo foi encabeçada, no início, principalmente
por pessoas sem experiência, que viam nesse formato um
atalho para driblar os problemas de distiibuição'' (Balo-
gun, 2007:197).
As considerações de Balogun revelcim certo despoja-
mento no que se refere a doutrinas celebi.cidas, as quais
demandam razoável hierarquização dos fenômeiios artís-
ticos entre as esferas da "alta" e da "baixa" cultura. Em sua
análise do fenômeno da produção videográíicci nigeriana,
Balogun contribui a seu modo para a demolição de bina-
rismos preconizada por autores como Ella Shtihcit e Robert
Stam (2006) ou Lúcia Nagíb (2007), conforme se verjfica
na seguinte passagem: ``a produção de filmes em vi'deo
na Nigéria é mais uma prova da capacid.ide dos africa-
nos responderem a situações especi`ficas produzindo algo
totalmente original e adaptado às condições locais, con-
forme já foram capazes de demonstrar em ()utros campos
da produção. Hoje em dia, por exemplo, é fato inconteste
que a metalurgja praticada na África subsa[iriana foi inven-
tada pela população autóctone da região em 3.000 a. C.,
e que seu desenvolvimento seguiu trajett`]rias originais que
hoje despertam o interesse de antropólogos, arqueólogos
e cientistas" (Balogun, 2007:202).
Nesse sentido, o trabalho de pesquiscidores como Ba-
logun (2007), Lyra (2006), Santana (2006 e 2008) e outros
vaj ao encontro de certa orientação verifjcável no âmbito
do cognitivismo aplicado aos estudos de cinema, o inte-
resse por fenômenos particulares e menos (ou nenhuma)
preocupação com formulações teóricas totalizantes. Méto-
dos como o da "pesquisa nível-médio" (David Bordwell),
``teoria a conta-gotas" ou "teoria do prato avulso'' (p/.ece-
clNEM^ ',1 ",,í.
mea/ rheory, segundo Noél Carroll), conforme j.á sugei.i-
do por Lúcia Nagib em '`Rumo a uma definição positiva
de wor/d c/.nema" (2007), parecem particularmente úteis.
Nesse ensaio que pretende lançar as bases para uma con-
cepção mais inclusiva e policêntrica de wor/d c/.nema, Na-
gib revisa a tese do atlas de Dudley Andrew e defende o
desmonte do binarismo na crítica de cinema e ativídade
teórica. Sobre o texto "An atlas of world cinema" (Andrew,
2006), a autora comenta que ``o método de Andrew tem o
mérito imediato de relativizar a importância de Hollywood
como cinema ma/.nsíream e mostrar como picos de produ-
ção, popularidade e qualidade artísticas são atingidos em
épocas e lugares diversos do mundo. Porém, a distinção
entre Hollywood e o resto do mundo ainda se reflete na
sua exposição, quando ele qualifica wor/d c/.nema de `es-
trangeiro' e `não familiar' - algo que parece em desacordo
com as platéias etnicamente mistas das salas e cursos de
cinema tanto na Europa como nos EUA atualmente" (Na-
gib, 2007:37).
Na esteira do pensamento de Ella Shohat e Robert
Stam em Unfhi.nk/.ng Eurocen[r/.sm ( 1994) - para os quais
velhas dicotomias como "nós" e o "outro'', "centro e pe-
riferia'', "o ocidente e o resto", são equivocadas e desne-
cessárias - Nagib assinala que teorías cinematográficas
tradicionais, baseadas na oposição Hollywood x cinema
mundial, não dão conta das complexidades da produção
contemporânea.
