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Xaoz Academia Comentários sobre A Alma Imoral XAOZ ACADEMIA; 2020. Comentários sobre A Alma Imoral. Rio de Janeiro: Projeto Xaoz. Bibliografia 1. Metafísica - Brasil. Comentários sobre A Alma Imoral. 1 Xaoz Academia A Xaoz Academia tem como objetivo reunir saberes e prover ao público do Projeto Xaoz um ambiente para estudos e para compartilhamento de informações sobre diversas vertentes e paradigmas mágicos, mitológicos, cosmológicos e psicológicos desenvolvidos pela humanidade e ainda em desenvolvimento. O Clube do Livro da Xaoz Academia foi instituído visando a análise mais detalhada de obras literárias relacionadas ao ocultismo, para que as diversas leituras e opiniões sobre cada livro fossem compiladas em busca de um entendimento mais profundo da obra, bem como sua aplicação em diversos âmbitos dentro da magia. A aplicação dos conceitos em práticas e rituais pode se mostrar como um exercício interessante de expansão do pensamento, além de prover um paradigma coeso e coerente, muitas vezes inédito, para a realização de ritos e cerimônias. Sendo assim, o terceiro livro escolhido foi A Alma Imoral, de Nilton Bonder, um ensaio que trata de questões de moralidade e imoralidade, corpo e alma, do que é divino e do que é profano. Obediência e desobediência são analisadas em função de serem boas ou más dependendo da situação, podendo inclusive haver uma inversão de valores. Este livro consiste nos comentários de RoYaL sobre o livro, incluindo sua aplicação prática e sua interpretação em relação ao saber metafísico e ao cotidiano. 2 Sumário Introdução 4 I. A Imoralidade da Alma 6 II. Lógicas da Alma 11 III. Traição Judaico-Cristã 19 IV. O Futuro das Traições 22 3 Introdução Este é um comentário geral sobre o livro “A Alma Imoral”, do rabino Nilton Bonder. Mas não será falado sobre ele apenas repetindo suas palavras, e sim lançando reflexões que orbitam em torno de seu sentido mais geral. Sobre as interpretações e os elementos históricos apresentados no livro, ressalta-se que partem de um lugar de fala muito específico do autor, recomendando-se uma checagem mais profunda dos fatos caso se deseje exatidão histórica. É necessário ler as palavras que serão escritas aqui não de forma literal, para não sermos Tolos, nem de forma totalmente desacreditada, para não sermos Perversos, mas sim entendendo-as de forma simbólica e encaixando-as nas mais diversas situações do cotidiano. “Aquele que vê pensa que tudo o que vê é tudo o que é. Porque quando sabe que tudo o que vê não é tudo o que é, de alguma forma já está vendo o que não vê”. Após comer a maçã, o ser-humano descobre a nudez, e evitando a nudez só chama mais atenção para ela. Qualquer outro animal não humano não se percebe nu e, portanto, entende-se que sua nudez é aceitável, afinal o próprio animal não tem vergonha disso. Assim, o ser-humano se fez o mais vestido e o mais nu dos animais. A nudez dos deuses, por outro lado, é aceita, pois não se trata da nudez de um homem, mas sim da nudez de um deus. Em Gênesis 1:28, descobrimos que existia um único mandamento positivo no Paraíso: “Crescei-vos e multiplicai-vos”. Assim, a reprodução aparece como o principal mandamento a ser cumprido. Mas para que este mandamento venha a ser cumprido em qualquer outro local que não 4 o Éden, são necessárias outras regras que venham a prover as melhores condições de convivência visando à proliferação. No Paraíso também havia outro mandamento, dessa vez negativo: “Não comais da árvore do conhecimento”. Este mandamento negativo abre uma oportunidade de co-criação do universo, pois desobedecendo um comando positivo o homem se mantém na inércia, mas desobedecendo um comando negativo o homem cria um universo alternativo onde aquela lei não mais existe. A Cobra pode muito bem representar uma parte do próprio ser-humano, aquela que trai, que rompe e revoluciona: a Alma Imoral. E o homem no Éden assemelha-se a um Macaco, podendo representar outra parte, aquela que obedece, mantém e cuida: o Corpo Moral. 