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DESCARTES Questão para reflexão inicial: Você consegue pensar em coisas nas quais acreditava, quando era mais jovem, porém não mais acredita que sejam verdadeiras? Algumas (ou mesmo muitas) das coisas em que você acredita agora poderiam tornar-se igualmente falsas? O que faz você ter certeza do que sabe?1 a) Dados biográficos René Descartes nasceu na cidade francesa de La Haye em 1596, mesmo ano em que Kepler publicava a obra “Mysterium Cosmographicum”, onde relacionava o movimento dos planetas com formas geométricas perfeitas. Com apenas um ano de idade, perde a mãe e passa a ser educado por sua avó. Aos dez anos, é enviado para o Colégio Henri IV, em La Flèche, uma escola mantida por jesuítas. Apesar desse alinhamento católico, pode- se dizer que a escola mantinha relativa abertura às novidades intelectuais da época, o que, entretanto, pareceu insuficiente a Descartes. Ali, além de estudos humanísticos, matemáticos e teológicos, também aprende a arte da esgrima. Aos vinte anos, obtém diploma em Direito pela universidade de Poitiers. Dois anos depois, vai para a Holanda, onde se alista ao exército de Maurício de Nassau. Porém, consagra mais tempo aos estudos do que às armas. Constrói amizades com grandes estudiosos, como Isaac Beeckmann. Em 1619, se alista ao exército do Duque Maximiliano da Baviera. É neste período que Descartes relata ter recebido uma espécie de “revelação intelectual”, onde parece perceber com uma clareza quase mística os fundamentos metodológicos da nova ciência. Em 1626, Descartes fixa sua residência em Paris, onde participa ativamente do círculo intelectual. Seus amigos o influenciam a elaborar um sistema filosófico expondo suas ideias, e ele decide então retirar-se para a Holanda, local de liberdade intelectual, e chega a produzir obras sobre metafísica e ótica. Sabendo que Galileu havia sido condenado pela Inquisição (1633), Descartes desiste de publicar seus textos. Cerca de cinco anos depois, Descartes permite a publicação de quatro textos seus, numa espécie de coletânea, provocando reações tanto de aceitação como de crítica pela sociedade científica da epoca: O Discurso do Método, que serve de introdução para os outros três tratados científicos, A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Quatro anos depois, em 1641, Descartes publica as Meditações, em latim, seguidas das objeções recolhidas enquanto o manuscrito circulava. Em 1644 publica os Princípios da Filosofia, obra dedicada à princesa Isabel da Boêmia. No ano seguinte, escreve As Paixões da Alma, também dedicada à princesa Isabel, mas 1 (BonJour, et al., 2010) publicada somente em 1649. Neste ano, é convidado pela Rainha Cristina da Suécia para estabelecer-se em Estocolmo, onde vem a falecer em fevereiro do ano seguinte.2 “Homem de sua época, Descartes foi, ao mesmo tempo, viajante contumaz e homem retirado, soldado engajado em exércitos em guerra e homem em busca de tranquilidade, aliado de católicos e protestantes, homem da corte e habitante da província, pensador isolado e correspondente da intelectualidade europeia, autor de um manual prático de esgrima e de uma das mais profundas obras de metafísica, racionalista, homem de ciência e interessado na magia e nos mistérios dos rosacruzes, a cuja ordem talvez tenha pertencido. É a diversidade dessas experiências que forma a matéria a partir da qual Descartes desenvolve seu pensamento, e é por insistência do próprio Descartes que devemos compreender o pensamento filosófico como resultado da reflexão sobre a experiência da vida.”3 b) A nova ciência Disse Leibniz: “Costumo chamar os escritos de Descartes de vestíbulo da verdadeira filosofia, já que, embora ele não tenha alcançado seu núcleo íntimo, foi quem dele se aproximou mais do que qualquer outro antes dele, com a única exceção de Galileu, do qual oxalá tivéssemos todas as meditações sobre os diversos temas, que o destino adverso reduziu a silêncio. Quem ler Galileu