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LANCETTI, Antônio Clínica Peripatética

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ca
ANTO NIO LAN C ET T I
e C dadan
Lancetti et al. Saúde Lo ucura
Ass stência S ocio e C dada ri ra (org )
Saude£ourura Z (Soúde Menta1 e Mande da Famíl a )
”Sí ntese metodológica in: Adib D. Jatene et a1. SeúdeLoucura 7 (Saúóe lvI eti ta c Saude da hemíl a )
Sa úc]e Mental e Sal de Coletiva (com Paulo Amar ante), in: Gastáo Wagner de So usa Campos et a Tratado de Saúde Co et
Santos (org.) . Textos, Texturae e Tessit uras no Acompnmimmento Tera -
CLINICA PERIPATETICA
TERCEIRA EDIÇÃO
EDITORA HUCIT£C
São Paulo, 2008
Prefácio — P sTER P xr P EL B A R T
Introdução
Capítulo t
Fontes da Clínica Peripatética
Capítulo 2
Caps: burocracia e turbinação
Capítulo 3
Conversa com Domiciano Siqueira sobre redução de danos
Capítulo 4
Redução de danos como ampliação da vida
Capítulo 5
A potência terapêutica dos agentes comunitários de saúde
Capítulo 6
Práxis terapêutica
milhas conceituais
39
97
123
PREFÁ CIO
Este livro é o didrio de um guerreiro. Com rara vivacidade, o autor registro os lances de uma batalha incerta no campo da saude (mental). Psicanolista, esquizoanalista, militante histórico da luta anti- manicomial, Antonio Lancetti é sobretudo um cartógrafO dD Vida ali onde ela enfrenta seus limites — esquizofrênicos, toxicômanos, meninos de rua, meninas prostituldas, todos aqueles em quem a violência de nosse sociedade infame explode da maneira mais sofrida e por vezes suicidá- ria, e que náo se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais.
Com sua experiência de décadas nos mais variados contextos, desde terapeuta de rua até secretário de A çôo Comunitária na Prefeitura de Santos durante a gestào do Partido dos Trabalhadores, portando pela introduf ão pioneira do Programa de Saúde da Famtfia em São Paulo ou pela histórica intervenção no Hospital Psiguiátrico Anchieta de $an- tos, o autor conquistou uma capacidade única de desafiar o consenso rnoralista que reina por tade parte onde “cuidar” encobre um imperati- vo de higiene socisf.
Em contrapartida, a cada linha desse escrito sente-se o frescor da experimentação, o corpo-e-corpo com as situações-limite, a liberdade prática e teórica, a mobilidade perspectiva que Nietzsche jd tdentificava com e própria seude. Pois saúde, para o autor, não é a medrosa luta
co ntra a “doenfo” ou o “desvio”, mas produ(ão de vida, arte de (de )subjetivaçáo, potência de encontro.
Como investir no autonomia e nào na infaTitiliz fZ ‘f• o dos sujeitos, como suscitar em russ vidas o acontecimento inédito, como introduzir a
surpresa, senão pela ascendência afetiva, entrando com o próprio corpo, mobilizando o entorno, inventando conjuntamente uma ficha de fuga, um agenciamento coletivo?
É onde se revela uma das idéies originais aqui presentes. A da clíni- ca praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, com o que se inauguram outras formas de engate terapeutico, bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da cidade e da cultura. “Estar-presente-em-movimento ,” “ pôr as pessoas de pé ,” desterritoriali- zar o contexto e o setting, habitam o limite e a tensào, investir na força, eis uma reversão uns hábitos clinicos consagrados, com seus paradoxos e riscos qnem o autor faz questão de trazer à tona a cada pdgíne. Forçose- mente comparece aqui ou ali um diálogo com Freud, Winnicott, Basa- glia, Negri, para nào falar de Nietzsche, e Aristóteles, que Suspirou o próprio título do livro, dada sua prática de ensinar andando. Mas sobre- tudo com Deleuze e G uattari, que inspiroram o eixo teórico desse expe-
rimen!• f‘• o, eixo que se «xpfiúto sobretudo no final do livro, com a idéia
‹fe uma clínica cartogrd/rs.
De fato, desde O Anti-fidipo os autores combateram a idéia de um inconsciente da profundidade, reterritoriafizndo sobre a memória, veto-
rizadO pe ltf origem, centrado sobre a reltff • • je tto/ob jeto. E reivindi- caram cada vez mais fortemente uma concepção desteriitorializada e
desterritorializante do tnconsciente, pensado como trajeto, deslocamen- to, tt berturas, pa ssagens, privilegiando os devires, os meios, as var!! ! fOes, as conexões. . . Ê outra subjetividade qtie aí se esboço, talvez mais flu-
12
xionária e rizomótica, com seus processos de recomo ••*!f •‘ o intensiva sempre em atjdemento e abertos à exterioridode. Por conseguinte, ê outra clínica que aí se insinua, cujos contornos mínimos estõo aqui esbo(odos,
centrada nos percursos, nas articul• foes com o fora, nas conexões, nos planos de consistência que se conquistam. É uma lógica da 2ona de Autonomia Temporária, deambulante, provisória, inacabada, sem “so- lução final”.
Uma tal nomadizaçào da clínica nào é independente da própria falência das instituif óes de reclusão. Deleuze analisou essa passagem de uma sociedade disciplinar, baseada no confinamento, para uma socie- dade de controle, calcada no monitoramento dos fluxos em espaço aber- to, e úpica do capitalismo contemporâneo. E possível que a reivindica- çào por uma clínica peripatética, ou cartográfica, se insira numa tal
mutaçào histórica caracterizado pele nomadizef ão atual dos fluxos de toda ordem, e da própria subjetividade. Mas como no judô, trata-se de aproveitar o movimento do adversário pora derrubó-lo. Ao lutar contra " P^° *f!° mff cif a da impotência subjetiva, num contexto de dester- ritorialização generalizada, trata-se de inventar as linhas de fuga aptas a relançarem o movimento na direção de outros possibilidades de sub- jetivaçâo.
Isso tudo pode ser fácil de dizer, e até sedutor de enunciar, ruas é dificílimo fazer Dal o mérito desse livro, que nâo tem a elegância assép tica des teorias de gabinete, embora dialogue ativamente com clínicos e filôsofos de primeira grandeza, e está salpicado de relatos muito concre- tos, rom sua “sujeira”própria, saborosos, surpreendentes, heterodoxos: a bofetada num abrigado, num momento crucial (“makarenkada” ), a ródio livre oferecida aos craqueiros, a substituição da cocaína pela ma- conha, a disposição de tornar-se pdssero em meio ao delírio de alguém. . .
t3
Não Sófórmula mdgica, mas tentativa e erro, destemor e paixão, sem-
pre o combate contrs o ressentimento (d0í o bela int °° ^• o per- dão. . . ), a fabricaf ão de noções esquisitos (a “Jn fõo bó!”j, a disposif ão constante de sustentar a posif ão de bombeiro e incendiário ao
tempo, numa ronj•" f<O de fomr a e ternura, afeto crueldade, continên-
desse livro se dispõe a tomá-lo com a leveza e urgência com que foi escrito, terá compensada sua expectativa, mas sobretudo, verá reafirmada a liberdade que os tempos presentes pedem de cada um de nós. Nada está definitivamente “selado ,” apesar das vozes em contrdrio das carpideiras de plantio, e o percurso relatado é também o das lutas empreendidas nas últimas duas décadas no campo da saúde mental no Brasil, com seus impnsses e deslocamentos. Nem otimismo nem pessimis-
INTRODUÇÃO
· •• k•• t penser et écrite qu’assis (Flau- bert). Co na isso te pego, niilista ! A carne sentada é justamente o perudo contra o
£sp*rito Santo. Somente os pensamentos que surgem posseendo têm valor.
mo, mas jogo multívoco, polifônico. Como dizia Guattari: “Alegria, tre- geJiu, comédia. . . os processos que gosto de qualificar como muqulnicos trançam um /uturo sem garantia — ê o mínimo que podemos dizer!
Estamos ao mesmo em o «presos ri uma ratoeira» e destinados às mais ól	lten es
— P fi TE R P Ã L P E L 0 A R T
Escolhi o termo peripatetico para designar esta série de seis ensaios. Peripatético no sentido comum do adjetivo e no sentido etimológico da palavra que provém de zcpiioitov (peritatéô ): pas- sear, ir e vir conversando.
A escola filosófica fundada por Aristóteles (384-322 a.C.) tor- nou se conhecida pelo nome de peripatética em virtude do costu- me do Estagirita de ensinar andando pelos jardins de Apolo no Li- ceu, perto de Ilissos, nas cercanias de Atenas.
Não há, nas páginas que seguem, intenção de aderir à doutrina aristotélica nem às que seus discípulosderam continuidade.
Também na literatura psicanalítica, mais precisamente em al- gumas biografias de Freud,’ pode ser encontrada a expressão tera- pia peripatetica para referir-se ãs sessôes acontecidas caminhando.
Outro acontecimento que provocou tal escolha foi a observação
' Emilio Rodrigué. Sigmu md Freud — o sêculo da psiconálise (1b9ô- 1995 ). Sào Pa uIo: Escuta, 1995, vol. 2, p. 273
de uma paciente, que, depois de me ver andando pela rua com outro
de quem tratava, me disse: — vocè é um analista perigatético.
Outra influência, como sugere a epígrafe, foi nietzschiana. Con- ta-se que Nietzsche afirmava que as principais idéias surgem duran- te caminhadas.
Por finn, a idéia-força que influenciou o título do livro, e o pró- prio livro, foi a de clínica cartográfica que Gilles Deleuze2 deixou como um dos seus tantos preciosos legados, e que seus seguidores, segundo alcança men conhecimento, pouco desenvolvemos.
O Capítulo 1 é uma reunião de experimentações ocorridas no campo da saúde mental, da pedagogia com crianças e jovens com vidas dificeis, na educação e na clínica psi que de maneira incipiente lavra- ram as idéias que aqui buscamos cunhar e desenvolver.
O Capítrilo 2 é frtito de uma preocupaçäo crucial para o éxito on o fracasso da Reforma l°siquiátrica Brasileira: o modo de trabalhar nos Centros de Atençao Psicossociais, Caps.
Em 1989, quando iniciamos a experiència de Santos, havia no Brasil treze Naps (Núcleos de Assisténcia Psicossocial) ou Caps e oitenta mil leitos psiquiátricos. Hoje temos 820 Caps e quarenta e cinco mil leitos. Ao focar a preocupação no conceito de território e na prioridade assistencial dada às pessoas em maior risco, mergulhei no campo da clínica antimanicomial.