5 I. A Imoralidade da Alma O Macaco somente obedece, mantém e cuida, trafegando pelo pilar da Misericórdia. O Cavalo segue seu destino pré-traçado, trafegando pelo meio da rua sem olhar para os lados. A Cobra somente trai, rompe e revoluciona, trafegando pelo pilar da Severidade. O Humano, por outro lado, deve compreender que pode usar todas estas dimensões. Deve usá-las na medida do necessário, mantendo tradições quando o correto ainda for o bom, e traindo quando o correto não mais o for. Quando o correto é mau, deve-se buscar um incorreto bom, em prol da evolução de todos. Porém, um Macaco não se sabe Macaco. Um Cavalo não se sabe Cavalo. uma Cobra não se sabe Cobra. Um humano, esse sim, se sabe humano. Quando um humano não se sabe humano, aí sim este se torna um Macaco, um Cavalo, uma Cobra. A Tradição “A Tradição é composta por três dimensões principais: 1) A Família como estrutura artisticamente moldada para melhor atender aos interesses reprodutivos em determinado contexto socioeconômico; 2) Os contratos sociais fundamentais para a manutenção de uma convivência que propicie as melhores condições de preservação da vida e sua reprodução; e 3) As crenças engendradas para oferecer respaldo teórico e ideológico à preservação. O animal moral tem na tradição um instrumento fundamental para sua preservação”. 6 É compreendido que as regras servem ao bom convívio, e que devem ser reavaliadas constantemente para se adaptarem à nova realidade. As regras quando são criadas estabelecem um espaço moral que é amplo para a maioria. Ao longo do tempo, este espaço se torna estreito para as minorias, e estas devem transcender, trair, lutar pelos seus ideais no local agora estreito e torná-lo amplo novamente, ou sair em busca de um novo amplo abandonando o local estreito. A Traição A traição, por outro lado, é importante para transcender, para fazer cada vez melhor, para gerar uma sociedade diferente frente aos novos condicionantes que se apresentem, para gerar indivíduos mutantes e não arriscar o colapso de toda uma população idêntica caso haja uma doença. O Espírito da Lei é a Alma Imoral, e por vezes é exatamente analisando-o que se preza pela lei de forma melhor do queseguir a Letra da Lei, seu Corpo Moral. Toda lei só tem legitimidade se seu objetivo último não for se manter acima de tudo, mas sim promover o bem-estar inclusive pela sua eventual desobediência. Nilton Bonder ressalta que o Talmude e o Tratado de Menachot contam com o registro até mesmo das opiniões dissonantes, que não se tornaram lei. Cita que o Talmude desqualifica julgamentos consensuais, e que esta mesma lógica é abordada no Tratado de Sanhedrin, quando para decidir sobre penas capitais eram necessários 23 juízes, e o acusado era liberado caso houvesse unanimidade. Isto se coloca porque se um julgamento foi capaz de gerar unanimidade, sem nenhuma opinião contrária, entende-se que não foram ouvidos ou considerados extensivamente os argumentos de todas as partes envolvidas. Locais Amplos e Estreitos 7 Segundo os ensinamentos Chassídicos o Egito era um lugar amplo, mas em determinado momento se tornou estreito para os judeus - é associado em hebraico à palavra mitsraim, “lugar estreito”. Então os judeus saem do Egito e marcham, mas se deparam com o Mar Vermelho. Seguindo o comando de Moisés, eles montam quatro acampamentos às margens do mar, e aguardam. Porém, cada acampamento tem uma opinião sobre o que devem fazer. O primeiro acampamento quer voltar. O segundo quer lutar. O terceiro quer jogar-se ao mar, e o quarto se mobiliza em oração. Moisés se consulta com Deus, e após receber uma resposta dirige-se aos quatro acampamentos, dizendo: “Aos que querem voltar, que fiquem. Aos que querem lutar, que não lutem. Aos que querem se jogar, não se joguem. Aos que oram, que se calem. Deus me disse para que todos marchemos, seguindo em frente”. Todos estes acampamentos representam hesitação e vacilação, ou uma luta contra algo que não pode ser vencido. Representam quatro reações típicas do corpo quando sua alma percebe-se em um lugar estreito, e em nenhum deles reside a resposta. Neste caso, “marchar” e “seguir em frente” é a única maneira. Apenas “fazendo” o futuro é que se “chega” até ele. Nesta versão do mito, o mar só se abre quando os exércitos de Israel já estão dentro do mar com água até o pescoço, seguindo em frente, com confiança em seu líder. A Condição de Traído O ser-humano está em eterna tensão entre o corpo e a alma, a preservação e a