``Por isso, proponho um método segundo o qual
Hollywood e o ocidente deixariam de ser o centro da his-
tória do cinema, que seria vista como um processo scm
um começo único. A vantagem de tal abordagem é Íiu(`,
uma vez elíminada a idéia de um centro único, nc)da i)i.c`-
cisa ser exclui'do do mapa do cinema mundial, nem iiies-
0
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€roEBORDAS3
= mo Hollywood, que, em vez de uma ameaça, torna-se um
u elemento ou um cinema entre outros, podendo receber
mujta, pouca ou nenhuma atenção, dependendo do ob-
jeto em questão. Contra o método exclusivo baseado em
Hollywood, eu proponho, seguindo a sugestão de Shohat
e Stam, o método inclusivo de um mundo feito de cinemas
interconectados" (Nagib, 2007:39).
Finalmente, Nagib resgata a utilidade do conceito de
"ondas" sugerido por Andrew (Nagib, 2007:39) e propõe a
seguinte definição para wor/c/ c/r)ema, como um "primeiro
passo para discussão'':
• \^/Ór/c/c/.nema é simplesmente o cinema do mundo.
Não tem centro. Não é o outro, mas nós. Não tem
começo nem fim, sendo um processo global. Wor/d
c/nema, como o próprio mundo, é circulação.
• Wor/c}c/.nema não é uma disciplina, mas um méto-
do, uma maneira de visualjzar a história do cinema
como ondas de filmes e movimentos relevantes,
que criam geografias flexíveis.
• Como um conceíto positivo, inclusivo e democráti-
co, wor/d c/.riema permite todos os tipos de aborda-
gem teórica, desde que não se baseie em perspecti-
vas binárias (Nagib, 2007:40).
Nagib não menciona a crítica que Andrew faz a um
certo "elitismo" nas seleções filmográficas de Shohat e
Stam (Andrew, 2006:23). De fato, o ideal talvez fosse uma
fusão das propostas desses autores. Afinal, uma vez váljdo
"o método inclusivo de um mundo fejto de cinemas in-
terconectados", em que "Hollywood, (...) em vez de uma
ameaça, torna-se um elemento ou um cinema entre outros
(...)" (Nagib, 2007:39), nada mais justo que começarmos a
demolição dos binarismos dentro de nosso próprio ``terrei-
CINEM^ DF /i,,p
iti''. É justamente nesse aspecto, na ressalva que Andrew
l.`z a Shohat e Stam (Andrew, 2006:23), que o autor de
"^n Atlas of World Gnema" sugere abordagens de fato
ii`[iis inclusivas, a começar do âmbito doméstico, infra-na-
( i()nal. Fica claro, portanto, o papel de pesquisas voltadas
i)" formas genuinamente populares de audiovisual, no
l}rasil e no exterior. Vencida essa primeira etapa de inclu-
`ão, de ``democratização" dos enfoques de pesquisa, com
.`bordagens menos elitistas, o próprio termo "cinema de
hordas" passa a merecer uma revisão, pois se baseia numa
relação discutível entre centro e periferia. Não é propósito
deste artigo investigar as causas ou origens dessa relação
de oposição, recorrente e generalizada mas, ultimamente,
revista e apontada como falsa, artificial ou fabricada. De
toda forma, resta como desafio ao próprio pesquisador "de
l)ordas" a superação desse binarismo,mais cedo ou mais
tarde. Como fazê-lo também foge ao escopo deste traba-
lho, ao menos por ora.
Com efeito, vale a pena destacar que o "cinema de
bordas" em sentido /aío não se restringe a contextos para-
institucionais, de precariedade infra-estrutural ou simples-
mente substituição de produtos na situação de carência de
uma indústria audiovisual local formalizada, de qualquer
ni`vel. Convém destacar que a produção contemporânea
independente, alternativa ou "de bordas'', como se quei-
ra, tem de fato contribuído para revigorar as indústrias do
audiovisual, até mesmo a mais famosa delas no ociden-
te, Hollywood, que por meio de algumas subsidiárias de
grandes estúdios não tem ignorado as ``bordas" mundiais.
