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ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Maria Gisele Canário de Souza Welder Lancieri Marchini CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz Prof.a Tathyane Lucas Simão Prof. Ivan Tesck Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2017 Ficha catalográfi ca elaborado pela editora do grupo UNIASSELVI – Indaial. 220.07 S719E Souza, Maria Gisele Canário de Elementos e fundamentos bíblicos / Maria Gisele Canário de Souza; Welder Lancieri Marchini. Indaial: UNIASSELVI, 2017. 153 p. : il. ISBN 978-85-69910-76-3 1.Bíblia – Estudo e Ensino. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. Maria Gisele Canário de Souza Welder Lancieri Marchini Mestre em Teologia com ênfase em exegese bíblica (Antigo Testamento) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Antigo e Novo Testamento pelo centro Bíblico Verbo. Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). É graduanda em geografi a pela Universidade Cruzeiro do Sul - SP. Atualmente é assessora do Centro Bíblico Verbo e Tutora do curso de Bíblia online. É membra do grupo de pesquisa Tradução e Interpretação do Antigo Testamento (TIAT). Doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP) onde pesquisa a recepção do Concílio Vaticano II pela Igreja no Brasil, mestre pela mesma instituição, com pesquisa sobre os impactos da metrópole em ambiente urbano. Pós-graduado em teologia pastoral, com ênfase na teologia da missão (ITESP), bacharel em Filosofi a (PUC-Campinas) e em Teologia (ITESP). É professor convidado na Graduação em Teologia do ITF (Petrópolis), na pós-graduação em Ciência da Religião da PUC (São Paulo) e na pós-graduação Religião e Cultura na UNIFAI (São Paulo). Trabalha como editor teológico na Editora Vozes. É autor do livro “Paróquias urbanas: entender para participar” pela Editora santuário (2017) e do livro de catequese com adolescentes “Perseverando com Jesus” pela Editora Vozes (2015). pela Igreja no Brasil, mestre pela mesma instituição, com pesquisa sobre os impactos da metrópole em ambiente urbano. Pós-graduado em teologia pastoral, com ênfase na teologia da missão (ITESP), bacharel em Sumário APRESENTAÇÃO ....................................................................01 CAPÍTULO 1 Estudo da Bíblia .......................................................................9 CAPÍTULO 2 O Antigo Testamento e sua História ...................................21 CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 4 O Exílio, e a Volta do Exílio Decretada pelo Império Persa .........................................................................63 Segundo Testamento ..........................................................109 APRESENTAÇÃO O estudo do livro mais vendido do mundo, cerca de seis bilhões de cópias, a Bíblia, passou por uma série de transformações e descobertas ao longo da história. Podemos imaginar que esse processo de leitura e conhecimento não é tão simples, pois existem inúmeras formas de interpretá-la. Com essa disciplina, Elementos e Fundamentos Bíblicos, almejamos que você seja introduzido nesse processo de leitura e aprendizado. No primeiro capítulo apresentamos alguns conceitos que desmistificam formas de leituras usuais e muito conhecidas no universo religioso cristão. Com isso surgem algumas ferramentas que são utilizadas no estudo da exegese que poderão sistematicamente nos apresentar algumas técnicas para a leitura da Bíblia. Com os conceitos apresentados no primeiro capítulo, à guisa de introdução da disciplina, no segundo capítulo iremos conhecer brevemente o contexto histórico, político e ideológico, que nortearam as narrativas bíblicas, que foram escritas por muitos autores. Para isso é fundamental conhecermos um pouco mais sobre a história de Israel. Teremos uma breve apresentação que nos introduz à leitura dos principais livros do Primeiro Testamento. Nessa mesma perspectiva seguimos com o conhecimento da história de Israel, no terceiro capítulo, porém, iremos perceber com isso, que os relatos na Bíblia não são escritos de maneira cronológica, metaforicamente podemos dizer que se trata de uma colcha de retalhos, haja vista que não se trata de um livro só, mas de muitos livros. Feito o estudo do Primeiro Testamento chegamos a algumas ferramentas que nos ajudarão na leitura da coletânea de livros que compõe o Segundo Testamento. Essa parte dos estudos muito interessa aos cristãos, pois são livros que narram a história de Jesus e dos seus seguidores, sob a ótica da segunda geração dos seus discípulos. Nesse último capítulo teremos conhecimento dos evangelhos sinóticos, bem como suas similaridades e diferenças e o porquê de tantas possíveis arbitrariedades. Consequentemente a isso conheceremos um pouco mais sobre a vida do Apóstolo Paulo, o responsável pela propagação da vida de Jesus aos confins do Império Romano. Pessoas que não fizeram parte do convívio de Jesus escutaram falar sobre ele a partir dos relatos de Paulo, seja pessoalmente ou por meio de cartas. Esperamos que esse estudo ajude você a buscar outras ferramentas que possam ser úteis na leitura da Bíblia. Um livro em que suas narrativas jamais podem fundamentar ou legitimar realidades para a qual não foram escritas. Não podemos esquecer que os personagens das narrativas bíblicas não sabiam que esse livro seria lido por nós, hoje, após mais de dois mil anos e que, portanto, uma leitura fora de contexto pode ser um grande equívoco. Os autores. CAPÍTULO 1 Estudo da Bíblia A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Compreender as diversas formas de leituras da Bíblia, bem como suas perspectivas teológicas. Conhecer os principais métodos de estudos da Bíblia e saber utilizá-los na leitura bíblica. Analisar os livros bíblicos em perspectiva literária e narrativa, a partir da memória e da religiosidade, superando leituras fundamentalistas. 10 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 11 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Como Lemos a Bíblia? Você sabia que existem muitas maneiras de ler a Bíblia? Pois é! Você pode se perguntar como isso é possível, se a Bíblia é uma só e se ela foi inspirada e escrita pelo próprio Deus. Comecemos nos atentando para alguns pontos impor- tantes para compreendermos esses fundamentos, que podem nos ajudar na hora da leitura. No entanto, há tantas formas de leituras e interpretações que chegam a confundir os cristãos leitores, que em muitas narrativas até param a leitura e se perguntam: Mas, então, como é que se lê a Bíblia? Qualquer interpretação da Bíblia que fi zermos trará consequências di- retas na relação que temos com Deus e com todas as pessoas. Continuemos! Você já deve ter percebido que existem diferentes maneiras de ler a Bíblia e que, de acordo com essa leitura, conceberá diferentes imagens de Deus no seu pensamento. Algumas pessoas descobrem na Bíblia um Deus valente, ameaçador, bravo, justiceiro; outros acham um Deus que perdoa, amo- roso, amigo e que propõe um projeto de vida a ser seguido; alguns se revoltam contra o Deus da Bíblia, outros se apaixonam e se comprometem com ele. Há, no entanto, pessoas que leem a Bíblia e se tornam rancorosas, juízes de todo mundo, usando a palavra de Deus como arma de acusação; outras fi cam esperando que Deus resolvatodos os seus problemas por meio de um milagre imediato; existem ainda aqueles que se desligam da vida concreta, achando que quanto mais distante do mundo, mais perto estarão de Deus. Dessa forma, todos eles usam a Bíblia para justifi car suas próprias opiniões, muitas vezes aplicando o texto da forma como o entendem. Às vezes, nem percebem que a sua forma de ler e interpretar a Bíblia está produzindo uma ideia de Deus muito esquisita ou até contrária à caridade. A Bíblia – Palavra de Deus – chega até nós, nas nossas igrejas e/ ou comunidades, às pessoas de fé, em forma de literatura. É importante percebermos que na Bíblia Deus faz uso da linguagem humana para ser compreendido. Nesse sentido, os leitores da Bíblia se veem desafi ados a identifi car a Palavra de Deus, revestida com palavras humanas. Qualquer interpretação da Bíblia que fi zermos trará consequências diretas na relação que temos com Deus e com todas as pessoas. Os leitores da Bíblia se veem desafi ados a identifi car a Palavra de Deus, revestida com palavras humanas. 12 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Para aprofundar-se mais nos vários métodos de leitura bíblica, de cunho mais pastoral, deixamos algumas dicas de leitura: 1- Equipe nacional da dimensão bíblico-catequética.Como nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995. 2- Serviço de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007. 3- PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998. 4- ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982. Um dos grandes desafi os enfrentados pelas igrejas e/ou comunidades cristãs consiste em captar a mensagem da salvação nas entrelinhas de um texto. Essa tarefa é, ao mesmo tempo, fácil, mas complexa. Fácil porque, por meio de traduções confi áveis, podemos ter acesso aos textos bíblicos também confi áveis. Difícil e complexo, por se tratar de um texto escrito num horizonte cultural e linguístico muito distinto da nossa realidade atual. Para entendê-lo são necessárias ferramentas que possibilitem o acesso à mensagem veiculada. Em outras palavras, só é possível chegar ao sentido aproximado do texto num intenso processo de interpretação. As narrativas bíblicas foram escritas para serem lidas e, por conseguinte, interpretadas. Ler é interpretar! Interpretar é ler! Quem se aventura a ler a Bíblia sem interpretá-la não entenderá o que lê. Nesse sentido, quem interpreta produz um tipo de leitura que poderá assumir variadas roupagens, dependendo do intérprete e seus contextos. A cada leitura feita surgem diversas fontes de sentidos. É claro que sem leitores e leitoras intérpretes, pessoas, comunidades-igrejas, as narrativas bíblicas permaneceriam letra morta. São os leitores que dão vida ao texto e fazem com que a narrativa se torne Palavra de Deus. Textos lidos sem o esforço da interpretação tornam-se materialidade da letra, é a fragilidade das leituras fundamentalistas e historicistas. Ler é interpretar! Interpretar é ler! 13 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 “A palavra de Deus é muito mais que o texto escrito. Ela é, antes de tudo, o texto vivenciado” (RODRIGUES, 2004, p. 13). Entenda por fundamentalismo a “leitura ao pé da letra”, ou seja, a verdade corresponde ao conteúdo das palavras. Já historicista é a leitura que considera “histórico” tudo o que a Bíblia relata, como se tratasse de um livro de crônicas. Por exemplo, o relato da criação Gn 1-2 se tem na conta de descrição científi ca do que aconteceu no começo de tudo. Resulta nas inúteis discordâncias entre fé-ciência promovidas por certos defensores da Bíblia. Uma das maneiras de desconstruir a leitura fundamentalista é perceber que os textos bíblicos são repletos de metáforas. A metáfora requer uma interpretação, pois vai além do sentido literal. Leia o texto de Mt 18,9 e busque perceber que Jesus não está falando de maneira literal, mas metafórica. A leitura fundamentalista da Bíblia carrega uma pobreza, por ser incapaz de adentrar no mundo do texto. Antes, os leitores fundamentalistas dão-se satisfeitos por transitarem na superfície dos textos bíblicos. Os fundamentalistas e os historicistas se enganam ao se autodenominarem conhecedores fi éis da Palavra de Deus, quando, de fato, movem-se em um universo bíblico fruto de dogmatismos e fanatismos, sem qualquer relação com o que a literatura bíblica pretende ser, desde as mais remotas origens de sua redação. Por causa desses motivos é que vamos aprender a ler a Bíblia de forma diferente. E para isso existem alguns métodos científi cos: sincrônico e diacrônico – bem como suas especifi cidades – e leituras que podem nos ajudar. Veja no próximo item, após a atividade proposta, os métodos mais utilizados pelos exegetas atuais. 14 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Métodos DiacrÔnicos e SincrÔnicos Entende-se por método um conjunto de procedimentos utilizados para examinar, com a maior objetividade possível, um dado. O método se distingue de abordagem, porque esta está mais inclinada ao ponto de vista a partir do qual é feita a leitura e interpretação de um texto. (LIMA, 2014). No fundo, as diferentes abordagens escolhem um método, sendo caracterizadas pela perspectiva e escopo que assumem. Os chamados métodos diacrônicos oferecem maior atenção ao crescimento dos textos e ao contexto em que o texto foi escrito, já os sincrônicos priorizam a forma fi nal do texto. Os métodos diacrônicos são reunidos no método histórico crítico, composto por diversas etapas, cada qual com princípio e procedimentos próprios. Integradas, estas etapas visam esclarecer o texto no momento de sua produção artística (LIMA, 2014). Veja o que a exegeta Maria de Lourdes Lima fala a respeito do método histórico crítico: A multiplicidade, por vezes contraditória, dos resultados das análises diacrônicas, o caráter hipotético de suas reconstruções, a aridez de sua argumentação e resultados, bem como a difi culdade de falar para a época contemporânea, que motivaram, em grande parte, o descrédito para com o método histórico crítico, conduziram a repensar a metodologia exegética. Estas se concretizaram, por parte de algumas correntes, no abandono completo da diacronia, com a consequente opção por uma leitura exclusivamente sincrônica (LIMA, 2014, p. 65). No caso do método sincrônico, os mais divulgados são a análise retórica (valoriza a forma do texto), a análise narrativa (o papel do leitor na compreensão do signifi cado do texto), a análise semiótica (valorização das estruturas linguísticas) e, nas últimas décadas, a pragmático-linguística (o texto como elemento de comunicação). Cada qual dessas análises possui uma metodologia própria, que visa esclarecer o texto em sua visão canônica (ZAPELLA, 2014). 15 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Em um ou outro método existem limitações, muitos dos exegetas atuais se utilizam dos dois métodos, reciprocamente, para fazer as suas análises. Dessa forma, os dois tipos de metodologias não se contrapõem, mas se complementam. A exegese não pode se limitar em falar do passado do texto, inclusive em suas possíveis etapas redacionais, mas deve chegar até sua forma canônica, valorizando-a como Palavra de Deus que quer comunicar, sem pretender que o mais antigo seja o melhor, ou o mais autêntico. Por outro lado, um estudo estritamente sincrônico perderia a dimensão temporal, histórica, e cairia no perigo do fundamentalismo. O que é exegese? De acordo com o autor Patrick Dondelinger (1998, p. 698), a exegese: É um conjunto de procedimentos destinados a estabelecer o sentido de um texto. Têm-se necessidade dela cada vez que um texto suscita um interesse durável [...]. O texto não necessita dela no momento de sua composição: os autores ou redatores trabalham para serem perfeitamente compreendidos. Não é tampouco um assunto privado entre o texto e um leitor individual, permitindo uma interpretaçãosem limites. É o produto das necessidades de uma comunidade para a qual o texto é útil ou precioso. Tem particular importância numa comunidade religiosa que funda suas doutrinas, suas normas morais, sua espiritualidade em textos que crê inspirados. Essa comunidade terá ao mesmo tempo o cuidado de elaborar procedimentos que permitam descobrir no texto insuspeitados sentidos e aplicações, e controlar os tipos de exegese capazes de infl uenciar as crenças e a conduta de seus membros. Estudos de história dos estilos literários têm mostrado (RODRIGUES, 2004) que muita coisa na Bíblia não é exatamente o que estávamos acostumados a pensar que fosse (mostram que muita coisa não aconteceu de fato daquele jeito como está escrito). Quando esses estudos começaram, muita gente se assustou, pensando que ia acabar com a sua fé. No entanto, as pesquisas históricas mostram que os fatos referentes à origem do povo de Deus foram escritos muitos séculos depois; descobriu-se que há textos formados com pedaços de outros textos, escritos por gente de ideias e épocas diferentes: isso explica por que o mesmo fato, às vezes, é contado duas vezes, com detalhes que divergem. 16 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Para entender mais sobre a leitura bíblica a partir do universo metafórico, leia: MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infi nita. A Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015. O estudo dos diversos estilos literários nos ajuda a entender que certos textos são poéticos e não podem ser interpretados como uma verdade científi ca. Isso, por exemplo, aparece no poema dos seis dias da criação (Gn 1,1-2,4), que é escrito, possivelmente, num contexto de forte sofrimento no período exílico, se trata de um convite para louvar a Deus, mas não obriga ninguém a crer que o mundo foi feito em seis dias. A Bíblia e o mundo humano não se separam, pois a Palavra de Deus veste as roupas do jeito humano de falar; é comunicada por intermédio do povo e dos sentimentos humanos de quem tinha a tinta nas mãos e escrevia o texto bíblico. O fato de o Espírito Santo inspirar a escrita, essa realidade não apaga a intencionalidade do autor, que vive os confl itos humanos, os quais podem infl uenciar diretamente os seus escritos, tanto positiva como negativamente. O povo sabia ler a presença de Deus nos fatos corriqueiros da sua história de vida. Por isso, a Bíblia, essa coleção de livros, não contém só orações, bons conselhos, frases edifi cantes. Nela estão presentes fatos da vida, com tudo que sabemos que tem a vida: heroísmo e violência, generosidade e pecado, sangue, guerra, casos de família, machismo, preconceitos, lealdade e traição, interesses econômicos e políticos e tantas outras situações. A Bíblia nos revela que Deus é a verdade! Mas ela também revela quem somos nós: humanos! Propensos ao amor, às dores, virtudes e fraquezas. A Bíblia pode ser entendida como um espelho, que refl ete a nós mesmos, com isso ela nos ajuda a discernir sobre nossas defi ciências e capacidades. E nos aponta para um mundo cheio de esperança, com possibilidades de transformações inimagináveis. Duas atitudes podem nos levar a uma falsa ideia de Deus e da encarnação: dar valor absoluto a tudo o que está escrito literariamente e ignorar os condicionamentos humanos e literários do texto. Duas atitudes podem nos levar a uma falsa ideia de Deus e da encarnação: dar valor absoluto a tudo o que está escrito literariamente e ignorar os condicionamentos humanos e literários do texto. 