e Descartes se encontrará em melhores condições de descobrir a verdade do que se houvesse explorado todo gênero dos autores comuns.”4 Descartes é, de fato, o pai da filosofia moderna. Seu projeto filosófico é a defesa do novo modelo de ciência inaugurado por Copérnico, Kepler e Galileu contra a concepção escolástica/aristotélica em vigor no final da Idade Média.5 As proposições destes pensadores coloca em cheque, juntamente com as exigências morais da Reforma, a autoridade moral e teológica da Igreja Católica. A autoridade do saber tradicional passa a ser questionada, e com o passar do tempo, mostrou-se que este saber continha diversas teorias falsas no que diz respeito à concepção cosmológica. Descartes percebe urgência na fundamentação filosófica deste novo modo de fazer ciência. E a sua “revelação intelectual” aponta na direção de um método6. Este método vislumbrado por Descartes não é o método silogístico aristotélico, complexo e cheio de regras para efetuar deduções, mas o método indutivo. A questão metodológica 2 (Valéry, et al.) 3 (Marcondes, 2004) pg 161/162. 4 (Reale, et al., 2004) 5 (Marcondes, 2004) 6 Método (let. Tardio methodus, do gr. Methodos, de metá: por, através de; e de hodos: caminho) 1. Conjunto de procedimentos racionais, baseados em regras que visam atingir um objetivo determinado. P. ex., na ciência, o estabelecimento e a demonstração de uma verdade científica. “Por método, entendo as regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observam exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis, ao conhecimento verdadeiro do que pretendem alcançar” (Descartes). (Japiassú, et al., 2008). colocada por Descartes é: como garantir que a nova ciência produza certeza e evitar que ela se perca em erros como nas pesquisas que o antecederam. E a solução alcançada por Descartes é justamente o método, considerado como um caminho, um procedimento que visa garantir o sucesso de uma tentativa de conhecimento para a elaboração de uma teoria científica. O método proposto por Descartes é simples, possui somente quatro regras: “[...] E como a multiplicidade de leis fornece muitas vezes desculpas aos vícios, de modo que um Estado é bem mais regrado se, tendo bem poucas, elas são estritamente observadas, assim eu julguei que, em vez do grande número de preceitos de que se compõe a lógica, me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar de observá-los uma vez sequer. Regra da evidência: “não tomar jamais coisa alguma por verdadeira a não ser que a conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cautelosamente a precipitação e a prevenção; e só incluir em meus juízos o que se me apresentasse ao espírito de modo tão claro e nítido que não tivesse como colocá-lo em dúvida.” Regra da análise: “dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias para melhor resolvê-las.” Regra da síntese: “Conduzir meus pensamentos de forma ordenada, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos; e supondo mesmo uma ordem entre aqueles que de modo algum precedem naturalmente uns aos outros.” Regra da verificação: “Fazer sempre levantamentos tão complexos e inspeções tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir” 7. Uma ideia “clara e distinta” é uma ideia evidente por si só, a qual é obtida a partir da intuição direta e do raciocínio discursivo. c) O “cogito”7 (Marcondes, 2000), (Valéry, et al.) A obra prima de Descartes é, sem sombra de dúvidas, suas Meditações. A clareza com que expõe suas ideias é brilhante, assim como chama a atenção pela elegância com que escreve. Trata-se, de fato, da obra inaugural do pensamento metafísico moderno. Na primeira meditação, Descartes expõe os motivos que o levaram a filosofar: a inconsistência entre o ensinamento recebido na escola jesuíta e as novas descobertas feitas por Galileu. A reflexão sobre esta insatisfação é pontuada da seguinte forma: “Não é de hoje que venho percebendo que desde meus primeiros anos recebi por verdadeiras uma porção