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Severino Nguenha 1

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Nós. somos parcialmente responsáveis em relação ao passado, . 
entretanto só agora começamos a compreender nos seus slgJt1itica~ 
dos complexos. Mas somos ainda mais responsáveis em relação 
fututo. 
Se nos parece alrerrant~ renunciar ao presente pelo passado ou re-
meter o presente para o futuro, pelo preço da nossa única vida pos-
sível, é também errado não avaliar suficientemetlte ou destruir os 
vestígios do passado, como aqueles inexistentes noifuturo antesmes-
mo que se pudessem produzir. Então de que instnlmentos se serve 
o mósofopara pensar o futuro; a profecia, a utopià ou a futurologii? 
Severino Elias. Ngoenha, bacha-
rel em teologia e doutor em fi~ 
losofia pelas Universidades 
Orbanian~,~Gregoriana de Rdc 
ma respectivamente, nasceu erp 
Maputo noano 1962, é autor 
Duas Interpretações J:iil()SóJtícas'} 
da História do Século XVII e Por 
Uma Dimensão Moçambicana da 
Consciência Histórica. 
EDIÇÕES PAULISTAS - ÁFRICA 
PAULlNAS - LIV. E AUDIOVISUAIS 
AV. EOUARDO MONOLANE N."1536 
TElEFONE. 424671 M A P U T O 
SEVERINO ELIAS NGOENHA 
Doutor em Filosofia 
FILOSOFIA AFRICANA 
DAS INDEPENDÊNCIAS 
ÀS LIBERDADES 
EDIÇÕES PAULISTAS - ÁFRICA 
Capa: Delfina Repetto 
Foto: Detalhe da estátua da Virgem Maria no Mosteiro Cisterciense 
de Kokubu 
Fotocomposição: Sotecla - Artes Gráficas, Lda. 
Póvoa de Sto. Adrião 
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. 
Mafra 
N. () de Registo: O 1028/FBM/93 
© 1993, Edições Paulistas - África 
Av. Agostinho Neto, 1065 - Maputo - Moçambique 
Dedico este livro 
aos meus amigos 
Moira e Heidi Laffranchini, 
Ana Vera e família 
e a Américo e Teresa. 
-INTRODVÇAO 
Em cada momento histórico e em cada clima cultural, o filósofo 
é chamado a fazer emerger a questão do sentido total e dinâmico 
da situação específica em que se encontra a viver. Hoje, um tal 
problema não se deprende no interior de um sistema pan-Iógico, 
m~s de uma análise ampla e aprofundada dos resultados da fe-
ndmenologia social, da psicologia, da política, da cultura, que in-
formam a mentalidade hodierna. 
Cada época, cada civilização e cada geração define um ob-
jectivo que a seus olhos constitui a sua própria contribuição para 
a história dos homens. 
À nossa geração, incumbe a árdua tarefa de participar na ela-
boração de um futuro diferente, do presente que nos é dado viver 
e observar. Desde há trinta anos, vivemos o escândalo da fome, 
da ignorância, da mortalidade infantil, da má nutrição, de um ní-
vel de vida que não pára de degradar-se, do número de pobres 
que não cessa de aumentar. Todos os homens que até aqui con-
sagraram as suas vidas a um devir melhor vêem os seus esforços 
reduzidos a nada. 
Depois da independência, certos países optaram pelas eco-
nomias planificadas, outros por modelos de desenvolvimento auto-
-centrados, outros fizeram programas de promoção para as 
próprias exportações, outros privilegiaram o desenvolvimento de 
um sector do Estado, outros aderiram aos programas de ajusta-
mento estrutural, etc. Mas sempre com o mesmo resultado: in-
sucesso. 
7 
Qual é a razão deste insucesso? Estes trinta anos de indepen-
dências constituem um período de ocasiões perdidas, da nossa 
condenação, ou foram uma preparação para o que deve ainda 
vir? Porque seforam anos de oportunidades perdidas e da nossa 
condenação, urge que mudemos de direcção; que procuremos ca-
minhos alternativos. Mas se foram um período de implosão, con-
dição necessária para que uma explosão se realize, devemos 
conti~uar a aumentar a energia, ao mesmo tempo que nos repa-
ramos para estar à altura da explosão ... 
De qualquer maneira, a nossa missão é o futuro. É óbvio que 
para que esse futuro melhor se realize, cada um deve dar o me-
lhor de si, no lugar onde se encontra. A realização da «missão fu-
turo», passará necessariamente pela maneira como cada um de 
nós souber ocupar o próprio lugar. Isto pressupõe que cada um 
saiba qual seja o seu lugar, e qual seja a melhor maneira de 
ocupá-lo. 
É relativamente fácil dizer que o lugar do médico é o hospital, 
e que ele ocupa devidamente o próprio lugar se se ocupa com 
cuidado e dedicação dos doentes a ele confiados; se ele se man-
tém constantemente informado dos progressos da ciência médica 
e tenta fazer benefeciar todo o pessoal hospitalar dos seus conhe-
cimentos, em prol de um tratamento sempre mais adequado e mo-
derno dos doentes. Este tipo de ilustração poderia aplicar-se 
também a um professor, um engenheiro, um veterinário, um ope-
rário, um camponês, etc. Porém, o problema é muito mais compli-
cado quando se pretende saber qual é o lugar e qual é a melhor 
maneira de ocupá-lo «no momento presente e na conjuntura his-
tórica actual», quando se trata de um historiador, de um artista, 
de um sociólogo, de um jornalista e sobretudo de um filósofo. É 
portanto legítimo que nos interroguemos sobre o lugar da filosofia 
na problemática da construção do futuro. 
O problema do futuro é complexo, e não comporta simples-
mente a construção de novos edifícios ou o cultivo dos campos. 
De facto, se o futuro se resumisse à construção pura e simples 
de fábricas, de hospitais e escolas, dificilmente o filósofo teria so-
bre isso uma palavra a dizer. Mas se a escola não é simplesmente 
8 
o edifício, as salas de aulas, as carteiras mas é sobretudo os alu-
nos, que são os cidadãos de amanhã, implica que a escola vai 
ser antes de mais um sistema de valores - educação à liberda-
de, à democracia, à solidariedade, à tolerância, ao diálogo, à ini-
ciativa, ao trabalho, à abnegação que a sociedade quererá 
transmitir aos seus futuros cidadãos, isto é, o tipo de homens que 
queremos que sejam os moçambicanos amanhã; e este é um pro-
blema filosófico. 