E bons exemplos desse fenômeno podem ser buscados em
filmes como 5/eep Dea/er (2008), de Alex Rivera, e D/.s-
fr/to 9 (District 9, 2009), de Neill Blomkamp. Ambos são
derivados de curtas-metragens independentes. D9 deriva
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BORDAS 3
de A//.ve i.n /oburg (2005), sobre a co-exjstêncja nada pací-
fica entre alienígenas e seres humanos em Johannesburg,
parábola do aparfhew vestida de fjcção científica. S/eep
F:enanl=: por s,ua vez, é uma expansão áe why cyó;ràii::sr?
(1997), mockumenfary ("documentário fictício") em curta-
metragem também realizado por Rivera.'' A propósito, au
almente esse artjfícjo parece ter se jniensjíicado no cínema
de ficção cienti`fica, e o recurso à retóric[i documentárja,
vja mockumenfari.es inspirados, tem sei.vido eficientemen-
te para a reconcjlíação da FC com a longa tradição da
sátira literária.7
6mce°nn`fa°Ted,%P::Cí=,a?=:ócP:`'v°..=Í.re.t?r^(`e,Tpefo_retheMakingofsleepDeaier,"mini_
mentary" disponi'vel nos extras do DVD de 5/eep Oea/er), a ideia de 5/eep Oeo/e/
remonta a 1997, quando o próprio Rivera lera um artigo dô revista W/red sobre
Íe/ecommuring, ou o impacto da internet nas relações de trabalho. No arti'go era
debati'da a hipótese de um futuro em que trabalhadores cumprissem suas funções
profissionaís sem sam de casa. Rwera cruzou essa hipótese com a realidade dos
imigranteseimaginouumfuturoemquetrabalhadoresestrangeirosnãoprecisassem
maBdeíxarseuspai'ses0diretorcontaquenãosoubecomoexpressarvisualmente
essa idén até se deparar corn o documentário Wfiy Bracercis? (1959), encontrado
nos Prelinger Arch" (Why B/oc€ros? encontra-se disponível para visionamento e
down/oodemhttp//wwwarchive.org/details/WhyBracel959)0programaBraceros
foiestimuladopelogovernoamericanoduranteaSegundaGuerraMundial,econsistia
no oferecimento de postos temporários de trabalho para mexicanos nas lavouras
dos EUA A idéia era qiie o trabalhôdor mexícano viesse para os EUA, trabalhasse
na colheita e depoE retornasse a seu país de origem, enquanto os americanos de
dedicavam ao esforço de guerra Wtiy Cybroceros? (http //wwwdb.org/smackn.
acgístapedetail?WHYCYBRACE),sátirôdoprogramaBracerosrealizadaporRwerade
formaindependenteeexperimentaLutilizaimagensdodocumentáriooriginal(Why
sraceros?), cenas especialmente gravadas em vídeo e animações digitôu bastante
simples e esquemáticas. Rivera disponibilizou seu mockumenfow na internet e teve
uma resposta de público e crítica surpreendente.
7 A relação entre sáti.m e FC remontô às origens deste gênero, em obras como As
ViogensdeGÜ//wer(1726),deJonõthanSwiftConsideradaporalgunsumanarrativa
precursora da FC e, por outros, uma das primeiras mônifestações do gênero, A5
V/ag" de Gu/Wer é exemplo mais apropriado da sát.ra menipéia, subgênero que
remete à obrô do satirista Luciano (séc. H d C.), que tería se inspirado em Menípeu
`oBb°s°e#=m&:Àh<°à=:.S`í?339_9^8.):=_i_r±e-sátw-::'h`Ç*;`c'iae:5::=:'#oao°keermeMTehn==aus
observam'`Asátíraéummodoliterárioantigoedistintoqueempregaohumorpara
exporecriticarváriaspráticaspolítTcasesociôisoucertoshábitosdocomportamento
humano(.)Emresumo,asátiradependedofenômenodoestranhamentocognitivo
paraatingmseusefeitosNesseaspecto,temmuitoemcomumcomaficçãocientífica,
portanto não surpreende que alguns dos mais importantes romances de ficção
cienti.ficaapresentemorientaçãoabertamentesat]rica"(200998)
CiNEMA DE so¢
Retomando o eixo de nossa argumentação, vale des-
tacar que a estratégia satírica, a lógica da paródia e até
mesmo o "estranhamento cognitivo''8 são aspectos obser-
váveis em boa parte da produção audiovisual ``de bor-
das" de qualquer nacionalidade. Via de regra, o '`cinema
de bordas" se constitui no terreno da relação com um
Outro institucionalizado, e nessa medida é naturalmen-
ie paródico, dado seu poder de comentário tanto no ní-
vel de sua fábula como no de suas próprias estratégias
de apresentação (inserção em seu ``mercado''). Voltado
i)ara o ``cinema de bordas" enquanto fenômeno brasilei-
ro, Marcius Freire observa que "(...) a paródia de gêneros
ionsagrados é uma das marcas registradas dessas produ-
Ções" (Freire, 2008:9).
