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A reforma protestante APRESENTAÇÃO Quando a historiografia discute as transformações religiosas ocorridas nos diferentes períodos históricos, muitos temas, em diversas partes do mundo, são abordados e problematizados. Contudo, a Reforma Protestante representa um dos temas mais complexos e significativos da história moderna, pois expressa o resultado de uma série de crises vividas pela Igreja Católica na transição da Idade Média para a Idade Moderna. No século XVI, a singular divisão entre os clérigos sobre a interpretação dos dogmas da Igreja Católica, transformou-se no advento de uma nova ramificação do cristianismo, denominada protestantismo, inicialmente dividida em três grandes conjuntos de igrejas e doutrinas religiosas: luterana, calvinista e anglicana. Outro aspecto relevante diz respeito às dificuldades enfrentadas pela Europa a partir do período chamado de Baixa Idade Média, marcado pela formação e pelo fortalecimento das monarquias nacionais, pelas guerras, pela fome, pelas perseguições e pelas adversidades relacionadas ao clima do continente. Em meio a isso, a Igreja Católica não abdicou do luxo e da “comercialização” da fé na busca de resultados pela manutenção de cargos eclesiásticos, na venda de relíquias e, principalmente, na “jurisprudência divina” criada para sustentar o mercado promissor de venda das indulgências. Todos esses aspectos enfraqueceram o comando do poder clerical, abrindo espaço para o debate sobre o papel da fé e da Igreja no contexto social e político da época. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai conhecer os aspectos e as situações que levaram ao surgimento de contraposição ao pensamento cristão católico. Vai identificar os diversos e distintos movimentos de reforma religiosa, surgidos na Europa, e sua relação com as articulações políticas durante a Idade Moderna. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir os eventos que provocaram o surgimento de contraposição ao pensamento cristão católico. • Caracterizar os diferentes movimentos de reforma religiosa que surgiram na Europa da Idade Moderna. • Relacionar o movimento de reforma religiosa com as articulações políticas dos Estados Nacionais. • DESAFIO A história conta que Martinho Lutero pregou suas 95 teses contra a Igreja nas portas da igreja principal de Wittenberg, em 1517. Se o fato realmente ocorreu ou se ele simplesmente publicou as teses é questão de debate entre historiadores até hoje. Fato é que Lutero se tornou um símbolo da Reforma com o passar dos anos; tal foi sua influência, que o movimento ficou conhecido como luteranismo. É sabido que boa parte das teses de Lutero falava sobre a venda de indulgências e as razões que levavam o sacerdote alemão a reprovar tal prática. Indulgências eram uma espécie de cancelamento de pecados que haviam sido confessados. Alguns padres prometiam que, se uma certa quantia de dinheiro fosse doada a igreja, os pecados seriam absolvidos. Quais seriam as três razões pelas quais, considerando as ideias de Lutero, a venda de indulgências é contrária à verdadeira fé cristã, como descrita nas escrituras sagradas? INFOGRÁFICO Apesar de ser vista, sobretudo, como um evento que afeta a esfera religiosa, a Reforma Protestante se insere no contexto maior de tensões e mudanças que ocorriam no século XVI. O mundo como um todo estava mudando. Além de novas descobertas científicas, os oceanos, antes temidos, foram domados pela expansão marítima e utilizados para o processo de colonização, comércio de matérias-primas e busca por novas terras. Camponeses cansados das condições precárias de trabalho ansiavam por uma revolução. A peste negra, que havia ceifado em torno de 75 milhões de vidas de 1347 a 1351, reaparecia e causava pânico em algumas cidades europeias. Alianças políticas antigas forjadas entre príncipes e papas enfraqueciam. A invenção da prensa por Gutenberg, por exemplo, fez com que livros se tornassem acessíveis a uma parcela bem maior da população, aumentando consideravelmente a quantidade de pessoas alfabetizadas. Essa parcela escolarizada teve papel central na Reforma. Enquanto a Era Medieval entrava em colapso para dar lugar à Idade Moderna, as mudanças aconteciam por todos os lugares, e a renovação não parecia ter limites. Apesar deste cenário de mudança, a Igreja Católica exercia um poder incomensurável sobre a vida das pessoas. Contudo, no início do século XVI um movimento abalou suas bases, rompendo com a unidade que manteve por tanto tempo. Neste Infográfico, conheça alguns dos principais eventos e fatos que levaram à Reforma, além de acontecimentos de importância histórica que ocorreram em paralelo às mudanças que atingiram a Igreja Católica. