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2019 1a Edição Literatura OcidentaL i Prof.ª Raquel da Silva Yee Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof.ª Raquel da Silva Yee Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: Y42l Yee, Raquel da Silva Literatura ocidental I. / Raquel da Silva Yee. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 182 p.; il. ISBN 978-85-515-0290-7 1. Literatura ocidental. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 809 III apresentaçãO Caro acadêmico! Este livro didático pretende oferecer uma indrodução panorâmica à Literatura Ocidental, que servirá para ampliar seu repertório literário e embasar seus estudos futuros. Você terá a oportunidade de entrar em contato com várias obras representativas da história da literatura no mundo ocidental. O itinerário delineado recorta 27 séculos de práticas literárias produzidas na Europa e em grande parte da América. Passaremos por muitos textos, de diferentes estilos, épocas e lugares, abarcando os primórdios das produções literárias da antiguidade grega e latina, a literatura na Idade Média, a literatura entre os séculos XV e XVIII e, finalmente, as primeiras manifestações literárias da modernidade. Tendo em vista a impossilidade de abarcarmos a amplitude dos escritos elaborados durante esses séculos, optamos por priorizar alguns autores e textos, de modo que as reflexões apresentadas despertem o interesse por outras leituras e indagações sobre o vasto campo da literatura. Durante o percurso, refletiremos sobre as singularidades dos projetos estéticos a partir do estudo dos movimentos literários. Contudo, a perspectiva histórica desta disciplina não pretende ser estanque, nem arbritária, já que entendemos as expressões artísticas como um organismo vivo e dinâmico, intimamente ligadas ao contexto de cada época, refletindo, assim, o pensamento político, social e estético do momento em que foram produzidas. O que confirma a ideia de que os textos literários e seus temas se modificam a longo do tempo e pressupõem uma experiência de leitura sempre aberta às inúmeras rotas e (re)descobertas, à medida que a sociedade e os leitores igualmente se transformam. Logo, esperamos que você extrapole as discussões expostas aqui. Este livro didático é, certamente, um convite à fruição, à leitura crítica, à linguagem plurissignificativa dos textos literários. Afinal, a literatura é capaz de promover encontros prazerosos, interações e discussões mais amplas e complexas que estimulam a nossa percepção do mundo, de si, dos outros e das relações sociais. Sendo, portanto, indispensável para a formação do indivíduo e para o intercâmbio de diferentes línguas e culturas. Boas leituras! Prof.ª Raquel da Silva Yee IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. 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UNI V VI VII UNIDADE 1 – OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL ........................................... 1 TÓPICO 1 – LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS ....................................................... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 POR QUE LER LITERATURA? ......................................................................................................... 4 3 OS CLÁSSICOS E A FORMAÇÃO DO LEITOR ........................................................................... 7 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 10 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 12 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 13 TÓPICO 2 – A LITERATURA GREGA ................................................................................................ 15 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 15 2 O PENSAMENTO MÍTICO ................................................................................................................ 16 3 A POÉTICA DE ARISTÓTELES ........................................................................................................ 19 4 GÊNERO ÉPICO .................................................................................................................................. 21 5 GÊNERO DRAMÁTICO .................................................................................................................... 26 5.1 A TRAGÉDIA ................................................................................................................................... 26 5.2 A COMÉDIA .................................................................................................................................... 31 6 GÊNERO LÍRICO ................................................................................................................................. 33 7 A FICÇÃO EM PROSA ....................................................................................................................... 35 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 36 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 37 TÓPICO 3 – A LITERATURA LATINA ............................................................................................... 39 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 39 2 A POESIA LATINA ..............................................................................................................................40 3 A PROSA LITERÁRIA ......................................................................................................................... 43 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 46 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 47 TÓPICO 4 – A LITERATURA NA IDADE MÉDIA .......................................................................... 51 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 51 2 AS CANCÕES DE GESTA .................................................................................................................. 51 3 A LÍRICA TROVADORESCA ............................................................................................................ 54 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 59 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 60 UNIDADE 2 – A LITERATURA ENTRE OS SÉCULOS XV E XVII .............................................. 63 TÓPICO 1 – O RENASCIMENTO ........................................................................................................ 65 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 65 2 RESSONÂNCIAS DA LITERATURA ITALIANA: DANTE, PETRARCA, BOCCACCIO ....... 66 3 TRAVESSIAS LITERÁRIAS: A GESTA DO MAR ........................................................................ 77 3.1 OS LUSÍADAS DE CAMÕES ......................................................................................................... 77 sumáriO VIII RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 83 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 84 TÓPICO 2 – A ESTÉTICA BARROCA ................................................................................................ 89 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 89 2 DON QUIJOTE DE LA MANCHA: CERVANTES E O ROMANCE MODERNO .................. 90 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 95 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 98 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 99 TÓPICO 3 – NOVAS FORMAS DRAMÁTICAS .............................................................................. 105 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 105 2 HAMLET DE SHAKESPEARE ........................................................................................................... 105 3 LOPE DE VEGA E CALDERÓN DE LA BARCA ........................................................................... 108 4 INTERFACES DO CLASSICISMO: ESCOLA DE MULHERES DE MOLIÈRE ...................... 112 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 117 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 118 UNIDADE 3 – LITERATURA E MODERNIDADE .......................................................................... 121 TÓPICO 1 – A LITERATURA DA ILUSTRAÇÃO ............................................................................ 123 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 123 2 PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS ...................................................................... 124 3 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS ......................................................................................... 125 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 128 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 129 TÓPICO 2 – A ESTÉTICA ROMÂNTICA .......................................................................................... 