(|,aT,#cs,odneas,seds.f:':::,e::se:sttaanbt:,,enc:doofsaz:aTau:oan:tarru::
5ua trama, seus diretores lançam mão de uma plataforma,
tlL` uma base que é constitui'da pelos principais códigos de
um determinado gênero. Não obstante, esses códigos são
(1istorcidos e a forma como são usados provoca uma revi-
r.`volta semântica na estrutura narrativa que vai interferir
(lii maneira determinante na sua recepção pelo especta-
(]()r. Este último, conhecedor das convenções do gênero,
`t` imbui de uma espera, de uma expectativa em relação
•` elas. Mas, quando seus sentidos se deparam com um
.irremedo dessas convenções ou com a sua deformação
i`xplícita, sua fruição da obra não passa mais pelo prazer
t`stético decorrente do simples reconhecimento dessas
(()nvenções, como quer Buscombe, mas por um desliza-
iiiL'nto involuntário das emoções que suscitariam os códi-
n Categorla descrlta por Darko Suv.in err\ Metamorphoses of Scjence Fiction. On the
poerJ.c5 ond h/.stow o/ o //temq/ genre (Vale University Press, 1979), considerada
crucial pelo autor na definição da literatura de ficção cient`'fica.
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OE BORDAS 3
dente, como no caso da obra recente de Michel Gondry,
com seu Rebob/.ne por favor (Be Kind Rewínd, 2008), mos-
tras e oficinas relacionadas a esse filme. Rebob/.ne por Fa-
vor traduz sob perspectjva primeiro-mundísta o fenômeno
observável nas mais diversas regiões do planeta: o desejo
popular da expressão audjovjsual, favorecida por tecno-
logias mais acessíveis de vi'deo, e a relação desse desejo
com os cânones comerciais e a indústria dos b/oc*busíer5.
Enquanto isso, no Brasil a produção audiovisual popular
jnspira realizadores hoje ``centrais" na filmografia nacio-
nal (mas com raízes "bordeiras''), como o jorge Furtado
de saneamento Básico, o Fi|me (2oo7). San-eajentà ii:s;_
co sugere uma crítica afiada ao contexto contemporâneo
da produção audjovjsual brasjleira, expondo com Íronia
desvios e retrocessos de políticas nacionais de fomento
às artes. Ao mesmo tempo, o filme de Furtado comenta
a vjva produção audíovjsual popular no país, favorecida
pela tecnologia mais acessível do vi'deo digital."
Concluindo, o mapa do cinema e audjovisual contem-
porâneo, suficientemente heterogêneo, heteroglóssico,
pluricasual e rizomático, instjga o trabalho de pesquisado-
res interessadosnas zonas menos salientes da produção,
vastas regiões menos vjsíveis ou mesmo invisíveis a olho
nu, mas que convidam à investigação -a abordagem topo-
gráfica sugerida por Dudley Andrew em seu ``Atlas do CÍ-
nema Mundial" (2006). Para tal, o pesquisador pode se va-
Ier de determjnadas metodologias já disponíveis há algum
tempo, conforme procuramos exemplificar neste trabalho.