Hoje todos nos preparamos para ir votar pela primeira vez. Se 
o problema fosse simplesmente punir a Frelimo pelo que nos fez 
sofrer, ou a Renamo pelo mesmo motivo, o problema seria assaz 
fácil. Ou ainda, se tivéssemos simplesmente que afirmar as nos-
sas origens étnicas pela eleição de um homem ou de um partido 
da nossa região, o problema seria também simples. Mas o pro-
blema de facto é muito mais complexo; trata-se de através do nosso 
voto, afirmar o tipo de sociedade que queremos ter amanhã. As-
sim devemos julgar os partidos politicos em função dos projectos 
de sociedade que apresentam. Por conseguinte, por detrás das 
eleições, esconde-se um projecto de sociedade. Assim a demo-
cracia é antes de mais uma questão filosófica. 
O problema da democracia não é redutível a uma simples ques-
tão de eleições de partidos ou de presidentes, mas implica antes 
de mais, e sobretudo, o lugar que o povo tem que ocupar nas de-
cisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito, e nos 
mecanismos jurídicos, para que tenha um controlo real sobre a 
realidade política, económica, social e educativa. Se não tivermos 
domínio sobre a nossa realidade cultural, não nos será possível 
ser fautores do nosso futuro; arriscamos ser uma vez mais vítimas 
da nossa própria história e do nosso próprio destino. 
Por detrás do jogo das eleições esconde-se, para nós, um pro-
blema de carácter existêncial. O que- está em jogo não é seguir 
a escolha de um simples modelo político, jurídico ou constitucio-
nal, mas o lugar que nos será reservado na escolha daquilo que 
deveria ser o nosso futuro. 
Não é a primeira vez que o futuro está no centro do debate. 
Mas é certamente a primeira vez que ele é suceptível de ser enca-
9 
rado de uma maneira filosófica, pois é a primeira vez que somos 
chamados a escolher o tipo de futuro que queremos que seja o 
nosso e por consequência, dos nossos filhos, sem condicionamen-
tos ideológicos. 
Em 1924 com o «Estado Novo» em Portugal, falou-se muito de 
futuro em relação a Moçambique. O Estado Novo português fez 
grandes projectos, reestruturou as administrações, criou novas re-
lações com a África do Sul, encorajou cidadãos portugueses a vir 
para Moçambique, etc. Para a realização destes projectos, o go-
verno português contava coma nossa colaboração; ou melhor, 
com a nossa doçura. Não nos foi perguntado como víamos o nos-
so futuro, quais eram as nossas aspirações, os nossos sonhos. Era-
mos simplesmente chamados a executar futuros inventados por 
outros e em benefício deles. 
A realização destes projectos implicava um incremento de mão 
de obra nas minas da África do Sul, a transferência de popula-
ções dos seus locais de habitação e naturalidade para as zonas 
de produção normalmente ligados aos portos de Maputo e da Bei-
ra. Participámos na realização do futuro programado em Portugal: 
fomos nós que tornámos possível a construção dos palácios, das 
ruas, dos caminhos de ferro, dos portos, etc. Porém a nossa parti-
cipação era passiva. Estávamos lá para realizar a vontade dos ou-
tros, éramos instrumentos nas mãos dos que tinham o direito de 
programar, querer e escolher o seu próprio futuro; o nosso futuro 
definia-se em função do futuro deles. Se nos programas que eles 
tivessem feito para o próprio futuro fosse necessária a deslocação 
de dez mil pessoas de Gaza para Maputo, outras duas vezes mais 
para a África do Sul, os militares estavam lá para executar as 
ordens. 
Em 1974 todos saboreámos o doce sabor de ser livres, inde-
pendentes, protagonistas e fautores da nossa história, do nosso 
futuro. Ninguém ficou indiferente a esses eventos. Todos nós nos 
deixámos mobilizar pelos grupos dinamizadores, pelos comícios 
presidencias, pelos planos de desenvolvimento. 
Quantas vezes ouvimos repetir que o futuro dependia de nós? 
Quantas vezes repetimos «viva», aos continuadores da revolução? 
10 
A Frelimo convidava-nos para participar, e de uma maneira que 
se queria activa na construção do futuro. Só que esse futuro tinha 
cores bem precisas, tinha traços bem determinados. Uma vez mais 
não nos foi perguntado qual o tipo de futuro que sonhávamos pa-
ra nós e para os nossos filhos; uma vez mais se pretendia que fôs-
semos rápidos a responder com as nossas energias, planos e 
projectos, na construção de um futuro na elaboração do qual não 
tinhamos participado. E uma vez mais os militares estavam lá pa-
ra nos obrigar a traduzir em actos, os planos futuristicos daqueles 
que tinham o privilégio divino de saber o que era bom para todos. 
Nós fizemos a história, mas uma vez mais, como instrumentos da 
vontade alheia. 
Que significado vão ter as eleições de amanhã? Que doravan-
te legitimamos com os nossos votos a acção daqueles que conti-
nuarão a ser os senhores do nosso destino, ou pelo contrário, com 
a democracia entendemos asenhorearmo-nos de uma vez por to-
das da nossa vida e futuro, e que portanto as eleições vão obede-
cer a critérios jurídicos com a finalidade de favorecer a participação 
do maior número, na projecção e na tomada de posição real so-
bre os problemas que nos dizem respeito? 
Não obstante a nossa situação política e económica, que para 
muitos perítos internacionais parece desesperada, continuamos a 
acreditar num futuro diferente, melhor. De facto não nos seria pos-
sível viver sem uma imagem do futuro, sem aquela fantasia políti-
ca que permite inventar o amanhã e viver o hoje. Sem dúvida, o 
futuro como o desenham as nossas esperanças, os nossos dese-
JOS, os nossos sonnos, a coragem que anima os nossos \-Ii ojectos, 
é uma das causas mais importantes de hoje. Ser capazes de fan-
tasiar - escreveu Ray Bradbury - significa ser capazes de so-
breviver. Os nossos sonhos antecipam, estimulam e favorecem a 
afirmação e o progresso da sociedade. 
Na existência tudo se faz em função do futuro. O passado é 
campo de recordações e nostalgias, de factos e de necessidades, 
porque em cada mudança de tempo a vastidão de horizontes 
fechou-se, quando uma estrada, e simplesmente uma, foi aberta, 
escolhida ou imposta. 
11 
o futuro é o conjunto de projectos, de possíveis, de esperan-
ças, de liberdades, porque temos de escolher entre os diferentes 
possíveis ou criar outros. Se não formos capazes disto, o nosso 
futuro não será diferente do nosso passado. É importante analisar 
e discutir a nossa história para que se abra um novo futuro, que 
não seja, portanto, um simples prolongamento da história, para 
que possamos ser senhores do nosso destino e da nossa história. 