transgressão, a moralidade e a imoralidade. Sendo assim, deve escolher o tempo todo entre o apego e a traição, já sabendo que o apego irá ferir a alma, enquanto a traição irá ferir o corpo. Da mesma forma, a traição ao 8 outro pode ser causada pelo apego a si, e o apego ao outro muitas vezes é uma traição a si. O luto é uma condição limítrofe por estar lidando com apego e traição o tempo todo. Por um lado há um apego ainda latente por quem se foi, e por outro um medo de trair quem se foi, ao seguir a vida. O traído, por outro lado, deve entender que esta condição só surge porque o outro gerou uma quebra de expectativa em relação a algo ou alguém pelo qual tinha apego. Já o apegado deve perceber se este apego causa alguma traição a si, ao que realmente é bom para si próprio, mesmo que não pareça correto para os outros. Em suma, manter esta tensão é extremamente importante. Prezar apenas pelo bom sem se preocupar com o correto pode causar violência ou culpa. Prezar apenas pelo correto sem se preocupar com o bom pode causar apego e depressão. Modelos Tradicionais de Traição Segundo o rabino Nilton Bonder, e pela leitura Chassídica, no livro de Gênesis encontramos três modelos tradicionais de traição: o rompimento de naturezas de Adão, o rompimento social de Abraão e o rompimento com a família de Jacó. Adão rompe a sua natureza adquirindo conhecimento. Neste momento, ele trai ao seu “eu” do passado, e assim se torna um novo “eu”, um que se descobre nu. Quando se trai a própria natureza o ser-humano se transforma, mas precisa então entender todo esse novo mundo, se vestindo de camadas que lhe permitam viver nesse novo estado. Antes Adão se sentia “vestido” mesmo nu, mas com conhecimento se torna necessário um novo conjunto de vestimentas que se ainda não existem devem ser inventadas pelo transgressor. 9 Abraão ouve uma voz que lhe diz “sai da casa de teus pais para a terra que lhe mostrarei”, e em outra ocasião desrespeita a tradição de sacrificar o filho, ouvindo “não lhe faças mal”. Assim, ele rompe com o contrato social ao não só deixar de seguir as regras observadas pelos pais (ao sair de casa) e aquelas observadas pelo povo do local (ao não sacrificar o filho), mas ao posteriormente fundar uma nova nação com novas regras. Aqui, o contrato social é rompido porque não mais serve, e assim podem surgir novos contratos sociais. Jacó rompe com o outro, que é representado pela sua família. Seu irmão Esaú iria receber a bênção, e a herança, de seu pai cego, porém Jacó – com ajuda da mãe – se passa pelo irmão e recebe-a, usurpando a primogenitura. Ao final, apesar de transgressor, Jacó recebe o nome de Israel e seus doze filhos dão origem às doze tribos que irão formar o povo Hebreu; já o irmão usurpado dá origem aos Edomitas, que serão seus eternos inimigos. Posteriormente seu filho José segue o mesmo modelo e usurpa a primogenitura. 10 II. Lógicas da Alma Por meio da evolução, o corpo dos descendentes de um animal passa por alterações sucessivas a cada cruzamento e a cada parto, até que o próximo filhote não possa sequer ser chamado de uma mesma espécie em relação ao primeiro animal. O lugar amplo aos poucos se torna estreito, e o corpo se sente desconfortável. Nessas situações, ele deve ser abandonado como a casca de um crustáceo em crescimento, para que a evolução prossiga. Deve ser entendido que o corpo antigo evoluiu, e que isso ocorreu pelo abandono do mesmo e criação de um novo. Algumas pessoas (indivíduos) podem ter morrido na travessia do mar, mas ao mesmo tempo as pessoas (coletivo) sobreviveram à travessia do mar. Elas sobreviveram na figura do grupo que chega à outra margem e reestabelece o povo. Por isso, o profeta Isaías diz, no Talmude: “Paz aos que vêm de longe e aos que vêm de perto”. Primeiro aos que vêm de longe porque tiveramuma trajetória mais árdua. É relativamente mais fácil se manter longe de atitudes nocivas quando se teve esta instrução desde o início, e é relativamente mais fácil obter benesses quando houve impulsionamento desde o berço. Mas aquele que revoluciona, que rompe, o mutante, merece paz para que possa se reestabelecer, uma vez que abandonou seu corpo e é quase puramente alma neste estágio. Longo Caminho Curto vs. Curto Caminho Longo O rabi Ioshua, filho do rabi Hanina, estava uma vez viajando e parou em uma encruzilhada, onde encontrou uma criança. Perguntou a ela: “Qual caminho devo seguir?”, e lhe foi apontado: “Este aqui é mais curto, se chama caminho longo, e este outro é mais longo, se chama caminho curto”. 