O Capítulo 3 e o 4 tratam da Redução de Danos. O terceiro é uma coriversa com Domiciano Siqueîra, um dos priricipais líderes dessa prätica no Brasil. Achei valiosa a conversa pois ela aconteceu rio momento em que transitava peripateticamente pela experiência de Porto Alegre; estava então trabalhando para construir uma poIíti-
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ca assistencial para crianças e jovens dependentes de drogas, por meio de um convênio de cooperação entre o Uriicef e o goveino municipal portalegrense, que naqueles anos se destacava pela inova- ção e eficácia de snas políticas públicas.
O Capítulo 4 preocupa-se pelo que se revela como clínica na experiëncia de Redução de Danos. Ou melhor, pelo que a Redução de Danos traz como contribuiçäo ä clínica de dependentes de drogas e outras formas suicidárias de existência.
No Capítulo 5 retomo o problema da saúde mental no PSF- — Programa de Saúde da Família — pet a mão dos agentes comunitá- rios de saúde, destacando a potcncialidade terapéutica dos agentes e explorando o que poderia ser cliamado de uma transclínica.
Transclínica porque diferenciada de clínica ampliada, dado que nño se trata de levar os mesmos pressupostos, tão criticados nos pro- cessos de transformação institucional, para novas ãreas.
Por finn, no Capíìulo 6, aventuro me em território näo lavrado que a genialidade deleuziana nos legou com os conceitos de agen- ciamento e clínica cartográfica.
Com essa contribuição crítica pretendo avivar o trànsito por esse limiar que vai do exílio à cidadania. Esse deambular defronta-se corn fracassos e acidentes de percurso, lado a lado, com pessoas to- madas pelo império da morte e da infantńizaçäo capitalísticas, com seu desarranjo de violêricía e neobarbárie.
Mas também busco com insistëncia as poieticas que pulsam nos percursos de afirmaçäo da vida que navegam pelas águas do comum, sempre plural, sempre cooperativo. Comum e comunista, sempre defronte para o fiituro.
Capítulo 1
FONTES DA CLINICA PERIPATLTICA
Conversações e pensamentos que ocorrem durante um passeio, caminhando — perípatetisma — são nina Cer amenia para
'	entender uma série de experiências clínicas realizadas 'fora do con- sultório, em movimento.
Essas estratégias sao desõnadas a pessoas que não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais — toxic8manos, violentos, esqui- zofrénicos, jovenc sobretudo —, quando dispositivos psiquiátricos, pedagógicos, psicológicos ou psicanalíticos não futtcionam.
Vamos ao encontro, ãs vezes de surpresa, de famílias que passam por grandes dificuldades; tratisitamos pelas cidades com pacientes psicóticos, transpomos os portóes de clínicas e hosptcios; transbor- damos os consultórios.
Bleger' entende o setting como a constante fundamental da cura ou o depositário da parte psicótica da personalidade e como a parte indiferenciada dos víncvtlos simbióticos primitivos. Para ele, a situa- ção analítica é composta de invariáveis e processos. Bleger afirma a importância de cuidar do setting para reconstruir as partes desinte- gradas, despedaçadas da subjetividade, mas também outorga impor-
José Bleger. Simbiose e pmbigi1id«de. Rio de Janeiro: Francisco Alves, s.d.
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tància ao processo ou àquilo que muda. Ele afirma ainda que o sef- hag se manifesta quando é quebrado.
Winnicott, que desenvolveu mais que outros psicanalistas a teo- ria da situação analítica, entendia o setting como um espaço parado- xal que, ao mesmo tempo, é e não é. Com respeito à rua, o consul- tório é o dentroy mas a sessão é o fora do analisando. Essa reiaçâo paradoxal, por ele denominada transicional, não é pensada como manifestações do paciente que podem ser catalogadas para correta ã IiCàÇaO das prescrições técnicas. Ou seja, para tal ou qualmanifes- taçâo, tal ou qual interpretação, assinalamento ou qualquer outra intervenção técnica.
E$sa relação paradoxal é plena de expressões ainda não forma-
das, Q£é-Significantes, raridades Iúndamentais para produção desub- jetividade.
O setting ê a montagem, o cenário ou a situação; espaço dentro- fora facilitador da comunicação inconsciente-inconsciente; relação na qual o psicanalista opera.
Em sicodrama o setting é a cena psico ou sociodramfitica. Em- bora haja recursos clínicos pOr assim dizer fixos — aquecimento inespeclfico, aquecimento específico, etc. — é a cena perco ou socio- dtafliátiCa (psico refere-se ao mundo interno ou co-inconsciente e sócio refere-se a alguma iitua§ÔO $ cial ou grupal). A montagem da cena é sempre singular e única para favorecer a espontaneidade.
A seguir listatemos uma série de experiências clínicas nas quais
essa montagem ou situação é móvel, feita de percursos e transposi-
ções de espaços e tempos institucionais.
A necessidade de escrever a espeito da clínica praticada em movimento, fora do consultório, no dentro-fora dos consultórios, 20
nos espaços e tempos trat ados transbordando a psiquiatria, a psica- nálise e as instituições de saúde mental, é provocada pela comp1e;õ- dade dos tratamentos que venho conduzindo na atualidade e pelas diversas experiências de produção de saúde mental.
As fontes de inspiração do qüe denomínamos clínicaperipatéti- ca sáo muitas e diversas, a saber:
A experiência de desconstrução manicoznial
Durante o tempo da Intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, que começou em 1989 e culmínou em 1994, coai o falha- mento do hospital psiquiátrico, percebíamos que os pacientes mu- daram ao transpor a porta do hospício, que um enxame de pessoas permanecia no limiar arquitetónico, entre o dentro e o fora do pré- dio, que essas saídas e entradas, as idas ao cinema, as andanças pela cidade constitulam novos setfings altamente férteis para a produção de subjetividade e cidadania.
O trabalho de desconstruçao manicomial mostrou que o cená- rio do hospício, a organização dos espaços-tempos são promotores de identidades cronificadas e que a clínica reabilitativa é iminente ao processo de desmontagem manicomial.
O hospício de Santos foi construído, conturbado e demolido. Construído, pois o primeiro período da Intervenção fOi dedica-
do ao conhecimento e cuidado de cada um dos internos e de suas famílias.
Conturbado, pela mudança dos espaços-tempos institucionais e pela colocação da instituição de reclusão, em contato com a cidade, acarretando crises e contestações jurídicas e polídcascom o stsfu quo.
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Demolido, porque inteiramente substituído por um sistema de saúde mental.
Essas três operações modificaram a relação da loucura com a cidade, com sua cultura e com a política.
Nesse processo geraram-se várias clínicas. A primeira, uma an- ticlínica. Etimologicamente, xkivixíj (kliniké ) significa cuidados mé- dicos de um doente acamado e o verbo xZívm (klíno ) , inclinar-se, debruçar-se sobre o paciente. Na descoristrução manicomial e na clínica antimanicomial trata se, de saída, de p8r as pessoas de pé.
À medida que se desmontavam os espaços-tempos m znico- miais e se ativava a relação do coletivo (pacientes, trabalhadores de saúde mental e dirigentes) com a sociedade, inventávamos cada dia empreendimentos que produzissem desejo de viver fora do hospício. Clinicãvamos para pór de pé os cidadãos psiquiatrizados e para promover uma intensa interação com a cidade, com pessoas e movi-
mentos de diversas partes do Brasil e de outras partes do mundo. fundamentalmente, a primeira gestão, conduzida por Telma de
Souza e David Capistrano Filho, baseava-se na diferença e na multi- plicidade. Pessoas de diversas correntes políticas, estilos e modos de vida diversos, trabalharam juntas, unidas por um objetivo comum. Acredito que o fato de uma das principais obras daquela gestão ter sido transformar Santos na primeira cidade brasileira sem manicô- mios foi heterogeneticamente rica — por seu baixíssimo grau de sectarismo e pelo desejo de diversidade.
Entre tantas experimentações, afetados pelo conceito guattaria- no-deleuziano de agenciamento, levamos um grupo de meninos e meninas de rua para passar um período na Casa de Saúde Anchieta, pois acreditávamos que conectando sedentários que eram os pacientes
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crónicos (a experiência aconteceu no final de nossa estada na Casa Anchieta) e nómades que eram as crianças e adolescentes moradores
de rua, poderíamos gerar novas subjetividades.
Os meninos e meninas respeitavam os adultos e se abriam para o cuidado de outrem, sobretudo dos mais velhos, os pacientes lem- bravam de seus filhos. Um dos jovens reconheceu um interno e ajudou a reconstruir sua biografia e a modifiCar o diagnóstico psi- quiátríco. O interno estava há tempo com diagnóstico de deficiente
mental grave e um dos jovens o reconheceu como freqüentador de um bar e jogador de sinuca; ele havia ficado Hlnnésico depois de sofrer um golpe de taco de bilhar na Cabeça.
A experiência estava em pleno florescimento mas tivemos de
suspendê-la pois sofremos urna ação judicial, acusados pela direita santista, de pôr em prátiCd O “método Capistrano”, que consistia na
erotização dos pacientes.
Em 1990, quando Félix Gtiattari visitou Santos, disse que aí estava ocorrendo a quarta revolução psiquiátrica, e essa revolução gerou um capital de conhecimento que não somente se tornou refe- rência para a reforma psiquiátrica brasileira, como também funda- mento para a invenção de diversas experiências ocorridas em outras áreas como educação, assistência social, saúde, segurança.
Nesse sentido, no trabalho afetivo ocorrido com meninos de
rua, meninas prostituídas, de redução de danos (que também foi iniciada em Santos sob o comando de David Capistrano Filho e Fá- bio Mesquita) ou com toxicómanos, pôde-se reconhecer urna clíni- ca inspirada na experiência de transformação da psiquiatria.
Todas essas práticas têm a marca da ousadia, da invenção e de
uma potência de transformação francamente terapêuticas.
23
Apedagogia da surpresa
Quando o crscl chegnu à cidade de Santos, percebemos que estávamos perdendo contato com muitos meninos e meninas qite
moravam na rua. Depois de levar alguns deles para o pronto-socorro 0t 0I'ntdose de cocaína, decidimos organizar uma estratégia de in. tervenção e uma metodologia de trabalho a que chamamos de pedal
O a da surpresa. Ou seja, atingir esses meninos e meninas no mo- mento e no lugar em que eles menos esperavam.