Mujto em virtude das tecnologjas djgitais contemporâneas
e do rearranjo que elas promovem nas cadeias de produ-
" 0 curta sa//or/'no, de Carlos Canela (Be!o Horizonte, 2001, cor, 23 min ), enceta
crítica semelhante Com ares de ficção científica, a fábulô de Bo//or/na apresenta
uma sociedade ficti'cia, onde toda produção arti`stica deve passar pela aprovação
"democrátTca" de um Comitê de Avaliação Arti`stica
C|NEMA DE Bo¢
\.`ti e realização, mas sobretudo distribuição e recepção,
{)` uhjetos de interesse têm proliferado nas mais diversas e
li`ii`itadas regiões do Brasil e do mundo. Mesmo nas mais
ii,i(lícionais estruturas institucionalizadas de produção au-
(li()visual, uma certa reorganização de centros tem se pro-
( t``sado, com ``sangue novo" circulando por entre ``frestas"
t. ``Íissuras''. Muito provavelmente esses centros legitima-
(lti` estejam sofrendo deslocamentos, ainda que sutís, de
i)i`das cujo epicentro escapa aos "radares de superfície".
(`tim as ferramentas à mão, cabe ao pesquisador "de bor-
(l.v," adaptar e aperfeiçoar métodos analíticos na tarefa de
{`xirair a maior riqueza possível de veios promissores, al-
Í!uns ainda mesmo inexplorados nesse vasto garimpo do
`udiovisual mundial.
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Quem é Seu Manoelzinho?
ciNEMADE8°¢o
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A visibilidade bruta
nos filmes de
Seu Manoelzinho
Bernadette Lyra
N(j universo do cinema de bordas coexistem muitos
iiiiti` de realizadores. Alguns deles são autodidatas e tive-
i.ii`` sua formação cinéfila ancorada em filmes de velhas
iu.iiinês, nas salas de exibição de cidadezinhas do interior
uii `ubúrbios, tendo começado a filmar quando aparece-
i,wii as câmeras ligeiras, domésticas e economicamente
inm accessíveis, em Super s ou VHS. A esses denomino
"(lin()ssauros sagrados''. Não só porque são verdadeiros
i)Ítineiros de um cinema periférico e esquecido pela histo-
H()í;rafia cinematográfica oficial, mas também porque não
`l)rigam pretensões intelectuais ao realizarem seus filmes
t` nem pensam conscientemente o cinema como uma ex-
iirc`ssão artística: contentam-se em criá-lo.
Entre esses realizadores intuitivos, está Manoel Loreno,
i``.`is conhecido como Seu Manoelzinho.
Embora sem formação alguma acadêmica, a carreira
(lL` Seu Manoelzinho não se separa de sua paixão pelo
iiiundo da cinematografia. Paixão que teve origem quando
i`le foi faxineiro no antigo Cine lmpério, em Mantenópolis,
iidade situada a noroeste do Espírito Santo, onde mora o
ri`alizador ainda hoje.
Em recente entrevista, Seu Manoelzinho revela que na-
quela época da vida assistia a filmes de ação e mistério,
<`o lado de faroestes, aproveitando as frestas de horas, em
i]leno trabalho, ou através de ingressos trocados pelo cargo
de anunciador, carregando cartazes de filmes pelas ruas e
i`squinas, para anunciar a programação. Mas eram as co-
niédias que faziam, sobretudo, suas delícias de espectador.'
\ Entrevista de Seu Manoelzinho a curadora Bernadette Lyra, em 19 de abrll de 2011,
gravada no palco da sala do evento, por ocasião da 111 Mostra ltau Cultural de Cinema
de Bordas, em São Paulo.