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! CONTEÚDO DO LIVRO Problematizar o passado e suas transformações exige que o conhecimento histórico seja estruturado por meio de convenções que facilitem a análise e a compreensão dos períodos históricos. Tais convenções constituem os esforços dos historiadores em representar as inúmeras transições das sociedades humanas ao longo do tempo e suas implicações no presente. A história da Igreja, instituição milenar, fortalecida ao longo do período medieval, influenciou o mundo ocidental e a construção do conhecimento histórico. Um dos processos mais transformadores da história da Igreja, certamente, é a Reforma Protestante, que marca a História Moderna por redimensionar as áreas de influência da Igreja Católica e, também, por suas conexões com as transformações culturais, políticas e sociais da época. No capítulo A Reforma Protestante, da obra História Moderna, conheça os eventos que provocaram o surgimento de contraposição ao pensamento cristão católico, bem como compreenda os diferentes movimentos de reforma religiosa que surgiram na Europa da Idade Moderna, e, por fim, identifique as relações do movimento de reforma religiosa com as articulações políticas dos Estados Nacionais. Boa leitura. HISTÓRIA MODERNA Rodrigo Vieira Pinnow A Reforma Protestante Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir os eventos que provocaram o surgimento de contraposição ao pensamento cristão católico. Caracterizar os diferentes movimentos de reforma religiosa que sur- giram na Europa da Idade Moderna. Relacionar o movimento de reforma religiosa com as articulações políticas dos Estados Nacionais. Introdução Durante toda a Idade Média, a Igreja Católica enfrentou inúmeros mo- vimentos que tinham como objetivo alterar seus cânones e dogmas, bem como o excesso de abusos por parte do clero, buscando alcançar a essência original do cristianismo e a proximidade com as camadas sociais menos favorecidas, cumprindo sua missão, conforme as escrituras sagra- das. Entretanto, os líderes desses movimentos de propostas de reformas sempre foram pessoas pertencentes aos quadros da própria Igreja, ou seja, muitas dessas pessoas, mesmo que com sérias divergências sobre os rumos da instituição, tinham dificuldade de se afastarem da Igreja, tendo como intuito corrigir os erros, mas não fundar outra instituição. Contudo, nos últimos séculos da Idade Média, o contexto cultural, social e político teve alterações que provocaram inúmeros focos de insa- tisfação religiosa contra o comando da Igreja Católica, e essa insatisfação agregou tantos seguidores que levou a uma ruptura estrutural no seio da instituição: a conhecida Reforma Protestante do século XVI. Se, ainda na Idade Média, havia intenção de arrumar a casa e promover mudanças internas, as sucessivas críticas contra a Igreja não eram mais toleráveis. Neste capítulo, você vai ver que a Reforma Protestante, juntamente a todas as outras transformações do mundo moderno, representou uma ruptura importante e singular na história da humanidade, motivadapor uma série de causas que ultrapassam muitas generalizações construídas na historiografia atual. Assim, você vai ver que se tratou de um processo plural, calcado em diferentes aspectos, como o retorno da razão, o avanço da tecnologia, os anseios de livre interpretação das escrituras sagradas e, principalmente, o crescimento e o fortalecimento da burguesia, bem como de suas conexões com os governantes dos Estados Modernos. 1 O surgimento da contraposição ao pensamento cristão-católico Segundo o dicionário Caldas Aulete Digital (2020), os sinônimos do termo “reforma” estão relacionados a palavras como ação ou resultado de refor- mar, renovação, mudança na forma, no estado ou modo de algumas coisas. Entretanto, a obra também faz menção à história do movimento religioso ocorrida no século XVI, citando Lutero como seu principal líder e apontando o rompimento com a Igreja Católica Apostólica Romana, o que fundaria as bases do que hoje conhecemos como Igreja Protestante. Para muitos autores, dos quais podemos citar Wood, com A origem do capitalismo (2001), Anderson, com Linhagens do estado absolutista (1989), Elias, com A sociedade da corte (2001), Delumeau, com A civilização do renascimento (1994), Weber, com A ética protestante e o “espírito” do capi- talismo (2015), entre outros, uma das palavras que podem estar diretamente conectadas ao sentido da reforma é liberdade, pois o processo desencadeou uma sucessão de rupturas que tiveram implicações em vários segmentos do mundo moderno, como na cultura, na sociedade e na estrutura das instituições da época, refletindo na política, na economia e, consequentemente, na fé. Segundo Azevedo (2007), a reforma se consolida a partir de um somatório de acontecimentos, ainda na Idade Média, que contribuíram decisivamente para as transformações religiosas da chamada Idade Moderna, com processos e ciclos contínuos, moldando a sociedade dentro da ideia de livre interpre- tação das escrituras e uma experiência, ainda seminal, de Estado Moderno em expansão. Vale lembrar que o mundo medieval girava em torno do comando da Igreja e, a partir dela, eram definidos os padrões culturais, sociais e, principalmente, comerciais da época. Nesse sentido, Azevedo (2007) propõe uma classificação de fatores decisivos e embrionários para o surgimento da contraposição ao pensamento cristão católico, dos quais são destacados seis como decisivos para o processo: A Reforma Protestante2 a instabilidade política, em um mundo em que a crescente burguesia almejava o poder dentro do Estado; o fim das cruzadas, com certo enfraquecimento da Igreja Católica; o aumento vertiginoso da densidade demográfica; a crise climática, impactando diretamente a agricultura; a terrível peste bubônica, que gerou um clima de pessimismo; dúvidas sobre papel da Igreja Católica diante desses acontecimentos. Toda a crise encontrou na fragilidade da Igreja Medieval combustível para a emergência de movimentos reformadores. A sólida política eclesiástica medieval, embasada no direito canônico, na importância da figura unifica- dora do Papa e na disseminação ideológica da Igreja dentro das diretrizes do colegiado, foi abalada por distúrbios de natureza interna. O chamado cativeiro babilônico, que foi a existência de um Papa na cidade de Avignon, foi o primeiro sinal mais claro do desgaste político-ideológico da Igreja Me- dieval. Mais tarde, o Grande Cisma, com a coexistência de dois Papas, um em Roma e outro em Avignon, ocasionando a descentralização do poder da Igreja, facilitou o surgimento de surtos reformadores e oposicionistas, que eram do interesse das monarquias estabelecidas e dos burgueses detentores do capital outrora volátil devido à evasão de importantes divisas à Igreja de Roma (AZEVEDO, 2007, p. 90). Segundo Santos (2010), mesmo após as transformações da Europa cristã com o fim da Idade Média, não havia um limite claro entre questões públicas e privadas, principalmente no quesito religioso. A autora relembra que as próprias leis dos reinos, como o direito positivo, estavam centradas nos dogmas e cânones da Igreja Católica Ortodoxa Romana. Além disso, os súditos dos respectivos reinos foram condicionados a adotar a religião de seu rei, que em grande medida era a religião oficial do país, pois não havia laicidade na época, com regulamentação jurídica assegurada pelo princípio jurídico chamado de usus regio cujus religio. O século XVI pode ser considerado como o século maduro para a implementa- ção do movimento conhecido como a Reforma Protestante. Maduro porque os séculos anteriores pavimentaram e fertilizaram os acontecimentos que estavam por acontecer nesse período da História. A Reforma foi um movimento fruto de uma grave crise espiritual que se abatia sobre a Igreja de então. O povo, de modo geral, não encontrava satisfação e realização em sua práxis religiosa. Reinava um vazio espiritual (AZEVEDO, 2007, p. 88). 3A Reforma Protestante Se na Idade Média havia saberes distintos, como a cultura letrada, quase que na sua maioria eclesiástica, juntamente com as tradições e os conhecimentos produzidos pela cultura oral, herança da miscigenação dos chamados povos bárbaros, na Idade Moderna, a partir da coexistência dessas duas práticas, somadas aos inúmeros questionamentos sobre as práticas da Igreja Católica, desperta de forma bastante específica o desejo da livre interpretação das escrituras sagradas, além da necessidade de informação. Nesse sentido, o conjunto de fatores que consolidam as transformações religiosas está diretamente conectado a outros elementos que superam a fé. O desenvolvimento cultural, comercial e social após séculos de controle da Igreja Católica, além do advento da burguesia como camada dominante, aliada aos líderes dos Estados Nacionais, propiciou um mundo moderno, com a necessidade propagação