ÀS 8Ú8 da rrianhã, quando eles jfi estavam dormindo na rua, jun- távamo-nos — conselheiros tutelares, educadores, guardas munici- pais e dirigentes da Secretaria de Ação Comunitária (na época eu era
o secretário) — e saíamos em comboio percorrendo os becos da
cidade. Acordávamos cada menino e menina chamando-os pelo nome e os conduzíamos à força para a Casa de Inverno, casarão destinado á abrigar homens e mulheres moradores de rua nas noites frias.°
NF Casa de Inverno já se achavam meninas do Projeto Meninas° (ex-prostitutas adolescentes que se formaram nas oficinas de bde- za), outros educadores, um médico clínico e, 1s vezes, alguns mem- bros das famílias dos meninos.
Primeiro em roda transmitíamos basicamente que aí estávamos
Antonjo £ancetti (org.). Assistência soi:tal e cidadania — invenções,
‹°^•H(o‘a do experiêA cix de ÁAntoi. Sa0 Paulo: Hucitec, 1996.
Equipe do Projeto Meninas õ* seios. "Meninas de Santos: o aíJorar de uma
nova femlntlidade“,
Maria Tereza Berardo, Maria S. Parah Reis & Rosdngeia Mendes
'itvenil. S4o
Paulo: Nome da Rosa, 1999.
24
para defender os seus direitos, mas que eles não tinham o direito de se matar na nossa frente. Portanto, iríamos retirá-los da rua quantas vezes fossem necessárias. Rxplicávainos os passos da jornada que eram os seguintes:
1. °) Quem quisesse poderia posar para uma fotografia instantâ- nea antes da jornada e outra depois. As fotografias eram entregues aos meninos e meninas,
2. °) Jogavam-se as roupas fétidas no lixo. Os meninos tomavam banho, vestiam novas roupas e calçavam sapatos, tênis ou chinelos;
3. °) Tomavam café da manhã;
4. °) Cortaram o cabelo (não o raspavam) com as meninas cabe- letreiros da Oficina de Beleza;
5. °) Um médico achava-se à disposição de quem o desejasse; 6.°) Discutir-se, com os conselheiros tutelares, com os familia-
res presentes, com as crianças e adolescentes, o destino imediato de cada utn dos meninos e meninos: retorno ã família, ao abrigo muni- cipal, à cidade de origem, etc.
Durante a jornada, que se entendia por toda a manhã, os educa- dores de rua jogaram ténis-de-mesa, pintavam camisetas, brinca- vam com os meninos e com as meninas.
Para nossa surpresa muitos meninos, mesmo os considerados mais dificeis, pediam para voltar ao Projeto, constiltavam o médico clínico e encaminhavam uns aos outros para o serviço de assistência aos drogados, ou para as policllnicas.
Os que retornam à rua conservavam durante muito tempo as fotografias poínroid.
25
Internação invertida
Entusiasmados pelos êxitos dessa experiência, desenvolvemos uma prática que chamamos de internação invertida. Em vez de in- ternar meninos e meninas nos internávamos a nós, educadores.
Escolhíamos os meninos mais problemáticos e saíamos da cida- de para sítios, casas de praia ou acampamentos. A idéia era desterri- torializar o contexto pedagógico e tentar algo diferente, tendo-se em conta que a assistência prestada estava fracassando.
Na primeira viagem escolhemos os dez adolescentes mais difí- ceis — que usavam drogas, brigaram, furtavam, causavam proble- mas com os vizinhos dos abrigos e com a imprensa que nos perse- guia sistematicamente. E com dois assessores fomos para minha casa num morro de Ubatuba, no meio de mato.
Quando chegamos à casa, notamos que ela estava com muitos problemas, fruto do abandono, pois durante a época em que fui secretário, nunca tinha um fim de semana para sair de Santos. Arru- mamos todos o telhado, instalação elétrica, e quando consertávamos a caixa d’água, um dos mais terríveis da turma apareceu com um saboroso café — Foi minha avó quem me ensinou a fazer este café. Depois de um silêncio (era noite de lua cheia), o menino acrescen- tou: — Tio Lancetti, precisamos fazer um projeto diferente para nos- sas vidas!
Um deles dormiu com a lanterna debaixo do travesseiro, pois tinha medo da escuridão. Ele sabia dormir na Praça da Sé mas, des- territorializado, descortinava seu coração.
No segundo dia, sintonizaram a Ràdio Roquete-Pinto do Rio de
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Janeiro, e preferiram ouvir Mozart, em vez dos cds de rsp que ti- nham levado.
Antes de partir, eles pediram umarettnião para discutir drogas.
Depois, outros educadores viajaram para acampamentos e sí- tios sempre destacando o caráter provisório que devia ter a expe- riência.
A intervenção tinha começo, meio e fim e funcionava como
injeção de afeto e incrustação de transferência; um vínculo inédito numa relação saturada de significado, estereotipada e sem potência pedagógica ou terapêutica.
Essas experiências nos revelaram mudanças nas relações que se
tornaram tenras, francas e promissoras. A psicanálise ria sua fase instituinte
Freud também analisou pacientes andando, como foi o caso de Gustav Mahler. O grande compositor, que sofria de uma íourura du duvida, enviou vários telegramas a Freud ora solicitando análise ora para desmarcar os encontros, o que levou Freud a tomar uma atitude ativa, intimando-o.
Encontraram-se, durante as férias de Freud, em 1908. Fizeram
uma sessão de quatro horas caminhando pelo campos da universida- de e pelas ruas da cidade de Leiden. 4
Segundo Jones, “essa conversa, evidentemente, produziu efei- tos, pois Mahler recuperou a potência e o casamento foi feliz até sua
· Elena Jabif. ”El músico que perdió y rec uperó su alma”. Trabalfi o apresenta- d o nas J ornad as de 1998, na Esc ola Freu di ana de Buenos Aires <h ftp://www. antrop osm odemo. com /texto s/Freud-Ma hle r.h tml> .
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morte, que infelizmente ocorreu apenas um ano depois”."‘ Em carta a Theodor Reik, Freud comentou: “Se der crédito àS notícias recebi- das, consegui fazgr muito por ele naquele momento. Em interessan- tes ex edi ões pela história de sua vida, descobrimos suas condições pessoais para o amor.
Sessões de análise
que aconteceram caminhando
Na Argentina, na época do Proceso, durante os anos da ditadura militãt, muitas pacientes encontravam seus analistas fora dos con- sultórios.
Algumas sessões ocorriam nos cafés, mas dada a circunstância de que a polícia revistava sistematicamente os bares, analistas e pa- cientes faziam suas sessões de análise caminhando pelas ruas de Buenos Aires.
Na minha experiência de psicoterapeuta, muitas vezes saí a pas- seio com pacientes. Eram tratamentos que se encontravam burocra- tizados, sem descobertas, repetitivos. O objetivo era sair para conver- sar a respeito do que acontecia lá no consultÓflo, mâs fllUitas foram as revelações e sonhos narrados.
Em outras oportunidades encontrava-me com pacientes em lugar marCado por ele. Um deles, que hoje, enquanto redijo estas linhas, lamentaveímente está internado, marcou nosso primeiro en- contro no bairro da Liberdade, em São Paulo. Não pude com a famí-
 o se’culo do psiceiiólise (1895- 19o3). $z z
Ernest Jones. H vida e e obre de Sigmund Freud IL. Rio de Janeiro: Imago, p. 92.
28
lia, a única pessoa que se dispõe a cuidar dele é a mãe, mas ela está gravemente enferma. Sei, no entanto, de seus passos porque sempre me avisa para dizer onde mora e como está, ou me telefona cumpri- mentando pelas festas de fim de ano.
O acompanhamento terapêutico — AT
A prática do acompanhamento terapêutico consiste em transi- tar pela cidade com pacientes psicóticos ou com alterações psíquicas graves.
Os objetivos que se buscam, nesses empreendimentos, são a conexão com pessoas, atividades e locais, depois do colapso que o surto provoca.
Na cidade de Santos criarmos o primeiro concurso público para acompanhantes terapêuticos, de maneira que os Naps de Santos têm et:ri seu quadro de funcionários esses profissionais.
Fui também supervisor de ATs, mas minha prática clínica se con-
funde muitas vezes com a prática dos acompanhantes terapêuticos.
Segundo minha experiência, essa práxis não deve ser reduzida ã de um auxiliar psiquiátrico. Em niuitus oportunidades, o ir e vir com o paciente é posição de comando do tratamento ou única possi- bilidade.
Como o fiz em livro recentemente publicado, ’ além de outorgar valor de condução a quem acompanha, considero dignos de proble- matização o próprio percurso e a amizade.
' Anto nio Lancetti. “A amjZa de e Acompanljari ento Terapé uticciü in: Ricar- do C›ornides Santos (org.). Texto, textu.ras e tessity ras no Aconi panhame rito Tempeu tico. Sào Paulo: H ucitec-A Casa, 2006.
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lstar presente em movimento, esse estar-aí-junto e em movi- mento, gera uma continéncia às vezes maior que a que se passa entre as quatro paredes do consultório.
Na minha prática prefiro estar sempre presente no momento da alta pois no trânsito, da instituição para fora, sempre se geram co- municações e descobertas importantes para o processo terapêutico. Como diz Luiz Fuganti, há uma variação na quantidade intensi-
va e na qualidade expressiva da relação.
f fundamenal lembrar que nos seus primórdios os praticantes chainavam-se omigos quolificodos.
Adiante nos preocuparemos com a importância do trânsito na relação terapêutica e cont o valor e a complexidade do conceito de amizade.
A clínica praticada pelas equipes volantes de saúde mental associadas às equipes de saúde da famíiia'
Em 1998, iniciamos uma experiência de saúde mental articula- da ao Programa de Saúde da Família.
As equipes de saúde mental eram (e ainda são) plenamente pe- ripatéticas. Operàvamos sem consultório ou outro Iugar de atendi- mento, sem utilização dos cõdigos técnicos tradicionais nem recur- sos como consulta psiquiátrica, psicológica, ou visita domiciliar (no sentido tradicional da visita, praticada por assistente social).
A estratégia clínica foi uma invenção inspirada nas fontes cita- das e na fantástica produção biopolítica que é a saúde pública produ-
' Antonio Lari cetti (org.). 5oúdeloucuro Z — saúde mental e soúde da fainília. São Paulo: 1-í uci lee, 2001.
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zida mediante a intervenção no seio dos grupos familiares, especial mente a do Projeto Qualis/PSF, conduzido brilhantemente por Da- vid Capistrano Filho.’
Com Davíd à testa, o Programa de Saúde da Família era, mais do
que uma modalidade ou uma práxis de saúde pública, uma experiên- cia de produção de vida, solidariedade, cidadania, de ativação do comum" no sentido proposto por Toni Negri e Michael Hardt.
