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Promoção dos direitos da população em situação de rua Dignidade e Inclusão5 M ód ul o 2Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Enap, 2019 Enap Escola Nacional de Administração Pública Diretoria de Educação Continuada SAIS - Área 2-A - 70610-900 — Brasília, DF Fundação Escola Nacional de Administração Pública Presidente Diogo Godinho Ramos Costa Diretor de Educação Continuada Paulo Marques Coordenador-Geral de Educação a Distância Carlos Eduardo dos Santos Conteudista/s Gustavo Clayton Alves Santana Curso produzido em Brasília 2019. 3Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 1. Justificativa e objetivos ................................................................. 5 2. Estigma, medo e violências cometidas contra a população em situação de rua ................................................................................. 5 3. A contribuição da grande imprensa para esses estereótipos ....... 10 4. Guarde na memória! .................................................................. 11 5. Referências Bibliográficas ........................................................... 12 Sumário 4Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 5Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 1. Justificativa e objetivos Ao concluir este módulo, você poderá discutir e combater atos de preconceito, discriminação e cultura do ódio e se posicionar a favor das iniciativas com foco na promoção da dignidade e inclusão da população em situação de rua. Ao concluir o módulo, você terá aptidão para: • Conhecer as origens dos preconceitos e estigmas comumente associados às populações em situação de rua. • Identificar e combater o discurso de ódio e os preconceitos direcionados às populações em situação de rua. • Compreender como a grande imprensa contribui para a manutenção dos estereótipos e preconceitos em relação às populações em situação de rua no Brasil. 2. Estigma, medo e violências cometidas contra a população em situação de rua Muitos são os mitos de origem que as nações constroem sobre si. No caso do Brasil, a existência de uma propensa igualdade formal e a ideia da “brasilidade”, que a todo momento é celebrada nos meios de comunicação e através de símbolos alegres baseados em princípios culturais (carnaval, futebol, belezas naturais) e em representações comuns da nação, servem, na verdade, para ocultar a manutenção de formas sistêmicas de marginalização, pobreza e desrespeito exercidas todos os dias contra aqueles sujeitos cujas características de classe social e processos históricos são colocados em condições de subalternidade em relação aos grupos dominantes da sociedade. M ód ul o Dignidade e Inclusão5 Fonte: https://www.freepik.com/ Fonte: Rede Rua - https://www. instagram.com/p/BcXiODAgma1 6Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Como que escamoteadas, colocadas “para debaixo do tapete”, as distinções entre pobres e ricos (diga-se de passagem, nem tão ricos assim) não são afetadas até que a proximidade geográfica e a interação cotidiana as trazem à cena, como, por exemplo, quando alguma pessoa em situação de rua escolhe a marquise de um prédio residencial para abrigar-se, ou quando, na ausência de banheiros públicos, a pessoa em situação de rua faz seu asseio em algum chafariz. Não é de hoje, no Brasil, que os mais pobres e os que estão em situação de rua são vistos como uma classe de sujeitos perigosos. Os “sem lugar” da cidade já despertavam, no século passado, as preocupações das elites e dos legisladores, que colocaram em pauta na Câmara Federal, em 1888 (mesmo ano da abolição da escravidão), um projeto de lei para reprimir a ociosidade daqueles que eram considerados perigosos: (...) classes pobres e viciosas [que] sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante casa de toda sorte de malfeitorias: são elas que se designam mais propriamente sob o título de “classes perigosas”; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o pior, pela ociosidade. Este trecho do projeto deixa claro que o objetivo desta legislação permanecia o mesmo do período anterior à abolição, qual seja o controle dos corpos dos pobres e negros para a produção econômica, por meio do trabalho como um valor de regeneração social. Isto é percebido na incorporação, por parte dos deputados, da expressão “classes pobres e viciosas”, oriunda da expressão “classes perigosas”, em voga na literatura europeia sobre pobreza e criminalidade já naquela época. Como não era mais possível às elites manter as relações de trabalho pela posse da vida do trabalhador, a suspeição generalizada foi o mecanismo encontrado para a continuação da repressão. Para os deputados brasileiros da época, a formulação “classes pobres e viciosas” definia que os sujeitos pobres carregavam em si a definição das atitudes viciosas que tanto prejudicam a sociedade. Dessa maneira, a pobreza do Fonte: Rede Rua - https://www. instagram.com/p/BcXiODAgma1/ 7Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública sujeito e sua cor já eram condições suficientes para serem tratadas como perigosos malfeitores e a única maneira de escaparem a este estigma seria através do trabalho constante. No Brasil das relações de trabalho desreguladas, onde o trabalho era uma mercadoria que precisava ser vendida a baixo custo, a associação da pobreza com degradação moral construiu uma distinção entre os que seriam pobres trabalhadores (poupadores, cuidadores das famílias e cumpridores de deveres sociais e religiosos), considerados dignos, em contraposição aos ociosos, não pertencentes ao mundo do trabalho e, à vista disso, delinquentes. A associação entre pobreza e delinquência contribui, então, para o rompimento dos vínculos sociais. Quando uma pessoa possui uma trajetória onde há rupturas progressivas em relação ao que a sociedade entende como uma vida equilibrada e estável, ela vive uma espécie de desfiliação em relação a sociedade geral. Esta desfiliação é algo que recorrentemente acontece com as pessoas que estão em situação de rua. O fato de não desempenharem os compromissos sociais tidos como indispensáveis na sociedade capitalista, como o trabalho formal, faz com que estas pessoas sofram uma forte marginalização e consequente perda de direitos. É comum a imprensa tratar as pessoas que estão nas ruas como sujeitos incapazes, associando-os à sujeira, mendicância, diminuindo sua importância ou mesmo os caracterizando como preguiçosos, vagabundos, bêbados, drogados, ou seja, fortalecendo todos os estigmas que travam seu acesso às políticas sociais e impedem sua emancipação. Saiba mais Estigma, tal como foi desenvolvido na sociologia por Erving Goffman (1922 – 1982) pode ser entendido como um termo que designa um atributo, estereótipo ou sinais corporais profundamente depreciativos impostos a determinadas pessoas pelo senso comum. Uma sucessão de leis manteve os estigmas contra os pobres até os dias atuais, um exemplo disto é a lei de Contravenções Penais, de 1941, que está em vigor até agora. O artigo 59 dessa lei tipifica penalmente a conduta de vadiagem, que é entendida como "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. A penalidade prevista para quem for acusado de vadiagem consiste em pena de prisão simples, de quinze dias a três meses. A lei de Contravenções Penais também tipificava a conduta de mendicância, que só foi revogada no ano de 2009 pela Lei nº 11.983. Ao estudar como a exclusão social atua nas trajetórias de vidas de pessoas em situação de rua na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, a professoraSarah Escorel, no livro “Vidas ao Léu: Uma Etnografia da Exclusão Social”, aponta que a exclusão social é algo que faz parte da realidade social do Brasil, país onde as desigualdades convivem lado a lado com o regime político democrático, o 8Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública qual supõe igualdade de condições a todas as pessoas, desde que estejam inseridas no modo de produção e no mercado formal de trabalho. Saiba mais Para saber mais sobre o discurso de ódio, preconceito e os males decorrentes deles, leia o artigo “Ninguém nasce odiando, para ser racista é preciso ter o aprendizado do ódio”. Disponível em: https://www.geledes.org.br/ninguem- nasce-odiando-para-ser-racista-e-preciso-ter-o-aprendizado-do-odio/ Nesse estudo, a professora identificou como a exclusão social, enquanto fenômeno, se constitui por meio dos processos de vulnerabilidade, fragilização, precariedade e ruptura dos vínculos sociais, atuando na vida das pessoas por meio de cinco dimensões constituintes da vida social: econômica-ocupacional, sócio-familiar, da cidadania, das representações sociais e da vida