131 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 131 2 O MOVIMENTO ROMÂNTICO OCIDENTAL ............................................................................. 131 3 A PROSA ROMÂNTICA..................................................................................................................... 133 4 A POESIA ROMÂNTICA ................................................................................................................... 139 5 O TEATRO ROMÂNTICO ................................................................................................................. 147 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 148 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 149 TÓPICO 3 – REALISMO E NATURALISMO .................................................................................... 151 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 151 2 A LINGUAGEM DO REALISMO ..................................................................................................... 152 3 AUTORES E OBRAS FUNDAMENTAIS ......................................................................................... 152 4 O NATURALISMO ............................................................................................................................... 157 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 161 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 163 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 164 TÓPICO 4 – AS ESTÉTICAS DO FIM DO SÉCULO XIX ................................................................ 167 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 167 2 O PARNASIANISMO .......................................................................................................................... 167 3 O SIMBOLISMO ................................................................................................................................. 169 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 174 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 175 REFERÊNCIAS .........................................................................................................................................177 1 UNIDADE 1 OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta desta unidade, você deverá ser capaz de: • refletir sobre as funções da literatura e as especificidades da linguagem literária, bem como sua importância na formação do leitor; • perceber as amplas significações do conceito de livro clássico; • reconhecer as origens e o legado da literatura da Grécia e Roma antigas na história da literatura ocidental; • compreender as transformações estéticas e históricas que impulsionaram as primeiras manifestações literárias da Idade Média. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 - LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS TÓPICO 2 - A LITERATURA GREGA TÓPICO 3 - A LITERATURA LATINA TÓPICO 4 - A LITERATURA NA IDADE MÉDIA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS 1 INTRODUÇÃO Em nossa trajetória, buscaremos compreender a literatura como forma de manifestação artística que tem fortes vínculos com uma tradição que começou a ser construída há muito tempo. Antes de percorrermos obras literárias fundacionais da antiguidade clássica, apresentaremos, neste tópico, uma possível definição do nosso objeto de estudo, bem como uma discussão que envolve a importância da literatura na formação do indíviduo e o papel que ela desempenha na sociedade. Em seguida, problematizaremos o conceito de livro clássico, a influência duradoura de grandes obras que transformaram o pensamento de seu tempo. Munidos dessas reflexões, seguiremos rumo à origem da literatura ocidental na Grécia antiga e no mundo romano. Posto isso, consideramos importante recuperar o sentido etimológico do termo "literatura", proveniente do vocábulo latino littera, que significa letra e está atrelado à arte das palavras. Noção moderna que passou a ser denominada, como hoje conhecemos, só a partir do fim do século XVIII, visto que, anteriormente, a noção clássica de literatura estava ligada, de modo geral, a tudo o que a retórica e a poesia produziam, incluindo fiçcão, história, filosofia, ciência e eloquência, destaca Compagnon (2010). O debate sobre literatura vem sendo feito há milênios e varia significativamente de acordo com as épocas e as culturas. A noção de literatura que perdurou ao longo dos séculos através do sistema dos gêneros poéticos dramático, épico e lírico, elaborado segundo as ideias dos filósofos Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384 -322 a.C.), passou a ser questionada com o aparecimento de novas formas de representação literária que surgiram na Idade Média e nos séculos seguintes, como veremos mais detidamente no decorrer de nossas discussões. Diante desses novos (con)textos, a literatura começa a ser compreendida, na ampla acepção moderna, como um conjunto diversificado de textos criativos que requer do leitor uma capacidade de compreensão e interpretação que não se restringe a alguns preceitos. Sendo assim, podemos considerar que a literatura, desde suas origens até a atualidade, se caracteriza por suas diversas formas e meios. Surge, portanto, a ideia de criação literária vinculada à arte, ao exercício artístico da linguagem, constituindo-se como um jogo de alternâncias entre o texto e o leitor, um espaço aberto de relações que geram novos textos e, por extensão, UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 4 novas leituras, segundo Roland Barthes (2006). Experimentações que trazem à tona as tramas complexas das escrituras, o inusitado manejo da linguagem, permitindo ao leitor captar a realidade de uma maneira diferente, mudando também a percepção sobre si mesmo e sobre aquilo que está ao seu redor. 2 POR QUE LER LITERATURA? "A literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta […]". Se uma das funções da literatura é nos ensinar "a melhor sentir", como diz Compagnon (2009, p. 66), iniciaremos este tópico aguçando os nossos sentidos, participando efetivamente do jogo das palavras, experimentando o que as produções literárias têm a nos oferecer. Através da leitura do poema do autor brasileiro Manoel de Barros, que segue abaixo, passaremos a ampliar nossas reflexões acerca da importância dos textos literários. No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio (BARROS, 1993, p.15). Experimentar o que os textos literários podem oferecer ao leitor é, sem dúvida, uma das melhores maneiras de descobrir "por que ler literatura". A leitura do poema de Manoel de Barros mobiliza nossas percepções, suscita sensações inusitadas e traz uma série de reflexões sobre o fenômeno literário. Através do poema, podemos lidar com o improvável, escutar a "cor dos passarinhos”, porque o poeta, assim como o imaginário fértil da criança, estabelece relações abstratas e subjetivas com as palavras e os acontecimentos. Isso quer dizer que a literatura maneja o discurso, faz um uso peculiar da linguagem, transfigura o real, desconstrói padrões convencionais e a racionalidade lógica. Assim, na passagem do primeiro verso, "no descomeço era o verbo”, podemos perceber que o eu lírico (a “voz que fala” no poema) estabelece uma relação intertextual com a Bíblia cristã, com o mito da criação, questionando as referências cristalizadas ao longo tempo. Nesse sentido, o "delírio do verbo" pode ser entendido como um devaneio, um estado de inquietação, atrelado à subversão, à capacidade plurissignificativa da linguagem literária de provocar nascimentos, de singularizar as palavras. TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS 5 A partir da leitura do poema retomamos, de certa maneira, a definição ampla de literatura como arte das palavras, capaz de produzir um efeito estético, sensível. Afinal, a literatura está diretamente vinculda às manifestações artísticas, à palavra estética, originária do termo grego aisthésis, ao que é perceptível pelos sentidos. Entendida de forma mais abrangente, a literatura engloba, segundo o crítico literário Antonio Candido: […] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possam viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabuloso. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável desse universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito — como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura corrida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito (CANDIDO, 2011, p. 174).As considerações de Antonio Candido (2011, p. 174) expostas no ensaio O direito à literatura nos ajudam a situar a literatura dentro de um conjunto plural de construções do imaginário. O crítico associa a necessidade da produção literária ao processo inconsciente de elaboração onírica, defendendo que a arte das palavras é também um direito humano indispensável. Além de fornecer um prazer lúdico, é fonte de conhecimento do real, uma "forma de expressão que manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos". Assumindo, portanto, uma função social, um papel importante de humanização, compreendida por Candido como: […] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante (CANDIDO, 2011, p. 174). UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 6 É por isso que a atividade literária oral ou escrita, para D'Onofrio (1990, p. 10), “é consubstancial à sociedade humana, não existindo povo sem literatura". Constatações que também se revelam produtivas nas discussões de Antonie Compangnon. As definições de literatura segundo sua função parecem relativamente estáveis, quer essa função seja compreendida como individual ou social, privada ou pública. Aristóteles falava de katharsis (catarse), ou de purgação, ou de purificação de emoções como o temor e a piedade. É uma noção difícil de determinar, mas ela diz respeito a uma experiência especial das paixões ligada à arte poética. Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile (COMPAGNON, 2010, p. 34-35). Para o autor, as concepções de Aristóteles e Horácio de que a literatura deveria ser dulce et utile, ou seja, favorecer o prazer e a formação humana, de certa forma, permanecem estáveis ao ressaltarem que o texto literário, dentre suas várias funções, tem a capacidade de despertar os sentimentos do autor e do leitor. Nessa perspectiva há, portanto, “um conhecimento do mundo e dos homens propiciado pela experiência literária (talvez não apenas por ela, mas principalmente por ela)”, destaca Compagnon (2010, p. 35). Em outro momento, sob a provocadora indagação "Literatura para quê?", Compagnon (2009, p. 60) reforça a discussão, salientando que a literatura deve "ser lida e estudada porque oferece um meio — alguns dirão até mesmo único — de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida". Sem dúvida, ela é capaz de nos tornar "sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos”. Reconhecer que a literatura assume um papel transformador passa pelo entendimento de que ela desempenha várias funções, incluindo o entretenimento, a investigação psicológica, a crítica política, social e ideológica, entre outras questões estéticas e filosóficas mais amplas que abarcam as especificidades dos textos literários. Notadamente, a leitura de poemas, romances, contos, peças teatrais, entre outros textos verbais e visuais, possibilita múltiplas experiências. Através da literatura somos transportados para lugares inusitados que escapam à nossa percepção. Também somos estimulados a refletir sobre a complexidade da linguagem, sobre crenças, incertezas, sobre aspirações e conflitos humanos. Ora, não é à toa que muitas obras literárias foram consagradas por suas singulares reverberações e exerceram um profundo impacto na sociedade. À vista disso, veremos, a seguir, outra importante discussão, envolvendo especificamente a leitura de livros considerados clássicos. TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS 7 3 OS CLÁSSICOS E A FORMAÇÃO DO LEITOR O estudo da literatura ocidental apresenta uma série de desafios que certamente estão vinculados à amplitude e à complexidade do nosso objeto de investigação. Vimos que a literatura possui especificidades próprias, que se revelam pela maneira como expressa artisticamente determinadas ideias e sensações. Daqui em diante, estudaremos várias obras pertencentes ao canône literário ocidental, isto é, textos que exercem uma influência particular e fazem parte de um conjunto de leituras consideradas importantes para a formação do leitor. O cânone literário, oriundo da palavra grega kanon, significa norma, medida, diz respeito aos princípios literários que permitem organizar um conjunto de obras consideradas indispensáveis à formação do indivíduo. Designa, ainda, os postulados ou princípios doutrinários que norteiam determinada corrente literária (MOISÉS, 2004). São obras de referência, denominadas clássicas. De certa forma, o processo de canonização está atrelado a interesses dos grupos responsáveis por sua constituição e disseminação. É por isso que muitos especialistas em literatura problematizam a formação do cânone, contrariando as escolhas arbitrárias fundamentadas em regras que estão a serviço de ideologias hegemônicas e incorporando outras formas de manifestações literárias. NOTA Diante dessas problematizações, você pode estar se perguntando: Afinal, o que podemos chamar de clássicos? Na verdade, não há um consenso entre os especialistas sobre o valor de uma obra literária. Podemos considerar que um determinado livro se converte em clássico quando persiste ao longo do tempo e segue vivo na releitura e na imaginação dos leitores, como é o caso dos poemas Ilíada e Odisseia, recitados oralmente, que consagraram Homero como o educador dos gregos e, por extensão, o modelador da cultura ocidental, segundo Jaeger (2010). Esses poemas da Antiguidade Clássica nutriram o pensamento da humanidade, ao transmitirem valores culturais através do relato das realizações dos deuses e dos antepassados. As diversas traduções e releituras das epopeias homéricas, que vão da poesia à prosa, das irreverentes histórias em quadrinhos às modernas produções cinematográficas, continuam suscitando indagações críticas sobre o homem e o mundo, como já abordado em Yee (2011). Constatações que nos levam à outra indagação: Por que será que certas obras se perpetuam, permanecendo singulares e enigmáticas? UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 8 Obras como Ilíada e Odisseia, de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri e a narrativa do famoso cavaleiro medieval, criada por Miguel de Cervantes em Dom Quixote, foram produzidas por culturas diferentes, em tempos tão distantes, e continuam dissipando imagens que povoam o imaginário coletivo. São obras que pertencem indiscutivelmene ao cânone, parecem definir um valor literário e se revelam uma experiência de leitura enriquecedora, na qual o leitor pode experimentar as destrezas e as complexidades da linguagem literária e refletir sobre temas inesgotáveis. No ensaio Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino (2007, p. 10-11) levanta algumas hipóteses que nos levam a entender que os livros clássicos sempre se renovam e têm algo a dizer, e "quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos". Vistos dessa maneira, os clássicos são responsáveis por gerar uma espécie de "riqueza" para o seu leitor, na medida em que proporcionam uma experiência instigante e inesquecível, sempre aberta às interpretações. Calvino acredita que uma obra não será considerada clássica apenas por uma convenção, por uma escolha arbitrária de um grupo de pessoas, e, sim, porqueexerce, antes de tudo, "uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando- se como inconsciente coletivo ou individual". Ou seja, um clássico amplia significativamente nossa experiência de leitura quando passa a fazer parte das nossas lembranças ou do imaginário coletivo. Em outra passagem do ensaio citado, Calvino reforça que: 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisseia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os possuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias (CALVINO, 2007, p. 12). Ao citar o seu repertório de obras da tradição literária, Calvino destaca a influência dos clássicos sobre o pensamento do leitor. As obras instigam, nutrem o imaginário, desencadeiam uma série de discussões e correlações. Por essa via, entendemos a justificativa do autor de que ler os clássicos é sempre melhor do que não os ler. Calvino ainda ressalta que: TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS 9 […] A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele (CALVINO, 2007, p. 13). Significa entender que as instituições de ensino precisam dar a devida atenção ao debate sobre a experiência da leitura de textos integrais, privilegiando a vivência efetiva com os textos literários em suas dimensões estética, filosófica, cultural e histórica. Em face do exposto, talvez você esteja se questionando mais uma vez: Será que ainda há espaço para os clássicos na escola? Como preparamos os alunos para melhor fruir um texto literário? Respaldados pelas discussões apresentadas até aqui, reivindicaremos o espaço para os clássicos na escola. Ora, se é possível através da literatura vivermos experiências diversificadas e inesquecíveis, cabe ao professor, diante da tarefa desafiadora, despertar a curiosidade dos estudantes, instigando o prazer pela leitura desinteressada, sem imposição, visando, assim, o enriquecimento do autoconhecimento e da percepção de mundo dos leitores. Dessa maneira, os estudantes poderão encontrar caminhos para ir mais longe, buscando outras referências, construindo um repertório próprio de livros clássicos. Jorge Luis Borges também se debruçou sobre os significados plurais e complexos dos clássicos ao longo do tempo, concebendo o clássico como sendo "aquel libro que una nación o un grupo de naciones o el largo tiempo han decidido leer como si en sus páginas todo fuera deliberado, fatal, profundo como el cosmos y capaz de interpretaciones sin término" (BORGES, 1980, p. 32). Para encerrar este tópico convidamos você para apreciar as reflexões de Borges, apresentadas a seguir, em língua espanhola, no texto intitulado Sobre los clássicos. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 10 SOBRE LOS CLÁSSICOS Jorge Luis Borges Escasas disciplinas habrá de mayor interés que la etimología: ello se debe a las imprevisibles transformaciones del sentido primitivo de las palabras, a lo largo del tiempo. Dadas tales transformaciones, que pueden lindar con lo paradójico, de nada o de muy poco nos servirá para la aclaración de un concepto el origen de una palabra. Saber que cálculo, en latín, quiere decir piedrecita y que los pitagóricos las usaban antes de la invención de los números, no nos permite dominar los arcanos del álgebra; saber que hipócrita es actor, y persona, máscara, no es un instrumento valioso para el estudio de la ética. Parejamente, para fijar lo que hoy entendemos por lo clásico, es inútil que este adjetivo descienda del latín classis, flota, que luego tomaría el sentido del orden. (Recordemos de paso la información análoga de ship-shape.) ¿Qué es, ahora, un libro clásico? Tengo al alcance de la mano las definiciones de Eliot, de Arnold y de Sainte-Beuve, sin duda razonables y luminosas, y me sería grato estar de acuerdo con esos ilustres autores, pero no los consultaré. He cumplido sesenta y tantos años: a mi edad, las coincidencias o novedades importan menos que lo que uno cree verdadero. Me limitaré, pues, a declarar lo que sobre este punto he pensado. Mi primer estímulo fue una Historia de la literatura china (1901) de Herbert Allen Giles. En su capítulo segundo leí que uno de los cinco textos canónicos que Confucio editó es el Libro de los Cambios o I King, hecho de 64 hexagramas, que agotan las posibles combinaciones de seis líneas partidas o enteras. Uno de los esquemas, por ejemplo, consta de dos líneas enteras, de una partida y de tres enteras, verticalmente dispuestas. Un emperador prehistórico los habría descubierto en la caparazón de una de las tortugas sagradas. Leibniz creyó ver en los hexagramas un sistema binario de numeración; otros, una filosofía enigmática; otros, como Wilhelm, un instrumento para la adivinación del futuro, ya que las 64 figuras corresponden a las 64 fases de cualquier empresa o proceso; otros, un vocabulario de cierta tribu; otros, un calendario. Recuerdo que Xul-Solar solía reconstruir ese texto con palillos y fósforos. Para los extranjeros, el Libro de los Cambios corre el albur de parecer una mera chinoiserie; pero generaciones milenarias de hombres muy cultos lo han leído y referido con devoción y seguirán leyéndolo. Confucio declaró a sus discípulos que si el destino le otorgara cien años más de vida, consagraría la mitad a su estudio y al de los comentarios o alas. Deliberadamente he elegido un ejemplo extremo, una lectura que reclama un acto de fe. Llego, ahora, a mi tesis. Clásico es aquel libro que una nación o un grupo de naciones o el largo tiempo han decidido leer como si en sus páginas todo fuera deliberado, fatal, profundo como el cosmos y capaz de interpretaciones sin término. Previsiblemente, esas decisiones varían. Para los alemanes y austríacos LEITURA COMPLEMENTAR TÓPICO 1 | LITERATURA OCIDENTAL E OS CLÁSSICOS 11 el Fausto es una obra genial; para otros, una de las más famosas formas del tedio, como el segundo Paraíso de Milton o la obra de Rabelais. Libros como el de Job, la Divina Comedia, Macbeth (y, para mí, algunas de las sagas del Norte) prometen una larga inmortalidad, pero nada sabemos del porvenir, salvo que diferirá del presente. Una preferencia bien puede ser una superstición. No tengo vocación de iconoclasta. Hacia el año treinta creía, bajo el influjo de Macedonio Fernández, que la belleza es privilegio de unos pocos autores; ahora sé que es común y que está acechándonos en las casuales páginas del mediocre o en un diálogo callejero. Así, mi desconocimiento de las letras malayas o húngarases total, pero estoy seguro de que si el tiempo me deparara la ocasión de su estudio, encontraría en ellas todos los alimentos que requiere el espíritu. Además de las barreras lingüísticas intervienen las políticas o geográficas. Burns es un clásico en Escocia; al sur del Tweed interesa menos que Dunbar o Stevenson. La gloria de un poeta depende, en suma, de la excitación o de la apatía de las generaciones de hombres anónimos que la ponen a prueba, en la soledad de sus bibliotecas. Las emociones que la literatura suscita son quizá eternas, pero los medios deben constantemente variar, siquiera de un modo levísimo, para no perder su virtud. Se gastan a medida que los reconoce el lector. De ahí el peligro de afirmar que existen obras clásicas y que lo serán para siempre. Cada cual descree de su arte y de sus artificios. Yo, que me he resignado a poner en duda la indefinida perduración de Voltaire o de Shakespeare, creo (esta tarde uno de los últimos días de 1965) en la de Schopenhauer y en la de Berkeley. Clásico no es un libro (lo repito) que necesariamente posee tales o cuales méritos; es un libro que las generaciones de los hombres, urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealtad. FONTE: BORGES, Jorge Luis. Sobre los clássicos. In: Otras inquisiciones: prosa completa, II. Barcelona: Bruguera, 1980. p. 302-303. 12 Neste tópico, você aprendeu que: • A literatura, como manifestação artística, exerce um trabalho peculiar com as palavras ao criar ficções que estabelecem um diálogo estético e crítico com a realidade, com a complexidade do ser humano, do mundo e das relações existenciais. • Os textos literários despertam sensações e sentimentos que promovem o prazer da leitura, estimulam a criatividade, o senso crítico, e são importantes para a formação humana. • A formação do leitor literário pressupõe o contato direto com diversos textos literários, visando promover o reconhecimento de suas singularidades, bem como a ampliação da visão de mundo e o desenvolvimento da sensibilidade do leitor. • Os clássicos são livros que integram as nossas lembranças e exercem uma influência particular na medida em que se tornam inesquecíveis e se mimetizam como inconsciente coletivo e individual. RESUMO DO TÓPICO 1 13 1 Considerando as discussões de Jorge Luis Borges no ensaio Sobre los clásicos, expostas na Leitura Complementar, analise as asserções a seguir e a relação proposta entre elas. I. Um clássico é um livro que as gerações de homens, instigados por diversos motivos, leem com fervor prévio e com uma misteriosa lealdade. PORQUE II. Os clássicos vêm até nós da tradição e exigem um ato de fé prévia. No entanto, essa concepção coletiva é eterna e imutável. a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I. b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I. c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira. e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas. 2 Leia o poema do escritor Carlos Drummond de Andrade. Em seguida, responda à questão proposta. Iniciação Literária Leituras! Leituras! Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo voando na capa vermelha de Júlio Verne. Mas por que me deram para livro escolar a Cultura dos campos de Assis Brasil? O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares – soja – fumo – alfafa – batata-doce – mandioca – pastos de cria – pastos de engorda. Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto condenando este Assis a ler sua obra. FONTE: ANDRADE, Carlos Drummond de. Iniciação literária. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 603. O poema de Drummond estabelece uma relação intertextual com os escritos do autor francês Júlio Verne (1828-1905), enfatizando o processo de iniciação literária ao universo dos textos clássicos. A partir do texto acima, avalie as afirmações a seguir: AUTOATIVIDADE 14 I. O eu lírico demonstra prazer pela leitura da ficção do escritor Júlio Verne, mas sente-se forçado a ler um livro que trata de dados descritivos referentes ao universo agrário brasileiro. II. Depreende-se do poema a ideia de que a leitura de um clássico é como um voo, um momento de liberdade que possibilita ao leitor “sair pelo mundo" através da imaginação. III. O eu lírico apresenta um paradoxo entre as leituras espontâneas e o livro escolar, considerando a obra de Júlio Verne um modelo de texto convencional. É correto o que se afirma em: a) ( ) I, apenas. b) ( ) II, apenas. c) ( ) I e II, apenas. d) ( ) II e III, apenas. e) ( ) I, II e III. 3 Tendo em vista as reflexões apresentadas neste tópico, faça uma lista de seus clássicos. Que livros fazem parte do seu reportório de leitura? Selecione e apresente alguma obra que você já leu ou ouviu falar, que pode ser considerada significativa para a formação do leitor. Em seguida, disserte sobre a relevância da obra escolhida, baseando-se na concepção de "clássico", formulada pelos autores Ítalo Calvino e Jorge Luis Borges. 15 TÓPICO 2 A LITERATURA GREGA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, estudaremos a literatura grega, considerada o fundamento da literatura ocidental. Para tanto, iniciaremos com uma síntese sobre os períodos históricos das manifestações literárias e seus principais autores das formas épica, dramática e lírica. Em seguida, faremos uma abordagem sobre o pensamento mítico dos gregos e partiremos da Poética de Aristóteles, de suas discussões sobre os gêneros literários, para ressaltar algumas das obras mais relevantes da literatura grega. A cultura grega surgiu na atual Península Balcânica aproximadamente no ano 1100 a.C. até o período da conquista romana em 146 a.C. Nela, encontramos as bases da cultura ocidental nos diversos âmbitos que englobam a filosofia, a história, os sistemas políticos e jurídicos, a ciência, a educação, a literatura, as artes plásticas e arquitetura como técnicas estéticas, os esportes, entre outros. A literatura grega antiga inicia por volta do século VIII a.C. e engloba, basicamente, três momentos: o período arcaico (até o fim do século VI a.C.), o período clássico (séculos V e IV a.C.), e o período helenístico (a partir do século III a.C.). O período arcaico foi um momento profícuo dos poemas cantados, transmitidos oralmente, cujos temas envolviam histórias mitológicas. Neste momento destacamos o surgimento das epopeias a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero, que narram a Guerra de Troia e a Viagem de retorno de Odisseu (Ulisses, no nome latino). É deste período também a poesia de Hesíodo (c. 700 a.C.), que foi posto em competição com Homero pelos próprios gregos, destaca Romilly (2011). Segundo a autora, a obra poética de Hesíodo procura romper com o ideal guerreiro do herói e é constituída principalmente por dois poemas: a Teogonia e os Trabalhos e Dias. Além desses, os antigos referiram outros. Nesta época, surgiram também os diversos tipos de poesia lírica, como os da poetisa Safo. No período clássico, auge dos gêneros literários, destacam-se as tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípides e as comédias de Aristófanes, bem como as obras de Platão e Aristóteles, que foram fundamentais para a formação do pensamento ocidental. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 16 O período helenístico ou greco-romano, momento situado entre a morte de Alexandre, O Grande (323 a.C.) e a conquista do Antigo Egito pelos romanos, no ano de 30 a.C., sinaliza a transição da cultura grega para a romana. Nesta época, as ciências começam a se desenvolver, e no âmbito das artes destacam-se a poesia lírica de Calímaco, a poesia épica de Apolônio de Rodes, e o surgimento da ficção em prosa — considerada a gênese do romance. 2 O PENSAMENTO MÍTICO Os mitos são elementos fundamentais para a compreensãoda literatura grega e latina, bem como para as manifestações artísticas do Renascimento ou do Classicismo que revalorizaram a Antiguidade Clássica. Os gregos antigos foram grandes criadores de histórias fabulosas que serviram para explicar as origens dos fenômenos naturais e do comportamento humano, antes do progresso racional e científico. Os mitos gregos, que foram adotados com outros nomes pelos latinos, são narrativas dos atos de seres sobrenaturais que explicavam a origem do universo e buscavam apaziguar os seres humanos diante das forças da natureza, dos conflitos e das contradições existenciais. Através dessas narrativas, é possível compreender a cultura e a forma de pensamento dos gregos, seu modo de entender o mundo, destaca Jean-Pierre Vernant (1992). No panteísmo (crença em vários deuses), um dos princípios da sociedade grega, os deuses tinham uma construção bastante distinta do Deus presente na sociedade cristã. Mesmo sendo considerados divindades, os deuses gregos apresentavam limitações e muitas outras características semelhantes às dos humanos, além de estarem condicionados aos desígnos do Destino. Mito (do grego mythos, no singular; mythoi, no plural), significa narrativa, histórias universalmente presentes no imaginário coletivo de povos de diferentes culturas. Para os gregos antigos, o pensamento mítico surge como uma crença-verdade transmitida através do discurso, criada e recriada por poetas e cantores populares, segue uma lógica peculiar que busca compreender a origem do mundo e de tudo que existe nele. "Memória, oralidade e tradição: são essas condições de existência e sobrevivência do mito", destaca Vernant (2000, p. 12). NOTA TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 17 Para Vernant, os mitos gregos são construções simbólicas complexas, que auxiliam o homem a compreender fenômenos concretos e abstratos, representando, assim, um sistema de pensamento a partir de uma perspectiva social. Logo: O mito não é uma vaga expressão de sentimentos individuais ou de emoções populares; é um sistema simbólico institucionalizado, uma conduta verbal codificada, veiculando, como a língua, maneiras de classificar, de coordenar, de agrupar e contrapor fatos, de sentir ao mesmo tempo semelhanças e dessemelhanças; em suma, de organizar a experiência (VERNANT, 2000, p. 206). Vislumbrando a reflexão sobre a relação entre mito e literatura, a partir da poesia épica e do teatro grego, apresentaremos a seguir as principais divindades da Antiguidade Clássica e uma síntese de suas características mais peculiares, segundo D'Onofrio (1990). Destacaremos o nome grego e entre parênteses o termo correspondente latino. • Zeus (Júpiter, também conhecido como Jove) é a maior divindade do mundo greco-romano, considerado por Homero o pai dos deuses e dos homens; o mito exprime a figura da autoridade, da onipotência. • Poséidon (Netuno), irmão de Zeus, deus do mar e todo elemento líquido; ele é o causador de todos os movimentos sísmicos, através da agitação tempestuosa da água, simboliza a perturbação e a renovação da ordem cósmica, em oposição à terra, elemento passivo e estável. • Hades (Plutão), irmão de Zeus, deus dos infernos, das profundezas subterrâneas, da morte e da destruição. • Hera (Juno), esposa de Zeus, deusa da fecundidade e da fidelidade matrimonial, persegue todas as amantes do marido e os filhos ilegítimos deste, representa o princípio feminino. • Atena (Minerva), filha de Zeus, deusa da guerra e da sabedoria; ela, junto com o irmão Apolo, simboliza características como a inteligência, a verdade, o equilíbrio sobre a barbárie, a orgia, o mistério. • Afrodite (Vênus), filha de Zeus, deusa da beleza e do amor; ela, junto com seu filho Eros (Cupido), personifica a força do instinto sexual, que não conhece barreiras sociais ou morais. • Apolo, filho de Zeus, deus da luz; tinha a missão de trazer a luz para a terra, o calor e a vida. Apolo, com a musa Calíope, gerou Orfeu, poeta e músico, admirado pelos gregos porque seu canto abrandava a dor e fascinava homens, animais e minerais. • Dioniso (Baco), filho de Zeus, deus do vinho; fruto de um um amor divino- humano, não foi aceito no Olimpo e precisou conquistar o direito à imortalidade; personifica o instinto, a subversão da ordem, o prazer e a inversão dos valores. • Ares (Marte), filho de Zeus e Hera, deus da guerra e da violência; personifica a força bruta, a violência gratuita. • Hermes (Mercúrio), filho de Zeus, mensageiro dos deuses, protetor do comércio, do lucro e das viagens. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 18 • Ártemis (Diana), filha de Zeus, deusa da caça, da virgindade, símbolo da necessidade de repressão dos instintos sexuais. Também é considerada a deusa da Lua. • Deméter (Ceres), irmã de Zeus, deusa da terra e da agricultura; simboliza o progresso material do homem na sua aprendizagem do cultivo da terra. • Destino (Fado), filho da Noite, gerado pelo Caos, simboliza uma força cósmica superior ao próprio Zeus, à vontade dos deuses e dos homens, representa a necessidade de manutenção da ordem no universo. • Vulcano (Hefesto), é o símbolo da engenhosidade humana, que se serve do fogo como meio para o desenvolvimento da ciência e da arte. • As musas, as nove musas que inspiravam as artes, eram filhas de Zeus e Mnemosine (deusa da memória). São elas: 1) Calíope, musa da poesia épica; 2) Clio, musa da história; 3) Érato, musa da poesia lírica; 4) Euterpe, protetora da música; 5) Melpômene, musa do canto (mãe das sereias); 6) Polímnia, musa dos hinos religiosos e da oratória; 7) Talia, musa da comédia; 8) Terpsícore, musa da poesia trágica; 9) Urânia, musa das ciências exatas. Destacamos o papel importante dos mitos na sociedade grega e na formação do pensamento ocidental. Veremos mais adiante que as ações heroicas humanas relatadas nas epopeias apresentam a constante intervenção dos deuses. Por exemplo, no poema Ilíada, que narra o Guerra de Troia, os deuses estavam divididos entre os gregos e os troianos, e a própria guerra teria sido motivada pela rivalidade entre as deusas. O pensamento filosófico sobre a literatura também se apropriou das construções míticas recitadas em praça pública por poetas cantadores como Homero. Platão, em sua obra intitulada A República, critica Homero por apresentar heróis e deuses reproduzindo comportamentos moralmente duvidosos, como a traição, a falsidade, o roubo, a violência etc., que, para o filósofo, corrompem os nossos juízos de valor. Ainda na concepção de Platão, o artista nasce como tal porque recebe dos deuses o "dom" da arte. Esta ideia de "poeta inspirado" pela Musa foi refutada pela concepção de Aristóteles do "poeta artífice", aquele "que constrói e estrutura sua obra mediante um longo trabalho de aprendizado de modelos preexistentes, de técnicas específicas e do conhecimento da realidade que o circunda", destaca D'Onofrio (1990, p. 41). Na próxima seção, ressaltaremos as principais discussões de Aristóteles na sua Poética, obra que teve grande repercussão em diversas épocas e instaurou o vocabulário da crítica literária no Ocidente, lembra Romilly (2011). O nosso propósito é iniciar o estudo da literatura grega, destacando os gêneros literários e a continuidade entre as obras gregas e romanas. TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 19 3 A POÉTICA DE ARISTÓTELES Platão e Aristóteles foram os precursores do pensamento sobre as manifestações do imaginário. Ao refutar as ideias platônicas de que a arte tem uma origem divina e a mimese (imitação) poética é ilusória e prejudicial aos ideais morais e pedagógicos dos filósofos, Aristóteles reelaborou o conceito de imitação como representação de uma possibilidade e criou uma concepção estética, abordando, sobretudo, a produção da poesia oral, em seus diversos gêneros, destacando a função de cada um deles. Vejamos, a seguir, a apresentação inicial da Poética, escrita, aproximadamente, entre os anos 335 e 323 a.C., quandoa poesia oral era forma predominante de literatura. A obra contém 26 capítulos e apresenta uma discussão sobre a arte poética, destacando as poesias trágica e épica. I. Falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de cada uma, de como hão de compor as fábulas para o bom êxito do poema; depois, do número e natureza das partes e bem assim das demais matérias dessa pesquisa, começando, como manda a natureza, pelas noções mais elementares. A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo [hino coral em louvor de Dionisio (Baco)] e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo [cantor], todas vêm a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira diferente e não a mesma (ARISTÓTELES, 2014, p. 18). As palavras iniciais de Aristóteles sinalizam um predomínio das produções orais recitadas pelos aedos (poetas cantadores), próprias da época e das práticas dos grupos sociais na cultura dos gregos antigos. Ademais, caracterizam a literatura como uma arte da imitação (algo inerente à natureza humana), que se realiza através da linguagem, do ritmo e da harmonia. O filósofo desenvolve a ideia de que a função da literatura, principalmente do teatro, é criar representações (imitações) das ações e comportamentos humanos, das paixões e forças que nos levam a agir. Para Aristóteles, quando nos deparamos com as representações criadas pelos textos literários, aprendemos com as experiências das personagens. Na Antiguidade Clássica, Aristóteles foi o precursor do estudo da produção literária baseada em gêneros, isto é, em padrões de construção artística, classificados em épico, dramático e lírico, mas a parte dos escritos correspondentes à poesia lírica foi perdida. Durante o Renascimento, as teorias poéticas italianas incluíram as formas líricas entre as categorias descritas por Aristóteles. Essa classificação se consolidou como norma, especialmente na época que vai de fins do século XV até o século XVIII, destaca Souza (1995). Contudo, a partir do século XIX, o Romantismo se afasta do normativismo e começam a surgir novas criações e correlações que visam à liberdade criadora, à desconstrução dos modelos fixados até então, como exemplo temos a consolidação romance, figurando entre os gêneros literários modernos em prosa. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 20 Sobre os gêneros literários, Angélica Soares reforça que: [...] A denominação de gêneros literários, para os diferentes agrupamentos de obras literárias, fica mais clara se lembrarmos que gênero (do latim genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. E o que se vem fazendo, através dos tempos, é filiar cada obra literária a uma classe ou espécie; ou ainda é mostrar como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária. A caracterização dos gêneros, tomando por vezes feições normativas, ou apenas descritivas, apresentando-se como regras inflexíveis ou apenas um conjunto de traços, os quais a obra pode apresentar em sua totalidade ou predominantemente, vem diferenciando-se a cada época. Em defesa de uma universalidade na literatura, muitos teóricos chegam mesmo a considerar o gênero como categoria imutável e a valorizar a obra pela sua obediência a leis fixas de estruturação, pela sua “pureza”. Enquanto outros, em nome da liberdade criadora de que deve resultar o trabalho artístico, defendem a mistura de gêneros, procurando mostrar que cada obra apresenta diferentes combinações de características dos diversos gêneros (SOARES, 2007, p. 7-8). No âmbito dessas discussões, a classificação aristotélica, criada para dar uma configuração artística a diversas histórias, ainda continua provocando reflexões, especialmente o conceito de imitação, da poesia como recriação, que servem de base para o pensamento sobre as formas estéticas. As categorias apresentadas pelo filósofo podem ser caracterizadas em três gêneros, de acordo com a forma e o conteúdo das obras literárias. • Épico ou narrativo: texto criado a partir de uma estrutura narrativa que tem como assunto os feitos heroicos e os grandes ideais de um povo. Homero é considerado modelo, o poeta mais representativo. • Dramático: são textos em que as personagens apresentam uma ação direta, divididas em tragédia e comédia. • Lírico: são diferentes tipos de versos em que o sujeito lírico (eu lírico), criado pelo poeta, vivencia e manifesta emoções. TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 21 Além das questões que apresentamos sobre a Poética de Aristóteles, é importante que você aprofunde seus estudos fazendo a leitura integral da obra, atendo-se a outras discussões, por exemplo, o conceito de catarse (referente à purificação, à liberação de um sentimento reprimido, como sendo a finalidade da tragédia ao suscitar o temor e a piedade); as questões da verossimilhança (sobre aquilo que é semelhante à verdade, na medida do possível e do necessário); as especificidades de cada gênero; a diferença entre o poeta e o historiador (o historiador escreve o que aconteceu, e o poeta, o que poderia ter acontecido), entre outras. Para saber mais, acesse a versão completa da obra no Portal Domínio Público. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm. do?select_action=&co_obra=2235. Para ampliar ainda mais os seus conhecimentos, procure estabelecer um diálogo entre as discussões do filósofo e as narrativas fílmicas. Muitas estratégias utilizadas pela dramarturgia e pelo cinema seguem as regras dramáticas clássicas. Veja, por exemplo, no filme Avatar (2009), de James Cameron, como, no mundo alienígena de Pandora, os colonizadores humanos e os Na'vi, seres primitivos, entram em guerra pelo planeta e pela manutenção da espécie nativa. IMPORTANT E 4 GÊNERO ÉPICO A narrativa mais antiga de que se tem conhecimento é A epopeia de Gilgamesh ou o Poema de Gilgamesh, da cultura da Mesopotâmia, produzida em torno do ano 2.000 a.C. Gravado em tábuas de argila através da escrita cuneiforme, o poema é considerado a primeira obra a narrar os feitos de um herói, as aventuras do rei Gilgamesh e do seu amigo Endiku, os desafios enfrentados diante de monstros e deuses. Apesar disso, na cultura ocidental, considera-se as obras Ilíada e Odisseia, surgidas por volta do século VIII a.C, as narrativas mais importantes, provenientes de uma tradição transmitida de forma oral pelos aedos, poetas que cantavam fábulas e tradições. Se ninguém tem certeza da existência de Homero, o contrário acontece com os poemas que foram atribuídos a ele, destaca Manguel, ao dizer que: Num sentido muito real, a Ilíada e a Odisseia nos são familiares antes de abrirmos suas primeiras páginas. Antes mesmo de começarmos a acompanhar as mudanças de humor de Aquiles ou admirar a esperteza e a coragem de Ulisses, aprendemos a presumir que, em algum lugar, nessas histórias de guerra no tempo e de viagem no espaço, nos será contada a experiência de toda a luta e de toda travessia humanas (MANGUEL, 2008, p. 39). Já do ponto de vista formal, a poesia épica da Antiguidade Clássica se caracteriza por apresentar uma narrativa longa, composta por um verso específico chamado hexâmetro datílico, que foi elaborado por Homero e outros épicos gregos. Também está presente em Virgílio, na Eneida, e em outros épicos UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 22 latinos, tendo sido reelaborado posteriormente por Camões, nos Lusíadas, com seus versos decassílados, seguidos por novas propostas de versos que surgiram posteriormente. O hexâmetro datílico (dactilus, significa dedo em grego) é uma estrutura métrica poética formada por uma sílaba longa (tônica) seguida por duas curtas (átonas) que se parecem com as falanges dos dedos. Os versos decassílados, por sua vez, possuem dez sílabas métricas e são classificados de acordo as posições da sílaba tônica. NOTA Além disso, ospoemas épicos gregos apresentam uma organização interna. Por serem longos, são divididos em vários cantos (ou livros). Nessa estrutura, os cantos são organizados da seguinte maneira: • Proposição (ou exórdio): introdução do tema e definição do herói do poema. • Invocação: momento em que o poeta pede inspiração à Musa para desenvolver a narrativa. • Narração: parte em que se narra as aventuras e os feitos gloriosos do herói. • Epílogo (conclusão): encerramento da narração dos feitos heroicos. Logo, podemos considerar que as epopeias clássicas apresentam características comuns ao narrarem feitos extraordinários de um herói. Nelas, no entanto, o conceito de herói é amplo, visto que as personagens apresentam características diversificadas dentre as várias possibilidades de representação. Contudo, nas epopeias homéricas costuma-se singularizar a força de Aquiles, na Ilíada, e a astúcia de Ulisses, na Odisseia. A Ilíada tem cerca de mil versos, divididos em 24 contos, e é considerada uma obra de juventude de Homero. O poema narra parte da guerra dos Aqueus (os primeiros gregos que ocuparam parte do Mediterrâneo) contra Troia, evidenciando a ira de Aquiles, a sua recusa em continuar a lutar, seguido do seu regresso ao combate para vingar seu amigo. Antes do começo do poema, a bela Helena, esposa de Menelau, fora raptada por Páris, filho do rei de Troia. Por esse motivo, Agamenon, irmão de Menelau, sitia Troia com o apoio de seus guerreiros mais famosos: Ajax, Diomedes, Ulisses, o velho Nestor, Pátroclo e seu amigo Aquiles, filho da deusa Tétis, considerado o maior guerreiro grego. A guerra durou dez anos e os deuses se envolveram constantemente no conflito. Do lado dos troianos estavam Afrodite (mãe do troiano Eneias), Apolo e Ares. Do lado dos gregos: Tétis, Atena, Poseidon e Hera. TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 23 Vejamos a seguir os versos iniciais da Ilíada, na tradução de Odorico Mendes (1784). Canta-me, ó deusa, do Peleio de Aquiles A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, Verdes no Orco lançou mil fortes almas, Corpos de heróis a cães e abutres pasto: Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem 5 O de homens chefe e o Mirmidon divino (HOMERO, 2008, p. 45, grifo nosso). O vócabulo ira, atrelado a Aquiles, é o primeiro que chama a atenção do leitor e que desencadeia uma sucessão de episódios. O poema Odisseia, por sua vez, tem cerca de 12 mil versos, também divididos em 24 contos, e é considerado uma obra do período de maturidade do autor. A narrativa começa dez anos depois da queda de Troia. Com o fim da guerra, o comportamento desrespeitoso de alguns gregos incomodou outros, principalmente Atena, que os apoiou durante todo o conflito. Por isso, Ulisses não teve permissão para retornar a Ítaca, onde Penélope, sua esposa fiel, há sete anos, sob pressão de um grupo de pessoas que almejam o poder, tentava evitar uma série de pretendentes. Zeus decide intervir e acaba lançando Ulisses no mar e no caminho de regresso para casa, que levará mais dez anos e será repleto de grandes obstáculos provocados por Poseidon, deus do mar. Acompanhemos, abaixo, os versos iniciais do poema, a astúcia, a bravura de Ulisses diante dos desafios, que foi consagrado como herói e imortalizado pelos seus feitos. […] Canta, ó Musa, o varão que astucioso, Rasa Ílion santa, errou de clima em clima, Viu de muitas nações costumes vários. Mil transes padeceu no equóreo ponto, Por segurar a vida e aos seus a volta; 5 Baldo afã! pereceram, tendo insanos Ao claro Hiperiônio os bois comido, Que não quis para a pátria alumiá-los. Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra (HOMERO 2009, s.p., grifo nosso). Dentre as várias imagens da literatura, conhecidas por povoarem o nosso imaginário, a viagem de Ulisses talvez seja uma das mais impactantes. "Será que a Odisseia não é o mito de todas as viagens?", indaga Ítalo Calvino (2007, p. 24), ressaltando que "ainda hoje, para nós, cada viagem, pequena ou grande, sempre é Odisseia". Provavelmente, em contextos distintos, já empregamos essa metáfora. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 24 Metáfora: figura de linguagem que consiste no emprego de uma palavra fora do seu sentido comum, a exemplo da "viagem" de Ulisses, que assume um sentido amplificado de desafio, de transformação. NOTA Na literatura, as várias reelaborações da epopeia homérica mostram a força e a presença da literatura grega em nossa cultura ocidental, como, por exemplo, a viagem de Eneias narrada por Virgílio, a alegoria da viagem ao submundo criada por Dante e a viagem de Vasco da Gama, narrada por Camões, obras que estudaremos nos próximos capítulos. Tantas outras imagens da literatura clássica se tornaram bastante representativas, como o momento em que Ulisses tapa os ouvidos de seus marujos com cera e se amarra ao mastro do navio para ouvir o canto das sereias, cujo perigo é conhecido por enfeitiçar os viajantes. Vejamos abaixo um trecho do episódio, narrado no Canto XII, no qual Ulisses recebe o conselho da feiticeira Circe sobre os perigos das sereias. […] A satisfaço, e ela assim discorre: 25 “Pois bem; atende agora, e um deus na mente Meu conselho te imprima. Hás de as sereias Primeiro deparar, cuja harmonia Adormenta e fascina os que as escutam: Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos 30 Não regozijará nos doces lares; Que a vocal melodia o atrai às veigas, Onde em cúmulo assentam-se de humanos Ossos e podres carnes. Surde avante; As orelhas aos teus com cera tapes, 35 Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes Contanto que do mastro ao longo estejas De pés e mãos atado; e se, absorvido No prazer, ordenares que te soltem, Liguem-te com mais força os companheiros. 