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A assiduidade e constância dessa inusitada e furtiva
tarefa espectatorial fez de Seu Manoelzinho um ávido co-
lecionador de cenas e imagens que ele guardava em sua
mente e que, tão logo pode ter acesso a uma velha câmera
VHS, começou a reproduzir em seus filmes.2
E impossibilitado de escrever os próprios roteiros por
conta de não ter sido alfabetizado, desde o início ele ad-
quiriu o hábito de desenhá-los na areia, com marcações
de cenas e posição de atores.`
Como não dispusesse também de recursos para as
filmagens, o realizador recrutava amigos, conhecidos e
familiares, formando uma rede solidária de contribuições,
atuações e participações que se manteve até que a inserção
de seus trabalhos e de sua pessoa na mi'dia -via entrevistas a
jornais e redes de televisão -deu início a uma outra postura
por parte membros de sua comunidade interiorana.4
Mas, apesar dessa mudança, que expôs midiaticamen-
te a figura de Seu Manoelzinho, o seu cinema, a sua atu-
ação e a sua condição de trabalho não se modificaram.
Os filmes mais atuais de Seu Manoelzinho continuam a
manter as mesmas características rudimentares daqueles
primeiros, atendendo a um público especi'fico e fiel que
2 No final dos anos 80, o realizador aproveitou uma câmera de vídeo e fez seu
primeiro filme, A V/.nganço de Loreno (1989). Desde então, segundo ele próprio
relata, não mais parou de filmar e já tem quase 50 títulos de sua autoria, o que não
pode ser comprovado, uma vez que, dada as condições precárias de realização e
armazenamer`to, muitos desses filmes se perderam.
3 Entre as lendas pessoais criadas pela comunidade em tomo do realizador, existe
uma que diz que ele desenha seus roteiros sempre ao pé da mesma árvore e
invariavelmente os apaga depois.
4 o assédio da mídia se dá a partir da proieção de filmes de Seu Manoelzinho em
pequenas mostras regionais, logo estendidas para outras de caráter mais amplo, e
sua consequente "descoberta" por programas de entrevistas como Ana Maria Braga
e Jô Soares, ambos da Rede Globo de Televisão, além de matérias em iomais do
Espi`rito Santo e outros do país. isso provocou uma reação naqueles seus atores e
companheiros na produção de filmes, que passaram a fazer exigências de pagamento
de serviços que, antes, eram realizados de modo colaboracional e gratuito.
clNEM^ " „,,``
ni`ln vê os reflexos de seu habitat, de seu espaço regioncil
r (lt` `eu próprio imaginário, filtrados por narrativas de en-
''t.'(.'limento.
rtii dentro desse pacto com seu público que Seu Ma-
oo{`17_inho se dedicou a refazer as histórias e as cenas que
" dia ele próprio havia absorvido de filmes de gênero,
itl.`i)tando-as aos costumes, hábitos e lendas de sua região.
Assim, ele passou a filmar faroestes nas paisagens ru-
i,`i` de Mantenópolis, tendo a si próprio como herói e
i`i`ii` parentes e amigos como atores, imitando tudo que
in iiiiha visto na tela e aproveitando, inclusive, os temas
`t]iioros recheados de galopes de cavalo, assovios e gai-
i,``, que reproduzia em fitas de um velho gravador. 0
i).``sado do noroeste do Espírito Santo, lugar envolvido
tliiiitamente na disputa por fronteiras desse Estado com
Minas Gerais, também favorecia os chamados "crimes de
iii.`iido", as emboscadas e o uso de espingardas e outras
.`Hnas de fogo, situações bastante propícias ao tema. É
(Iesse jeito, á maneira das vivências de seu círculo co-
iTium e das narrativas que circulam em sua cidade, que
Seu Manoelzinho reproduz a atmosfera dos filmes de
oeste americanos e italianos, em um arco temporal que
va.i cle AVinsança de Loreno (1989) até 0 Homem sem
Le'' (2006).