humana. O que se percebe nas trajetórias de vida estudadas é um alto grau de isolamento e solidão, ocasionados pela ruptura dos vínculos familiares e sociais primários, que são reorganizados de forma precária diante da condição de estar nas ruas. Além do mais, a necessidade constante de estar alerta diante das possíveis violências, hostilidades, indiferença e a maneira supérflua como este grupo de pessoas é caracterizada, lhes lega um estatuto de não-cidadania. Dica Vídeo com depoimentos de pessoas em situação de rua do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, onde relatam como são vistas e tratadas.: Link: https://www. youtube.com/watch?v=Y5-fDL4rXO0&feature=emb_title Os depoimentos apresentados no vídeo demostram como a situação na qual os sujeitos estão faz com que percam suas referências de cidadania. Os rótulos pejorativos recebidos, as violências (simbólicas ou físicas) sofridas, marcam suas existências. Um dos entrevistados, Alessandro, afirma: “eu tenho uma etiqueta, essa etiqueta é ex-ladrão, ex-bandido”, constatando como os qualificativos preconceituosos são usados contra ele. Ao serem identificados como desajustados, por meio da estigmatização que significa estar nas ruas, os sujeitos são rotulados como não pertencentes ao conjunto da sociedade e perdem referências sociais. Por meio de um sistema perverso de exclusão, os rótulos de drogados, bêbados, loucos, vagabundos, improdutivos e inúteis são, na verdade, mecanismos que indicam a falta de lugar no mundo, sem integração à sociedade, por não proverem seu sustento e alimentação, segundo este entendimento estigmatizante, não possuem dignidade. 9Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública De outro lado, mesmo já tendo sido provado pelas pesquisas realizadas que a maioria das pessoas que está em situação de rua busca manter sua higiene, a estigmatização também se evidencia quando são consideradas como sujas ou maltrapilhas. O medo da violência que pode ser cometida por alguém que está em situação de rua é algo que também faz com que sejam quase que automaticamente identificados como criminosos e potenciais mal feitores, numa clara associação entre pobreza e delinquência. Quem não já viu as pessoas mudando de calçada ou se encolhendo ao passar por alguém que está em situação de rua? Por fim, podem ser tidos como coitadinhos, dignos de piedade, utilizando geralmente de cunho religioso para explicar sua inferioridade e o merecimento de sofrimento. Este sistema de estigmatização, como está sendo dito aqui, desumaniza as pessoas em situação de rua e os torna diferentes em relação ao conjunto da sociedade, por serem considerados uma “parte” que precisa ser ocultada e invisibilizada, para o melhor funcionamento da cidade, vide as violências pelas quais passam constantemente e que são quase que naturalizadas pela sociedade. Saiba mais Acesse também o site do movimento de jovens portugueses em defesa dos direitos humanos e contra o discurso de ódio: Movimento contra o discurso de ódio, link: http://www.odionao.com.pt/ No ano de 2017, na cidade do Rio de Janeiro, uma página na rede social Facebook denominada “Alerta Ipanema” - um dos bairros com maior renda per capta da cidade - publicou informes sobre a presença de pessoas em situação de rua na localidade. Em tom de protesto e ameaça, alertou-se a população sobre os perigos da prática de doação de comida, roupas ou quantias em dinheiro a estes sujeitos. Uma atitude que, seguindo a lógica da exclusão daqueles que não são consumidores, privatiza o espaço urbano construído somente para uma classe de indivíduos com poder aquisitivo, tratando as pessoas em situação de rua como se lá não estivessem ou lá não devessem estar. A perversidade dessa lógica excludente é a perpetuação de ações violentas contra as pessoas em situação de rua, seja pelo poder público ou pela própria sociedade civil. Ela reforça os estereótipos atribuídos àqueles que são vistos como uma “classe perigosa” e diferentes do que seria considerado o “comportamento normal”, exemplo de como é errática a construção de políticas públicas para essas pessoas. 10Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 3. A contribuição da grande imprensa para esses estereótipos É comum os meios de comunicação de massa – jornais, revisas, televisão – usarem termos depreciativos, como mendigos ou catadores de lixo, para se referirem às pessoas em situação de rua. Há, de fato, nas notícias veiculadas, certa parcialidade no discurso jornalístico que não trazem uma pluralidade de fontes, mas somente a versão dos que se queixam das pessoas nas ruas e em frente a seus comércios e residências. Este modo de abordar a situação, bem como o alto grau de influência no pensamento do senso comum que estes organismos possuem, contribui para o estabelecimento da distinção entre o que seriam pessoas normais e o que seriam os “anormais”, representados pelos que estão em situação de rua e que passam a ser objeto de estranhamento e repulsa. Ao fazer um mapeamento entre os anos de 2011 a 2013 sobre as representações da situação de rua nas matérias veiculadas no portal do jornal Correio Braziliense, a pesquisadora Viviane Resende identificou como esta mídia tematiza a violência e como a população em situação de rua é representada imageticamente em suas matérias. Segundo Viviane, nas matérias estudadas, ocorrem poucas avaliações positivas a respeito das pessoas em situação de rua. Os fatos narrados se concentram em casos de violência e, quando há avaliações das pessoas em situação de rua como sendo pacíficas, tranquilas ou trabalhadoras, estas avaliações aparecem em notícias que narram assassinatos terríveis cometidos contra estas pessoas. O mapeamento da pesquisadora aponta que a violência é, efetivamente, o tema mais presente e as principais avaliações apresentadas sobre as pessoas em situação de rua são apresentadas por discursos de incômodo e medo do risco que a presença dessas pessoas pode causar. Situação que parece paradoxal, no entender dela, já que são as pessoas em situação de rua as que mais sofrem vitimização pela violência. Para ela, esse enredo gera uma naturalização da violência contra a população em situação de rua, aumenta o distanciamento e estimula a falta de empatia entre quem lê (a sociedade em geral) e as pessoas em situação de rua vitimadas. Para combater esses estereótipos, a sociedade civil organizada, em especial por meio do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), vem reivindicando a utilização das expressões “população em situação de rua” ou “pessoa em situação de rua”, com o propósito de tornar central a pessoa e destacar que a vida nas ruas pode e deve ser transitória. Essa expressão foi adotada no Decreto nº 7.053/2009. 11Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Saiba mais Para ler o estudo da pesquisadora VivianeResende sobre a narrativa de violência em jornais acesse: http://www.scielo.br/pdf/ld/v18n1/1518-7632- ld-18-01-165.pdf A maneira como as pessoas em situação de rua são identificadas é uma mudança importante sobre como elas podem e devem ser tratadas, mas há a necessidade de a sociedade em geral começar a colocar em xeque os próprios preconceitos, a fim de que a realidade seja modificada realmente. A você que está participando deste curso, a partir das leituras aqui dispostas, é feito um convite a uma autoanálise constante que corrobore com a formação cidadã e inclusiva. Lembrando o educador Paulo Freire, quando se contrapõe ao senso comum, é preciso entender que, enquanto houver pessoas oprimidas por violências físicas ou simbólicas, estigmatizadas e colocadas a margem, toda a sociedade sofre e permanece estagnada. 4. Guarde na memória! • Neste módulo, você aprendeu sobre estigma, medo e violências cometidas contra a população em situação de rua. • Além disso, você também aprendeu sobre como a grande imprensa e o senso comum contribuem para propagar estes males. • Ao longo do módulo, você descobriu também como combater atos de preconceito, discriminação e cultura do ódio e se posicionar a favor das iniciativas com foco na promoção da dignidade e inclusão da população em situação de rua. 12Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 5. Referências Bibliográficas QUADROS, P. Dissimulacro-Ressimulação: ensejos da cultura do ódio na era do Brasil pós-verdade. Media & Jornalismo, Lisboa, Abril 2018. SANTANA, G. C. A.; RIBAS, L. M. “Não dê esmola! ” Controle e estigmas em relação à população de rua do bairro de Ipanema/RJ. Anais do TICYUrb’18, Lisboa, 2018. SILVA, R. L. D.; NICHEL, ; ET AL. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Rev. direito GV, São Paulo, jul/dez 2011.
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