Toda a rede de saúde era dotada não apenas de dispositivos que buscavam realizar a integralidade, como ambulatórios de especiali- dades, programa de saúde bucal, programa de saúde mental. . . que davam eficácia à ação, mas também de espírito de inovação e de vi- ruléncia afirmativa e força de convencimento para confrontar as tradicionais maneiras burocráticas e simplistas feitas para atender
os pobres.
Em todas as unidades de saúde havia atividades coletivas como caminhadas de hipertensos, de educação ecolõgica, de intervenções para reversão do tratamento do lixo, de educação, de saúde bucal, de prevenção da aids, etc.
Na trama da rede havia também uma atitude de busca de eficácia
e de ruptura em relação a práticas segmentarizadas e burocráticas como, por exemplo, a prática do acolhimento, que é uma maneira de escutar o sofrimento de quem precisa, pratica essa tradicional- mente realizada por médicos na forma de triagem ou pronto-atendi-
’ Pr onunciamento de David Capistra rio Filho no VI Co n gresso da Abrasão,
Rio de }anei ro, 2000.
'" O com um no sentido que M ichaeI Hard t e Antonio Negri exp ressam em Multidõ o (Rio de Janeiro: Record, 2005), ao mesm tempo coletivo e plural. Yer a d iscussào dessa questã o no capítulo a respeito do Agente Comum itàrio de Saúde, adiante, neste livro.
3t
mento; a capacitação do gastroenterologista para realizar endosco- pias, de técnicos de nível médio para realização de espirometrias; dos agentes comunitários de saúde para fazer prevenção de saúde bucal; das enfermeiras para fazer acolhimento.
Com essas ações substituIam-se os profissionais com os quais não contávamos, combatíamos a burocracia e a detestável espera do usuário que precisa entrar numa nova fila para cada exame, e man- tinha-se o coletivo em clima de aprendizado e inovação.
No Projeto Qualis, os enfermeiros e enfermeiras medicavam, em situações especiais, apoiados por protocolos Clínicos elaborados cuidadosamente. Na Casa de Parto, deu-se a experiênciacom enfer- meiras capacitadas ara realizar parto de pacientes que acompanha- vam desde o pré-natal com os médicos de família, com participação dos pais, da família e da comunidade.
ESsas práticas, embora racionais e eficazes, são disruptivas para as mensalidades coorporativistas e por essa razão foi motivo de polê- mica e processos judiciais.
N8 éQOCa, São Paulo era governada pelo "malufismo". A maior cidade brasileira estava descredenciada do Sistema único de Saúde
(SUS) e conseqüentemente o dinheiro da Atenção Básica e outros recursos do orçamento não chegavam à cidade.
Aproveitando esse vácuo orçamentário, o Professor Adib Jatene, COrri seu pretígio, convenceu o secretário estadual de saúde para adotar o PSF mediante convênio com o Hospital Santa Marcelina e a Fundação Zerbini. Foi ele quem convidou David Capistrano Filho e sua equipe para introduzir o PSF em São Paulo.
O PSF e até o PACs — Programa de Agentes Comunitários (que funciona com equipes de agentes de saúde e enfermeiros, sem médi- 32
cos) tinham mostrado sua eficácia em pequenas cidades do Norte e Nordeste do Brasil.
Mas, em se tratando de São Paulo, a situação era diferente. A prevalência de seu mapa epidemiológico não era a desidratação como ocorre em pequenos municípios do sertão, mas a violência e uma série de doenças de complexidades diversas.
Introduzir a Estratégia da Família numa cidade de altíssima complexidade como São Paulo era um desafio considerável, e repe- tir experiências, mesmo exitosas, seria um erro fatal. Erro que a posterior municipalização cometeu, " lamentavelmente, ao querer fazer um PSF em São Paulo igual ao criado em outras partes do Brasil.
As idéias-força do PSF conduzido por David e sua equipe eram
inventar, confrontar e socializar saberes.
Nesse caldo de cultura teria sido demasiado pobre repetir a ex
periéncia de Santos, ainda que tenha sido bem-sucedida.
'‘ O Projeto Qualis/PSF foi uma experié ncia -pilo to que marco u o caminho da construç‹ao ‹lo SUS em São Paulo no tempo em que coexistiam o PAS e uJna pobre rede de sal de best ca geren cia da pelo esta d o.
Os gestores m u nicipais que sucederam o governo Celso PJtta e que trouxeram o SUS (o que foi de i nestimãvel valo r, assim como tantas a çt›es por eles rea liza das), não foram capazes de en tender: os "tucanos", em per io do eleito ral, demitiram Da- vid Capis tran o PiI ho, lr esino d oente, po is nao podiam su por tar a mar ca petis ta nu m programa que tiIlha aprova çào popular no tória (mais de noventa por cento) e a chava ra que o PSF em Sào Pa mo deveri a ser uaínim o e pobre.
Os petis tas, infl uen cia dos pela gestao ministerial de Serra e sob alega çao de falta de dinheiro, la nça ram -se ao erro de co nstrui r um PSF simplifica do que pro- voco u d eman da e d esap rovaçã o popular.
Lídia Tobi as e Socor ro Mat tos, sanita ristas da equipe d e David Ca pistra no Fil h o em Sa ritos e no QuaIis, ten ta ram conven cer as auto rid ades mu nicipais a desenvolver uma estratégia de co mpletar as eq tiipes de PSF dos distritos de sal de segue do o mo delo do Qualis, mas n ão tj veram éxito.
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Em todas as unidades de saúde havia uma escuta do sofrimento de quem era coberto pelo programa na hora que precisasse, isto é, acolhimento e grande variedade de atividades coletivas. O Projeto Qualis era, por assim dizer, uma experiência de saúde mental, mes- mo antes de criarmos o Programa de Saúde Mental.
Começamos suspendendo os poucos atendimentos psicológi- cos tradicionais (psicoterapias, psicodiagnósticos, etc.) que ocorriam em algumas unidades de saúde, e iniciamos a capacitação dos agen- tes comunitários de saúde.
Num sociodraina as agentes construíam dramaticamente as fa- mílias com problemas de doença mental e tentavam ajudá-los; du- rante as cenas sociodramáticas, transmitíamos formas de funciona- ieito —cada reunião durava cerca de quatro horas. Na segunda reunião, processávamos o sociodrama e discritíamos o Guia de Sul- de Mental do A gente Comunitário de Saúde.' ’ Na terceira reunião, escolhíamos as famílias em maior risco e posteriormente íamos até suas casas. De surpresa.
Convencemos os poucos profissionais de saúde mental que es- tavam na rede a operar de modo diferente e contratamos novos pro- fissionais dispostos a trabalhar em ambientes desprotegidos por es- paços e lógicas tradicionais.
Com dois grupos de trabalhadores em saúde mental, novos em todos os sentidos, organizainos as equipes volantes.
Essas equipes volantes desenvolviam (e desenvolvem) uma pra-
tica altamente peripatética, a saber:
* Ir até as famílias, de surpresa ou náo, sempre em companhia dos agentes comunitarios de saúde e, às vezes, com o médico de família, a enfermeira ou os auxiliares de enfermagem.
" dei SaúdeLoucurg 7 , op. cit.
54
· 
Uma vez nos domicílios, agrupávamos os familiares, os escu- távamos e realizávamos a primeira intervenção. Nela já enunciáva- mos um projeto terapêutico, algo assim como o esboço do que iria ser uma cartografia para cada grupo familiar.
· Alguns dos primeiros atendimentos eram realizados em hos- pitais psiquiátricos, em abrigos ou na Febem. O objetivo era inau- gurar uma relação de afeto e transferência e negociar com os mé- dicos dos hospitais psiquiátricos a estratégia clínica e os passos fu- turos.
· Em casos de extremo risco, nós mesmos conduzíamos os pa- cientes para hospitais psiquiátricos. Para isso, realizamos um acordo com a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que nos permitia evitar o procedimento padronizado pelo qual os pacientes precisam passar por emergências psiquiátricas para obter autorização da cen- tral de vagas. Nesses casos, os pacientes são conduzidos em ambu- Iências ou viaturas policiais. Mas nós os levávamos em nossos car- ros. Atualmente o Programa conta com dois automóveis adquiridos com o dinheiro do Prémio David Capistrano, outorgado pelo Minis- tério de Saúde.
· Outra prática de grande valia feita em movimento eram as discussões de casos com os agentes comunitários que ocorriam nas idas e vindas aos domicílios.
Adentrávamos ruas e vielas e as pessoas e seus hábitats iam sen- do descortinadas durante nosso percurso.
Quando relatei os primeiros casos ao Professor Adib Jatene, ele ficou silente e disse: “tenho cinqüenta anos de experiência clínica e pergunto: o que um médico sabe de um paciente num consultório, comparado ao atendimento feito na sua casa?”
Assim como um atendimento é absolutamente mais rico quan- do realizado no lugar em que a pessoa mora e com as pessoas e a
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coinunidade com as quais convive, a discussão de caso realizada enquanto se caminha pelo território é muito mais rica e propícia a idéias e revelações singulares.
Nâo somente nós nos inspirăvamos; os agentes comunitários também escolhiam como pérolas retalhos de histórias, lembranças biogräficas e situaçöes passadas que podiam iluminar a escuridão de casos de extrema complexidade.
· As caminhadas dos deprimidos junto com os hipertensos, por prescrição dos médicos de família ou dos psicólogos ou psiquiatras das equipes de saúde mental.
· A procura de novos familiares, as idas aos fóruns para discutir corn juízes e promotores a situaçño de violência on de aplicação de alguma medida socioeducativa.
· As idas aos centros religiosos das mais variadas crenças para negociar com os representantes de interlocutores invisíveis" funda- mentais na composição da subjetividade. Aos fóruns da infància trabalhista, a procura de justiça e cidadania.
· A metodologia tern como um de seus pilares a discussão siste- mática de caso das equipes de saúde mental com as equipes de saúde da família. A esta prática o Ministério da Saúde den o nome de Apoìo Matricial. Nome pobre, a matriz evoca algo fantástico que é a mater- nidade, mas também um mecanismo fixo, deixando de contemplar um aspecto fundamental da prática que é o que se faz en movimen- to, como atender juntos e outros recursos peripatéticos.
A experiéncia de parceria da saúde mental e da saúde da família é uma máquina terapéutica em constantemovimento, e em cons- tante metamorfose. £rancamente peripatética.