de ideias e a de uma nova forma de comunicação: Vejamos, por exemplo, a invenção da imprensa em 1453, que, em uma pri- meira abordagem, pode ser considerada como uma questão essencialmente cultural. No entanto, esse acontecimento não é, nele mesmo, nem econômico, nem político, nem religioso, nem cultural, mas possui implicações em todos esses campos e, portanto, pode ser considerado como protagonista tanto de uma História Econômica quanto de uma História Cultural. Considerada no seu aspecto econômico, será preciso considerar a redução do tempo e do custo necessário à produção do livro na Europa, assim como a emergência de um novo ramo de negócios que se tornará, ao logo do tempo, uma atividade bastante lucrativa. Ao propiciar a maior circulação de livros e da palavra escrita em geral, a imprensa modifica as relações sociais e políticas e tam- bém as atitudes religiosas. Tendo sido a Bíblia o primeiro livro impresso por Gutenberg, a nova técnica assume, imediatamente, um significado religioso e político. A impressão da Bíblia será acompanhada de sua tradução em língua vulgar, propiciando que maior número de pessoas tenha acesso às Sagradas Escrituras e, enfraquecendo, consequentemente, o monopólio da Igreja sobre a interpretação dos textos sagrados (MOURA; SANTOS, 2010, p.14). A disputa no mundo moderno entre a permanência do status quo da Igreja Católica Romana e os movimentos reformistas, entre os séculos XVI e XVII, provocou mudanças que estão presentes até hoje na história da religiosidade mundial. Durante muito tempo, a historiografia se debruçou sobre o tema, por vezes com um olhar mais confessional, elencando líderes, destacando personagens e fatos marcantes, e, em outras, concentrou-se em aspectos puramente políticos e econômicos. Porém, é necessário analisar o tema com uma perspectiva mais plural, atenta às nuances contidas nas entrelinhas da produção historiográfica e nas fontes primárias da época. A Reforma Protestante4 2 Os diferentes movimentos de reforma religiosa que surgiram na Europa da Idade Moderna Os movimentos que compunham os movimentosreligiosos que surgiram na Europa tiveram como base um grupo que vivia em profunda inquietação, ainda no mundo medieval, os chamados pré-reformadores. Conforme Moura e Santos (2010), a partir de sua cosmovisão medieval, estavam buscando uma transição, ainda que incipiente, para as interpretações sobre a fé a partir das escrituras. Segundo Sá (2008), tal processo desencadeado pelos pré-reformadores a partir da efervescência de ideias, de movimentos sociais, políticos, religiosos e econômicos constrói um cenário ideal para a transição de um novo modelo de vida. Conforme o autor, aproximadamente os dois últimos séculos da Idade Média foram suficientes para preparar o mundo para uma série de mudanças radicais que foram estabelecidas na modernidade: Os pré-reformadores são pensadores cristãos de transição. A necessidade de mudanças profundas na Igreja vinha sendo anunciada, já que a Igreja estava em situação de profundo desprestígio. Para o surgimento dos pré-reformadores, o cenário social, político, econômico e eclesiástico da época contribuiu para manifestações de insatisfação com a Igreja da época e, muitas vezes, com o apoio do Estado, para divulgar suas posições teológicas, com consequências diretas na vida eclesial e social. (AZEVEDO, 2007, p. 95). Um dos principais pré-reformadores foi John Wycliff (1330–1384), de North Riding of Yorkshire. Com formação em filosofia e teologia e ordenação para o sacerdócio, Wycliff foi a fundo na pesquisa das escrituras e nas suas interpretações. John Wycliffe (1320–1384) foi um filósofo da escolástica, teólogo, tradutor das escrituras sagradas, reformador, padre inglês e professor seminarista na Universidade de Oxford. 5A Reforma Protestante Conforme Wolff (2017), o pré-reformador leu para seus alunos o tratado Do Domínio Civil, de sua autoria. O fato teve tamanha repercussão que o parlamento inglês utilizou o tratado como base para a produção de 140 artigos de uma lei impedindo os abusos eclesiásticos. Wyclif fundamentava suas críticas na Bíblia para pleitear a reforma da Igreja e, além de criticar o clero, desaprovava o celibato, o culto das imagens, santos e relíquias. Outro pré-reformador importante foi Jan Huss (1369–1415), adepto dos ensinamentos de Wycliff. Huss foi condenado à morte na fogueira, pois se negava a refutar suas teorias para a reforma da Igreja. Suas ideias consistiam na crítica à posse de patrimônio terreno por parte do corpo eclesiástico, ser