de opiniões falsas, e que o que depois baseei sobre princípios tão mal seguros só poderia ser muito duvidoso e incerto; julguei desde então que urgia me empenhar seriamente uma vez na vida em me desfazer de todas as opiniões recebidas antes, e tudo começar de novo quanto aos fundamentos, se queria estabelecer alguma coisa de firme e de constante nas ciências.”8 Ora, se a proposta cartesiana é de se desfazer de todas as ideias, basta analisar a origem destas ideias, a sua fonte. Se a fonte for confiável, então as ideias originadas a partir desta fonte serão confiáveis também. Se a fonte não for confiável, então é preciso considerar as ideias provenientes daí como duvidosas. Como um dos princípios da metodologia cartesiana é tomar como verdadeiro somente o que for claro e distinto, ou seja, o que for indubitável, basta que haja uma ponta de dúvida para que a ideia seja tomada como falsa. Ora, quando Descartes estabelece este critério, fica clara sua concepção de conhecimento: conhecer é representar. Os sentidos captam as sensações provenientes do mundo exterior, a partir das quais se formam as ideias na mente. Estas ideias representam a realidade, como uma espécie de espelho. Chamamos esta noção de “princípio clássico da correspondência 9”, isto é, as ideias são entidades mentais que correspondem à realidade externa à mente. Com isto, Descartes funda a distinção entre o “mundo interior”, a mente, e o “mundo exterior”, que é a realidade que nos cerca. Seguindo a expressão cartesiana de “arruinar os fundamentos10”, Descartes procede metodicamente duvidando dos fundamentos das ideias. Sua intuição inicial é de que todas as ideias que existem na mente são provenientes dos sentidos, ou constituídas a partir dos sentidos. Entretanto, os sentidos não mostram-se muito confiáveis como geração de certezas, pois comumente somos enganados por eles. Para comprovar isto, basta se lembrar de quantas vezes já se confundiu com alguma sensação externa, quando cumprimentou uma pessoa pensando ser outra, quando escutou alguém chamar seu nome quando não havia ninguém, entre outras. Em outras palavras, muitas vezes as sensações obtidas pelos sentidos são difusas e confusas, gerando certa confusão, e portanto, dúvida. 8 (Valéry, et al.). 9 (Marcondes, 2004). 10 (Valéry, et al.). Mesmo considerando os sentidos como uma fonte de ideias duvidosas, parece improvável que certas ideias, que são provenientes dos sentidos, também sejam duvidosas. Por exemplo, que este corpo seja meu, ou que eu esteja aqui onde estou e fazendo o que estou fazendo. Descartes nos lembra então de que somos humanos, e dormimos. E durante o sono, imaginamos coisas tão inverossímeis quanto os loucos quando estão acordados. E dentre estes sonhos e fantasias, algumas parecem tão reais que nos confundem: “foi sonho, ou foi real?”. Sendo assim, é bem possível que esta situação que estamos vivenciando agora seja apenas um sonho, uma fantasia da imaginação, e não a pura realidade. Poderíamos argumentar então que, mesmo que estejamos sonhando, ou acordados, ou no passado, ou no futuro, ou em qualquer lugar do sistema solar, a adição de dois mais três sempre resultaria em cinco. Isto é, parece-nos que as ideias puramente racionais da matemática sejam uma garantia maior de certeza do que as ideias provenientes dos sentidos. Neste momento, Descartes nos lembra novamente de nossa pequeneza, afirmando que somos criaturas de Deus, que nos fez como bem quisesse. E, portanto, poderia Deus ter nos feito de modo que sempre nos enganássemos. Pensaríamos que existe um céu, uma terra, e todo um mundo à nossa volta, quando na verdade, não haveria nada. Pensaríamos que estávamos a acertar quando adicionamos dois mais três, igualando a cinco, quando na verdade, seria outro valor. Estaria Deus a pregar peças e zombar de nós? É claro que Descartes não poderia sustentar essa noção de Deus como um ser zombeteiro e enganador. Sugere então que, em lugar disso, exista um gênio maligno, ardiloso e