“ Tob re İ fathan. “ Entrevista a Felícia Kriobloch”, in: Cu d erros de S uhjet1v1,íq - dc, n.* 4, Núcleo de Estudos da 8ubjetividade, PUC SP, primeiro e segundo semes- tre de 1996.
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A Clínica Artesanal
Utilizamos esta expressão por parecer a mais aproximada dOS procedimentos que desenvolvemos na atualidade com pacientes que, como referimos no início deste capítulo, não se adaptam aos proto- colos clínicos tradicionais.
is vezes, iniciamos o contato numa clínica psiquiatrica, OtitfäS
com a família on no domicíllo.
Saímos tambćm em passeio com o propósito de movimentar a relação terapèutica e de modificar qualitativa e quantitativamente a
relação.
Viajamos ainda com pacientes, vamos ao cinema ou nos encon tramos em lugares que eles escolhein.
Os percursos ăs vezes são poéticos; outras vezes, dramáticos,
quando não patéticos.
No último capítulo iremos problematizá-los.
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Capítulo 2
CAPS: ßUROCRACIA E TURBINAÇÃO
O primeiro Naps — Núcleo de Atençäo Psicossocial — foi o da cidade de Bauru. £u o conheci em 1986, ano de sua funda- ção. Estava instalado numa casa clara, liinpa e aconchegante, com espaços de convivéncia grupal. A equipe de trabalho era composta por jovens dirigidos por Roberto Tykanori, psiquiatra recém-chega- do de Trieste, Itälia, com o vigor e as idéias revolucionárias da Psi- quíatría Democrática. A equipe era muito unida, com objetivos de trabalho claros e disposta a inovações. Entre seus membros não trans- parecia sinal algum âe persecutoriedade.
Em 1978, houve um congresso no Rio de Janeiro organizado pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (Ibrapsi) que reuniu importantes institucionalistas de várias partes do mun- do: Fćlix Guattari, René Lourau, Franco Basaglia, Robert Castel, Gre- gorio Baremblítt e outros argentinos e uruguaios, Chaim Katz e ou- tros analistas brasileiros.
ßasaglia foi convidado a fazer uma conferéncia ri o Hospital Pe- dro Ernesto. Aquele homem alto de braços e gestos intermináveis e envolventes eletrizou a platéia transmitindo com fervor suas idéias e seus feitos. O diretor do hospital, que estava na mesa, disse que o que
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o ouviu inspirou-lhe a piada do marido que quando chega em casa encontra sua mulher transando no sofá e que toma a atitude de trocar o sofá. Basaglia se levantou, bateu na mesa e com dedo em riste dirigido ao diretor do hO5 ital disse: — “Estes são os que dian- te da traição cortam o próprio pau”. Depois do silêncio, uma ovação e o diretor do hospital se retirou do recinto. '
Desse modo, Basaglia foi disseminando por várias cidades brasi- leiras as idéias e o entusiasmo que iriam constituir o coraçiio da luta antimanicomial brasileira.
Tykanori passou um tempo em Trieste, trabalhando com branco Rotelli e a primeira geração de Psiquiatria Democrática; seu agen- ciamento com David Capistrano PiIho, então secretário de saúde de Bauru, foi decisivo para o avanço da reforma psiquiátrica brasileira. David, à diferença de outros médicos e outros políticos, não tinha nenhuma dificuldade epistemológica para entender que só se gera saúde mental combatendo os hospícios. Ao contrário, talvez por seu amor incondicional à liberdade e por seu grande conhecimento da saúde pública, vislumbrava isso com clareza maior que a de todos.
Foi na cidade de Bauru, portanto, porico tempo depois, em 1987, durante o memorável Congresso de Trabalhadores em Saúde Mental, que foi lançada a máxima Por uma Sociedade Sem Mani- cômlOS.
Em 1988, o PT era um partido nómade, seus dirigentes se dis- tribuíam pelo Brasil em vez de lutar pela ocupação e delimitação do
espaço. Foi assim que David Capistrano Filho foi a SantoS, CO/ d tarefa de coordenar a campanha eleitoral municipal. Telma de SOUZd foi eleita então prefeita e David nomeado secretário da saúde.
No início de nossa experiência de Intervenção na Casa de Saúde
Anchieta, houve o ingresso de um verdadeiro exército sanitário para cuidar dos pacientes que se encontravam em estado deplorável. Nes- sa época, as reuniões do secretário com seus colaboradores aconte-
ciam no manicômio.
Uma das primeiras atitudes durante o processo de intervenção foi pregar um mapa da cidade de Santos numa parede do hospício
para colocar a cidade na cabeça de todos nós.
À medida que se quebrava a ordem manicomial, ia sendo criada
e posta em prática uma nova organização múltipla que Tykanori chamava 9o(inotnis. Uma das primeiras e fundamentais medidas to- madas foi agrupar os pacientes nas diversas enfermarias, segundo a sua região de moradia — orla, centro, zona noroeste, morros.
assim, participamos também do nascimento dos Naps, em San-
tos. O primeiro, o da Zona Noroeste, era conduzido por Fernanda Nicácio.2 Numa sexta-feira, reunidos cOm Marcos Calvo, jovem mé- dico, diretor da unídade de saúde daquela região popular de Santos, tomamos a decisão de montá-lo e, quinze dias depois, já estava ins- talado o primeiro Naps de Santos no prédio do centro de saúde.
Naqueles dias, OS funCSOnários do Naps iam ãs associações de
bairros, às igrejas, aos sindicatos, para explicar o que iria acontecer e
' Esta anedota nte foi conte na por Eduardo Losicer, psicu nalista e a nalista ins-
' A terapeuta ocupa cional Ferna nda NI Cfi6iO,
 (
na
 
Coordenação
 
de
)antimanicomial e da
titucio nal do gr upo dos arger tin os exilados po1í ricos qu c, associados a parceiros brasi leiros, fun daram o Ibrapsi. Losicer foi um dos que acompanhou Basaglia ao I-Iospital Pedro Er nesto, da Universida de do Estadc' do Pi o de Janeiro (Uerj) .
de de Sao PdU l O, foi urna d as principais líderes do movimento exper tência de Santos. Am s mais tarde, 6 «hs tituiu Ty9úfio f Í
Sao de Mental da Prefeitura de SantoS.
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conversar com as pessoas. Nas reuniões, antes de iniciar a discussão, era passado um filme em VHS no qual aparecíam cenas ocorridas no dia 3 de maio de 1989, com Telma de Souza entrando no hospício ao Iado de David, de barba negra, Tykanori e outros protagonistas daquela gestão. O vídeo se chamava A Batalha da Cidadania.
Em meio aos horrores do hospício, podíamos ver algumas inter- nas gritando: — Telina, você veio nos libertar!
O vídeo começava com uma voz em oJ dizendo: — “Interven- ção na Casa de Saúde Anchieta”. Lembro -me de té-lo visto uma sez na praça demonte ao Palácio José Bonifácio (paço municipal), du- rante uma mobilização em defesa da Intervynçào e do Didrio O/ctaf, que também tinha sido suspenso por determinação judicial. O D. O. Urgente tinha sido transformado num jornal e circulava nas bancas da cidade. Era uma tentativa de romper o ceico da mídia local que hostilizou a experiência de modo sistemático.
As equipes de trabalho das enfermarias do hospital, uma vez in- tegradas e intensamente relacionadas com os pacientes, preparavam se para sair do hospital com seus pacientes e mudar-se para o Naps.
O Naps da Zona Noroeste iniciou suas atividades já atendendo em regime de 24 horas e contando com seis camas.
Os técnicos formaram-se em tempo recordo. Muitos deles, antes de trabalhar no hospital Anchieta, exerceram funções de psicólogo ou assistente social em escolas, onde diagnosticavam crianças com problemas de aprendizagem, com o objetivo de classifica las como treinãveis, semitreináveis ou não treináveis e decidir se iriam ou não para escolas especiais.
A grande maioria dos funcionários municipais trabalhava nas escolas sem controle, sem diretrizes e com baixíssimos salários. Como
sempre, esses valores eram compensados com a diminuiçao de ho- ras de trabalho.
dentistas e enfermeiros foram convocados para traba-
Durante os
nário: esse período serviu para que tais pessoas entendessem a inu- bilidade de suas ações.
Quando convidadas a trabalhar no hospício (na época, em ebu-
liçao) estavam bem mais dispostas. Em certa oportunidade uma psi- cóloga se apresentou ao interventor, Roberto Tykanori e disse:
· Sou psicóloga, aceito trabalhar aqui no hospital. Onde é a a s
· Não tem sala.
· Vàao pátio do hospital e invente alguma coisa. Meia hora depois, a psicóloga voltou chorando:
Não consegui inventar nada, a não ser enfiar-me embaixo de uma mesa, pois uma louca encasquetou” comigo.
Nessa hora chegou o diretor clínico, Willians Valentini, e aco-
lhendo a, levou-a novamente para o pátio e com uma tesoura mos- trou-Ihe como se cortaram unhas.
Dias depois chegou uma jovem psiquiatra que também foi cor-
tar unhas no pátio feminino. Depois de um bom tempo a paciente lhe perguntou:
· Qual sua função aqui no hospitali
· Eu sou médica psiquiatra.
· Não pode ser, vocé me escuta!
Foi assim que esses técnicos passaram por uma experiência de desconstrução de sua formação profissional e de sua subjetividade e por uma associação a outros mentaleiros que aí estavam pat a prota- goiiizar o que Félix Guattari chamou, quando aí esteve em 1990, de quarta revolução psiquiátrica. As mudanças não eram só de paradig- mas ou de formas de pensar, de uma ou outra maneira a vida de cada um dos protagonistas se transformou.
Por outro Iado, como o primeiro Naps foi instalado no prédio de um centro de saúde, como se poóe imaginar, enfrentaram-se muitas dificuldades de convivéncía com os profissionais de outras ãreas de saúde e com a população. Essas dificuldades foram motivo para v3- rias discussões e efeitos demonstrativos.
Numa oportunidade, um paciente, em estado de excitaç‹ao psi-
Outro centro, que podemos chamar de precursor dos Caps é O que leva o nome de Luiz Cerqueira, um dos primeiros a serem fun- daôos em São Paulo e no Brasil. foi a ijltima ação da gestão de Ana Pitta como coordenadora de Saúde Mental do Estado de Sito Paulo. Programado e materializado de maneira mais “planejada” que os de Santos, foi, por assim dizer, a superação do modelo do ambtilatór io de saúde mental. AU pela feliz atuação de muitos decses ambulató- rios, como o da Vila Brasilàndia, entre outros de São Paulo, fOÍ lTlOS- trado onde se encontrava O límite do modelo e a necessidade da criação de centros mais complexos, principalmente para poder dar uma assistência integral a pacientes psicóticos.