17 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Você já deve ter se deparado com alguma situação em que pessoas se dirigem até você querendo provar ou impor alguma atitude com a citação de um versículo isolado. E se você questionar essa forma de leitura, imediatamente será acusado de não possuir fé, e não respeitar a Palavra de Deus. E afi rmam: “Não tem de interpretar nada! É Palavra de Deus! Tem que ser aceita como está! Em coisa sagrada não se mexe!” Infelizmente, existem pessoas que pensam que por se tratar da Palavra de Deus, cada parte da Bíblia tem que ser aceita como verdade absoluta, e não exige possibilidade nenhuma de argumentação. Contudo, é importante saber, você que é apaixonado pelos escritos bíblicos, que a Palavra de Deus é o refl exo daquilo que o povo sabia, sentia e vivia naquela época. Um exemplo: No livro de Levítico, o morcego – que é mamífero – é classifi cado como uma ave; na visão do povo da Bíblia, a Terra era o centro e o Sol é que girava em volta do planeta. Nesse sentido, ninguém é obrigado a discutir com os cientistas, só porque essas coisas estão escritas na Bíblia. Deus é tão magnífi co que permitiu que o povo se expressasse de acordo com as teorias do momento histórico em que viviam. Deus nunca permitiu que o seu povo desse um passo maior do que as próprias pernas. Em muitas situações, o povo atribui a Deus seus próprios sentimentos: que podem conter raiva, alegria, tristeza, indignação. Por exemplo, há vários textos que falam de violência, com muito sangue, e o povo dizendo que a morte dos inimigos é a vitória de Deus. Vivendo numa cultura violenta, o povo achava que Deus queria isso. Compreendiam Deus por meio dos sentimentos que estavam acostumados no dia a dia. Aliás, nós também vivemos numa sociedade violenta, não?! Sentimos que Deus queira a destruição dos seus fi lhos? Por outro lado, há situações que caberiam em determinadas épocas, mas que hoje não se aplicam mais. Por exemplo, no tempo da Bíblia (Ex 22, 18-26) não se contestava a escravidão, no máximo se recomendava um tratamento mais humano, existiam até leis que os protegessem; isso, é claro, não pode justifi car que um religioso cristão, nos dias atuais, fi que indiferente diante de situações de escravidão ou de falta de respeito ao direito de quem trabalha. O teólogo que se propõe a estudar a Bíblia deve ser fi el à Igreja, trabalhando com competência, para ajudar a própria Igreja a aprofundar sua compreensão da Palavra de Deus. É necessário também dar aos fi éis e às lideranças comunitárias ferramentas que os ajudem a ler a Bíblia com o olhar na realidade e no período bíblico, e não o contrário, o que poderia gerar equívocos desastrosos. A Palavra de Deus correria o risco de ser descaracterizada! E aquele desejo de fazer valer a vontade de Deus poderia surtir um efeito contrário. 18 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS As Igrejas cristãs são gratas pelo trabalho dos especialistas que ajudaram e ajudam a entender o texto bíblico de uma forma diferente, ajudando a superar a leitura literal e adentrando a leitura que expresse o sentido que estava presente no período em que o texto foi escrito. Ser repetitivo, e querer que o texto fale à nossa vida, sem levar em conta o motivo pelo qual o texto foi escrito, pode incorrer numa infi delidade ao texto, e consequentemente, ao projeto de Deus. A Bíblia deve ser entendida dentro do seu contexto e só depois de estudada poderá iluminar a história de nosso tempo. Sabemos que o mundo em que foram escritos os livros bíblicos é muito diferente do nosso, afi nal já se passou um período de mais ou menos 4.000 anos e foram redigidos em etapas diferentes e distantes uma da outra. Um exemplo: se você olhar os costumes, a moral, a sociedade do tempo dos seus avós, verá que questões que eram fundamentais no tempo da juventude deles, hoje já não fazem mais tanta diferença, ou mesmo inexistem. E estamos falando de um mesmo país, estado e cidade. Imagine, você, essa realidade num país do Oriente Antigo, com uma religião, cultura totalmente diferente da nossa e um período de 4.000 anos nos separando. São muitos elementos a se considerar para a leitura da Bíblia, não acha? Refl ita sobre essa realidade e tire suas próprias conclusões. O texto bíblico deve nos permitir fazer um caminho diferente que nos leve ao aprendizado de forma autônoma e segurae não nos tornando repetidores de pregações ou homilias. O texto bíblico não muda, já foi escrito, mas certamente pode e deve mudar nossa maneira de entender o que lá está escrito. Isso não pode ser motivo de escândalo, mas de sabedoria! (MESTERS, 2012). A comunicação de Deus também se atualiza para que homens e mulheres possam crer sem ter de contrariar seus conhecimentos científi cos e sua compreensão do mundo e da história da humanidade. Contudo, espera-se, é claro, que os especialistas, para além do seu saber científi co, sejam capazes de perceber nos textos a Palavra de Deus e nela alimentem a sua fé. Nós, que somos aprendizes, temos de fazer progressos na nossa maneira de entender e ler a Bíblia, e não tendo medo de aproveitarmos os estudos mais sérios e modernos. E é justamente isso que iremos fazer a partir de agora! Bons estudos! 19 ESTUDO DA BÍBLIA Capítulo 1 Atividade de Estudos: 1) Leia o texto bíblico da Parábola do rico insensato em Lc 12, 16- 21, veja quais as difi culdades que surgem, se a leitura do texto for feita de forma literal. A vida do rico é pedida de volta, porque optou pelas riquezas, ou seja, juntou tesouros para si e não para Deus. Se a narrativa for lida ao pé da letra, poderá ser compreendida de forma trágica, aponte os caminhos de leitura para que isso não ocorra. __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ Algumas ConsideraÇÕes Nesse primeiro capítulo buscamos introduzi-lo, caro aluno, ligeiramente na leitura da Bíblia, de maneira mais acadêmica, mas também pastoral. Acreditamos que uma realidade contempla a outra. Para isso, fi zemos uso dos métodos propostos pela exegese bíblica, citamos apenas os mais utilizados, que são o método sincrônico e o anacrônico. Sabendo interpretá-los, seremos favorecidos por uma compreensão mais ampla da Bíblia. A Bíblia pode ser um local que inspira a rezar/orar, mas não de forma ingênua, não relativizando a fé, mas verifi cando as várias imagens de Deus construídas ao longo da história. Ler a Bíblia é uma tarefa exigente, de acordo com o que vimos ao longo desse capítulo, no entanto, se soubermos utilizar as ferramentas de leituras propostas pelos mais variados métodos de leituras exegéticas, pode se tornar algo tranquilo. 20 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Ao longo da nossa vida fomos acostumados a ler a Bíblia com muito medo, receio que acabou por gerar um bloqueio na hora da leitura. Tentando enxergar as narrativas como muito belas, “algo do céu”, mesmo aquelas que retratam situações de violência, tentávamos reinterpretá-las a ponto de se tornarem lindas aos nossos olhos. Dessa forma, fi cou difícil vermos a Bíblia como uma biblioteca de livros literários, escritos em um período muito distante e diferente dos costumes que vivenciamos na sociedade hodierna. Optamos por ver a Bíblia como algo sagrado, muito sagrado, intocável e distante de nós! As ferramentas de leituras não podem ser vistas como algo que vai nos tirar a fé. Para quem é religioso, isso é muito importante, porém sabemos que a Bíblia não é lida apenas por religiosos, mas por cientistas, ateus e curiosos em geral. Isso signifi ca que os crentes possuem uma responsabilidade muito grande, faz-se necessário um diálogo de igual para igual, e não apenas repetir de forma fundamentalista o que pastores, padres, pregadores e lideranças em geral fazem. Não veja isso como algo intolerante, mas veja como um sinal de ressignifi car nos dias atuais a Palavra de Deus, que para nós se faz necessária! Se posicione e lembre que o conhecimento é um processo de aprofundamento da fé e da própria existência. Pense nisso e refl ita! ReFerÊncias ANTONIZI, Alberto, et al. ABC da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1982. EQUIPE NACIONAL DA DIMENSÃO BÍBLICO-CATEQUÉTICA. Como nossa Igreja lê a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1995. LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014. MENDONÇA, José Tolentino. A leitura infi nita. A Bíblia e a sua interpretação. Universidade Católica de Pernambuco; Paulinas: Recife; São Paulo, 2015. MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 2012. PULGA, Rosana. Beabá da Bíblia. São Paulo: Paulinas,1998. RODRIGUES, Maria Paula (Org.). Palavra de Deus, palavra de gente. As for- mas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. SERVIÇO de animação bíblica. Iniciação à leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2007. ZAPELLA. L. Manuale de analisi narrativa bíblica. Torino: Claudiana, 2014. CAPÍTULO 2 O Antigo Testamento e sua História A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Compreender a formação do Antigo Testamento e os principais profetas que contribuíram para formar a identidade do povo de Israel. Analisar os principais momentos históricos que foram fundamentais para a construção dos livros do Antigo Testamento. 