poderoso, que se dedica a me enganar com todas as suas forças. Neste momento você deve estar pensando: “peraí, acho de Descartes foi longe demais com essa.” E realmente foi. A proposta de Descartes é mostrar que podemos levar a dúvida às suas últimas consequências, e a partir daí, brilhará a inquestionável certeza. Isso mesmo: para se atingir a certeza, o primeiro passo é duvidar, e duvidar radicalmente de tudo. Chamamos esta técnica cartesiana de “dúvida metódica”, ou “dúvida hiperbólica”. O método da dúvida proposto por Descartes possui então quatro etapas. As duas primeiras se referem aos erros dos sentidos, enquanto as duas últimas se dirigem para as ideias racionais. O primeiro argumento contra os sentidos é o “argumento do erro dos sentidos”, que questiona a validade das sensações difusas e confusas dos sentidos, a partir de objetos que estão distantes, ou de difícil observação. A seguir, Descartes formula o “argumento do sonho”, questionando a validade de qualquer ideia sensorial. O terceiro argumento, do “Deus enganador”, e sua reformulação como “argumento do gênio maligno” se referem às ideias racionais e à realidade sensória em geral. Podemos perceber que a dúvida cartesiana progride em amplitude e profundidade a cada reformulação. Argumentos contra os sentidos Argumento do erro dos sentidos Mostra que as ideias de objetos distantes e de difícil observação são duvidosas. Argumento do sonho Mostra que qualquer ideia sensória é duvidosa. Argumentos contra a razão Argumento do Deus enganador Mostra que qualquer ideia sensória e qualquer ideia racional, como as ideias geométricas e matemáticas, são duvidosas. Argumento do Gênio maligno O objetivo de Descartes, como vimos, não é o de simplesmente mostrar que as ideias são duvidosas. Sua proposta é oferecer um fundamento sólido para a nova ciência, e não desqualificar todas as ideias que possuímos em nossa mente. É nesse sentido que dizemos que a dúvida, como é utilizada por Descartes, constitui um ceticismo metodológico, ou seja: a dúvida é empregada como método para se alcançar certezas, e não um objetivo em si, como seria o caso num ceticismo clássico. Mas, depois de tanto duvidar, Descartes encontra alguma certeza? “A meditação que fiz ontem me encheu o espírito de tantas dúvidas, que doravante me é de todo impossível esquece-las. E, todavia, não vejo de que maneira as poderei solucionar. E, como eu tivesse caído de repente numa água muito profunda, me sinto de tal modo perplexo que nem posso firmar meus pés no fundo nem nadar para me manter em cima. [...] Arquimedes, para tirar o mundo do seu lugar e o locomover para outro, não pediu mais do que um ponto que fosse firme e imóvel; assim, terei o direito de conceber altas esperanças se for bastante feliz de encontrar apenas uma coisas que seja certa e indubitável. 11” Neste ponto, a reflexão de Descartes é simples: como o gênio maligno poderia me enganar, se eu não existisse? Ora, se estou colocando tudo em dúvida, é porque penso. E se penso, é porqueexisto. Seria absurdo supor que algo que não existe duvidasse e pensasse sobre algo. Portanto, se penso, então existo (cogito ergo sum). Na quarta parte do Discurso do Método, Descartes escreve: “[...] Mas logo em seguida notei que, enquanto queria assim pensar que tudo era falso, urgia necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa, e, notando esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão segura que todas as demais suposições extravagantes dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que a podia receber sem escrúpulos para primeiro princípio da filosofia que buscava. 12” Estamos agora diante da primeira certeza cartesiana: após colocar todas as ideias em suspenso, Descartes percebe que o próprio fato de duvidar encerra em si uma certeza, a da própria existência. Entretanto, esta existência permanece problemática: que 11 (Valéry, et al.). 