Contra a ilusão de óptica de olhares retrospectivos, que nos reve-
lam um passado simplesmente unidimensional, os factos históri-
cos são imersos numa multiplicidade de possiveis e de projectos, 
dos quais simplesmente um foi consagrado vencedor. 
Na história, os factos são o que foi feito por homens. Tomar 
consciência disto, é assumir plenamente a responsabilidade da 
nossa história e do nosso futuro. Porque para desmistificar o futu-
ro é necessário desmistificar a história. Não estamos no limite de 
uma trajectória rígida que devemos simplesmente prolongar. 
A filosofia torna possível a vida do homem, enquanto ela lhe 
permite imaginar, projectar o futuro e enfrentá-lo. Se as aporias 
da vida que nos estrangulam com a fome, a miséria, a nudez, a 
guerra, o analfabetismo, etc, nos sufocassem de tal maneira a não 
permetir-nos nenhuma interpretação do mundo, e não nos fosse 
possível pensar um amanhã, seria terrível. O pensamento, a filo-
sofia tornam possível o amanhã. Mas ao mesmo tempo, interroga-
-se sobre o tipo de amanhã. 
Mas de que meios se serve a filosofia para questionar o tipo 
de amanhã? Por outras palavras, qual é a maneira mais filosófica 
de pensar o futuro, a profecia, a utopia ou a futurologia? 
Antes de nos embrenharmos neste terreno assaz tormentoso, 
devemos olhar em redàr de nós, para vermos como a filosofia se 
tem posicionado em relação ao futuro, e qual tem sido a maneira 
especificamente filosófica de encarar o futuro. Por óbvias razões, 
dirigiremos o nosso olhar para a filosofia africana. 
Paradoxalmente, ao mesmo tempo que as sociedades africa-
nas têm no futuro, o ponto central das suas preocupações e dos 
seus projectos, os debates que animam a filosofia africana pare-
cem imbuidos de preocupações contrárias. Com efeito, as dispu-
12 
tas que ocupam os espíritos dos filósofos têm a que ver com o 
passado. As nossas dissertações chamam-se filosofia Bantu, a fi-
losofia Bantu Ruandês do ser, a Filosofia Serere, a Filosofia 00-
gon, a autenticidade zairense. E quando são críticas, é sempre em 
função do que Marcien Towa e Paulin Hountondji chamaram etno-
-filosofia. 
Que relação existe entre o passado (a etnologia é uma activi-
dade do espírito voltada de uma maneira geral para o passado) 
que constitui o objecto das nossas querelas, e o futuro que consti-
tui a pedra angular do nosso dever-ser filosófico? 
A crescente literatura filosófica africana tem demonstrado o nos-
so esforço de reflexão filosófica, é prisioneiro do apriori etnológi-
co. Todos parecemos padecer deste condicionamento; não são 
simplesmente T empels, Kagame as únicas vítimas do apriorismo 
etnológico, mas mesmo os críticos mais radicais da ,etno-filosofia 
como Towa, Hountondji e Ebàussi não são completamente livres 
deste apriorismo.~Pe facto, a etno-filosofia que alguns defendem 
com toda a energia que têm e que outros atacam com toda a vee-
mência que lhes é possível, tornou-se pedra angular da filosofia 
africana, em volta da qual gravita todo o seu processo de reflexão. 
Qual a razão desta associação? Porque, a nossa reflexão que 
se quer filosófica, isto é universal e voltada em direcção ao futuro, 
deve embater necessáriamente no discurso etnológico (1), que é 
particular e voltado para o passado? 
n Utilizaremos indiferentemente o termo etnologia e antropologia, em referência para 
que em língua portuguesa se chama antropologia cultural. Uma destinção entre os dois domí· 
nios será introduzida mais adiante, quando se abordar o pensamento de Lévi·Strauss. 
13 
HISTORICIDADE. 
E ETNOCIDAD E 
. Para pensar o universal, cada homem parte da sua situação 
específica, particular. Quem pensa o universal é sempre um ho-
mem singular, pertencente a um grupo particular, situado no es-
paço e no tempo. Isto tanto é válidopara quem pensa a partir.da 
Grécia, como quem pensa a partir de Moçambique, do Chile ou 
da Indonésia. Porque é que o nosso discurso filosófico é etnológi-
co? A tomada de consciência do condicionamento particular-
-histórico na investigação filosófico-universal, ou a reflexão como 
filósofo e como histórico, como diz Voltaire, levou á criação pelo 
mesmo filósofo francês, da filosofia da história, que Hegel se en-
carregou de difundir pelo mundo fora. À situação do filósofo oci-
dental, que faz emergir a questão do sentido total (filosófico), na . 
dinâmica da sua situção específica (histórica), corresponde uma 
reflexão africana igualmente filosófica, mas sobre uma situação par-
ticular, que é objecto não da história, mas da etnologia. 
Com Kant inicia-se a filosofia contemporânea, e não só pela 
grande influência que a sua obra exerceu nos filósofos posterio-
res, mas porque em particular, como escreve Windelband, uma 
das características da filosofia derivada de Kant, é que entre as 
suas partes necessárias e constitutivas, existe uma filosofia da his-
tória, que se interessa pejo fim étic.o do processo histórico. 
A filosofia africana começa com aquilo a que Hountondji cha-
mou, um trabalho de etnologia com pretensão filosófica. É portan-
to legítimo que nos interroguemos sobre o estatuto epistemológico 
e moral da etnologia. 
15 
Para uma crítica exaustiva do uso etnológico da filosofia, é ne-
cessário recuar no tempo. Porém, não simplesmente aTempeis, 
nem sequer ao uso do termo etno-filosofia no mundo anglo-
-saxónico, mas ir à raiz e génese do discurso etnológico, através 
de um exame analítico da relação entre a história e a não-história. 
'!JJj$tQriél e etnologia constituiram-se como disciplinas afins e con-
traditórias, alimentando entre elas relações que derivam de duas 
categorias principais, tempo e espaço. Ambas sãO instrumentos 
de descrição do universo humano; mas a história faz o inventário 
do tempo e a etnologia do espaço. Assim, nas classificações da 
Europa baconiana, o relato de viagens longínquas faz parte dos 
livros de história; elas formam uma categoria consagrada à des-
crição dos países estrangeiros e nomeadamente exóticos. Aliás, 
trazendo até aos leitores os costumes das populações longínquas, 
o viajante procura não só vulgarizar o pitoresco e a diferença, mas 
traz também ao espaço contemporâneo uma imagem do passa-
do. O selvagem, é a infância do civilizado. Assim encontram-se 
unificadas duas leituras de uma mesma imagem do homem. 