Mas nem só de faroestes vive o cinema de Seu Manoel-
zinho que realiza também incursões pelo cinema fantástico,
como A Gr/.pe do Frar}go (2009), e que faz filmes de assom-
braçõesreü\or\als,cornoLorenocontraoEspantalhoAssaçsi-
no (1989). São filmes que tratam de fatos interioranos, c()iii()
a repercussão de notícias que chegam do mundo atravc`s
dos meios de comunicação ou a busca de pedras prL`cit]-
sas e riquezas, em locas e cavernas precárias, cavcidas por
garimpeiros improvisados, tendo muitas vezes, por coiise-
0
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Ê animada pelo movimento mecânico do aparelho, é já o
U produto de um espetáculo que os homens se dão cotidía-
namente a eles próprios" (Giraud, 2001 :147).6
De modo inconsciente, e por força da precariedade téc-
nica e tecnológíca com que se configuram, os filmes de Seu
Manoelzinho estão todos filiados a essa vertente da visibi-
lidade. Neles, tudo se passa sem truques e sem outra me-
diação que aquela da câmera mesma confrontada com os
percalços da realidade do tempo/espaço e das necessidades
alternatjvas em que as filmagens se produzem e se realjzam.
Como nos primeiros filmes burlescos, diante da câ-
mera que impassível e impjedosamente registra tudo que
acede ao visível, o relato narrativo segue seu curso de en-
cadeamentos de atos e ações necessários para contar uma
história. Porém, de repente, esse encadeamento fictício e
fabrjcado, que é o fator ilusório que permíte a lisibilidade
de um filme, se vê confrontado com um ou outro detalhe
de movimento que quebra a pretensa da trajetória de uma
ação ou de um objeto qualquer.
Acontece, então, o fenômeno que Hans Ulrich Gum-
brecht chama de "produção de presença''.
"Para nós, os fenômenos de presença surgem sempre
como `efeitos de presença', porque estão necessariamente
rodeados de, embrulhados em, e talvez até mediados por
nuvens e almofadas de sentido. É muito difícil não `ler'..."
(Gumbrecht, 2004:135).
No entanto, a presença salta exatamente naquele mo-
mento em que a tensão e a oscilação aparecem para equi-
Iibrar a percepção absoluta e materialízada de algo e o
sentido desse algo.
6 Todas as traduções são de responsabilidade da aiitora.
C`'NI M^ ' '1 ,,',
'
Na composição dos filmes de Seu Manoelzinho, cts`<`
i)(`rcepção presencial se instala como um elemento ines-
iit`rado, inequívoco e imprevisível que perturba o relato.
A reação dos espectadores a tal perturbação é ime-
(li[`ta, corporal e participativa. 0 público ri. Ri diante do
tliismascaramento daquele artifício com que o cinema de
tirigem realista costuma fazer passar a ficção pela realida-
(li`. Ainda que o fenômeno seja involuntário por parte de
um realizador como Seu Manoelzinho.
É isso que ocorria com os filmes burlescos. É e o que
tiiorre, ainda hoje, com os filmes periféricos de bordas de
Seu Manoelzinho, em especial as comédias, como 0 R/.co
/Jt)bre (2002 e 2009).
A produção de presença, na comédia 0 Ri.co Pobre
Seu Manoelzinho não esconde que é fã de Mazzaropi
i` que se inspirou no cineasta paulista para fazer os filmes
em que se sente mais á vontade, como diretor e ator. ``Me
deu vontade de fazer as pessoas rirem" - diz ele.7 Nesse
i`spírito é que em 2002, de posse de uma velha câmera
VHS e contando com atores improvisados, ele filma 0
R/.co Pobre que descreve na sinopse como`` a história de
um homem que ganha 10 milhões de reais na loteria, mas
resolve queimar todos os seus pertences e esquece de tirar,
do bolso do paletó, o bilhete premiado". Anos depois, em
2008, o filme ganha uma segunda versão, em digítal.B
Em 0 R/.co Pobre, em especial na versão original, Seu
Manoelzinho trabalha o tempo todo com a imprevisibili-
' Na entrevista já anteriormente citada.