22 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS 23 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 ContextualiZaÇÃo A Bíblia, como bem sabemos, é um livro diferente de todos os outros livros que conhecemos, pois não se trata de um livro, mas de uma coleção de pequenos livros (livretos, cartilhas). A palavra Bíblia se origina do grego, que signifi ca, literalmente, “livrinhos”, pois indica o plural da palavra biblion, que é o diminutivo de “biblos”. Os livros bíblicos foram escritos em três línguas diferentes, no entanto, a maior parte dela foi escrita em hebraico, outra parte em grego e a menor parte em aramaico. Os livros bíblicos, podemos chamar assim, foram escritos em muitos lugares diferentes, grande parte foi escrita na Palestina, mas outras partes foram escritas na Babilônia, no Egito, na Ásia Menor, em Roma, e em muitas outras localidades, difíceis de serem atestadas (KONINGS, 1998). A literatura bíblica foi redigida, provavelmente, a partir do ano 1.000 a.C. e só foi fi nalizada por volta do ano 200 d.C., ou seja, mais ou menos 1.200 anos foram necessários até alcançar a forma que temos hoje. Foram muitos os autores responsáveis pela escrita dessa coleção, não se tem uma quantidade exata, mas foram mais de uma centena (KONINGS, 1998). De acordo com o que afi rmamos no início desse item, a Bíblia é um livro diferente, porque se trata de uma obra considerada pelos sagrada cristãos. A parte que chamamos de Antigo Testamento contém livros sagrados dos judeus. O conjunto do Antigo e do Novo Testamento é o que é considerado sagrado para os cristãos. Partes do Antigo Testamento também são considerados para os islâmicos. Contudo, se faz necessário entender que, por se tratar de livros sagrados, não estão fora da história, e nem caíram diretamente do céu. Pelo contrário, a Bíblia tem esse caráter sagrado porque revela o rosto de Deus da vida, que se manifesta na história, nas lutas em favor da vida com dignidade e justiça para todos, principalmente para as pessoas empobrecidas e marginalizadas. É na defesa e promoção da vida que a Bíblia ganha caráter sagrado e se torna Palavra de Deus. 24 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A história da Bíblia pode ser comparada à história de uma casa, que começou pequenina e pobre, com poucos cômodos, mas ao longo dos anos foi passando por reformas, recebendo acréscimos, novos cômodos, até tornar-se um enorme casarão. Conforme dito anteriormente, a Bíblia levou mais de mil anos para ser compilada. Ao ser iniciada, foi a partir de pequenas histórias de libertação queforam contadas a partir da oralidade, posteriormente sendo registradas por escrito, celebradas, recontadas, atualizadas em novos acontecimentos e sofrendo acréscimos com novas histórias, memórias, cânticos, provérbios, leis e orações, tudo passando por inúmeras revisões, até formar o livro que temos hoje em mãos. Leia “A Parábola da porta”, do autor Carlos Mesters (2012, p.13-19), na tentativa de ilustrar a porta de entrada no mundo da Bíblia. Disponível em: <https://nfl emos.wordpress.com/2005/01/22/a- parabola-da-porta/>. Esta parábola descreve a história da explicação da Bíblia ao povo, faz ver como nasceu e onde estão as suas fontes de informação. Nasceu de noite, no meio da alegria do povo. Nasceu de dia, no meio da rua deserta e triste. Nasceu de dia e de noite, junto aos livros e às máquinas complicadas, num canto escuro da Casa do Povo. Dando continuidade na comparação da casinha que se tornou casarão, o que se percebe ao fi nal é um enorme casarão pronto, isto é o resultado da última revisão. O que pode complicar aos seus leitores é que essas reformas não são identifi cadas nos escritos, isso é a Bíblia. O seu todo apresenta hoje o resultado das últimas grandes reformas pelas quais passou: o Antigo Testamento revela predominantemente as formas que recebeu no período do pós-exílio (cerca de 400 a.C. até 200 d.C.) ao longo do processo em que se constituía o judaísmo. 25 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Situando o Antigo Testamento Para compreendermos o nascimento da Bíblia, devemos voltar ao ano 1.300 a.C., na terra de Canãa. Nessa época, grande parte da população vivia nas planícies férteis em torno de centros urbanos – pequenas cidades-estados, cercadas por muralhas –, e estava submetida ao domínio dos reis cananeus e do Faraó do Egito. Entretanto, havia um contingente menor de pessoas habitando nas regiões montanhosas de Canaã (Hebron, Betel e Siquém) e no deserto ao Sul (Bersabeia). Eram pequenas aldeias camponesas que possivelmente tiveram suas origens em assentamentos de famílias de pastores que se fi xavam nessas regiões, fora do controle dos centros urbanos. Em cada uma delas havia o costume de se venerar a memória do seu patriarca fundador, por exemplo: se venerava Sara e Abraão em Hebron; Isac e Rebeca em Bersabeia; Israel e Raquel em Betel e Jacó em Siquem. É nessas pequenas aldeias que se dá início à história de Israel. Tente visualizar as cidades acima citadas, no mapa: Figura 1 - Mapa do mundo antigo Fonte: Disponível em: <http://www.biblesociety.org/>. Acesso em: 6 out. 2017. 26 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS “Já os grupos urbanos e as aldeias camponesas das montanhas do Sul de Judá possuíam mais ou menos a mesma cultura: eram cananeus, e os seus deuses e deusas eram as divindades do panteão cananeu: El, Elohim, Aserá, Baal, Astarte, Anat, entre outros” (GERSTENBERGER, 2007, p. 169). Contudo, a vertente urbana da religião estava associada ao sistema de poder, e funcionava como religião ofi cial. Ensinava que as deusas e os deuses apoiavam e abençoavam o Faraó e os reis, se comunicando diretamente com eles. Estas divindades não estavam interessadas na vida das pessoas que trabalhavam, das pessoas pobres, marginalizadas ou escravizadas. Somente os reis e faraós eram considerados fi lhos de Deus (Sl 82,6-7). As outras pessoas deviam reverenciar e obedecer ao faraó e aos reis como se eles fossem os representes ofi ciais dos deuses na Terra, ou os próprios deuses em pessoa. Eram cultuados em grandes celebrações nos templos ofi ciais, e todas as pessoas deviam trazer-lhes oferendas, tributos, e submeter-se a trabalhar nas construções dos seus palácios e templos. Dentro das muralhas, na religião ofi cial, as divindades do panteão cananeu eram postas a serviço da legitimação do poder, da coleta de tributos e do acúmulo de riquezas e poder. Entre as aldeias camponesas nas montanhas, o culto aos deuses e às deusas estava vinculado aos diversos aspectos fundamentais da vida, como ter fi lhos, fertilidade dos campos e dos animais, saúde, amor, proteção, veneração aos antepassados etc. Eram os anciãos, pais, mães, quem realizavam o culto, e as oferendas eram praticamente simbólicas e raramente alguém fi cava mais rico ou mais pobre na vertente da religião camponesa. Era uma religião geralmente centrada na defesa e na promoção da vida, da identidade e das instituições que possibilitavam a vida nas condições ambientais das aldeias. Toda essa realidade se dava num contexto de uma sociedade patriarcal. Na política e na religião as mulheres tinham alguns espaços importantes, tanto nas cidades como nas vilas camponesas. No entanto, esses espaços e as próprias mulheres estavam subordinados ao controle dos homens. A crise dos grandes centros urbanos a partir de 1.200 a.C., causada por vários fatores, entre os quais a chamada “invasão dos povos do mar”, e o processo de resistência ao sistema de dominação das cidades-estado, fazem com que grupos de pastores, camponeses e gente marginalizada (hapirus) de Canaã, e pessoas escravizadas no Egito, encontrem nessas aldeias a possibilidade de viver longe da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas vão aumentar as populações de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém. 27 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Conheça um pouco mais sobre os hapirus: Entre os camponeses havia também os chamados hapirus, fugitivos que, para escapar aos tributos – impostos – e à corveia – trabalho forçado -, exigidos pelos reis e pelos faraós, iam para as montanhas, onde viviam da pilhagem – saque – ou então alugavam-se como soldados mercenários dos exércitos dos reis. Encontravam-se, sobretudo, no sul da Mesopotâmia. Eles apareciam como bandos inimigos, que ameaçavam as cidades por suas invasões. Em outros lugares, eram gente que se vendia voluntariamente para ser escrava. Sua situação no Egito apresentava muita semelhança com a dos hebreus, que deles herdaram até o nome (VILLAC; SCARDELAI, 2007, p. 14). Os hapirus eram originários de Canãa e pessoas escravizadas no Egito. Buscavam encontrar nas aldeias a possibilidade de viver longe da dura opressão imposta a eles pelos reis cananeus e pelo faraó. Essas pessoas são fundamentais para o aumento da população de Hebron, Bersabeia, Betel e Siquém. Provavelmente, a partir de Betel e Siquém formam-se as tribos de Benjamim, Efraim e Manassés, e a partir de Hebron origina-se a tribo de Judá, que mais tarde englobará a Bersabeia. Este é o núcleo inicial de Israel, que se forma nas montanhas centrais da Palestina. Nesse processo, algum povo pode ter trazido o culto a Javé para dentro das aldeias e tribos de Israel. Javé parece ser uma divindade que veio de fora de Canaã (Ex 2,16;3,1-2; Dt 33,2; Jz 5,4; Hab 3,3). Javé é integrado ao panteão das tribos e aldeias camponesas, possivelmente como o Deus dos guerreiros e da guerra (cf. Ex 15,2-3; 14,14.24-25.27; Jz 4,14-15; 1Sm 17,47). Contudo, nas tribos e aldeias, estes guerreiros travam apenas guerras defensivas contra saqueadores. Seu culto acontecia no momento em que os camponeses necessitavam transformar seus instrumentos de trabalho em armas (1Sm 17,40-43) e formar linhas de guerreiros para defender a vida de suas famílias, suas colheitas, suas terras e sua liberdade. 