11 Como não tinha entendido muito bem a (falta de) coerência nos nomes dos caminhos, Ioshua decidiu ir pelo que era mais curto. Porém, mesmo vendo o seu destino bem próximo à sua frente, também havia neste caminho diversos obstáculos intransponíveis, de forma que Ioshua não conseguia passar para o outro lado nem que quisesse. Tentou, tentou, e não conseguiu, pensando que talvez teria sido melhor escolher o caminho mais longo. O Corpo Moral tende a andar na direção mais curta, mais simples, sem entender que não só este caminho não leva ao destino final, mas também tem os maiores custos para todos os envolvidos. Já a Alma Imoral age de forma gradual, rompendo pedaço por pedaço e parecendo que não está gerando aprimoramento algum, até que uma grande revolução emerge das pequenas peças ali reunidas, e se dá a evolução. Sacrificar para quê? A Bíblia apresenta o conceito de Baal como qualquer deus dos povos inimigos, ou qualquer deus falso. Porém, para além da óbvia interpretação como instrumento de dominação religiosa, um Baal seria um “falso ídolo”, e Baal-Yal seria uma “coisa sem valor”, representando aqueles ídolos ou líderes que recebem sacrifícios e não trazem nada em troca, ou trazem um resultado ilusório. Quando Moisés desceu do Monte Sinai com as tábuas da lei, estava pronto para passar conhecimentos espirituais extremamente evoluídos aos homens. Mas, ao chegar até seu povo, viu que estavam adorando a uma estátua dourada de carneiro, um falso ídolo. Moisés então percebeu que o povo ainda não estava pronto para aquelas tábuas, que formavam a Torá Divina. Ele largou as tábuas no chão, e elas se quebraram. Então subiu de volta ao Monte e obteve um outro conjunto de tábuas, com os 12 10 mandamentos que conhecemos hoje. Esta Torá Mundana estaria mais adequada ao nível de ensinamentos que era necessário para o povo. O “correto” deveria levar a um “bom”. Porém, a realidade mostrou que aquele “correto” não levaria necessariamente ao “bom”, e um novo “correto” foi necessário. Esta disposição de mudar as regras conforme a realidade necessite, de estar disposto a ouvir uma segunda voz dizendo para não sacrificar seu filho, é qualidade importante em um profeta. E junto a isso devemos entender quais são os falsos ídolos, para que não sacrifiquemos mais do que realmente necessário, fazendo oferendas ao nada. Melhor a Traição do que a Fidelidade Mentirosa “Aquele que engana a si mesmo é mais perverso do que o que engana os outros. Isto porque aquele que engana os outros está muito mais próximo de cair em si do que aquele que engana a si mesmo. Há traições pela fidelidade muito mais violentas do que as traições pela transgressão”. Segundo Bonder, o animal moral está sempre tentando mostrar para o outro, e não necessariamente para si mesmo, que está em acordo com a regras. A proposta bíblica também acaba tendo essa proposta: consolidar o que deveria, na época, ser a postura moral de todos. Porém esta postura também muda com o tempo, é testada e volta-se atrás, é desafiada e cede em alguns pontos. Já a alma, imoral, e imoral de forma diferente para cada pessoa, acaba sendo mascarada. Quando ela aparece, traindo a moral do outro, ocorre um embate, que é muito bem-vindo desde que realizado da forma mais sincera possível. Porém, quando o corpo moral é seguido à risca mesmo traindo a alma imoral da própria pessoa, tem-se a hipocrisia. 