H A segunda versão de 0 R/co Pobre, em digital conta com assistência do realizador
Ricardo Sá. 0 filme mantém a essência original da história, mas apresenta um avanço
considerável em termos de organização da narr@ va e escolhas de sons e imagens.
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B0RDAS 3
dade daquilo que aparece djante da câmera. Desse jeíto,
os personagens se movem para lá e para cá, dentro do
quadro quase sempre jmperturbável e fixo da tela, sem
que qualquer camuflagem de continuidade faça vínculo
de suas ações.
Por ser tão instintiva, precárja e diretamente colhida na
realidade da paisagem humana e local, a construção ima-
gética e sonora da narrativa, em 0 R/.co Pobre, dentro de sua
vertente do registro mecânjco do movjmento, acaba por se
transformar em lembrete e testemunha de que no cinema
tudo não passa de um grande artifício, mesmo quando um
filme quer se fazer passar por documentário fiel da realidade.
Como tantos outros realizadores de bordas que filmam
dentro de leis próprjas e rudimentares, Seu Manoelzinho
opera dentro das linhas de força e de relacionamentos que
conduzem a existência das criaturas, de seus feitos e dos
fatos na própria Mantenópolis, sua cidade interiorana.
Assim, em 0 R/.co Pobre, é em ritmo de vaivém de diá-
logos que se repetem sem ter por quê, de sjtuações narra-
tivas que não respeitam a ordem temporal e de nenhuma
coerência filmica que o próprio realjzador encarna o antj-
-herói atrapalhado que sintetiza o personagem-título.
Este, na fita em VHS, é chamado ora de Manoel, ora de
Bastião, resultando em uma mistura do Carlitos, de Chaplin,
com o jeca, de Mazzaropi. Daí que munido de seu insepará-
vel chapéu, aparentando trabalhar de sol a sol, como denun-
cia a enxada que carrega no ombro, e mesmo lastimando a
pobreza e a dureza da vida, Manoel (ou Bastião) não deixa
de deitar-se para dormir em pleno serviço que lhe arranjam e
nem de louvar as delícias de repousar sob a sombra.
Na versão digital de 0 R/.co Pobre, novos detalhes,
mais midiatizados e adaptados ao modelo caipira usual
clN"^ 1 „ ",,í'
`,\u iiitroduzidos nesta mesma cena: o personagem deit.`-
`i. {iiii ' Tia rede e deixa o trabalho duro da capinagem do
it`iit`iio para a mulher e a sogra enquanto ele ouve uma
ii,w iida de futebol em um velho aparelho de rádio.
() mesmo acontece com a sua residência que, no filme
(1(' 2()()8, toma a forma de uma casa modesta do interior,
in,`` que na primeira versão é mostrada como sendo uma
li.wrt`ca coberta de palha, sem paredes, sustentada por pe-
l,,\(,s de pau.
Esse tipo de décor que esfarela o cenário realista é mui-
1() usual em filmes de Seu Manoelzinho, que se utiliza de
t'.`iiÁrios descarnados e por vezes apenas sugeridos por al-
wiiiis elementos, construi'dos em meio às tomadas da reali-
(l,`(li` da paisagem em redor.
É o que ocorre, por exemplo, em 0 Homem Serr} [ei.,
(iuhiido o realizador faz levantar em meio a um descampa-
(li i .`t. fachadas referentes a uma cidade do velho oeste ame-
rlt\.ino, que não passa de pranchas erguidas verticalmente
( t im letreiros alusivos ao bar, à delegacia, ao hotel etc.9
l.ambém a trilha sonora no filme de 2002 é construí-
(1.` i)()r trechos de musicas usualmente escutadas antes das
ht`Ss(-)es de cinema e tiradas de modo rudimentar de um
wr`w.idor. Na verdade, são pedaços de um texto sonoro es-
it.riit)tipadamente melodioso, tido como fundo ideal

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