Tudo começa no século XVI com a secularização do tempo em 
relação à velha cronologia apocalíptica. O vetero-testamentário ce-
de à pressão humanista protestante e enfim ao Estado-Nação. As-
sim entre o século XVI e a época das luzes, a história, é antes de 
mais, história das nações, isto é dos Estados e dos povos euro-
peus. Mesmo Voltaire, que tentou ultrapassar o quadro desta vi-
s'ao, "tem como referência implícita da sua história universal, o 
Estado Luis-catorziano, auge do florescimento da sociedade. 
História.e etnologia separaram-se em meados do seculo XIX 
quando o evolucionismo triunfante, antes de Darwin, separou o 
estudo das sociedades evoluídas, das sociedades ditas primitivas. 
Até então, a história tinha englobado todas as sociedades, mas 
quando se constitui a consciência do progresso, a história foi re-
duzida ao que se acreditava ser a. unica humanidade susceptível 
de se transformar rápidamente; o resto ficou para os géneros me: 
nores do domínio científico ou literário - os «mirabilia» onde os 
homens primitivos viviam lado a lado com os monstros, as viagens 
em que os autóctones são uma variedade da fauna, os meios geo-
16 
gráficos onde os homens eram um elemento da paisagem - ou 
condenados ao esquecimento. 
Para a Europa «civilizada» o chamado novo mundo é um outro 
mundo: costumes selvagens, sem religião, espírito degradado. Os 
povos não têm escrita, não têm arquivos, não têm Estado. Eles 
não pertencem, portanto, ao mundo histórico em todas as suas 
formas, moral, civil e política. Os povos com escrita revelam com 
toda a nobreza, o território da história, os selvagens serão objec-
tos dos etnólogos. As sociedades estudadas pela etnologia são 
definidas portanto pela negativa, por aquilo que não têm. EJél.? não 
possuem nem histqria, nem verdade e nem Estado. O que é ca-
racterístico das sociedades estudadas pela etnologia é a sua im-
perfeição. . 
A história não diz respeito a todas as nações, mas simplesmente 
a algumas; as que produzem, que trocam, em rE?sumo, as nações 
que contam. O resto da humanidade é abandonada ao não ser 
histórico. A etnologia desenvolve-se como um saber residual, de-
finido negativamente em relação à história da Europa e da Améri-
ca do Norte. 
Porque é que a história recusou aceitar nas suas margens os 
povos ditos «selvagens», e que tipo de discurso histórico se trans-
formou em etnologia? Ou por outra, qual é o estatuto epistemoló- >< 
gico da etnologia? 
Foi uma suma de razões ideológicas, mais do que científicas, 
que empurrou as nações não ocidentais para fora da história. As 
razões que estão na base do nascimento da etnologia, não são 
científicas. Ninguém pode justificar, que a descrição da fauna e 
da vegetação, que faziam então parte da história, fossem históri-
camente mais dignas que os povos não ocidentais. Ü.queJ3stªy.ª~_\ 
i e~ ... çª~L$ª.,_ .. eJa.JLª§.tªtu1QJiº.-º\:!trº)m"ª"n?lªs;"ªº""ªntffLª .. uoJ.daOO .. 8 . 
él,.d.i'lelS1dade .. bwmªua .. A esta problemática primordial, o etno-
- -centrismo ocidental respondeu criando a história dos sem histó- i. 
ria, a história dos bárbaros: a etnologia. Assim se Consumava a 
separação entre o que Claude Lévi-Strauss chama sociedades his-
toriografáveis e sociedades etnografáveis. O,QueÉl interessante re-
levar, é que a etnologia nasceu no século que proclamou os direitos 
17 
do homem. Que viu sobretudo surgir um novo conceito: Homem! ' 
Éste conceito retoma o conceito de Humanitas, de Cicerone e res-
ponde à magnífica proclamação de Térence: «Homo sum, nihil a 
me alienum putO», O homem surge concebido como agente, su-
jeito dos eventos temporais, como origem do di,reito, como ~r?d~­
to da educação. Não obstante, a etnologia foi cnada cºrno rejelçao, 
do outro. 
Entre a história e a antropologia, existia uma fronteira muito ní-
tida. Uma tal separação era resultado da rejeição, fora da tradi-
ção ocidental e portanto do tempo e do discurso da his~ória da 
Europa, dos povos e das civilizações.ditas selvagens e barbaras. 
Para melhor afastar estas sociedades da história, e melhor funda-
mentar alegitimidade da sua subordinação às sociedades hist~ri­
cas, foi lhes consagrada uma disciplina específica: a antropologia. 
Doravante reservou-se às sociedades «quentes» um movimento uni-
versal de mudança e de progresso, enquanto às sociedades «frias» 
restava a estagnação material e intelectu~l. 
Tudo contribuia para separar a históriá'da etnologia. Antes de 
mais, os seus objectos específicos._6primeirélinter~ssava-se p~l? 
passado histórico europeu, e a segunda pelas sociedades exotl-
cas reputadqs sem história. Em seguida os seus domínios de re-
flexão: a histó'ria tentava centrar-se no desenvolvimento cronológico 
dos eventos e reconstnjir as etapas da evolução no seio da gran-
de tradição histórica, enquanto a antropologia tentava compreen-
der a estrutura e a função das instituições sociais nas sociedades 
marcadas essencialmente pela permanência e pela repetição. 
O discurso antropológico constitui-se no interior de uma filoso-
fia da história que divide os homens em dois mundos diferentes, 
irreconciliáveis no tempo e no espaço, onde a Europa ocupa um 
lugar preponderante. i'i • 
Em verdade, a etnologia é o resultado da expansão de dOIS 
imperialismos: o imperialismo mercantil, que se apropria d~s ter-
ras, dos recursos naturais e até mesmo dos homens. DepOIS, do 
imperialismo histórico, que se apropria de um novo espaço con-
ceptual: o homem não histórico. 
Uma aproximação histórica do problemapermite-nos captar 
18 
o contexto cultural no qual o pensamento sobre o «Outro» em ge-
rai e, mais tarde, o pensamento etnológico propriamente dito se 
desenvolveram. Dito de outra maneira, uma aproximação históri-
ca permitir-nos-á compreender as interacções entre, de um lado, 
a história das ideias, os costumes, as estruturas sociais, ecomómi-
cas e políticas da Europa e, por outro, a história da reflexão antro-
pológica. Trata-se mais precisamente, de ver quais foram os 
sistemas de valores e os interesses económicos e políticos, que 
influenciaram uma tal reflexão; e por outro lado, ver qual foi a im-
portância da presença da alteridade, para a história das ideias e 
para a evolução social e cultural; qual foi a sua contribuição no 
progresso das ciências humanas. 