O famoso Caps da Rua Itapeva, embora criado há quase vinte anos
e nâo funcionando ainda em regime de 24 horas — evidentemente
comotora e intensa fúria, estava, sozinho, virando um	qutnúo numa
não por intenção de seus criadOTflS e trabalhadore—s
já nasceu com
rua próxima ao Naps. Uma viatura chegou ao local e vários policiais tentavam contê-lo com dificuldade, quando apareceu Miriam Soa- res, uma terapeuta ocupacional bem franzina. Ela pediu para volta- rem o paciente e o conteve apenas com afeto, levando-o de volta ao Naps a pé.
Os trabalhadores de saúde mental de Santos tornaram-se ver- dadeiros terapeutas: destemidos, dispostos, apaixonados. Não esco- Ihiam pacientes nem pretendiam que eles se adaptassem a suas cor- porações, modelos ou grupos de pertinência.
 Os Naps de Santos nasceram dotados de uma alma antimani- comial e com vontade de experimentação. E foi exatamente essa alma que os administradores que sucederam os governos de Telma de Souza e de David Capistrano Filho buscaram sistematicamente minar.
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uma vocação substitutiva e não complement ar dOS fTlartÍCÓlTiiOs.
Muitos outros Naps que não conheço nasceram e se desenvolve- ram como núcleos de irradiação da cultura antimanicomial. Entre os que, de uma ou outra forma, conheci e permanecem sintonizados com a metodologia territorial e substitutiva acham-se o da Vila Bra- silàndia e outros em São Paulo e Florianópolis, os do Ceará, particu- larmente de Sobral e Quixadá, e os pernambucanos de Recife, Cabo de Santo Agostinho e Camaragibe, os de Sergipe, os de Campinas e os Sersan (Serviços de Referência em Saúde Mental) mineit'OS. ..
Mais tarde, f uncionários do Ministério da Saúde preferiram ado-
tar o nome de Caps em vez de Naps, ou seja, preferiram centro a núcleo.
Particularmente, prefiro o termo ri úcleo pelas referências ao
modelo da célula e porque o núcleo Sugere um centro que se expan-
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de também parafora. David Capistrano Filho era mais radical e o chamava de núcleo de apoio e nao de assistência psicossocial.
Nesse caso, näo se tratava de ser contra a palavra ossisténcia, que significa estar ao lado do outro, mas das diversas formas tecnocrá- ticas, burocráticas e coorporativas em que a assistència acaba de- caindo.
Um dos grandes obstáculos dOs Gaps e a centralizaçäo em si mesma e sua pouca abertura para o território.
Em 1997, conheci um Naps na cidade de Goiània, que funcio- nava como uma clínica de psicologia infantil priVada: atendia so- mente crianças e quem se adaptava aOS toCedimentos qtie eles ma- nejavam, isto é, aS mais graves não podiam ser atendidas e muito menos jovens ou adultos com severos transtornos oti outras pessoas em grave sofrimento psíquico.
Na cidade de SñO Paulo, tivemos igualmente a experiência dos hospitais-diá mufliCipais, durante a gestäo da prefeita Luiza Erun- dina, ao mesmo tempo que equipes de saúde mental se abriam para a comunidade ao se instalarem nas unidades bäsicas de saúde on nos Ceccos (Centros de Convivència e Cooperativas) operando em parques públicos.
Em alguns desses hospitais-dia, era preciso preencher tantos re- quisitos e se ada{etar a rotinas täo rígidas que tornava muito difícil o acesso das pessoas. Alguns eram mini hospitais de psiquiatria que funcionavam com muitos profissionais e poucos pacientes, outros estavam inseridos no território e com valiosa atividade grupal.
Nă prática, pude observar que qualquer instituiçâo que agru-
JO doentes mentais tende a cronificar-se. Criain-se coletivos altamen-
te repetitivos: providenciam sintica, televisão, ofiCinas adjacentes, co-
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mida, por exemplo, mas quando há uma crise busca-se logo o psi-
quiatra.
Na realidade, o maior problema de que os Caps padecem mani- festa-se quando os profissionais escolhem pacientes e buscam adap- tá-los ăs especialidades, aos modelos terapêuticos aprendidos com seus terapeutas.
Ao se iniciar a instalação pelos Caps 1, isto é, pequenos grupos de profissionais desconectados do sistema de saúde e sem possibiIi- dade de priorizar o cuidado dos pacientes mais dificeis, houve uma tendéncia preventivista.
No meu modesto modo de entender, o Ministério da Saúde de- veria ter começado pelos Caps 3, ou seJ’a, pelos destinados a substi- tuir os hospícios, que funcionem 24 horas por dia, com possibilida- de de agir na complexidade do território e oferecer camas para hospi talidade diurna e noturna.
Mas o certo é que a maioria dos Caps não funciona pensando na cidade, e em seus problemas mais candentes, e muito menos se preo- cupa com a diminuição das internaçöes psiquiátricas, dos suicídios, dos homicídios ou cfc outras formas de violência.
Nesse caso, não cabe aos terapeutas procurar novas estratégias clínicas: os pacientes é que devem adaptar suas demandas ăs ofertas dos serviços.
Tal linha de ação foi criando uma corrente tecnocrática e buro- crática: os Caps envell ecem prematuramente, segmentarizam-se, sua vida torna-se cinzenta, infantilizada e os profissionais são regi- rlos pelas dificuldades e se enclausuram em diversas formas de cor- porativismo. 0s recursos se reduzem, se iepeiem e as equipes, como dantes, voltam a centralizar-se no psiquiatra. Retornam os ambien-
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tes sombrios e o odor de hallopelidol que caracteriza, pelo cheiro, o hospício ou a clínica.
Um Caps burocrático é um Caps que cheira mal.
Diante dessa situação, penso em três maneiras de turbinar os Caps:
A primeira é a recolocação, o reposicionamento ou o retorno ao seu sentido original: atender de portas abertas o que o hospital psi- quiátrico ateudia de portas fechadas.
Há hoje, no Brasil, milhares de pessoas que vivem submetidas ao
embrutecimento manicomial.
O Ca S, COITIO qualquer dispositivo de saúde mental, deve, pri meiramente, atender os casos mais difíceis, em que haja risco de mor- te, maior sofrimento ou maior inconveniente para a comunidade.
A segunda é considerar todas as ações de produção de saúde men-
talà luz do relacionamento com o Programa de Saúde da Famíiia.
Hoje, no Brasil, cerca de cem milhões de pessoas são cobertas pelo Programa de Saúde da Fam:lia — PSF. S3o cem milhões de brasileiros que recebem mensalmente a visita de um agente comu- nitário de saúde.
Esses trabalhadores afetivos — segundo a denominação de Toni Negri e Michael Hardt’ — são, ao mesmo tempo, parte e liderança comunitária e membros da organização sanitária. Eles promovem saúde, cuidam de situações básicas e são a ponta de lança para o exercício de uma microssociol ogia de fundamento vital e uma prag- mática solidária.
Pa ra Au ton 1o Ne grJ e Michael H61*dt 08 tra balb adores ijletivos e os qtie de-
Os agentes comunitários de saúde descobrem pessoas em prisão domiciliar, psicóticos graves que não chegam aos serviços de saúde mental ou as que estão com problemas para os quais a psiquiatria não está preparada, como os violentados, os ameaçados por trafican- tes ou por gangues, entre outros.
Esses trabalhadores de saúde e habitantes do território fazem parte de equipes compostas por médicos generalistas, enfermeiros de família e auxiliares de enfermagem que cuidam de uma população fixa com a qual desenvolvem nina relação continuada de cuidado.
As equipes do PSF, nas unidades básicas, realizam atividades grupais e o que se denomina acolhimento, isto é, uma escuta do sofrimento das pessoas de sua área de atuação. A estratégia da família é uma práxis na qual a saúde e a saúde mental se articulam de tal modo que saúde e saúde mental chegam a fundir-se.
O vínculo continuado que estabelecem e desenvolvem os inte- grantes das equipes de saúde da família com as oitocentas ou mil famílias (umas quatro mil pessoas) gera angústia nesses trabalhado- res de saúde. Angústia essa que a conhecem os trabalhadores de saú- de mental.
As equipes de PSF conhecem de modo progressivo as biografias
de seus pacientes e solicitam apoio para suportar as relações com pessoas que tradicionalmente são atendidas pela saúde mental.
Desse modo, as equipes de saúde mental que operam em re- giões cobertas pelo PSF, não podem deixar de questionar-se sobre as relações com essas outras equipes, pois ambas tratam dos mesmos pacientes e sao funcionários do mesmo Sistema único de Saúde.
Nesse sentido, formulamos estas questões que nos parecem im-
.senvolvem se u tra baIho er
casa 8 b •' IHeio du indo rm ática compõe	novo
proletaria do. Antonio Negri 8‹ Mi chael Harcl t. liu pério. Rio: Record, 2ooo.
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portantes para a atualidade e um futuro imediato dos Caps, a saber:
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· O Caps é um serviço de referencia? De COntra-referéncia.
· ä1 COITIO Ha assisténcia básica, a clínica praticada é regida por determinantes epidemiológicos?
· Qual a responsabilidade sobre as pessoas da área de abrangên- cia internadas em hospitais psiquiátricos ?
· O Caps é um local de tratamento centrado no seu espaço inter- no e nos procedimentos terapêuticos intramuros? Ou busca ativar os recursos da comunidade?
· Qual a importància da açäo das equipes de PSF para ativação desses recursos, para inclusäo das famílias, dOS vİzinhos e das diver- sas atividades aí deserlvolvidas?
· Como a relação Caps/PSF pode inserir-se no campo da cultura e agir no territõrio existential?
· Os profissionais de Caps esperam do PSF uma organização com potencial de inviabiliZar a ação por excesso de encaminhamen- tos ou um conjunto de companheiros com potencial de parceria?
No nosso modo de ver, a açäo combinada, a socialização do co-
nhecimento e a distribuição de saberes têm a poténcia necessária para arrancar os Caps de sua reclusäo tecnocrática e de sua tristeza burocrãtica.
Conduzidos pelas mãos de agentes comum itários e pela discus- SEO COm os outros membros das equipes de PSF, os trabalhadores de saúde mental que atuain nos Caps podem ser ativados, e essa ativa- ção é uma poderosa arma contra a cronificação. A associação das equipes de trabalhadores de saúde mental com os profissiorlais de saúde que atuam na estratégia da farriÍlia recoIoca-os no território.