13 É nessa tensão entre corpo e alma, entre moralidade e imoralidade, e no exercício constante de interpretar a moral mantendo coerência com a própria alma, que se atua de forma sincera, e não hipócrita. Não sendo tolo por obedecer cegamente, nem perverso por trair indiscriminadamente. Transgressão e Crescimento O despertar geralmente passa por alguns estágios. Primeiramente, percebe-se com horror que o corpo físico, ou algumas das regras impostas pelo entorno ou consideradas como verdadeiras pela mente, não condizem com o que se sente profundamente na alma. Em seguida, surge uma sensação de horror, percebendo-se que aquele lugar amplo na verdade era estreito, ou então se tornou estreito. Este horror é característico da quebra de algumas certezas antes aceitas ou dadas como absolutas. O rabi Nahum frisa esta questão do medo e da inquietação, uma vez que um despertar “suave” poderia ser apenas uma invenção da mente, ou uma pseudo-iluminação. Despertares suaves devem ser muito bem analisados, e despertares precedidos de inquietação têm mais chance de serem reais. O terceiro estágio é a escolha do que fazer frente ao medo. Algumas pessoas resolvem voltar e se conformar; outras, voltar e lutar; algumas outras, se desesperam; e outras resolvem se imobilizar esperando salvação externa. Porém, seguir em frente é o único caminho que leva ao futuro. O quarto estágio é a transgressão, o ato de seguir em frente, buscar um novo correto guiado pelo que é entendido como bom. Este novo correto pode ser encontrado em outro local ou então construído do zero. Entende-se que o adepto que chega neste novo bom também já não é 14 mais o mesmo corpo, mas sim a alma, criando um novo corpo que lhe sirva melhor. Posteriormente, o transgressor pode encontrar outros que também acreditam em alguma parte dos aspectos considerados “bons”, e conviver em paz com eles, ou então encontrar outros transgressores, não se sentindo mais sozinho. Conterrâneos de Alma Segundo o Rabi Baruch, aquele que chega a uma terra alienígena não tem quase nada em comum com as novas pessoas que conhece, mas tem algo em comum com outros estrangeiros que chegam àquele lugar: o fato deser estrangeiro. Sendo assim, quem transgride as regras por considerar que elas não mais se aplicam ao estágio atual, ou por considerar que o espaço se tornou estreito, pode buscar alento junto a outras pessoas que passam pelo mesmo processo. O próprio conceito de Deus acaba sendo estrangeiro em todos os lugares, pois mesmo na Bíblia ordena mudanças de paradigma, aconselha transgressões, fornece conselhos que fogem do óbvio e provê evolução aos que se permitem ouvi-lo. Este “Deus” pode também ser representativo da Alma Imoral de cada um, e sua voz nada mais é do que uma mensagem do Eu Superior profetizando um novo Correto com base no que parece Bom. O acomodado sempre terá o pânico da solidão, pois com o tempo verá que todos andaram, evoluíram, mudaram, e ele permaneceu no mesmo lugar. O transgressor também sempre terá o pânico da solidão, por perceber que pensa de forma diferente dos demais. Porém, enquanto o transgressor pode encontrar outros transgressores para compartilhar suas experiências, alcançando a paz, o acomodado não pode confiar 15 plenamente em outros acomodados, uma vez que são transgressores em potencial, e sempre ficará angustiado. Corpo Vestido, Alma Nua Era uma vez um homem muito distraído, que não conseguia nunca encontrar todas as peças de roupa ao se vestir para ir trabalhar. Um dia, ele teve uma ideia: antes de dormir, separou todas as roupas que iria usar no dia seguinte e anotou em um papel onde estavam todas elas. Ao acordar, leu o papel e logo foi encontrando cada peça de roupa: “Blusa... Sim! Ali está a blusa! Calças.... Certo! Elas estão ali! Chapéu.... Isso! Ali está o chapéu!”. Depois se olhou no espelho, todo vestido, e perguntou: “Mas e eu? Onde estou eu?”. Ausência de Si O Rabino Súcia estava ficando idoso, e disse a um colega que tinha medo de chegar aos céus e não ser considerado um merecedor de entrar no paraíso. Seu colega lhe perguntou: “Mas por que? Por acaso tens medo de lhe perguntarem por que você não foi como Abraão, que fundou um povo? Ou por que não foi como Moisés, que guiou multidões?”. Ele então respondeu: “Nada disso... Não tenho medo que me perguntem por que não fui como Abraão, porque não sou Abraão! Também não tenho medo que me perguntem por que não fui como Moisés, porque não sou Moisés! Tenho medo mesmo é que me perguntem: Súcia... Por que não fostes Súcia?”