favorável à autoridade da consciência, à promoção da aproximação da Igreja com os mais humildes e a pregar em sua língua natal, o tcheco, e não na língua oficial, o latim. Reformadores Vimos, anteriormente, alguns pré-reformadores, pioneiros na tentativa da livre interpretação das escrituras, na transição entre a Idade Média e Idade Moderna. O contexto social da época foi de violência, expectativa de vida baixa, desigualdade social e advento do nacionalismo. De maneira geral, havia um sentimento de insatisfação generalizado entre os governantes e o povo em função dos abusos cometidos pela Igreja, especifi- camente pelo alto clero. No campo espiritual, havia um misto de insegurança, incerteza, sofrimento e ansiedade relacionados a uma suposta salvação que tinha como base as obras em prol da Igreja Católica Romana, em uma espécie de contabilidade espiritual em que os pecados impediam o paraíso e as boas obras, a vida eterna. Foi nesse contexto que Martinho Lutero e a publicação de suas 95 teses na Alemanha desencadearam o apogeu da Reforma Protestante. As motivações de Lutero para a Reforma foram, substancialmente, de ordem religiosa, originando um movimento de matriz e princípio fundamentalmente teológico que visa reformular a fé cristã com base na doutrina da justificação. Para isso, Lutero questiona três elementos na Igreja do seu tempo: (1) O pen- samento teológico centrado na racionalidade da escolástica: “Uma reforma na Igreja é impossível se não se arrancam até a raiz os cânones, os decretais, a teologia escolástica, a filosofia, a lógica... peço a cada dia ao Senhor que uma coisa semelhante aconteça e que se voltem ao estudo puríssimo da Bíblia e dos santos padres” a prática pastoral, centrada nas devoções, nos sacramentos e nas obras – a prática das indulgências é o foco do momento; o papado, como instância definitiva da verdade sobre a fé. Para Lutero esses três elementos desvirtuavam a Igreja do seu centro cristológico, de onde provém a justificação do pecador (WOLFF, 2017, p. 241). A Reforma Protestante6 Segundo Santos (2014), Lutero publicou três escritos importantes para reforma: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O Cativeiro Babilônico da Igreja e A Liberdade do Cristão. Com isso, a ideia da reforma propagou-se pelo Sacro Império, ganhando seguidores em vários principados alemães. Em 1521, houve a publicação de uma bula de excomunhão, conhecida como Decet Pontificem Romanum. No mesmo ano, Lutero foi convocado para uma reunião do parlamento, a chama Dieta de Worms. A expectativa era que Lutero se retratasse, mas, na prática, ele reforçou suas ideias. Na sequência dos acontecimentos, um novo Édito de Worms foi promulgado, contrário a Lutero. Então, o monge foi obrigado a exilar-se no castelo de Wartburgo, com a proteção do príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio. Nesse período, Lutero produziu a tradução das escrituras sagradas. Conforme Azevedo (2007), outro importante reformador foi Ulrico Zuín- glio, sacerdote em Glarus (1506) e em Einsiedeln (1516). Zuínglio foi bastante impactado pelo Novo Testamento, de autoria de Erasmo de Roterdã, virando um dedicado estudioso das Escrituras, com pregações pontuais sobre as pas- sagens bíblicas. Após seu destaque como pregador, foi convidado para compor o quadro eclesiástico na Catedral de Zurique. Depois de aproximadamente quatro anos, Zuínglio entraria em divergência com a doutrina católica, tendo como base a Bíblia. Seu foco de contestação estava relacionado às questões relacionadas a consumo de carne no decorrer da Quaresma, celibato e casamento para membros do corpo eclesiástico, dogmas que o sacerdote afirmava não estarem na Bíblia. Sua marca histórica foi propor que tudo deveria ser analisado e julgado conforme as escrituras sagradas. Nascido em 10 de julho de 1509, em Noyon, na França, João Calvino, no decorrer da década de 1520, estudou religião e direito e foi um dos mais importantes representantes da Reforma Protestante. Em 1533, Calvino trocou a França pela Suíça, local em que aprofundou seus estudos sobre as escrituras sagradas, em específico do sacerdote alemão Martinho Lutero. Assim como Lutero, Calvino refutava as práticas do catolicismo. Diferentemente de Lutero, em 1536, Calvino não estava preocupado, neste tempo, com as discussões acirradas com o escolasticismo medieval ou qualquer tipo de mudança no programa teológico das universidades. Quando lança as Institutas, sua preocupação era lutar contra os inimigos da indiferença e da ignorância, apresentando, de forma sistematizada, os pontos fundamentais da Reforma. É preciso dizer que, no início da Reforma, a maior preocupação de Lutero era o embate com a Igreja sobre a doutrina da justificação somente pela fé, ou como o homem entrava em comunhão com Deus. Mas a Reforma, vivida mais ao Sul, buscava discutir as mudanças necessárias tanto na Igreja quanto na sociedade, segundo as Escrituras (AZEVEDO, 2007, p.107). 