O que precede, faz-nos tomar consciência de que a história 
da antropologia e a antropologia em geral, dizem simplesmente 
respeito a uma parte da humanidade. Com efeito, a história da an-
tropologia dá conta das etapas do conhecimento do homem exó-
tico pelo homem ocidental. Para ser completa, tal história deveria 
também interessar-se pelo que as outras civilizações produziram 
sobre a alteridade que eles encontraram, e mesmo sobre a alteri-
dade ocidental. 
Por outro lado, deve ter-se em conta o facto que a antropolo-
gia, que se pretende ciência do homem, nasceu de uma visão par-
ticular, que uma cultura específica (cultura ocidental) lançou sobre 
as outras culturas. Deve tomar-se consciência, não para negar a 
possibilidade de que uma cultura particular possa ter uma visão 
relativamente objectiva sobre as outras culturas, que essa visão 
possa produzir efeitos de conhecimento, mas sim para relativizar 
essa visão e conferir-lhe uma historicidade que explicite os seus 
fundamentos teóricos e sobretudo ideológicos. 
Neste sentido, fazer a história do pensamento antropológico é 
de certa maneira retornar à sociedade que a concebeu, e 
interrogar-se sobre os valores sociais e culturais que estão na ori-
gem da visão do outro. A história da antropologia, enquanto histó-
ria intelectual de uma tradição, faz portanto, parte de uma 
antropologia cultural do ocidente, uma antropologia que perrT1ite 
compreender a estrutura e o significado desta cultura, à qual per-
19 
tencem os antropólogos. Fazer a história da antropologia é contri-
buir de maneira significativa para a compreensão da natureza da 
cultura ocidental. 
A maneira através da qual a antropologia compreendeu e in-
terpretou as culturas extra-europeias, dá-nos as indicações sobre 
a maneira como a sociedade ocidental se apreende e se analisa 
a si mesma. Proceder desta maneira, é contribuir para alargar o 
objecto da antropologia e integrar na sua reflexão as culturas oci-
dentais como objecto de conhecimento. 
Sob este ponto de vista, há muitas interrogações a formular. 
Por exemplo, porquê e como, as sociedades europeias produzi-
ram antropólogos? As respostas a estas questões são diversas. 
Diz-se que foi uma maneira do Ocidente confrontar a sua própria 
imagem com sociedades diferentes, para encontrar aí, os seus li-
mites e os seus defeitos (o outro é pretexto para criticar-se a si mes-
mo: é em geral a figura do bom selvagem), ou descobrir os limites 
e os defeitos do outro e confortar a sua própria imagem (é em ge-
rai a figura de mau selvagem). Justifica-se também o aparecimen-
to da antropologia a partir de uma necessidade de conservar. 
Quanto mais a sociedade industrial conquistava e destruia as ou-
tras culturas e a sua própria, mais se desenvolvia a necessidade 
de conservar e expôr os sinais destas culturas. Na realidade, o de-
senvolvimento de um conhecimento antropológico sobre o outro 
traduz uma relação de poder.'Nascido de uma relação de domi-
nação, a visão antropológica inscreve-se inevitavelmente em es-
tratégias de tipo político e económico que determinam em parte 
os objectos de estudo e as finalidades analíticas. 
As imagens que o ocidente fabrica da alteridade, por um efei-
to de retorno, reenviam-nos às imagens que o ocidente faz dele 
mesmo em relação as outras culturas. Sf:LnÓS aparecemos como 
seres «irracionais», «primitivos» ou «atrasados», é sempre em rela-
ção à «racionalidade», à «civilização» e à modernidade do ociden: 
te. Esta confrontação de imagens permite-nos relativizar os 
diferentes juízos, que são feitos sobre uma cultura ou outra. Con-
textualizando e analisando a produção das representações sobre 
o outro no interior das relações que o fizeram nascer, podemos 
20 
atingir um grau de conhecimento de relações inter-culturais mais 
equilibradas e mais rigorosas, do que se ficarmos a nível de um 
só discurso, ou de uma só visão. 
Na antropologia existe uma tradição bem estabelecida que rei-
vindica o início desta disciplina na época grega. Sabemos que a 
antropologia como a conhecemos hoje, nasceu na segunda me-
ta.de do século passado e como resultado de rupturas importan-
tes no pensamento e na cultura ocidental. Deve contudo 
"" . 
acrescentar-se, que o movimento de legitimação através da anti: 
guidade clássica, era habitual no século passado e mesmo durante 
muito tempo no século em curso. 
Os séculos que precederam o século XIX, foram importantes 
para o nascimento da antropologia moderna, mas o aparecimen-
to de uma ideia clara da problemática da diversidade, foi longo, 
lento e destituido de uniformidades. Durante esses séculos 
verificou-se um maior ou menor confronto com as outras culturas, 
mas sem que essa relação com o outro acedesse ao estatuto de 
um saber com pretenções objectivas, como começa a aparecer 
no fim do século passado nos discursos científicos. 
É no quadro desta interrogação sobre a dificuldade epistemo-
lógica pluri-secular de pensar o outro que se deve situar a história 
do pensamento antropológico, enquanto discurso sobre a alteri-
dade e a diferença. 
Na área cultural de Atenas e Roma, a concepção global da his-
tória provém de obras complementares de historiadores, filósofos 
e poetas. Os historiadores do século V antes de Cristo (Heródoto 
e Tucidide) compreenderam progressivamente que a história, en-
quanto investigação das realizações humanas, não é lenda, mas 
investigação minuciosa que vai da 'crónica descritiva da escola ió-
nica (cf. Ecateo e Heródoto) até à reflexão ético-filosófica sobre as 
leis da experiência humana configurada em sentido político e social. 