12 (Valéry, et al.). tipo de coisa é isto o que eu sou? Sei que existo porque estou pensando, então, a única coisa que sou permitido a concluir é que sou algo que pensa, enquanto pensa. A materialidade ainda encontra-se em suspenso, pois ainda pode ser obra do gênio maligno. Como fazer então para sair do solipsismo, e ter certeza da realidade material? d) A ideia de Deus Se somos algo que pensa, e todo pensamento é composto por ideias, Descartes propõe encontrar na mente uma ideia que tenha correspondência de modo claro e distinto com seu objeto real. Na terceira meditação, Descartes demonstra que as ideias que estão na mente possuem duas origens: ou são adventícias, isto é, adquiridas através dos sentidos, ou são fictícias, ou seja, elaboradas pela imaginação a partir de ideias adventícias. Por exemplo, se pensamos em um elefante, a ideia representada em nossa mente é uma ideia adventícia, pois só somos capazes de representar mentalmente um elefante caso já tenhamos visto um elefante antes. Agora, se imaginamos um elefante voador com asas de morcego e chifres, estamos representando em nossa mente uma ideia fictícia, criada a partir de diversas ideias adventícias recortadas e coladas pela imaginação, produzindo um ser novo, monstruoso e imaginário. Entre todas as ideias que possuímos em nossa mente, uma tem uma característica especial: é a ideia de Deus. Ora, que ideia é esta? É a ideia de um ser infinito, perfeito e necessário. Qual a origem desta ideia? Bom, com certeza não se trata de uma ideia adventícia, pois não temos nenhuma sensação objetiva de Deus. Também não se trata de uma ideia fictícia, pois a mente humana, imperfeita e finita, é incapaz de criar uma ideia perfeita e infinita. De que tipo de ideia se trata então? De uma ideia inata, isto é, uma ideia que já está na nossa mente quando nascemos, que não é obtida pelos sentidos. Sendo assim, é necessária a existência de Deus na realidade exterior, e a ideia de Deus é uma espécie de “marca” que o criador coloca em sua criatura. Este é o ponto que distingue o chamado inatismo cartesiano. Descartes introduz aqui a noção de “realidade objetiva”: as ideias possuem mais realidade à medida em que seu objeto correspondente na realidade possui mais perfeição. A ideia de Deus, por se tratar de uma ideia perfeita, seria então a ideia que possui mais realidade objetiva, e, portanto, seria a garantia de que as ideias que estão na mente tem um correspondente fora dela, na realidade exterior. e) Dualismo, Mecanicismo e o Problema Mente-Corpo Deus é a garantia da existência objetiva do mundo exterior à mente. E de todas as coisas exteriores que podem chegar à mente, somente a extensão pode ser concebida clara e distintamente. Herdeiro do mecanicismo galileano, Descartes defende que não há, portanto, mais de uma matéria: o universo é uma grande “máquina”, cujos elementos essenciais são matéria e movimento. Também o corpo humano e os corpos dos animais são “máquinas” e funcionam a partir de princípios mecânicos que regulam seus movimentos e ações. Isso que chamamos de “vida” pode ser reduzido a uma entidade material, a elementos muito sutis, veiculados pelo sangue, que se difundem pelo corpo 13. Se a ideia de Deus é a ideia de um ser perfeito e infinito, e se essa ideia reflete algo de real, pois não pode ter sido criada pela imaginação, muito menos ser adquirida pelos sentido, devemos supor que se trata então de um tipo de substância diversa da matéria, isto é, uma substância infinita. Descartes postulou também a existência de uma substância pensante (a res cogitans), além da substância material (na qual ocorrem os fenômenos físicos), e também queria construir um domínio de investigação específco dos fenômenos mentais. Sua teoria do conhecimento é uma parte dessa doutrina. O corpo humano é concebido por Descartes como uma máquina, assim como são, para ele, os animais. Entretanto, os animais não possuem alma, enquanto o homem sim, tal como Deus e os anjos. Esta concepção dualista do ser humano coloca para Descartes o problema da interação entre corpo e espírito, ou