Sua açäo pode ser intensificada porque o centro da ação terapéu-
tica e COlocado no campo existencial, no qual as relações de afeto, de
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cooperação e de produção de saúde mental se exacerbam. A clínica é obrigada a operar oiide os protocolos conhecidos já fracassaram, como no caso da drogadicção on de violéncia familiar e comunitária.
Articulado on nño (nem todas as regiões estäo cobertas pelo PSF), um Caps turbinado é um Caps paradoxal.
A reforma psiquiátrica, longe de reduzir-se a bandeiras ideoló- gicas, traz para a clínica uma exacerbação de complexidade. A con- sulta psiquiátrica, a entrevista psicológica e a visita domiciliar, os grupos terapêuticos e as oficinas de arte e de produçäo são recursos pobres para o atendimento de pessoas que näo demandam, que não possriem cultura psi ou que se violentam de diversas formas.
As seções de família em domicílio, as atividades ocorridas no território sem a participação direta de profissionais da saùde mental, as discussões de caso realizadas no percurso que vai da iinidade de saúde até o domicílio dos usuários, os agenciamentos produzidos com organizações de cooperação, religiosas ou com produções de arte sâo novos settings terapêuticos mais eficazes e sintonizados com as novas formas de doença mental.
Por paradoxais queremos dizer que sua prática ocorre, ao mes- mo tempo, dentro e fora das unidades de saúde, no território geográ- fico e no território existencial, no domicílio e no serviço. . .
Para Winnicott, o setting analítico ć um espaço paradoxal, den- tro do consultório e fora do mundo interno. A experiência de des- construção manicomial nos ensinou a importância do dentro e do fora do estabelecimento, das bordas como espaço privilegiado de produçäo de subjetividade cidadã.
A idéia parece fértil para a fundamentaçño do Caps que tern um pé no território e outro no serviço de saúde mental; uma àncora no
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Caps e outra na Unidade Básica de Saúde e no bairro, para que o
-		tfôbalhador de saúde mental navegue pelos espaços-temgos da pro- dução da doença e da saúde mental.
Ao aceitar o caráter paradoxal, a equipe do Caps aposta sua po- téncia de produção de saúde mental e de saúde, incluída a saúde dos
'	próprios trabalhadores de saúde mental.
A saúde mental operada no território é uma práxis complexa,
em OpOSiçãO à Simplificaçã que faz funcionar um manicómio.
OS trabalhadores de saúde mental deveriam sempre lembrar que
razão de sua existência é o manicômio.
O percurso clínico pelo território geográfico e pelo território existencial com as pessoas que pretendemos ajudar imprime uma intensidade e uma vertigem à experiência que funciona como um aj {jdOtO DO CO@Of ôtÍViSmo e à estreiteza dos profissionais.
A esse mergulho nas águas da complexidade denominamos Caps
turbinados. Turbinados porque, dando prioridade às pessoas que estão em SiÉUãÇãO fnãls dif/cíI, em maior risco de morte ou de vio- lência, a quem está em grande dificuldade de desenvolvimento pes- soa]e social ou de exercício de cidadania, produzem saúde mental, de modo intenso, complexo e sempre renovado.
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Capítulo 3
CONVERSA COM DOMICIANO SIQUEIRA SOBRE REDUÇAO DE DANOS'
Antonio Lancetti — Você coordena o projeto de redução de denos, em Porto Alegre, há mnis de dois anos, não é?
D o si C I ANO S IQ UEI RA — DO is du os.
Antonio Lancetti — Você pode contar como estó sendo essa expe-
riência?
D ou iC JAN O SIQ UEIsx — Bem, a idéia do projeto de redução de danos surgiu em dezembro de t995, quando duas pessoas da Secre- taria de Saúde e da Secretaria do Meio de Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul foram a Brasília para escrever esse projeto. Em janeiro de 1996, fui chamado para participar desse grupo e formei então aque- le que foi considerado o primeiro grupo de redutores de danos que, à época, não eram chamados redutores, mas monitores. Durante cerca de seis meses nós nos concentramos em discutir o assunto, em conversar sobre isso. O grupo era composto por mais ou menos oito pessoas, a maioriaex-usuários de drogas, que chamei por meio da Cruz Vermelha, com a qual tinha entao vínculos de trabalho.
' Esta conversa aconteceu em 1998, quando o projeto se achava em pleno fun- cionamento e dando os primeiros fm tos.
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Até agosto de 1996, ficamos trabalhando em torno dessa discus- são sem ir a campo. A partir de setembro de 1996, então, é que a gente começou a fazer o trabalho de campo, por conta do entusi s- mo adquirido numa das reuniões propostas pelo Ministério da Saú- de, no Rio de Janeiro. Foi essa reunião, no Rio de Janeiro, qtie jun- tou representailtes de seis projetos b£ãsileiros, que ativou muito, rios impulsionou, nos cstiirulO It a começar. Em seguida, houve o I Con- gresso Brasileiro de Prevenção das DOgnças Sexualmente Transmis- síveis/aids, em Salvador, e aí eu fiz o primeiro trabalho de campo em redução de danos; ISS tudo em outubro de 1996. Voltei para Porto Alegre animado e, corri o grupo, COmeçainos a fazer plantões nas tinidades de saúde. A unidade de saúde da ãrea de abrangência do projeto foi a de São José. Esses plantões na unidade dC Saúde agita- Fáf11 muito o grupo e, como ele era formado, na maioria, por ex-
 usuários de drogas, muitos começarãrri a ter medo do trabalho, medo
da eyperiéncia e abandoiiaram a proposta. fiu con tintiei o traba-
Arito'nío ancetti °— Isso ed Que período?	“
Do u i CI ANO S1Q U EI R	— De outubro de 1996 a maio de 1998,
ou seja, um ano e meio.
AL — Eu ecompenhei seu trabalho precisamente naquela tegiâo, naquela fovela, naquele bairro que se chama Sào José, nâo é?
D O M1 C] A N O SI Q UE I R A — Campo da Tuca.
Antonio Lancetti — í, Campo da Tuca. fiquei com duns ou três impressôes muito fortes. Bom, a primeira é mais evidente: a troca de serin- gas me impressionou nào somente pela quantidade de seringas trocadas mas pelos lugares escolhidos para colocar as caixas coletoras — um ponto de ônibus, um domicílio ou um her — ou sejD, eram lugares de destaque, não era um lugar qualquer. Era aquele lugar designado para a coloca(âo da ceixa coletora, cento? O foto de não ter visto seringas no chão, me
impressionou; enfim, pelo jeito, evidentemente estava funcionando.
lho. .
É meu jeito de sei. Começamos a estabelecer plantões de
Mas, além disso, hú duas coisas que também me imprefsionaram.
°" J*O, q tre aconteciam à tarc{p aprendendo como fazer e dando
seqüência ao trabalho.
USO foi mais ou menos em outubro de 1996. Eu me lembro bem que, naquele mês, nós trocamos 122 seringas. Um ano e sete meses depois, nós trocam os s. 000 seringas. E-ntão, eu acho importante lTlOStrar esses dois pósOs — o primeiro més e o úí timO 4Ttés — e a IO Orção foi crescendo sempre sem parar. Hoje nós estamos come- morando dois anos de projeto e aproximadamente 40.000 seringas fO1‘arLt distribuídas, com Il t1í1 QFO Of§ãO de retorno de 65% a 70% d€laS, que consideram os como seringas trocadas.
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Uma delas é a adesào de populoçâo e tuda isso, mas, por conta da disJifiuiçõo de seringas, existe uma edna*f*! •• nitária, vamos Chamar de informal, nào sei se vocé chamaria de formal ou de informal. Mos eu
vi que muitas pessoas pergu ntavanl: “o gue %f•*” “ O m*I voCino meu filho!”¡ “como cuido da minha mulher ou de ume «›°^f°"°*Tl ÕrOTiQHi- ted”. Enfim, vi que hó uma intervenção tin vida da comumidade, nina
intewen(ãa sanitária ne vida dessas pessoas, que não está, talvez, dito de maneira explícita no programa. £ a outio é como funciona o gruí'O de trabalho — grupo que acredito ser semanal, não sei se é semanal — que se realiza com os redutores. Agrande maioria é composta por pessoas que paraiam de usar drogas e em nenhum momento está dito no programa
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que o objetivo central do prog«me é a abstinência. Entào, é ytfj pp0 gpp. ma que produz uma dama a relação do sujeito com a droga, sem optar pele via da abstinênc¡a.
D OMIC JANO 31Q UEIRA — A primeira questão que a gente pode comentar é a respeito dessa saúde informal ou formal.	gente foi percebendo, no trabalho de campo, alguns processos que a comuni- dade utiliza e entendendo por que eles utilizam tais processos. Por exemplo, existe um conceito muito comum entre todos nós que são bOas as pessoas que acordam cedo, entram às 8 e saem às 18 horas do trabalho e voltam pra casa, e qtie não são boas aS pessoas que acor- dam muito tarde, às 10 da manhã, e deitam às 2 da madrugada. Nas favelas e nas vílas, pOr COrlta do jeito deles viverem, os horários são diferentes tambéili, as pessoas não dormem cedo nas faVeIas; as pes- SOáS dormem tarde, é muito agitada a vida dentro de uma favela, portanto as pessoas não acordam cedo. Por isso, se elas quiserem ir a um posto de saúde, elas têm de entrar no sistema, que é chegar lã antes das 7 horas da manhã, pegar uma ficha e aguardar o atendi- mento. Às 7 da manhã, grande parte da vila dorme profundamente e bgfrt mais tarde vai estar acordada. Então eles não tém, digamos, posto de saúde. O posto de saúde está ali perto, mas não serve para eles e, muitas vezes, nâo é só por causa de preconceito dos técnicos de saúde, que atendem bem ou atendem mal pessoas com aids ou pessoas que usam drogas; é porque o próprio sistema de horário de funcionamento não combitlít COm o horário em que eles buscam o atendimento. Entâo, eles simplesmente sabem que aquilo não é para eles; que o posto de saúde é para quem lem o mínimo de desejo de ter saúde, que se sujeita a horários predeterminados, que se sujeita a
regras básicas de higiene — e eu não estou dizendo que isso está
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errado, mas que se sujeita a isso — não dá para se sujeitar bem a essas coisas numa vila e numa favela, porque lá você tem que se sujeitar a outros critérios, muitas vezes, critérios impostos pelo tráfico de dro- gas, pelo crime organizado, e você não pode dizer não para isso, porque senão você vai ficar falando sozinho.