28 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS O Sistema Tribal O longo período pré-histórico da humanidade foi, possivelmente, uma época marcada por grupos menores e por bandos. Eram caçadores e coletores. Somente a partir do 10º milênio a.C. se conhecem, no antigo Oriente, processos de transição para a agricultura. Segundo Gerstenberger (2007, p. 29), “o tamanho ideal de grupos errantes na busca por alimentos era em torno de dez e trinta pessoas. Se considerar um grupo consanguíneo, logo se chega a um número desses, em analogia a grupos de primatas”. A partir dessas hordas humanasé que surgem no antigo Oriente famílias ampliadas, com uma estrutura de cunho patriarcal rigidamente genealógica. De acordo com o que sabemos, essas famílias se caracterizavam por serem econômica, jurídica e religiosamente autônomas. Suas casas, segundo os arqueólogos, nas cidades de Israel, não eram muito grandes. Havia um espaço para umas cincos até dez pessoas, não sendo possível abrigar uma família ampliada de até 30 ou 50 pessoas, como talvez fosse mais comum no interior. Por se tratar de um grupo limitado, preocupado em conseguir alimentos comunitariamente, um grupo que partilhava todos os bens adquiridos, a comunidade clâmica desenvolveu ideias teológicas específi cas, relacionadas ao respeito, à sobrevivência do grupo e de seus integrantes, à sua saúde, sorte e procriação. Expressão típica da religiosidade desses grupos menores eram, por exemplo, os lamentos individuais no Antigo Testamento hebraico e no entorno de Israel. O sistema tribal marca a sociedade das montanhas nos séculos XII e XI a.C. Durante este período, as planícies ainda continuavam sob o controle dos reis cananeus e sob o jugo das cidades-estado. Foi um período antimonárquico. Dessa forma, no decorrer dos séculos XII e XI a.C. coexistiam na Palestina dois modelos sociais: na planície, as cidades-estado e suas monarquias; nas montanhas, o tribalismo camponês. Este último carregava a experiência dolorosa de séculos de espoliação por reis e faraós, que, por meio de suas expedições, muitas vezes anuais, arrasavam aldeias e plantações. Levavam o senso e a prática da contestação contra as cidades-estado da planície (VILLAC; SCARDELAI, 2007). 29 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 O vídeo indicado nos ajuda a adentrarmos na caminhada do povo de Israel, de uma maneira popular, relacionando a história de hoje com a do povo antigo. Primeira parte: <https://www.youtube.com/watch?v=sdEm2K5Ue4E& feature =youtu.be>. Segunda parte: <https://www.youtube.com/ watch?v=Z9Uux51qDes&feature =youtu.be>. O PoVo Que CaminHa: de Moisés a Josué O projeto exodal expõe tensões vividas pelo povo de Israel durante a travessia do deserto. Além da realidade humana, o deserto na Bíblia simboliza o começo de um longo e penoso processo de libertação, que terá seu desfecho na entrada do povo na Terra Prometida. O caminho do Êxodo tem um sentido profundamente pedagógico (VILLAC; SCARDELAI, 2007), ou seja, sua história quer ensinar e manter viva na memória do povo uma grande lição de vida. No projeto do êxodo está implícita uma busca contínua por libertação, que após ser contada oralmente é redigida por escritores que tinham interesse em preservar sua memória no meio popular da sociedade de Israel. É um projeto que vai se realizando aos poucos, mediante gestos concretos assumidos pelo povo, quando decidem não mais ser escravos. Recusam servir ao faraó e ao Egito, e daí um grupo de escravos (hebreus) decide traçar seu próprio destino. Esse povo vive uma experiência profunda ao caminhar pelo deserto com o seu Deus. O Deus que caminha com o seu povo é peregrino, habita em cabanas junto aos seus, e faz aliança com eles. 30 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Do ponto de vista histórico, a saída do Egito e a entrada em Canaã estão notoriamente entre as narrativas mais complexas de todo o corpus de tradições que confl uíram no Antigo Testamento (MCDONALD, 2013). Há muito existe um substancial acordo em considerar que o percurso do êxodo e a ambientação topográfi ca da entrega da Lei sejam elementos muito tardios (do período pós- exílico) inseridos na narrativa com o fi m de realizar uma ligação lógica entre os dois elementos da promessa: saída do Egito e tomada de posse da terra. (LIVERANI, 2008). A imagem do deserto, no conjunto Êxodo-Números, não é de tipo pastoril, em que as tribos vivem à vontade; é, porém, do tipo “zona de refúgio” ou “terra de exílio”, numa perspectiva citadina de profundo mal-estar. O caminho é muito complicado e perigoso, conforme Dt 8,15: “Deserto grande e terrível, povoado de serpentes abrasadoras e de escorpiões, terra de sede, onde não se encontra água”. Essa passagem é semelhante às preocupações logísticas para a travessia do deserto por parte dos exércitos assírios, como na expedição de Esarhaddon em Baza: um distrito remoto, uma extensão desértica e de terra salina, uma região de sede, com serpentes e escorpiões que cobrem a terra como formigas (LIVERANI, 2008). Também os exércitos da monarquia de Judá tinham atravessado o deserto, por exemplo, na expedição contra Mo’ab e à procura de água por parte de Moisés, que a faz brotar da rocha (Ex 17,1-6), corresponde à procura da água por parte dos “profetas” juntados ao exército naquela ocasião: “Cavai um grande número de fossos neste vale! Assim fala o Senhor: Não vereis vento nem chuva, todavia este vale se encherá de água e bebereis vós, vossos rebanhos e vossos animais de carga!” (2Rs 3,16-17). O milagre de Moisés, que purifi ca a água salobra (Ex 15,22-25), corresponde ao análogo milagre de Eliseu (2Rs 2,19-22). As enormes difi culdades encontradas na travessia do deserto centram-se no motivo das murmurações sediciosas do povo contra Moisés (Ex 15,24;16,2;17,3; Nm 11,4-5;14,2-3;20,2-3). E de modo semelhante, as dúvidas sobre a possibilidade de ocupar Canaã concentram-se no motivo dos exploradores que em geral (salvo Josué e Caleb) dão informações não muito animadoras (Nm 13). Em ambas as situações, o povo se pergunta se não teria sido um grande erro dar ouvidos a Moisés (igual aos sacerdotes), abandonar o Egito (igual a Babilônia), para procurar por uma terra mais difícil, habitada por populações hostis e violentas. Os dois motivos, da sedição e dos exploradores, refl etem debates que devem ter acontecido entre quem propugnava o retorno e quem manifestava perplexidade ou sem dúvida preferia fi car numa terra de exílio que se mostrava habitável e próspera (LIVERANI, 2008). 31 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Quando se descreve a travessia como uma realidade estranha e substancialmente desconhecida, foram utilizadas rotas de itinerários que deviam ser de uso de rotas militares ou comerciais, ou, em parte, talvez de percursos de peregrinação a lugares santos do deserto. Esses percursos não podiam deixar de utilizar velhas direções de transumância pastoril, levando em conta o condicionamento viário que no deserto é ditado pela presença de poços, de passagens montanhosas, de vaus (local raso no mar ou no rio, em que seja possível fazer a passagem a pé). Contudo, os estudos dos itinerários do êxodo são difíceis de serem atestados, pois a maior parte dos topônimos – designação de um lugar, de uma região geográfi ca –, não aparece em outro lugar, e até a localização do Sinai é debatida. Alguns traçados fundamentais parecem reconhecíveis: a via sul-norte, do golfo de Aqaba à planície de Moab, através do deserto de Edom e o deserto de Moab, estão localizadas nas margens do deserto não tanto porque moabitas e edomitas neguem a passagem quanto porque ali passava a grande via das caravanas, onde o planalto não é mais cortado (como acontece mais a oeste) por profundos vales de difícil travessia (LIVERANI, 2008). O livro de Josué retrata com intensa vivacidade a realização de uma primeira etapa da promessa de Deus: entrar na terra prometida. Além de ser o sexto livro da Bíblia, Josué é o primeiro dos livros que a Bíblia hebraica identifi ca como profetas anteriores. A Josué se juntam Jz, 1-2Sm e 1-2Rs, para formar o conjunto da historiografi a deuteronômica. A narrativa de Josué fala de acontecimentos ocorridos entre os séculos XIII e XI a.C. Provavelmente essa conquista ocorreu de forma lenta e gradual, compreendendo um processo que incluía guerras violentas, porém intercaladas por momentos de relativa paz e estabilidade. Essa fase chegou ao fi m durante um período de transição política, quecorresponde às primeiras tentativas de instalação da monarquia, com Saul. A história das tribos forma o conteúdo básico do livro de Josué, o qual pode ser dividido em três partes: a) Js 1-12, que corresponde às narrativas sobre os acontecimentos da conquista propriamente dita, e traz como pano de fundo religioso o santuário de Guilgal; b) Js 13-21, fala da distribuição, partilha e ocupação da terra entre as tribos; c) Js 22-24, é dedicada ao personagem Josué até sua morte. 32 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS A ideia de sincronizar a história das 12 tribos faz parte de um programa do escritor, visando preparar um esquema que irá desaguar na confederação político- nacional de Israel. Por isso, a história das tribos antecipa uma nova ordem social, um novo modelo baseado na partilha igualitária das propriedades. Dessa forma, o sistema tribal procura mostrar o estágio político que antecipa a monarquia, planejando um entrelaçamento entre as tribos e monarquia, ambos envolvem o contexto social, político e religioso da Aliança (VILLAC; SCARDELAI, 2007). A narrativa bíblica da conquista fundante é notoriamente, de acordo com Liverani (2008, p. 347): Uma construção artifi cial, com a intenção de enfatizar a unidade de ação de todas as doze tribos. São evidentes numerosas contradições internas, devidas à inábil utilização de diferentes tradições estratifi cadas no tempo. Algumas tradições de raio nitidamente local (por exemplo, a tradição sobre os calebitas em Js 15,13-19) tinham por trás uma respeitabilidade que tornava impossível eliminá-las. Essas tradições relacionadas com percursos de transumância entre Negev e planaltos centrais podiam confi gurar muito melhor um ingresso na Palestina pelo sul (segundo a via “normal” para quem vem do Egito), o qual, porém, foi eliminado em favor de um ingresso de todo o povo pelo leste. A narrativa que forma Js 6-8 se refere à conquista somente do território de Benjamim e de Efraim, depois de passado o Jordão. As narrativas da vitória sobre os reis dos amorreus do Sul são nitidamente separadas (Js 10) da vitória sobre Hasor no norte (Js 11). Essa justaposição de três vagas diferentes serve para conferir um sentido de conquista total. A distribuição dos territórios que é feita por sorteio (Nm 33,50-34,15) é totalmente artifi cial e não pode corresponder a nenhum processo de assentamento que seja historicamente plausível (pode, quando muito, servir de modelo operativo para os sobreviventes do período persa). A própria descrição dos territórios tribais (Js 13-19), diferente entre sul e norte, não pode ser compreendida senão à luz de eventos posteriores à época à qual pretende se referir. São tantas as incongruências e as estilizações que a narrativa do livro de Josué não pode, senão, ser lida em relação às intenções de um redator (de tradição deuteronomista) que tinha em mente os problemas de sua época e substancialmente o problema de retomada de posse da terra de Canaã por parte dos sobreviventes do exílio babilônio. Esse redator decidiu narrar a conquista- modelo segundo os caracteres da unidade de ação e do forte confl ito em relação aos residentes. 