7A Reforma Protestante Calvino morreu em Genebra, em 27 de maio de 1564; a partir de então, os chamados calvinistas continuaram a difusão das ideias do sacerdote por toda a Europa. Atualmente, muitos protestantes consideram Calvino como o idealizador do protestantismo para a Igreja Reformada e Presbiteriana. Um novo período de declínio e desmoralização do papado ocorreu entre o século XIV e o início do século XV. Primeiro, os papas residiram na cidade de Avinhão, ao sul da França, por mais de setenta anos (1305–1378), colocando-se sob a influênciados reis franceses. Esse período ficou conhecido como “o cativeiro babilônico da Igreja”. Em seguida, por outros quarenta anos (1378–1417), houve dois e finalmente três papas simultâneos (em Roma, Avinhão e Pisa), no que ficou conhecido como “o grande cisma” (MATOS, 2001, documento on-line). 3 Conexões entre o movimento de reforma religiosa e articulações políticas dos Estados Nacionais Como vimos, o contexto social e político no início da Idade Moderna não era mais favorável aos abusos da Igreja. Os governantes e o povo já não tolera- vam o uso da fé como força arrecadatória e de fortalecimento da instituição católica. Nesse contexto, fi ca evidente que o mundo moderno caminhava para um processo de laicização do Estado, com uma ruptura signifi cativa com o poder papal em Roma. Com a Reforma, houve uma quebra de autoridade. Desvinculou-se do Papa. Rompeu-se com a Igreja, que se dizia única, infalível e universal. Igreja que era também o “Estado”, em quase toda a Europa Ocidental. Igreja que tinha o monopólio do saber. Igreja que era proprietária de aproximadamente um terço das terras nos países católicos. Não se deve esquecer de que o Papa era chefe da toda poderosa Igreja e também chefe de “Estado”. A Santa Sé era um “Estado”, que, em certo nível, era como qualquer outro, todavia detinha privilégios de que nenhum outro “Estado” dispunha (SÁ, 2008, p. 30). A Reforma Protestante8 Um exemplo claro de movimento de reforma, com fundamentação essen- cialmente política, foi o anglicanismo. Em 1531, o então rei Henrique VIII decidiu romper com a Igreja Católica em função de o Papa ter ignorado e rejeitado um pedido de divórcio. O rei fora casado com Catarina de Aragão (filha dos reis católicos da Espanha), mas desejava o divórcio para casar-se com Ana Bolena sob o argumento de poder ter herdeiros homens. A partir da recusa do Papa, três anos mais tarde, o parlamento inglês decidiu, unanimemente, pela aprovação do Ato de Supremacia, oficializando a laicização do Estado inglês, ou seja, a separação entre a Igreja da Inglaterra e a Igreja Católica Apostólica Romana. Com isso, o reino inglês confiscou as terras e os bens da Igreja Católica, redirecionando os impostos outrora pagos a Roma para a Coroa Inglesa. A ruptura das igrejas protestantes com a Igreja Católica, provocada pela Reforma, gerou a formação de igrejas nacionais, que traziam consigo o sen- timento nacional ou de nacionalidade. A ideia de nação, nesse momento já envolvia a de um território, habitado por um conjunto de indivíduos, com certos elementos culturais comuns, com destaque para a língua e o sistema de moedas. Às vezes, não era possível atingir-se o ideal de uma língua única, mas um sistema comum de moedas, sim. A circulação de mercadoria, inerente à maneira de produzir do capitalismo moderno, impunha também a existência de um Estado moderno, que lhe garantisse, inclusive, um sistema de moeda única, com a finalidade de dar suporte ao livre e permanente movimento de troca das mercadorias por dinheiro e vice-versa (SÁ, 2008, p. 30). O caso inglês é apenas um dos inúmeros exemplos que poderiam ser dados sobre o sentido político dos movimentos de reforma, uma vez que também estavam em jogo os abusos da Igreja Católica e o fortalecimento dos Esta- dos Nacionais. Dentro da dinâmica do Estado Moderno, com o aumento da densidade demográfica, era imprescindível que a questão arrecadatória fosse direcionada para as monarquias nacionais, e não mais para a Igreja Católica. Por outro lado, é compreensível que a produção historiográfica tenha, vez por outra, focado nas virtudes teológicas de cada movimento e seus respectivos líderes, mas a questão cerne está na gama de interesses que os movimentos agregaram. Segundo Sá (2008), o que está implícito nas entrelinhas de todos os movimentos reformadores eram as condições de vida das populações, o crescimento e o avanço da ciência, bem como a valorização do progresso por intermédio da ciência. 