Heródoto é considerado o pai da historiografia grega, por ter 
sido o primeiro a considerar a história como âmbito da investiga-
ção dos eventos humanos e não das teogonias. Ele investiga so-
bre os eventos humanos para chegar a uma lei imutável da 
natureza humana. Não se contenta em narrar, junta provas e tes-
21 
temunhos para justificar a sua exposição, através da técnica do 
contra-interrogatório, que lhe foi sugerida pelos tribunais e projec-
tada para a análise das fontes. Da análise da historiografia de He-
ródoto, emergem duas características da investigação e da 
narração dos factos do passado (e do presente): humanismo e 
substancialismo. Isto é, interesse pelas realizações temporais do 
homem e destino fatal guiado pelos deuses, ao qual o homem aca-
ba por socumbir e aceitar sem poder activamente dominá-lo. De 
facto ele diz, «de todas as tristezas que afligem a humanidade a 
mais amarga é esta, que se tenha de ter consciência de muitas 
coisas e domínio sobre nenhuma». 
Heródoto tal como é pai da história, é também o pai da etno-
grafia. O seu segundo livro das histórias é dedicado ao Egipto. 
Após as suas viagens ao Egípto, Pérsia e outros países, faz um 
impressionante número de descrições e relatos de contos e de mi-
tos. Possuía uma grande curiosidade pelas outras culturas que fa-
zem dele um autêntico espírito investigador. Nas suas 
peregrinações, regista as particularidades que encontra, interro-
ga sobre as particularidades que constata e associa os factos apa-
rentemente afastados. Mas sobretudo privilegia o testemunho visual 
sobre o auditivo, e fundamenta a sua investigação sobrea teste-
munha que viu, e que, por isso, sabe (1). 
Este aspecto é de importância tendo em conta que a antropo-
logia moderna fez exactamente da observação visual a regra cen-
trai do seu método (a presença física no terreno). 
Contudo, Heródoto, como aliás outros pensadores da antigui-
dade, dava muito mais importância aos factos que saíam do ordi-
nário, que aos hábitos e aos factos normais que compunham o 
tecido da vida quotidiana dos povos. Ainda por cima, ele descre-
via os povos estrangeiros ou «bárbaros» em função e em oposi-
ção aos costumes gregos. 
Portanto, o mesmo Heródoto afirma - o que devia ter apazi-
guado a sua superioridade irrascível em relação aos que ele cha-
mava bárbaros - que os «egípcios chegaram ao Peloponeso e 
C) Heródoto, LX, 16. 
22 
apoderaram-se daquela parte da Grécia, como narravam as cró-
nicas de outros autores» (2) 
Os gregos, a quem Heródoto dirigia os seus escritos, sabiam 
que a Grécia tinha sido colonizada pelo Egípto, ou podiam facil-
mente verificar. Mas o que era importante para este homem, a 
quem Plutarco catalogou como «pai da mentira», não eram tanto 
as colónias, quanto a introdução da cultura egípcia e fenícia na 
Grécia. 
Não obstante a aversão explícita sobre as colonizações, o gran-
de orador grego, Isócrates, confirma: «nos tempos antigos, todo 
o bárbaro que caísse em desgraça, presumia poder governar as 
cidades gregas, Danão (por exemplo) refugiado do Egípto, ocu-
pou Argo; Cadmo, chegado a Sidone tornou-se rei de T ebe ... » (3). 
Crantore, prim"eiro comentador de Platão, que escreveu algu-
mas gerações depois deste, dizia que os contemporâneos de Pla-
tão troçavam dele dizendo que ele tinha copiado a sua República 
das instituições egípcias. . 
Aristóteles não foi simplesmente discípulo de Platão, mas estu-
dou também na academia, com Eudosso de Cnido, grande mate-
mático e astrónomo, que tinha passado seis meses a estudar com 
os sacerdotes egípcios. Quanto ao Egípto, Aristóteles sofreu uma 
grande influência de Heródoto, e foi fascinado por aquele país e 
cultura. E que dizer de Alexandre Magno que se considerava filho 
de Ammon? 
Na obra intitulada «Le miroir d'Hérodote. Essai sur la représen-
tation de I'autre» (1980), F. Hartog mostra muito bem como, afinal 
de contas, para Heródoto, os «bárbaros» são simplesmente um 
meio indirecto para falar e definir os gregos. O que lhe interessa 
são principalmente os gregos, e os bárbaros que lhe permitem afir-
mar e valorizar implicitamente a superioridade dos valores 
gregos (4). 
(2) CL Heródoto, Histórias, VI. 55 
(3) Isócrates, Contos, xx, 32 
(4) CL Hartog, "Le Miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de I'autre», Paris, Gallí· 
mard,1980. 
23 
Em Tácito (55 a,C, 17 d,C,), através de uma dramática des-
crição dos eventos humanos, consubstanciados na avidez do po-
der, nas lutas entre aristocráticos e no puro azar, emerge o itinerário 
de uma história como um poderoso teatro de paixões, numa amál-
gama de vitórias e derrotas, numa espécie de eterno retorno do 
idêntico, 
Como em Heródoto, também em Tácito já se percebe um es-
pírito etnográfico, Numa perspectiva rousseniana, a corrupção da 
civilização romana, opõe a saúde dos «bons selvagens» que são 
os bretões ou os germânicos", 
Com o cristianismo, nasce e consolida-se uma nova mentali-
dade sobre a maneira de nos relacionararmos com a natureza e 
com o tempo, muito diferente, até mesmo oposta à mentalidade 
greco-romana, Por isso, a relação entre a filosofia e a teologia, po-
de ser analisada como confrontação entre duas civilizações his-
tóricas, 
,Com os conceitos bíblicos de criação, pecado, redenção e pro-
vidência, a teodiceia e a visão da realidade mudam profundamente 
em relação à filosofia grega. O fulcro da natureza histórica transfere-
-se da natureza para Deus, apresentando-se assim com todo o seu 
valor de mistério e de fé, Neste sentido, o homem é chamado a 
colaborar com a iniciativa transcendental e a empenhar-se ética 
e religiosamente no tempo, 
A doutrina platónica dos arquétipos eternos cede lugar à «crea-
tio ex nihilo»; a dimensão cíclica e fatal do tempo (Kpovos) é subs-
tituida pela liberdade humana de aproveitar do tempo redimido 
(kaipos), Criação contigente e Deus, tempo e eternidade, sobre 
um substracto de sentido ontológico e de significado religioso e 
moral, proporcionam uma hermenêutica histórica que se actuali-
za sobre um terreno ambíguo de bem e de mal, de virtude e de 
vício, Diante de Deus todas as actuações históricas têm um sim-
ples valor transitório, 
Como revelou p, Ricoeur, para o cristianismo o acontecimento 
dramático da história é dado pela «culpabilidade» existencial e não 
pelo elemento político, E como sublinhou Collingwood, a historio-