33 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Essas escolhas de fundo não eram nada esperadas: os sobreviventes da Babilônia eram (Esd 1,5) e não podiam deixar de ser de Judá e de Benjamim, ou seja, do núcleo fi nal do ex-reino de Judá conquistado por Nabucodonosor, portanto, duas tribos em doze. E o país hospedava uma pluralidade de povos nem todos igualmente estranhos, pois havia inclusive israelitas (javistas) não deportados, seja no Sul, seja no Norte, com os quais uma política de compromisso podia ser razoavelmente perseguida. O fato é que a narrativa parece refl etir uma política extremista, que era uma das opções (mas não a única possível) para os grupos dirigentes que pretendiam reconstruir um novo Israel. Para entender o que é a obra deuteronomista: Para o Deuteronômio, mais que para qualquer outro livro bíblico, a interpretação depende do contexto hermenêutico que se supõe. De fato, esse escrito pode ser lido quer no contexto do pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), como o último livro da Torá, quer como a abertura programática da historiografi a deuteronomista. Figura 2 - Os livros que fazem parte da historiografi a deuteronomista Fonte: Adaptado de Römer (2010, p. 260). O paradigma adotado no livro de Josué é o da guerra santa, de clara matriz deuteronomista, mas dotada de profundas raízes na ideologia siro-palestina desde os séculos da pressão assíria. A historiografi a deuteronomista o aplicou retrospectivamente a toda a história das relações entre Israel e os outros povos, não apenas na época da conquista, mas também na época dos juízes e depois no primeiro período monárquico. Os princípios fundamentais da guerra santa: Deus está conosco, combate ao nosso lado e garante a vitória; os inimigos, embora aparentemente mais fortes, não podem contar com igual apoio e estão destinados à derrota; as ações bélicas, porém, devem ser procedidas por adequada preparação votivo-cultural; todo erro ou falta nesse sentido seria punido com o insucesso; o fruto da vitória 34 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS deve ser atribuído a Deus (que é seu artífi ce) e, portanto, deve ser ritualmente destruído sem dele tirar vantagem material. Como conclusão, se o povo for fi el a Deus, seguramente vencerá. E, ao contrário, se for derrotado, deverá procurar as causas do insucesso numa infi delidade sua (LIVERANI, 2008, p. 349). Os povos estranhos serão substituídos pelo povo eleito, que pode tomar posse de um território já preparado – com cidades, casas e campos – desde que elimine sem piedade os habitantes anteriores e garanta a total devoção a Yahweh de todos os membros da nova comunidade que se pretende construir: Depois, vocês atravessaram o Jordão e chegaram a Jericó, mas a classe poderosa de Jericó fez guerra contra vocês: os amorreus, os fereseus, os cananeus, os heteus, os gergeseus, os heveus e os jebuseus, mas eu os entreguei em suas mãos. Eu enviei grandes vespas diante de vocês, o que tirou de sua frente os dois reis amorreus; não foi com a espada de vocês, nem com seu arco. Dei para vocês uma terra pela qual vocês não se esforçaram, cidades que vocês não construíram, e nas quais vocês habitam; vinhas e olivais que vocês não plantaram, e dos quais vocês comem. (Js 24,11-13). Na versão sacerdotal, a ideia de uma terra já preparada na qual se implanta prévia eliminação dos habitantes anteriores está analogamente presente, embora a ênfase seja posta na purifi cação cultual: Quando vocês atravessarem o rio Jordão e entrarem na terra de Canaã, expulsem todos os habitantes da terra da presença de vocês. Façam desaparecer todas as suas imagens esculpidas. Façam desaparecer todas as suas imagens fundidas, e eliminem todos os seus lugares altos. Tomem posse da terra e habitem nela, pois eu lhes dei essa terra, para que vocês a possuam (Nm 33,51-53). No fundo, a ideia da conquista como total substituição de uma população anterior – exterminada – por uma que fosse importada, com o intuito de substituí- la, não pode ter sido concebida antes que difundissem as deportações imperiais. Mas nos termos em que essa ideia foi formulada, ela se torna uma visão totalmente utópica, em sua implacável rigidez, e nem pode pertencer nem à época da primeira etnogenia, nem à do regresso do exílio: põe-se no plano do projeto ideal mais que da prática realização, fornece informações sobre a ideologia de quem o tinha formulado, mais que sobre os acontecimentos que se produziram. 35 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 A Fim de Compreender (Gn 1-11) De acordo com a formação do Antigo Testamento, a história de Israel não começa com a criação ou com o chamado de Abraão. Dessa forma, embora o livro de Gênesis apareça no início da Bíblia,suas narrativas foram elaboradas muito tempo depois, já na terra de Israel. E provavelmente só por volta do ano 400 a.C. é que o Gênesis alcançará a forma como encontramos na Bíblia atualmente. Da mesma maneira como nós contamos a história do nosso país de forma diferente da que era contada 20 ou 30 anos atrás, também o povo de Israel, a cada nova etapa da vida, alterava a forma de contar a própria história. Muitas narrativas presentes no livro de Gênesis apresentam histórias de famílias, clãs, santuários ou instituições. Ora, as tribos se organizavam de forma autônoma e independente entre si, consequentemente, suas histórias também. Lentamente, no conjunto de Israel, essas “historietas” particulares iam sendo reelaboradas e agrupadas tanto em tradições orais como escritas. Dessa forma, após três ou quatro séculos de monarquia, após muitas releituras na separação dos reinos (cerca de 930 a.C.) e nas tentativas de reunifi cação de Ezequias (por 700 a.C.) e de Josias (mais ou menos 620 a.C.), essas tradições serão integradas em escritos maiores como a história de um só povo. E tudo indica que o processo terá fi m com ampliações e releituras, somente quando o povo de Judá for levado para o exílio (598-530 a.C.), e quando os descendentes dos exilados retornarem e reconstituírem Judá (cerca de 400 a.C.). As duplicações e contradições são testemunhas do que encontramos no livro de Gênesis: - Duas narrativas da criação (1,1-2,4a e 2,4b-24); - Duas genealogias de Caim (4,17-26 e 5,12-31); - Duas genealogias de Sem (10,21-25 e 11,1-17); - Duas narrativas do dilúvio combinadas (6,5-9,17); - Duas narrativas da aliança entre Deus e Abraão (15-17); - Duas expulsões de Agar (16-21); - Três narrativas sobre os patriarcas e suas mulheres no estrangeiro (12,10- 20; 20; 26,1-11); - Duas histórias combinadas de José (37-50). 36 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS As duplicações de uma mesma narrativa demonstram que foram escritas e/ou contadas em lugares e contextos diferentes. Por isso o estilo e o gênero literário não são os mesmos. Cada povo, no seu lugar de origem, possui um estilo próprio de contar e narrar as suas histórias. Por este motivo, não podemos analisar os textos duplicados de forma fundamentalista, pois perderiam a sua originalidade, e até incorreria em duvidarmos de sua autenticidade literária. Fonte: Rodrigues (2004, p. 45). O livro de Gênesis é dividido em duas grandes partes: Na primeira, Gn 1-11, onde estão as narrativas sobre a origem do mundo, da vida e dos diversos povos; na segunda, Gn 12-50, onde encontramos as narrativas sobre os patriarcas e matriarcas das tribos de Israel; Abraão, Sara e Agar (12, 1-25,18); Isaac e Rebeca; e principalmente Jacó, com a fi lha e os 12 fi lhos de Lia, Zaquel, Bala e Zelfa (25,19-36,43); por fi m, a história de José (37,1-50,26). Ao abrirmos o livro do Gênesis encontramos os famosos relatos da Criação, a história de Adão e Eva, da serpente, de Caim e Abel, do Dilúvio e da Torre de Babel. Essas histórias nasceram ao longo da história do próprio povo de Israel infl uenciadas pela cultura dos povos do Antigo Oriente Próximo, especialmente da Mesopotâmia, do Egito e de Canaã, com os quais Israel conviveu. De acordo com a concepção de mundo dos povos do Antigo Oriente Próximo, a terra tinha a forma de um disco plano, rodeada por águas e sustentada por colunas. As águas de baixo eram chamadas de águas inferiores, onde fi cavam o abismo e o xeol, a morada dos mortos. Sobre a terra se estendia o fi rmamento, numa espécie de arco ou uma tigela virada para baixo. Nesse fi