Entender, então, que a vila funciona desse jeito, que a favela funciona dessa forma, é entrar em sintonia com eles. Estando em sintonia com essas pessoas e com e8se8 processos, elas começam a buscar na gente uma alternativa para os problemas que tém. Enfim, a gente nunca pode responder para alguém: “mas você pode buscar isso ali no postinho de saúde”. Essa resposta está invabilizada, porque essas pessoas sabem que o postinho não é para elas; o postinho de saúde não é para as pessoas miseráveis; os postos de saúde não são para as pessoas que, de alguma forma, estão ligadas ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Quando eu falo “ligadas ao tráfico de drogas ou ao crime organizado”, não estou dizendo que são crimino- sos ou traficantes; os pais, as maes, os filhos, as esposas, os maridos das pessoas que estão nisso também fazem parte dessa rede. Essas pessoas, então, acabam buscando nos redutores a possibilidade da vacina; a possibilidade de encaminhamento para as mais diversas especialidades, que não seriam apenas por dependência química ou aids; para tirar documentos; tratar da aposentadoria; enfim, uma série de alternativas.
Antonio Lancetti — Se a gente tentasse conceituar esse tipo de inter- venção, vocês trabalhariam só a partir da autonomia dessas pessoas. Você parte da idéia de que elas não se submetem a uma ordem social (horário, trabalho ), estão fora do mundo do trabalho forma( não estâo
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OCostumadas a respeitar certos horários, mas a outros. E vocês não vão dizer para essas pessoas que elas precisam se cuidar e, no entanto, a relação com elas gera uma vontade de cuidado seja por elas, pelos filhos, pelos vizinhos, nào é isso?
D osi ci ANO	IQ UEIit A — Eu tento h'uscar a raiz desse proble- ma para poder entender isso. Entendo assim.- nós vivemos numa sociedade que é feita e que existe para pessoas que têm o que vender ou têm como comprar. Quem não tem o que vender e não tem como comprar, não dá; da sociedade não faz parte, a sociedade n3o é para essas pessoas. Os miseráveis, os pobres, os favela dos, esse grupo de pessoas, que é enorme e que está na periferia das cidades ou na peri- feria da alma da gente, não têm o que vender e não tém comocom- prar nada, então a sociedade não é para eles, e por isso eles estão fora. A gente sabe que eles podem não entender isso com tanta clareza, mas sentem isso com intensidade, ou seja, que vivem e que a vida deles está excluída de um sistema que não existe para eles.	única coisa que se pode dar a eles como nina possibilidade de ser igual aos outros é que, se eles tiverem alguma coisa para vender e, portanto, vendendo, tém como COmprar outras coisas. Mas a úniCa coisa que se coloca na mão dessa camada para vender é a droga; essas pessoas a vendem para poder ter algo, comprar aquilo que as pessoas que não vendem drogas também querem comprar: videocassetc, televisão, lazer, escola e tudo o mais.
Antonio Lancetti — £ a droga nào seria umQ maneira delas se relacionarem com pessoas de outras classes sociais? Pessoas que não mo- YtflTt na fayela, mas que vão à favela comprar drogas?
Õ OMICI ANo SIQ UEIRA — Exatamente. Além da droga possibi-
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litar esse contato com pessoas de outras classes sociais, e aí entra o nosso trabalho também, nós fomos uma opção além da droga, elas passam a se relacionar com outros mundos. De repente, nós entra- mos na vida dessas pessoas sem vender drogas, sem usar drogas, sem fazer do uso de drogas, o nosso carro-chefe. Nós somos pessoas com as quais elas se relacionam sem tirá-las do grupo onde estão, da vida em que vivem e não tentamos trazé-las para o nosso meio; a gente simplesmente se relaciona com elas. Acho que essa intimidade gera- da pelos nossos princípios, eu digo assim, uma não-priorização na questão da abstinência, ou seja, nosso princípio é não fazer guerra contra as drogas, e isso também não fica explícito em palavras, mas entende-se por que isso está dentro de nós.
Nós não estamos entrando nessas comunidades para fazer cam- panha de prevenção ao uso de drogas ou campanha de combate às drogas. Estamos ali, em primeiro lugar, para nos aproximarmos des- sa camada da população; aproximando, aí podemos intervir, pode- mos propor técnicas que estão relacionadas com uma parte muito íntima da vida de cada um, que é a sexualidade e o uso de drogas. Trocar seringa e dar um preservativo para alguém é mexer em duas partes da vida mriito sensíveis: a pratica sexual e o uso de drogas. Normalmente quando uma pessoa troca uma seringa, ela està dizen- do que usa drogas injetáveis e isso é muito duro, muito difícil, por- que usar drogas injetáveis com toda a propaganda terrorista que se fez. . . Só o fato da pessoa se apresentar conto usuária de drogas inje- táveis, já traz dois rótulos para ela: bém de ser discriminada pelo tipo de uso de droga que faz, provavelmente tem aids. Então, esse tipo de pessoa é altamente discriminada.
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Atitonio Lancetti — Vocé disse que um princípio consiste em aceitar os pessoas do jeito que eles são, respeitd- las pelo fato de serem persons, sejam jovens, velhas, mulheres, homens, traficantes on policiais.
A relação que vocês tèm com os traficantes me impressionou muito, no sentido de que cxiste um respeito da parte deles, um livre tránsito nessas vips, vocés tern pcusnJo a respeito disso!
D OMICiAN G Ğ I Q Ufi isA — Há respeito por parte dos traficantes de drogas e respeito também por grande número de policiais, muitos dele6 moradores das fascias também. Nós temos esse apoio impIíci- to, silencioso, de ambas as partes, como terri os mm apoio silencioso também de muitos freis e freiras que trabalham nas vilas. O coman- do da polícia é contra; a hierarquia da igreja, a cúpula da igreja, também é contra; são contra atć mesmo ä distribuíçäo de preservati- vos. Mas, na ponta desses trabalhos estão as pessoas que sabem que esse trabalho funciona e é importante.
NÓs temos um born relacionamento tanto com esse grupo de policiais que atuam nas vilas, como também com quem eu chamo de freis e freiras, porque são os que não fazem parte da cúpula da igreja, mas que estüo lnseridos na vida das favelas e com o tráfico de drogas também, na figura de seus traficantes. Eu acho que o born relacíonainento que a gente mantém e até, voltando um pouquinho, quando a gente vaí com esses princípios para a favela e para as pessoas que moram nas favelas, a gente vai muitas vezes porque passa a gostar dessas pessoas, porque antes do que fazem, nós as enxergamos.
Quando a gente estabelece uma troca nesse plano, näo é só vocè que gosta do outro, mas o outro também passa a gostar de você.
Dentro desse princípio de troca de sentimentos, de respeito hu- mano, vamos chamar de amor, eles passam a ter saudades da gente.
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Esperam, então, com ansiedade o dia em que os redutores väo para o campo porque, naquele dia, năo vão técnicos para o campo, väo amigos para o campo, e todo mundo recebe bem os amigos. Ébom saber que vocé pode sair daqui, desse restaurante onde nós estamos, e visitar um amigo seu que mora Iá em Moinhos de Vento; otl lá flO Morumbi, em São Paulo; ou então (T lá@ô$Ø a vila Brasilàndla, em São Paulo, porque vocè tern um amigo que mora lá na favela; on ir lá para via Campo da Tuca, porque vocë tern um amigo que mora lá. Esse amigo vai abrir sempre caminhos para nós, para qualquer coisa que precisarmos, as pessoas dão aquilo que tèm. Se seu amigo rico abre certas portas, ecu amigo pobre também abre outras OttáS. Essa troca,
esse vínculo que possibilita essas trocas, é justamente o que nos per-
mite atuar, intervir e implantar um projeto dessa natureza com suces- so. Porque nós iiño estamos lá, como a gente costuma dizer, de jaleco branco, como profissional de saúde, en estoo lá como o Domiciano. Mesmo que essa estratégia não seja a lTlais adequada para os padrões de saúde pública ou de convivénclä SOCíal, é assim que tern íiincionado. Foi assim, estabelecendo um laço de amizade pessoa1
mesmo, que nós passamos das 122 seringas trOCädãS há um ano
meio atrás para as 5.000 no mês passádo, com tendéncia a aumentar cada vez mais. Eu vejo esta como uma possibilidade ùnica para ä implantação de um projeto dessa natureza. Ê tratar as pessoas não pelo que elas tëm ou pelo que aparentam, mas pelo que elas säo
como seres singulares.
Antonio Laiicetti — O núcleo de preocupaçăesm 0İs concentradO, äO men modo de ver, se refere a uWO 5ituaçäo que poderia ser enuticinda d0 seguinte maneirD.' tradicionałinente, as estratégias teropéutiCo5, OH de
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tratamertto de pessoas depertdentes
sào pensadas em torno da noção de desintoxicaçõo. Pensa-se que, inter-
rampendo de maneira violenta o uso, internando alguém ou até p ivan-
do-o de sua liberdade, seria uma via possível de resolver o problema.
' ' uma guerra cont a ’a drog°a e eu gosto de chamam a estratégia da Red°u- Nâo de Danos como uma inje ‘• O de vida na vida desssi pessoas. . . Per- gunto, entôo: atualmente, o Programa de fied• f*O de Dnnos de Porto
entanto, tenho obsewado várias
d05 dttrayte nove meses em
No
experiências em que jovens sào interne-
Alegre conta com quantos redutores, com quantos agentes comunitários?
L desses a8entes comunitários, quantos deles sõo ex-usuários de drogos? E
dY0 tfs, E lá se desenvolve o
%8€tIdOs› para afastá-l Ds do mundo das
Ckãf'tftfd0 “método dos doze pessos dos alcoô-
uontos deles e etivamente pararam com o uso das drogas? Embora iiêo
seja um objetivo explícito, pergunto tambêm se existe alguma idéia o
,’ que basicamente consiste em criar um sistema de pro- abstinência e de reconhecimento de sua Jogoezo, pelo
fato de que o sujeito depende de um produto químico.
WEnhO ouvido relatos de jovens que fazem
 50H 6ICO’,’ que rezam nào sei quantp$ p
Tenho visto muitos meninos que depois de nove meses saem
respeito disso?
D O M I CI ANO S1 o U LI RA — Aqui no nosso grupo, no projeto de Porto Alegre, eu acredito que nós temos, em média, quinze redutores de danos trabalhando e mais ou menos de vinte a vinte e cinco agentes moradores, como nós chamamos, que são pessoas das próprias comu-
llÍt08, C0t'tt um terço pendurado
gordi-
nidades que se interessam pelo trabalho e começam a desenvolve-lo.
Explicitamente, claramente, nós podemos

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