24 
grafia cristã conota-se como «universal», providencialista, apoca-
liptica, periódica, 
A vocação universal própria do cristianismo, oferecia à etnolo-
gia uma estrutura de acolhimento, Toda a história era uma história 
universal, todos os povos tinham vocação para entrar na história, 
De uma maneira geral, esta compreensão cristã da história deve-
ria ter guiado o homem da idade média na apreensão e na inter-
pretação das outras civilizações, E no entanto, o que se constata 
é que só os cristãos têm direito à história, Os pagãos, propriamen-
te ditos, e os infiéis são excluidos do domínio histórico, O Bispo 
galicano Bossuet, em pleno século XVIII, exclui deliberadamente 
da sua história universal os povos do dito novo mundo, porque 
segundo ele não constavam nas profecias, 
Como notou Augustin Renaudet, Dante repete com orgulho a 
profecia de «Anchise»: «Tu regere imperio populos, Romane, me-
mento», Virgílio e Sybila anunciam Cristo numa perspectiva teleo-
lógica que deixa os outros, os que não são herdeiros de Roma, 
fora da marcha em direcção da salvação .. , 
Se pensarmos na sociedade árabo-muçulmana, vizinha do oci-
dente, com a qual a sociedade medieval ocidental tinha relações 
múltiplas e que em muitos aspectos era mais avançada, constata-
mos que essa era apreendida sobretudo através de uma figura 
de exclusão: o monstro ou o Sarraceno. Por outro lado, as Cruza-
das não podiam representar ocasião de intercâmbios culturais entre 
a sociedade medieval ocidental e árabe, 
Considera-se em geral o humanismo renascentista como o nas-
cimento da consciência histórica, devido a uma nova teorização 
que se baseia nos eventos humanos e constitui a espinha dorsal 
da historiografia de Maquiavel, Guicciardini, Bruno, Poggio Brac-
ciolini, etc, Doravante o homem - dominus mundi - auto-com-
preende-se nas suas acções operativas, políticas e sociais, A dig-
nidade depende da acção, em ruptura progressiva com a men-
talidade metafísico-contemplativa da idade medieval. É óbvio que 
um fenómeno cultural e espiritual, como o humanismo, é comple-
xo e diversificado, e suscita interpretações diferentes e contras-
tantes, até mesmo da parte dos especialistas, O que interessa 
25 
sublinhar, é a passagem gradual mas acentuada, da considera-
ção teológica a uma consideração racional e crítica sobre a histó-
ria, evidênciando o valor que a ideia de utopia adquire até ao 
iluminismo do século XVII. Segundo Huizinga, esta transferência 
do espaço de referência e a perda da hierarquia unitária até então 
existente, foi devida principalmente às expansões geográficas. 
O esforço da compreensão humana já não vem de uma con-
frontação com a transcendência metafísica, mas manifesta-se nas 
modulações do horizontalismo temporal. O modelo de perfeição 
é procurado no passado clássico, criticamente interpretado, en-
quanto a transcendência divina é vista como compreensão e mor-
tificação do homem, por homens como L. Valia, «De libero arbitrio» 
(1436), P. Pomponazzi, «De fato, libero arbitrio et praedestinatio-
ne» (1520), G. Bruno, «Spaccio de la bestia trionfante» (1585). O 
substrato da civilização renascentista consiste na exaltação do in-
dividualismo (L. Bruni, C. Salutati), da vida civil e política; primazia 
da vida activa sobrea contemplativa (P. Bracciolini), celebração 
da fecundidade do trabalho (L.B. Alberti), concepção heróica e aris-
tocrática da história, relativismo dos valores (basta pensar a inter-
pretação que G. Bruno deu à frase de Gellio: «veritas filia temporis» 
e a historiografia de Maquiavel e Guicciardini. 
Repudiando Deus como referencial, a consciência política 
declara-se auto-suficiente na resolução dos problemas que dizem 
respeito aos instintos e às necessidades humanas - regnum ho-
minis. O pensamento político de T. Hobbes é sintomático de tal 
reflexão. Uma vez que a metafísica já não é suficiente para dar 
um sentido à história, assiste-se a um «disiecta membra», enquan-
to os valores e as ideias vão ser reivindicadas pelas utopias de 
Campanella, Bacone, Moro, Erasmo, etc. 
Os estudiosos e artistas italianos do renascimento identificavam-
-se com os gregos, mas os seus interesses não se centravam so-
bre a Grécia de Homero, de Péricles ou sobre os Deuses do 
Olimpo. O que lhes interessava, era retomar onde a antiquidade 
pagã tinha parado. Como escreveu, com sensibilidade do século 
XVII o filósofo e historiador David Hume, «o saber, no momento 
do seu renascimento, foi vestido com os mesmos indumentos que 
26 
usava na época da sua decadência entre os gregos e os romanos 
(5) . 
. ' Centrado nesta decadência surgiu o respeito pelo Egípto e pelo 
Oriente. E foi exactamente da tradição neo-platónica e hermética 
que o renascimento retirou a sua concepção mais característica, 
das infinitas potêncialidades do homem, e da crença que ele é a 
medida de todas as coisas. Os homens do renascimento estavam 
fundamentalmente interessados pelo passado, procuravam as fon-
tes. E por isso olhavam para trás, para além do cristianismo, de 
Roma e da Grécia. Mas para trás da Grécia estava o Egípto, co-
mo disse Giordano Bruno no século seguinte, que por sua vez foi 
aclamado pelos historiadores e cientistas dos séculos XVIII e XIX, 
como pioneiro e mártir da ciência e da liberdade de investigação. 
Por volta dos anos 1460, um manuscrito grego foi levado da 
Macedónia para Florença. Ele continha uma cópia do Corpus Her-
meticum. Não obstante os manuscritos platónicos estivessem já 
todos reunidos, Cosimo ordenou a Marsílio Ficino que traduzisse 
imediatamente da obra de Hermete Trismegisto, antes de traduzir 
os filosófos gregos. O Egípto vinha antes da Grécia, Hermete an-
tes de Platão ... (6). 
Qual foi a importância destas rupturas revolucionárias - a des-
coberta da importância das influências das culturas africanas e asiá-
ticas na formação técnica e cultural do ocidente, as extensões dos 
horizontes geográficos e mentais dos séculos XV e XVI -, na per-
cepção e interpretação do outro? E através do outro de si mes-
mo? Temos que constatar que a «descoberta» de novas 
humanidades, e da base afro-asiática da cultura europeia não fo-
ram colhidas como ocasião para uma tomada de consciência po-
sitiva da diversidade humana, nem para a constituição de um saber 
objectivo da variedade do homem no mundo. 