rmamento estavam pendurados o Sol, a Lua e as estrelas. Acima do fi rmamento fi cavam as águas superiores, que saíam através das comportas, e mais acima estava a morada de Deus. Veja a fi gura a seguir: 37 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Figura 3 – A concepção de mundo dos povos do antigo oriente próximo Fonte: Disponível em: <http://leituraorante.comunidades.net/65279-2-aula-o-povo-de-isra- el-e-a-criacao-do-mundo3>. Acesso em: 6 out. 2017. Essa visão de mundo infl uenciou os autores de Gênesis 1 a 11. Além da cultura daquela época, é importante lembrar os principais acontecimentos da história de Israel, nos quais surgiram as páginas iniciais do livro do Gênesis. Vamos fazer esse percurso juntos? a) Os principais acontecimentos históricos A partir das diferentes redações apresentadas, fi ca claro que o relato de Gênesis 1-11 é fruto de um longo processo histórico e recolhe histórias de várias gerações. A redação fi nal do livro de Gênesis aconteceu por volta dos anos 400 a.C. As histórias narradas nesse livro passaram por um longo processo, foram contadas, escritas, reescritas e relidas durante as diferentes etapas da história de Israel. Vamos recordar os vários períodos dessa história? • O período tribal: O período entre os anos 1250 e 1030 a.C. é conhecido como o período das aldeias comunitárias. O período das tribos. Nesse tempo em que não havia rei, o poder era descentralizado e as decisões eram tomadas em assembleias. A maioria da terra era propriedade coletiva. Nos primeiros tempos, o trabalho e seu fruto eram partilhados entre todos. 38 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Um tempo marcado pela igualdade e solidariedade. Algumas memórias desse período, por exemplo, a integração com a terra, foram preservadas em Gênesis 2. • A monarquia: A monarquia em Israel ocorreu entre os anos 1030 a 586 a.C. Apesar dos protestos de vários grupos do interior, surge a monarquia em Israel. O povo é governado por um rei, existe uma corte, e um templo. Aumentam a opressão, o endividamento e a escravidão, essa realidade está refl etida em Gênesis 3. Em 586 a.C. os babilônios dão fi m à monarquia de Israel e algumas lideranças são exiladas para a Babilônia (VASCONCELOS; SILVA, 2003). • O exílio da Babilônia: O exílio da Babilônia ocorreu provavelmente entre os anos 586 a 539 a.C. O povo de Israel vivia um momento de profunda crise de identidade. Nesse período, a história de Israel e suas tradições, que já haviam sido escritas, são revistas e reelaboradas. Tanto em Jerusalém, como nos arredores da cidade e na Babilônia surgiram muitos escritos que hoje fazem parte da Bíblia. Por exemplo, na Babilônia surge o conhecido poema da Criação (1,1–2,4a) e a tradição da torre de Babel (Gn 11,1-9). (VASCONCELOS; SILVA, 2003). • O período persa: O domínio persa ocorreu entre os anos de 539 a 333 a.C. O império persa favorece a reorganização dos povos dominados a partir da religião, exigindo em troca submissão política e pesados tributos. Alguns grupos de judeus exilados voltam para Jerusalém e reorganizam o povo a partir do Templo e da Lei, sob o governo de sacerdotes ofi ciais. Nesse período, conhecido como teocracia, multiplicam-se os sacrifícios e as exigências da Lei, especialmente das leis referentes à pureza e ao sábado (8,20-21) (KONINGS, 1997). A redação fi nal dos livros de Gn, Ex, Lv, Nm e Dt, e a reunião dos livros que formam a Torah, conforme a tradição judaica, e Pentateuco, conforme a tradição cristã, são concluídas por volta do ano 400 a.C. A partir de sua história e de sua cultura, os autores de Gênesis 1 a 11 deram suas respostas às necessidades de sua época, em contextos e lugares diferentes, porém essa história é tecida com a sabedoria acumulada de geração em geração. É preciso ler, deixar se envolver por essas narrativas e descobrir a riqueza dessa história. 39 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 b) Em busca da mensagem de Gênesis 1-11 Os relatos de Gênesis 1 a 11 procuram nos ajudar a entender mais sobre as origens da vida, a partir da religiosidade do povo de Israel, da sua crença no Deus único e criador de todas as coisas. Na tentativa de auxiliar o seu aprendizado, apresentamos algumas chaves para você ler as páginas iniciais desse livro: • Você deve saber que os relatos sobre a criaçãodo mundo e da humanidade não são exclusividades de Israel, do Egito e do Oriente Próximo. Também povos mais distantes, como Índia, China e África, produziram suas histórias sobre a origem do universo. Todas as culturas antigas produziram relatos da criação, inclusive no Brasil há vários contos indígenas da criação (MARQUES; NAKANOSE, 2007). • As narrativas de Gênesis 1-11 afi rmam que o Deus de Israel é o criador. Na região da Mesopotâmia, Canaã e Egito havia a crença na existência de divindades criadoras. Os relatos de Gênesis 1 a 11, mesmo de épocas diferentes e utilizando diversos nomes para Deus, atestam que o Deus de Israel é o criador do céu e da terra (Gn 1; Sl 121,2; 124,8; 134,3). • Um Deus humano e próximo. Algumas narrativas do livro do Gênesis apresentam a imagem de um Deus presente na vida do ser humano. Um Deus oleiro: ele modela o 'adam e os animais a partir do solo; exerce também a função de construtor: da costela de Adão, ele constrói a mulher (Gn 2,21-22). Ele é agricultor: planta um jardim (2,7-8.19). Deus faz justiça aos oprimidos e não abandona o pecador à sua própria sorte (4,10.15). Um Deus libertador que não compactua com o projeto opressor (11,1-9). • A petulância do ser humano. No jardim, mulher e o homem possuem liberdade e se relacionam com Deus e com todos os seres criados. A única proibição é não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A serpente não convida à desobediência, mas sua argumentação atinge o ponto central do ser humano: "vós sereis como deuses, versados no bem e no mal" (3,5). A petulância do ser humano, especialmente dos reis e dos governantes que se colocam no lugar de Deus, provoca a destruição do paraíso. • A agressividade interrompe a fraternidade. A história de Caim e Abel é a primeira de uma série de histórias que apresentam confl itos entre irmãos. Caim é apresentado como agricultor e Abel como pastor. Essa história retrata os confl itos existentes entre agricultores e pastores. E nesse confl ito, Deus opta pelo mais fraco. A história exemplifi ca a ruptura da fraternidade como a raiz da violência. 40 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS • A realidade de injustiça provoca a aniquilação da natureza. A crescente realidade de injustiça e a concentração de poder provocam a destruição de toda a natureza: o Dilúvio. Na Babilônia, os judeus exilados entram em contato com histórias de inundações próprias da região. Os autores de Gênesis 6-7 fazem uma releitura dessas histórias, apresentando uma explicação para a sua realidade de destruição, com a intenção de provocar mudanças de comportamento na sociedade. • Graciosidade de Deus. À medida que aumentam a violência e a maldade do ser humano, cresce a graça de Deus. A pessoa se distancia, mas Deus continua se aproximando e cuidando amorosamente de sua criação. A opção do Senhor é pela vida. Ele faz uma aliança com Noé e, por meio dele, com toda a humanidade: "Não haverá mais dilúvio para devastar a terra". (9,11). • A identidade do clã e a compaixão/misericórdia entre todos os povos. As histórias que estão em Gênesis 1-11 nasceram em lugares e épocas diferentes, mas foram unidas umas às outras por meio das genealogias. A intenção teológica dessas listas genealógicas é garantir a identidade do povo de Israel e a importância de desenvolver relações solidárias com todos os povos, uma vez que todos descendem de um único tronco. • Dissipação e heterogeneidade: No episódio da Torre de Babel (Gn 11,1-9), a dispersão e a diversidade de línguas impedem o projeto dos dominadores. Portanto, é castigo de Deus para os opressores, mas para os pobres e exilados é libertação. É a realização da bênção recebida em Gênesis 1,28 e renovada em Gn 9,1: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra". • Prefácio à história de Israel. A lista dos descendentes de Sem nos faz chegar até Taré e seus fi lhos, entre os quais está Abraão. Dessa forma, a lista faz a passagem da história das origens para o tempo dos patriarcas. A bênção, renovada com Noé (9,1), terá continuidade com Abraão (12,1- 3). Deus lhe faz a promessa de que, por meio dele, todas as nações serão abençoadas. • Transgressão, admoestação e Nova Aliança. Nos relatos de Gênesis 1-11 é possível perceber o esquema teológico de pecado, castigo e salvação. A situação de pecado provoca o castigo: o dilúvio e a morte, mas a partir de um resto, representado por Noé e seus descendentes, Deus renova a sua aliança e recria nova humanidade (9,9-10). Essa aliança será renovada com o povo de Israel e, a partir de Jesus, chegará a todos os povos. 41 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Atividade de Estudos: 1) A harmonia acaba e aparecem as ambiguidades da vida. A narrativa de Gn 3, 1-24 está ligada a 2,4b-25, esta é uma das narrativas criadas na história de Israel para tentar explicar a origem do mal, da morte e do sofrimento. Apresenta comportamentos e instituições que auxiliam os povos a se organizarem, a fi m de viverem, superando o mal e a morte. Leia Gn 3, 1-24 a partir da compreensão das características de Gn 1-11 acima mencionadas, e procure identifi car as instituições que perpassam a narrativa e o possível contexto e simbologia em que essa narrativa foi escrita. __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ c) Localizando o texto: Na tribulação nasce outra vez a esperança O exílio da Babilônia é um marco na história de Israel. Os exilados fi caram sem terra, sem rei e sem templo. Eles perdem suas principais referências. A partir dessa situação de crise e perda de identidade, nasce a preocupação de explicar as razões da derrota e do exílio. Os sacerdotes, profetas e sábios procuravam dar uma resposta para aquele momento de profunda intranquilidade. As lideranças religiosas retomaram a história do povo, fazendo uma releitura e apontando novas possibilidades. Vamos relembrar outros fatos da história de Israel ocorridos um pouco antes do exílio. 