alma, ou mente. Enquanto o corpo é, então, uma máquina que funciona de forma semelhante às máquinas hidráulicas que eram conhecidas na época de Descartes, a alma que está associada a nosso corpo, embora seja de outra natureza, tem de poder interagir com o corpo, sem o que não seria possível nossa interação com o ambiente, ou seja, nem agirmos sobre ele, segundo nossa vontade, nem percebermos pelos sentidos os objetos a nossa volta. Este problema já é colocado por Descartes no Discurso do Método e nas Meditações, mas sua teoria é desenvolvida propriamente no livro denominado As Paixões da Alma. O problema principal colocado por Descartes, e que ele tenta sem sucesso resolver nessa obra, é o da interação entre corpo e alma, isto é, como podem interagir estas duas coisas de naturezas diferentes. Embora a alma esteja associada ao corpo todo, ela tem sua sede no cérebro, mais exatamente, na glândula pineal (também denominada epífse), que é onde, segundo Descartes, é possível que haja as interações entre os eventos físicos do corpo e a alma. Descartes elabora, de fato, uma teoria que hoje seria denominada neurofisiológica, para explicar a transmissão de estímulos pelos membros e partes do corpo e a interação entre o corpo e os objetos a sua volta. E, em acréscimo a tal teoria fisiológica, Descartes elabora também uma teoria de caráter psicológico, para explicar como, na alma, há alterações causadas pelo corpo. Este modelo de interação psicofísica de Descartes não foi bem sucedido principalmente por razões meramente metafísicas. Sendo de naturezas diferentes – sendo duas substâncias –, corpo e alma não podem, de fato, interagir, mesmo 13 (Reale, et al., 2004). localizando tal possível interação na glândula pineal. Esse problema foi legado a cartesianos posteriores, como Malebranche e Leibniz, que elaboraram, respectivamente, as teorias do ocasionalismo e da harmonia preestabelecida. Ambas as teorias, de fato, pressupõem a intervenção divina para que haja fenômenos psicofísicos. Um modelo inteiramente materialista, como o que veremos em Hobbes, possui então grandes vantagens em relação ao de Descartes. Como diz o filósofo contemporâneo Richard Rorty, a concepção de mente humana de Descartes e dos demais flósofos modernos é uma concepção especular, isto é, eles concebem a mente humana como uma espécie de espelho, capaz de refletir a realidade extramental, as coisas fora da mente, e de representá-las com relativa fidelidade. Chamamos esta concepção de psicologismo. Em outras palavras, o conhecimento humanoseria, segundo tal perspectiva, uma questão de representações mentais e de eventos psicológicos que se dão em nós, e que, em princípio, nos capacitariam a copiar internamente os objetos fora de nós. Esta perspectiva psicologista perdurou na teoria do conhecimento até o fnal do século XIX, e foi somente com flosofas inovadoras no início do século XX que uma outra forma de encarar o conhecimento humano se impôs. 14. f) Questões para fixação e aprofundamento: 1) Qual o principal objetivo da filosofia de Descartes? 2) Por que Descartes considera importante a fundamentação do conhecimento científico? 3) Qual o papel do método para Descartes? 4) Por que o exercício da dúvida realizado por Descartes é conhecido como “dúvida metódica”, mas também como “dúvida radical ou hiperbólica”? 5) Resuma o critério de verdade adotado por Descartes. 6) Diferencie as “ideias que nascem dos sentidos” das “ideias que nascem da razão”. Exemplifique. 7) Analise a dúvida metódica de Descartes, passo a passo, destacando os principais raciocínios ou argumentos. 8) Formule com suas palavras o argumento do cogito. 9) O que significa solipsismo? 10) Como entender a oposição mundo interior x mundo exterior na filosofia de Descartes? 