9A Reforma Protestante Do ponto de vista político, uma nova camada social em ascensão, os bur- gueses, construíram uma série de alianças que tinham como objetivo consolidar o monopólio do poder político, econômico e, consequentemente, do Estado, dando origem ao que Weber (2015) chamou de espírito do capitalismo. Além disso, todas essas iniciativas também vislumbravam uma nova or- ganização econômica e política, com foco na lógica de produção, circulação, consumo de bens e serviços, com a face reformulada de uma estrutura social adaptada ao Estado Moderno que se moldava a um sistema econômico que viria a se fortalecer no decorrer da Idade Moderna, o capitalismo. ANDERSON, P. Linhagens do estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1989. AZEVEDO, M. A. F. A liberdade cristã em Calvino: uma resposta ao mundo contempo- râneo. 2007. 418 f. Tese (Doutorado) — Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. DELUMEAU, J. A civilização do renascimento. Lisboa: Estampa, 1994. v. 1. ELIAS, N. A sociedade da corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. MATOS, A. S. O papado: origem e evolução histórica. Thirdmill, 2001. Disponível em: https://thirdmill.org/portuguese/96428~11_1_01_10-15-21_AM~O_PAPADO.html. Acesso em: 26 jan. 2020. MOURA, A. M. S.; SANTOS, C. História moderna. 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. GINZBURG, C. O queijo e os vermes. São Paulo: Cia das Letras, 2006. HAUSSIG, H. W. A history of byzantine civilization. New York: Praeger, 1971. HUSSEY, J. M. The orthodox church in the byzantine empire. Oxford: Clarendon, 1986. KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MONTEIRO, R. B. As reformas religiosas na Europa moderna: notas para um debate historiográfico. Varia História, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, p.130–150, jan./jun. 2007. MOURA, A. M. S.; SANTOS, C. História Moderna. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010. v. 2. RUNCIMAN, S. A teocracia bizantina. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. SARTORIUS, B. Igreja ortodoxa. Lisboa: Verbo, 1982. 11A Reforma Protestante DICA DO PROFESSOR Desde o fim do século XV e início do século XVI, a Europa viveu um período de prosperidade e mudança. Novas universidades surgiram, espalhando as ideias dos filósofos humanistas por toda a Europa. Estes pensadores defendiam que era urgente reformar a Igreja, a qual, segundo eles, havia desvirtuado seu propósito original. Alguns criticavam a Igreja por se envolver demais com a política, outros por gastar muito tempo arrecadando dinheiro. Para muitos, a igreja parecia mais envolvida com questões materiais do que espirituais. Um destes pensadores, Martinho Lutero, se opôs veementemente contra a venda de indulgências, uma espécie de cancelamento de pecados que tinham sido confessados. Alguns padres prometiam que, se uma certa quantia de dinheirofosse doada à Igreja, os pecados seriam absolvidos. Para eles, se uma pessoa podia comprar indulgências, ela seria levada a pensar que poderia comprar o perdão de Deus. Lutero defendia que bastava a fé em Deus para salvar uma pessoa. A Reforma promoveu uma cisão na unidade de pensamento que vigorava na Igreja; com isso, diferentes concepções do cristianismo surgiram e foram se ramificando. Nesta Dica do Professor, conheça as principais diferenças entre o catolicismo e o protestantismo e suas interpretações das escrituras sagradas. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Revoltado contra a corrupção que afligia a Igreja Católica no Sacro Império Romano-Germânico, no decorrer do século XVI, escreveu teses contra a Igreja, defendendo que os homens alcançavam a salvação por si mesmos, sem a necessidade de intermediação dela. O abuso do poder exercido pela Igreja causou profunda revolta neste monge que marcou a história da Idade Moderna. A) Erasmo de Roterdã B) Thomas Morus C) René Descartes D) Martinho Lutero E) Nicolau Copérnico 2) O movimento reformista teve seu auge em 1517, com Martinho Lutero, e se espalhou por toda Europa, com inúmeras revoltas sociais e conflitos políticos. Entre os reformistas, destacam-se João Calvino, nascido em 10 de