42 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS Em 609 a.C. o faraó do Egito colocou Joaquim no trono de Judá e em troca exigiu pesados tributos. Em 605 a.C. o exército de Nabucodonosor, da Babilônia, derrotou o Egito, se apoderou da Síria e da Palestina. O rei Joaquim, em 602 a.C., deixou de pagar tributos para a Babilônia, e por causa disso provocou um grave confl ito (2Rs 24,1). O exército babilônico marchou contra Judá e cercou a cidade de Jerusalém (VASCONCELOS; SILVA, 2003). Em 597 a.C. Jerusalém é invadida e a elite foi deportada para a Babilônia. O rei, a nobreza e os sacerdotes ofi ciais, entre eles o profeta Ezequiel, foram exilados. No lugar do rei Joaquim, os babilônios colocaram Sedecias. Alguns anos depois, o novo rei, movido por sua ambição, deixou de pagar tributos para a Babilônia. Desta vez a repressão é muito pior. Em 587 a.C. a cidade de Jerusalém foi invadida e destruída. A família do rei foi executada, sendo que o rei foi preso, torturado e levado para a Babilônia (2Rs 25,6-7; Jr 52,9-11). O templo foi saqueado e incendiado (Lm 2). A tomada de uma cidade e a deportação são realidades acompanhadas de gestos brutais. Em geral, as mulheres foram violentadas, muitas crianças atiradas contra as pedras, os guerreiros tiveram suas cabeças cortadas ou esfolados vivos (Lm 5). São cenas que não se apagam da memória daqueles que as vivenciaram. A segundadeportação atingiu pessoas ligadas à corte, grupos de cantores do templo, artesãos, comerciantes, agricultores e viticultores (2Rs 25,11-12). Na Babilônia, esse grupo é tratado como escravo, utilizado como mão de obra nas construções públicas, nas lavouras, na reconstrução de cidades destruídas e em outros trabalhos forçados: "Este povo foi despojado e saqueado, todos eles estão presos em cavernas, estão retidos em calabouços. Foram submetidos ao saque e não há quem os liberte; foram levados como despojo, e não há quem reclame a sua devolução" (Is 42,22). Muitos não enxergavam mais sentido na vida nem perspectivas quanto ao futuro. Em terra estrangeira, sem provisões ou condições de sustento, o povo entra em contato com a religião do império e se sentiu confuso em sua crença. Na Babilônia havia muitas divindades, Marduk, representado pelo Sol, era a mais importante, pois ele era considerado o criador do mundo e do ser humano. Segundo a crença ofi cial, essa divindade garantiria a vitória aos exércitos de Nabucodonosor. Entre as práticas religiosas mais populares na Babilônia, se destacava o culto à deusa Sin, representada pela Lua, e à deusa-planeta Ishtar. Muitas pessoas exiladas assumiram as divindades do império invasor. (VASCONCELOS; SILVA, 2003). 43 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 Por conta de todo o sofrimento experienciado, o povo exilado na Babilônia começa a questionar: Onde está o nosso Deus, Javé? Por que ele está nos castigando? A crise de fé e de identidade exige uma resposta. Nesse momento de muita dor e sofrimento, surgiram salmos, poesias, narrativas e outros escritos que recordavam as maravilhas que Deus realizou na vida do povo de Israel, desde as suas origens. As orações renovam a fé em Javé como o único criador de todas as coisas. Assim reza o povo: "Quão numerosas são tuas obras, Javé, e todas fi zeste com sabedoria! A terra está repleta das suas criaturas" (Sl 104,24). Um dos textos mais conhecidos no exílio da Babilônia é o poema litúrgico de Gênesis 1,1–2,4a, provavelmente escrito por sacerdotes exilados. Eles estruturaram o poema da criação com o refrão: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,4; 10.12.18.20.24). E depois de ter criado o ser humano, numa visão panorâmica de sua obra, dizem: "Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom" (1,31). Numa realidade desordenada e devastada pela violência, os autores recordavam que o mundo criado por Deus é belo, ordenado, perfeito e bom. Os autores recordavam ao povo exilado que a sua condição não era a de escravo, mas de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus. Gênesis 1,1-2,4a é um convite aos exilados, de ontem e hoje, para rezar e renovar sua fé e sua esperança em Deus criador. d) Interpretando o texto: Gn 1,1 a 2,4a Atividade de Estudos: 1) Leia Gn 1,1 a 2,4a e escreva o que é criado em cada dia. Essa atividade será importante para você ter uma ideia de como cada elemento da criação se estrutura dentro da narrativa, bem como a descoberta do estilo literário. Boa sorte! __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 44 ELEMENTOS E FUNDAMENTOS BÍBLICOS No início do poema da criação há um título: "No princípio, Deus criou o céu e a terra". Esta frase é uma síntese de todo o bloco e apresenta o tema principal: Deus cria o mundo. No Primeiro Testamento, tradicionalmente chamado de Antigo Testamento, o verbo criar, bara' em hebraico, é usado somente para a ação criativa de Deus. O nome de Deus aparece por 35 vezes apenas nesse poema, a terra e o fi rmamento aparecem por 21 vezes. Os autores insistem que o verdadeiro Deus não é Marduk, nem a deusa Sin, mas o Deus de Israel. Ele é o criador da terra e do céu, que signifi ca a totalidade do universo (Sl 89,11). O versículo 2 informa o que existia antes da criação: terra vazia e vaga, trevas, abismo e águas. No princípio era o caos. É a partir do caos que Deus fará surgir a criação. A desordem e o caos representam a situação do povo no exílio da Babilônia. De acordo com o poema babilônico, no princípio da criação só existiam as águas primordiais: o caos. O povo de Israel assimila a visão de mundo dos babilônios, porém, adaptando-a à sua realidade, declara a sua fé em Deus: o caos não surge de Deus, mas ele coloca ordem. Em Gênesis 1, o sopro de Deus paira sobre as águas. Não se trata de um vento destruidor, mas de um sopro que prepara e anuncia a palavra criadora de Deus: a vida (Sl 33,6). "Deus disse: 'Haja luz', e houve luz" (Gn 1, 14). No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas. O tema da separação dos elementos opostos aparece em várias narrativas de povos vizinhos. No Gênesis, os três primeiros dias são dias de separação. No relato bíblico, a separação não acontece por meio de um combate entre as divindades, conforme o relato da Babilônia, mas é um gesto de Deus. Após esse gesto, Deus dá nome à sua criação, confi rmando sua relação e responsabilidade com ela. À luz ele chama dia, e à treva, noite (Gn 1,3-5). No relato babilônico, a luz vem em primeiro lugar e pertence à divindade. Para os autores de Gênesis, a luz não é mais propriedade dos deuses. O abismo e a luz não são sagrados, são apenas criaturas de Deus. No segundo dia, Deus faz o fi rmamento (Gn 1,6-8). A ideia de que o céu separa as águas de cima e as de baixo está presente em outras culturas. O céu é pensado como uma placa de metal, que Deus pode abrir e fazer cair a chuva: "abriram-se as comportas do céu" (Gn 7,11; Jó 37,18). Dizer que Deus faz não se trata simplesmente de um chamado à existência, mas de uma fabricação. Ele não avalia esta obra. Os autores insistem que o verdadeiro Deus não é Marduk, nem a deusa Sin, mas o Deus de Israel. Ele é o criador da terra e do céu, que signifi ca a totalidade do universo (Sl 89,11). A desordem e o caos representam a situação do povo no exílio da Babilônia. 45 O ANTIGO TESTAMENTO E SUA HISTÓRIA Capítulo 2 No terceiro dia, cria a terra fi rme (Gn 1,9-13). As águas são recolhidas e aparece a terra fi rme. Está no coração e na boca do povo: "O céu foi feito com a palavra de Javé, e seu exército com o sopro de sua boca. Ele represa num dique as águas do mar, coloca os oceanos em reservatórios" (Sl 33,6-7). Os babilônios acreditam que Marduk mora no meio do oceano. No poema bíblico, o mar e a terra são criados pela palavra de Deus e pertencem a ele. Esta é a segunda criação avaliada como boa: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,10). A obra do terceiro dia ainda não está completa. É necessário que a terra produza vegetação e árvores. A origem está na palavra de Deus. Ele ordena que a terra produza seus frutos. Para Israel, a terra é criatura de Deus. A sua fertilidade não depende de uma divindade, mas ela produz naturalmente, segundo o que Deus ordena. E no fi nal, pela segunda vez nesse dia, temos a avaliação: "Deus viu que isso era bom" (Gn 1,12). No quarto dia, ocorre a criação de luzeiros no céu para separar o dia e a noite (Gn 1,14-19). A palavra de Deus chama à existência o Sol, a Lua, as estrelas. Os nomes sol e Lua não aparecem. Esses astros são divinizados pelos povos vizinhos de Israel, porém, no relato bíblico, eles são simplesmente luzeiros, cuja função é iluminar a terra e comandar o dia e a noite, os meses e as estações. Na Babilônia, acredita-se que o Sol, a Lua e as estrelas possuem o poder de controlar o destino das pessoas. Essa crença é desacreditada pelos autores de Gênesis 1, que evidenciam que os astros são criaturas de Deus. No quinto dia, são criados animais pequenos e grandes (Gn 1,20-23).
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