11) Por que Descartes precisa recorrer a uma prova sobre a existência de Deus? g) Questões de vestibular: 1) (UFU-MG) Em O Discurso sobre o método, Descartes afirma: “Não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência, ou seja, evitar acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como nunca se deve abranger entre nossos juízos aquilo que não se apresente tão clara e distintamente à nossa inteligência a ponto de excluir qualquer possibilidade de dúvida” (Reale, et al., 2004). Após a leitura do texto acima, assinale a alternativa correta. a) A evidência, apesar de apreciada por Descartes, permanece uma noção indefinível. 14 (Dutra, 2008). b) A evidência é a primeira regra do método cartesiano, mas não é princípio metódico fundamental. c) Ideias claras e distintas são o mesmo que ideias evidentes. d) A evidência não é um princípio do método cartesiano. h) Questões para reflexão: 1) Descartes concluiu que pensava e que, portanto, era “pelo menos” uma coisa que pensa. No entanto, essa conclusão não lhe permitia deduzir que existissem outras mentes, outras coisas pensantes como ele. Foi um momento solipsista de sua meditação. Solipsismo é esse estado de não saber com certeza se existe outra mente (ou sujeito pensante) além de si mesmo, além do eu. Reflita sobre essa concepção. Você consegue imaginar-se como uma mente sozinha, sendo que todo o resto, coisas e pessoas, é mera ilusão? 2) O pior cego é aquele que não quer ver. (Provérbio popular) Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir. (Descartes, Princípios da filosofia, Prefácio). Interprete essas duas afirmações, observando suas semelhanças e diferenças e buscando exempos para ambas. Depois, escreva sobre o problema da “cegueira” e o que as pessoas não querem ver. 3) Para ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de saber, combinado à grande cautela em acreditar que se sabe; também se deve possuir a acuidade lógica e o hábito do pensamento exato. Tudo isso, claro, é uma questão de grau. A incerteza, em particular, pertence, até certo ponto, ao pensamento humano; podemos reduzi- la indefinidamente, embora jamais possamos aboli-la por completo. Em consequência, a filosofia é uma atividade contínua, e não uma coisa pela qual podemos conseguir uma perfeição final, de uma vez por todas. (RUSSELL, Fundamentos de filosofia, p. 9.) Descartes concordaria com o filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970) em que a filosofia deve ser uma atividade contínua? E você? Justifique sua resposta. References BonJour, Laurence e Baker, Ann. 2010. Filosofia: textos fundamentais comentados. [ed.] Maria Caroline dos Santos Rocha e Roberto Hofmeister Pich. [trad.] André Nilo Klaudat, et al. 2ª. Porto Alegre : Artmed, 2010. p. 775. Burtt, Edwin Arthut. 1983. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna: Pensamento Científico. [ed.] Célia Ladeira e Lúcio Reiner. [trad.] José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1983. p. 267. Descartes, René. 2004. Discurso do Método; As Paixões da Alma; Meditações. [ed.] Eliel Silveira Cunha e Fernanda Cardoso. [trad.] Enrico Corvisieri. São Paulo : Editora Nova Cultural LTDA., 2004. p. 335. —. 1968. Princípios da Filosofia. [trad.] Torrieri Guimarães. São Paulo : Hemus - Livraria Editora LTDA., 1968. p. 106. Dutra, Luiz Henrique de Araújo. 2008. Teoria do Conhecimento. Florianópolis : EAD/UFSC, 2008. Japiassú, Hilton e Marcondes, Danilo. 2008. Dicionário básico de Filosofia. 5ª. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008. p. 309. Marcondes, Danilo. 2004. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8ª. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2004. p. 295. —. 2000. Textos Básicos de Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3ª. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000. p. 184. Reale, Giovanni e Antiseri, Dario. 2004. História da Filosofia: do humanismo a Descartes. [trad.] Ivo Stomiolo. São Paulo : Paulus, 2004. p. 321. Vol. 3. Valéry, Paul e Descartes, René. O pensamento vivo de Descartes. [ed.] Waltemar Carvalho. [trad.] Rubens Gomes de Souza. Goiânia : Livraria e Editora Waldré LTDA. p. 130. 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