julho de 1509, em Noyon, na França. Calvino, no decorrer da década de 1520, estudou Religião e Direito e foi um dos mais importantes representantes da Reforma Protestante. Em 1533, Calvino trocou a França pela Suíça, local em que aprofundou seus estudos sobre as escrituras sagradas, em específico, do sacerdote alemão Martinho Lutero. Assim como Lutero, Calvino refutava as práticas do catolicismo de maneira mais efusiva e radical. Identifique a opção que melhor define a visão de Calvino: A) Negação da autoridade religiosa como caminho para a salvação. B) Pregava a salvação por meio das obras e a redenção dos pecadores por meio da palavra de Deus. C) Propagava a predestinação por completo dos eleitos de Deus. D) Defendia que a salvação pela fé poderia ser alcançada pelo uso da razão e do celibato. E) Pregava o uso das escrituras juntamente com as obras dos pais da Igreja como fonte da verdade para os cristãos. O conhecido Ato de Supremacia (Act of Supremacy), promulgado pelo parlamento 3) inglês em 1534, condicionou a Igreja aos preceitos jurídicos do código de leis civis, estabelecendo que o Rei Henrique VIII acumulasse a função de liderança no Estado e na Igreja. É consequência do Ato de Supremacia o seguinte: A) Crescimento do calvinismo, especificamente na Escócia, com a propagação dos dogmas criados por Calvino. B) O começo da expansão colonial inglesa, estruturando os alicerces do império colonial. C) A concentração e a centralização de poder, característica principal da Reforma Anglicana. D) O catolicismo como religião oficial, com oposição de reformistas e membros do parlamento inglês. E) Oposição entre o rei e o parlamento, pelo restabelecimento dos antigos direitos feudais, outrora excluídos da Magna Carta de 1215. 4) Um dos principais reformadores do século XVI, João Calvino, morreu em Genebra, em 27 de maio de 1564. Com sua morte, os chamados calvinistas continuaram a difusão das ideias do sacerdote por toda Europa. Atualmente, muitos protestantes consideram Calvino como o idealizador do protestantismo para a Igreja Reformada e Presbiteriana. Identifique a opção que expressa a conexão entre o Estado Moderno e as ideias de Calvino. A) Liberdade de interpretação da Bíblia. B) Conceito de predestinação. C) Práticas de indulgências organizadas pelos eclesiásticos. D) Prática da simonia. E) Ato de Supremacia. 5) Um dos movimentos da Reforma Protestante no continente europeu destacava a atividade profissional do homem como uma espécie de treino moral, conectado ao seu estado de graça e paz de sua consciência. Desse modo, conforme os preceitos do movimento, a atividade profissional, pautada por método e zelo, faria com que o indivíduo achasse sua verdadeira vocação. A partir disso, não apenas o trabalho, mas a racionalidade da prática do trabalho, ligada à vocação, encontraria aquilo que está designado por Deus. A qual movimento reformista pertence esta linha de pensamento? A) Catolicismo apostólico romano. B) Movimento calvinista, idealizado por João Calvino. C) Movimento luterano, idealizado por Martinho Lutero. D) Movimento anglicano, idealizado pelo rei Henrique VIII. E) Movimento anabatista, idealizado por Thomas Muentzer. NA PRÁTICA Os reflexos da Reforma Protestante estão presentes por todo o mundo ocidental, trazendo uma nova reconfiguração da cristandade nos séculos posteriores às movimentação religiosa. Muitas denominações foram criadas, com suas próprias interpretações sobre as escrituras sagradas e estruturas organizacionais distintas. Neste Na Prática, veja uma relação com o presente para mostrar como as diferentes interpretações do cristianismo, surgidas no século XVI, continuam a se diversificar com a Reforma, gerando novas denominações cristãs. A partir disso, veja alguns dados do protestantismo no Brasil. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! SAIBA + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: O desafio de compreender Lutero e a reforma 500 anos depois Neste site, confira um artigo que traz uma síntese de uma conferência, com reflexões e apontamentos do teólogo e pesquisador da Escola Superior de Teologia - EST - Walter Altmann. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A Reforma que Mudou o Mundo Neste documentário, veja mais sobre a história da Reforma Protestante, como ela é compreendida após 500 anos e como refletiu em áreas como a política, economia, educação e em diversos outros aspectos sociais. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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