40 […] (HOMERO, 2009, s.p.). Finalizaremos esta seção de discussão apresentando um diálogo entre literatura e pintura, uma percepção distinta e singular a respeito do episódio narrado sobre a exposição de Ulisses ao sedutor e mortal canto das sereias. TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 25 FIGURA 1 - WATERHOUSE, JOHN WILLIAM. ULISSES E AS SEREIAS. NATIONAL GALLERY OF VICTORIA, MELBOURNE, 1891. ÓLEO SOBRE LIENZO, 100.6 X 202. FONTE: <https://artsandculture.google.com/asset/ulysses-and-the-sirens/qQH6ni1OHjyz>. Acesso em: 15 jun. 2018. DICAS No Portal Domínio Público, você pode acessar as traduções da Ilíada e da Odisseia, traduzidas pelo maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1874), primeiro tradutor brasileiro a verter para o português as obras de Homero e de Virgílio. Você também pode acessar a dissertação de mestrado Odorico Mendes, o manuscrito da Ilíada e diversas facetas da atividade tradutória, indicada nas referências finais deste livro didático, para conhecer os bastidores da tradução no Brasil na segunda metade do século XIX, tendo em vista a grande importância dos tradutores na difusão dos textos literários e para o intercâmbio entre diferentes culturas e línguas. Afinal, como diz Manguel (2008, p. 10), “exceto por um grupo cada vez menor de intelectuais aos quais foi concedida a graça de conhecer grego antigo, o resto de nós não lê Homero, mas uma tradução de Homero”. Ademais, indicamos outras traduções de Homero para o portugûes, como as versões de Carlos Alberto Nunes e de Haroldo de Campos. Acesse através do link: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ PesquisaObraForm.jsp. Além disso, se você quiser conhecer outras releituras das obras de Homero, sugerimos os filmes A Odisseia (1997), de Andrei Konchalovsky, e Troia (2004), de Wofgang Petersen, que são produções cinematrográficas mais recentes. Já o filme Até o fim (2013), de Jeffrey McDonald, apresenta uma perspectiva diferente dos feitos sobre-humanos do herói épico. No filme, o herói é um homem contemporâneo que navega sozinho com seu veleiro e se vê diante de váriosdesafios em alto-mar, lutando pela sobrevivência. Ainda é possível encontrar várias versões das epopeias homéricas, como as produzidas pela autora Ruth Rocha, publicadas pela Editora Companhia das Letrinhas, e a versão criada por Maurício de Sousa e pelo ilustrador Fábio Sombra em versos de cordel, publicada pela Editora Melhoramentos. UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 26 5 GÊNERO DRAMÁTICO As origens do drama grego estão relacionadas à religiosidade, ao culto do deus Dionísio, às apresentações de danças e hinos recitados por um coro. Na Grécia antiga, o teatro foi a maior forma de representação cultural e de lazer. Durante uma semana de festas dionisíacas, um grande público se reunia para assitir às várias peças representadas nos concursos teatrais. Aristóteles (2014, p. 23-24) apresenta o gênero dramático como uma manifestação artística espetacular, uma "imitação feita por personagens em ação", subdividida em tragégia e comédia. Resumidamente, podemos considerar que essas duas formas de composição se diferenciam pelo tipo de ação praticada pelas personagens. Para o filósofo, as tragédias imitam "ações de caráter elevado", as ações dos deuses, dos heróis do povo, das famílias nobres. Elas têm um efeito pedagógico de catarse, ou seja, de purificação do espectador através dos sentimentos de terror e piedade. As comédias, por outro lado, evidenciam narrativas que são risíveis e apontam o ridículo de "personagens inferiores", de homens comuns, de aspectos relacionados com a vida cotidiana. Inicialmente, a comédia estava ligada aos cantos e brincadeiras de uma procissão burlesca em homenagem a Dionísio, deus do vinho. A seguir, apresentaremos uma seleção de fragmentos da poesia dramática grega que evocam uma série de questionamentos sobre atitudes e sentimentos humanos. Entre as obras, destacaremos as tragédias Prometeu acorrentado, de Ésquilo, Édipo Rei, de Sófocles, Medéia, de Eurípides, e a comédia Lisístrata ou Greve dos Sexos, de Aristófanes. 5.1 A TRAGÉDIA Certamente você já ouviu o termo “tragédia" e provavelmente deve utilizá- lo em seu cotidiano para se referir a acontecimentos catastróficos, de grandes proporções, na maioria das vezes relacionados à morte. No teatro, a tragédia também estabelece essa relação de sentido e está vinculada a uma sequência de acontecimentos associada a alguma desgraça. Um conflito que envolve a falha trágica do herói ao descobrir um engano, ou seja, ao fazer algo sem saber, depois sofrer as consequências desse erro. A tragédia grega é, sem dúvida, uma expressão de uma ação humana levada até às últimas consequências. Geralmente apresenta personagens complexos e um conjunto de circunstâncias que as colocam numa situação sem saída. A estrutura da tragédia realça personagens que se movem em cena e participam de uma ação por meio de versos falados. Aliás, o teatro como drama (a palavra drama significa ação, em grego) apresenta componentes fundamentais, como o coro, a voz da coletividade, elemento predominante que comenta a cena, cantando sob a direção do corifeu (regente do coro); os episódios da ação, introduzidos, TÓPICO 2 | A LITERATURA GREGA 27 interrompidos e concluídos pelo coro; o parodos, canto de introdução; o exodos, o canto de conclusão, e os stasima, outros cantos cujo número vai de dois a cinco, destaca Romilly (2011, p. 90). Ésquilo (524- 456 a.C) figura como o mais antigo dos autores trágicos, considerado o criador da tragédia. Dele destacam-se as sete tragédias conservadas, Os Persas, os Sete contra Tebas e as três peças (Agamêmnon, As coéforas e As eumênides) que constituem a Oresteia. As demais obras que restaram são As suplicantes e Prometeu acorrentado. Nelas são apresentados temas que envolvem grandes questões humanas, como a relação com as divindades e o destino, os problemas instaurados pela culpa, pelo mau e o senso de justiça. A peça Prometeu acorrentado, apresentada abaixo, mostra-nos o mundo dos imortais. Prometeu, um ser divino, é alvo da cólera de Zeus (Júpiter), por ter roubado o fogo dos deuses para ajudar os mortais. Mesmo sabendo do seu terrível castigo, a personagem de Ésquilo sente-se injustiçada e segue fiel aos seus princípios, desafiando os poderes autoritários das divindades. Nos rochedos da Cítia. O PODER, a VIOLÊNCIA, VULCANO e PROMETEU O PODER Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo, teu atributo, precioso fator das criações do gênio, para transmiti-lo aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a potestade de Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade. VULCANO Para vós, Poder e Violência, a ordem de Júpiter está cumprida; nada mais resta a fazer. Quanto a mim, sinto-me sem coragem para acorrentar pela força a um deus, meu parente, sobre esta penedia, exposto à fúria das tempestades! Vejo-me, no entanto, coagido a fazê- lo, pois seria perigoso esquecer as ordens de meu pai. Preclaro filho da sábia Têmis, é bem contra minha vontade, e a tua, que te vou prender por indissolúveis cadeias, a este inóspito rochedo, de onde não ouvirás a voz, nem verás o semblante de um único mortal; e onde, queimado lentamente pelos raios ofuscantes do Sol, terás adusta a epiderme; onde a noite estrelada tardará a poupar-te à luz intensa, assim como o Sol tardará em secar o orvalho matinal. Oprimir-te-á o peso de uma dor perene, pois ainda não nasceu, sequer, o teu libertador. Eis a consequência de tua dedicação pelos humanos; como deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que ultrapassou todas as prerrogativas possíveis. Como castigo por essa temeridade, ficarás sobre esta rocha terrífica, em pé, sem sono e sem repouso; debalde farás ouvir suspiros e clamores dolorosos; o coração de Júpiter é inexorável... Um novo senhor é sempre severo!... UNIDADE 1 | OS PRIMÓRDIOS DA LITERATURA OCIDENTAL 28 O PODER E então? Por que tardas ainda? De que vale esta vã piedade? Pois quê?... por acaso não detestas a uma divindade inimiga dos demais deuses, visto que transmitiu aos homens as honras que eram teu privilégio? VULCANO É que... os laços do sangue, e os da amizade, são poderosos! O PODER Sem dúvida! Mas como desobedecer às ordens de teu pai? Não o temes, por acaso? VULCANO Tu serás sempre, ó Poder, destituído de piedade, e capaz de tudo! O PODER Certamente! De que serve lamentar a sorte deste criminoso, uma vez que não há remédio possível para seu mal? Não te canses, pois, na busca de um socorro inútil. VULCANO Oh!... Como abomino o ofício a que me consagrei! O PODER Por quê? Esse ofício não é a causa, nem a origem, dos males que aqui vemos presentes. VULCANO Quem me dera um companheiro, que comigo partilhasse deste sacrifício!... O PODER Muito podem os deuses, na verdade, porém dependem de um poder supremo; só Júpiter é onipotente. […] (ÉSQUILO, 2005, p. 5-8). Outro importante dramaturgo grego foi Sófocles (496-406 a.C), que escreveu mais de 120 peças. Diversas obras do autor conquistaram os espectadores gregos em vários concursos dramáticos. As peças mais importantes e famosas são as três centradas no mito de Édipo (Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colon, peça póstuma). Da tragédia de Édipo emanam grandes temas, entre eles: o triunfo do poder patriarcal, a busca da identidade, a questão do destino e o tema do incesto que inspirou a psicanálise de Freud na elaboração do "complexo de Édipo", relacionado à fase do desenvolvimento infantil. Em suas obras, as personagens individuais, diante da força do destino, ganham mais destaque que a intervenção do coro. O trecho a seguir, extraído de Édipo Rei, narra a triste história de Édipo, o primeiro filho de Laio, rei de Tebas. Vítima de uma maldição, o protagonista
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