. Satisfação e Honestidade 16 Quando não somos honestos, paramos de sentir satisfação. Isto porque a satisfação verdadeira, aquela que não pode ser simulada, depende de primeiramente sabermos o que nos deixa feliz, posteriormente sermos honestos para admitir isso de forma consciente, e em seguida corrermos atrás de obtê-lo. Este procedimento não dá margem a máscaras ou ao ego se sobrepondo ao que se pensa e sente de verdade. Aqui, cabe uma comparação com o conceito de Verdadeira Vontade conforme definido por Crowley e utilizado na Thelema. A Vontade (com letra maiúscula) só é Verdadeira se está de acordo com a jornada de transcendência individual conforme estabelecida pelo Eu Superior e recebida pela conversa com o Sagrado Anjo Guardião. Além disso, o “Faça o que tu Queres” deve estar em linha com essa diretriz, e já deve incluir a premissa de não entrar em colisão com a órbita de outrem, mas sim interagir com o destino de outras pessoas apenas quando isso também faz parte da jornada daquela pessoa. Sem dúvida, são conceitos difíceis de serem trazidos para a prática pois dependem de extrema sinceridade e alto nível de autoconhecimento. Porém, estas definições acabam resolvendo algumas questões do tipo “e se a minha satisfação estiver em algo nocivo para outra pessoa?”. Se o conceito de satisfação andar junto com a honestidade (a nível mental e também espiritual), automaticamente não será nocivo para os outros. Necessidade de Transgredir A transgressão é uma necessidade da Alma, e sempre que ocorre o Corpo se sente desorientado. Sendo assim, após a transgressão, é necessário um tempo para se reorientar e se restabelecer. Caso alguém só transgrida, não terá tempo para pensar em qual caminho deve seguir da próxima vez, e não aproveitará os benefícios de sua transgressão. Caso alguém só 17 mantenha, não conseguirá evoluir, e não conseguirá benefícios além dos que já obteve na transgressão anterior. Se cada indivíduo não exerce seu potencial completo, toda a coletividade resta prejudicada. Isto porque que a vida de todos poderia ser melhor, os níveis de satisfação poderiam ser maiores, e a percepção de cada transgressor sobre outro transgressor seria de que é um conterrâneo de alma, e não um alienígena. O rabino perguntou a um homem rico: “O que você gosta de comer e beber?”, e ele lhe respondeu, humildemente: “Eu tenho gostos simples, eu gosto apenas de pão e água, nada demais”. Então o rabino lhe repreendeu, dizendo “Que tolice! Você é rico, deveria beber vinho e se banquetear com pratos saborosos!”. Alguém ouviu aquilo e lhe perguntou o motivo daquela resposta. Ele esclareceu: “Se um rico comer e beber bem, vai acreditar que um pobre se sente satisfeito com pão e água. Mas enquanto um rico conseguir viver de pão e água, vai achar que o pobre pode alimentar-se de pedras!”. 18 III. Traição Judaico-Cristã Diz-se que inicialmente os judeus eram sempre os filhos de pai judeu. Porém, durante as batalhas que ocorriam no Oriente Médio, a prática da dominação sexual das mulheres do povo vencido era amplamente utilizada como estratégia de conquista. Além da relação de poder existente neste ato de violência, o povo vencido ficaria incapacitado por algum tempo de conceber seus próprios filhos, além de ter que criar os filhos de seus opositores e para sempre se lembrar de ter sido conquistado. Quando isto ocorreu com o povo judeu, algumas versões dizem que houve um grande concílio para tratar a questão. Nesta ocasião, os anciãos decidiram que, para salvar seu povo, teriam que mudar as leis. A partir daí, filhos de mães judias é que seriam considerados judeus, assim os filhos concebidos após a conquista seriam todos judeus e o povo estaria salvo. Os filhos dos conquistadores, porém, não teriam pais. Para que não ficassem numa condição de órfãos, foi definido que Deus seria seu pai. Sendo assim,os filhos da guerra eram Filhos de Deus, e caberia a estes bastardos, agora divinizados, levarem à frente o futuro de uma nação. Salvação pela Traição Em Genesis, acompanhamos a destruição de Sodoma e Gomorra. Lot foge com suas duas filhas, após sua esposa ter se transformado em estátua de sal porque olhou para trás na fuga da cidade. Os três conseguem abrigo em uma caverna. Ao se verem sozinhos em meio ao nada, eles pensam que o mundo acabou. As filhas de Lot, então, elaboram um plano: para poderem repovoar o mundo, decidem dar vinho ao pai, que já estava ficando 19 velho, e se deitar com ele. Os filhos que nascessem deste incesto poderiam levar o legado da linhagem à frente, perpetuando a humanidade. Neste momento nascem Moab, pai dos Moabitas, e Bem-Ammi, pai dos Amonitas. O próprio texto bíblico não condena ou julga este ato, e é exatamente por meio dele que tem origem uma das linhagens genealógicas que precedem Davi. Neste caso vemos um aspecto importante: a traição é permitida e até mesmo celebrada quando ela não se constitui em uma traição a si mesmo, ou quando ela resguarda um bem maior aos olhos da própria pessoa, de forma sincera, e não da sociedade ao redor, ou do restante do mundo. Como o restante do mundo sabia que não havia risco de finalização da linhagem, o incesto das filhas de Lot ainda pareceria errado aos olhos deles. Mas na visão delas esta era a única forma de salvar a humanidade, e portanto foram absolvidas do pecado. Produção da Alma - Um Mutante O salvador da linhagem não é o mais forte, tampouco o mais adequado à sociedade vigente, pelo contrário, é o mutante, o diferente, o marginal, aquele que tem coragem para levantar acampamento e marchar, e que muitas vezes vem de fora, marchando a partir de um lugar estreito. Os mais fortes e adequados tendem a fazer o caminho contrário, encontrando maneiras de manter o lugar estreito e mascarando-as como “ideologia”. Na Bíblia, é descrita uma passagem curiosa: a crucificação de Jesus e a libertação de Barrabás. Bar-ha-aba, de origem aramaica, se traduz como “o filho do pai”, provavelmente um indicativo de que se tratava de um filho sem pai conhecido. Nesta cena, o povo decide absolver aquele que fez algo mau porém não tentou alterar a ordem vigente do que era 20 correto, condenando aquele que tentou alterar a ordem vigente do que era correto, guiado pelo que seria bom. A Igreja entendeu, a partir daí, que a alma era imoral desde o nascimento, e devotou sua instituição a tentar salvar esta alma, apagando qualquer resquício de transgressão e absolvendo a todos de um suposto pecado original. Curiosamente, o maior símbolo utilizado para representar esse pecado foi o corpo, pois o corpo pode ser vestido, e o corpo pode sentir dor, a ponto de até mesmo desistir de dar voz aos desejos da alma. Messias - Salvador ou Criminoso O Messias é sempre visto aos olhos do futuro como salvador, mas é sempre visto aos olhos do passado como criminoso. A explicação é simples: se uma ideia não é suficientemente inovadora, será aceita como “inovação aceitável”, mas não levará a um futuro tão diferente. Já quando uma ideia é inovadora a ponto de levar a um futuro diferente, não será aceita, sendo combatida pelo status quo e pelas pessoas cooptadas por ele. O império romano crucificou o diferente e depois se apoderou dele como símbolo de sua instituição, agora renomeada. Indiretamente, este símbolo acaba lembrando a todos do que ocorre com novos transgressores, e não faltam exemplos durante a história, como por exemplo no período da inquisição. Uma das origens etimológicas apontadas para a palavra Israel é a de “aquele que briga com Deus”, o que denota um paradoxo quando se analisa a descrição de Israel como uma nação em eterna comunhão divina. Simbolicamente, esta dualidade pode indicar a tensão sempre presente entre Corpo e Alma, entre Obedecer e Desobedecer, necessária para a evolução durante a jornada de transcendência. 21 IV. O Futuro das Traições Após transgredir e roubar a primogenitura do irmão, Jacó sonha com anjos que sobem e descem uma escada. Esta imagem também pode ser vista na própria estrela de Salomão, que contém um triângulo para cima e um para baixo. O triângulo para cima pode representar simbolicamente a desobediência, o rompimento, a alma, e o triângulo para baixo pode representar simbolicamente a obediência, a manutenção, o corpo. A tensão entre estas duas pulsões deve ser mantida, para que os dois vetores sejam equilibrados e mantidos sempre em diálogo, promovendo não só a evolução mas também a sobrevivência e o aproveitamento dos benefícios adquiridos. A Alma, Imoral, deve ser ouvida porém não seguida cegamente a ponto de ter liberdade irrestrita. Já o Corpo, Moral, deve ser resguardado porém não alçado a uma posição de comando a ponto de impedir qualquer tentativa de mutação. E estes dois âmbitos devem ser enxergados no outro, formando-se uma ponte com si próprio, onde também habitam. “A transgressão terá sido a trajetória humana rumo à transcendência na história” – seu caminho curto, que é o mais longo. 22