(5) Cf. Wind, E. Misteri pagani nel Rinascimento. Milano, 1985. p. 13 
(6) Yates, «F. Giordano Bruno e la tradidlzione ermetica», Bari, 1969; o texto de Platão 
mais conhecido durante o Renascimento e o tardo medieval, era o «Timeo», que contraria-
mente aos outros dois (Simpósio e República), continha referimentos explícitos à sabedoria 
egípcia. 
27 
Pelo contrário, o período que vai da «descoberta» da América 
até ao fim do século XVI, as culturas não europeias foram subme-
tidas a um sistema de interpretação proveniente das fontes da tra-
dição bíblica. Para responder ao problema do povoamento regional 
da América, a explicação mais corrente era ligar os ameríndios às 
tribos perdidas de Israel de que fala a Bíblia. Da mesma maneira, 
as diferenças constatadas entre os grupos humanos nos diversos 
continentes, eram referidas a uma única árvore geneológica, co-
mo figura na Génese, e representada pela descendência de Noé. 
Os europeus seriam descendentes de Japhet, os asiáticos de Sem 
e os africanos da linhagem maldita de Chamo Este mito funcionou 
até ao século XIX. 
Como demonstc~LtT:T qgorov (7), a conquista da América pe-
los espanhóis e a conlro'fltaçCão cultural que se seguiu, é exemplar 
no que põe em evidência: a incapacidade ou a dificuldade de uma 
civilização conquistadora em aperceber-se do outro como ser di-
ferente e às vezes até mesmo de percebê-lo simplesmente como 
homem. Assim, por exemplo, Francisco de Vitória, uma das maio-
res autoridades do humanismo espanhol do século XVI, justificou 
a guerra contra os ameríndios, com o pretexto de que eles eram 
loucos, animais selvagens. Um outro autor, Oviedo, homem de 
ciência da mesma época, chegóu mesmo a considerar os amerín-
dios objectos inanimados. Esta percepção negativa do outro, que 
partia de um sentimento de superioridade, culminava muitas ve-
zes com a sua destruição física (genocídio), ou na vontade de lhe 
impor os próprios valores (etnocídio). 
Durante o século XVI e XVII, a Europa atravessa uma profun-
da crise ideológica. Os esquemas de referência antigos, tinham-
-se tornado insuficientes para compreender e resolver os novos 
problemas. Contudo, esta crise não seria condição suficiente pa-
ra que a Europa se questionasse seriamente sobre os problemas 
da alteridade. Na crise das ideias da época, trata-se essencialmente 
do homem europeu, das suas instituições, das suas crenças e dos 
seus costumes. As informações que acumula sobre o «selvagem» 
(7) Todorov, T., «La conquête de l'Amérique. La question de I'autre», Paris, Seuil. 
28 
e que acompanham as suas reflexões tem uma simples função apo-
logética sobre a tomada de posição de diferentes pensadores. Is-
to é, os discursos sobre o outro são pretextos para falar da própria 
sociedade, para defender as próprias ideias. Para tal, não se hesi-
tava em inventar sobre o outro.' Assim nasceram muitos mitos, so-
bretudo no século XVI, em volta da figura do selvagem, que ainda 
hoje estão presentes no imaginário ocidental. 
. O mito mais célebre é o do «bon sauvage». Através dele, mui-
tas gerações de pensadores, de Montaigne no século XVI, a Lévi-
-Strauss hoje, passando por Rousseau -no século XVIII, 
questionaram a civilização ocidental. Contudo, a imagem do «bon 
sauvage» que era ao mesmo tempo valorativa e mítica, juntou-se 
partir do século XVIII e XIX, a imagem mítica do «mauvais sauva-
ge» que vai cristalizar-se essencialmente na figura do negro. Para 
a «denegrição» do negro afirmava-se, ou que os negros não cons-
tavam da Bíblia, ou então que eram da descendência de Cham 
e portanto malditos por Deus; argumentos que constituiam, aliás, 
uma legitimação fácil e cómoda da escravatura então em voga. 
O «Code Noir» ilustra perfeitamente, a maneira como o branco 
via o negro. Promulgados em 1685 por Luis XIV, os sessenta arti-
gos que codificam a desumanidade do negro, estarão em vigor 
até 1848. Regulamentando detalhadamente, as prerrogativas ab-
solutas do senhor sobre o escravo, o «Code Noir» proclama o «di-
reito ao não direito», e organiza juridicamente a destruição física 
no negro, sem lhe dar possibilidade de recurso ... 
Contráriamente ao pensamento teológico espanhol do século 
XVI, que depois de um debate forte e animado (que acabou enco-
rajando o tráfico de escravos negros) reconheceu a identidade an-
tropológica dos ameríndios, reconcendo-Ihe um estatuto de homem 
livre e igual, os filósofos franceses dos séculos XVII e XVIII não se 
mostraram minimamente interessados pela condição infra-humana 
a que o negro estava reduzido. Os discursos sobre a escravatura, 
e a sua condenação feitos pelos homens das luzes foram abstrac-
tos e teóricos, e não diziam respeito à condição «de coisas», a que 
tinham sido reduzidos os negros. 
No século passado, a inferioridade do negro estava escrita na 
29 
natureza física. Produzindo uma hierarquia humana em termos de 
raças, a ciência do século XIX colocou o negro, perto dos ante-
passados de todos oshomens, os primatas, identificando assim 
qnegro com q grau zero da evolução humana, na qual o homem 
bré3.nco representa o apogeu, 
Sob ponto de vista filosófico-histórico, a contemplação metafí-
sica cede lugar à razão (raison) iluminista que por sua vez é ali- . 
mentada pela fé no progresso, guiada pela filosofia de Bacon e 
Descartes. 
Voltaire prospecta a história como civilização humana e não 
providencialista como queria Bossuet; Turgot acredita no progresso 
social e económico, mas incentivado não só pela razão, mas tam-
bém pelas paixões (mesmo as mais violentas, e por isso irracio-
. nais). Causas físicas e morais são para ele factores de crescimento 
dos povos e da sociedade; os enciclopedistas franceses falam da 
«razão feliz», à medida que ela domina a natureza com o trabalho 
e o comércio, e promove a unidade entre os homens, a circula-
ção das ideias, a invenção de sinais e símbolos científicos, o crité-
rio de distinção entre justo e injusto, uma moral social que 
contempla os deveres dos homens, dos legisladores e dos esta-
dos entre eles, dos estados para com os cidadãos; Condercet no 
seu «Esquisse d'un Tableau des progrés de l'Esprit humain» (1792) 
traça o caminho da civilização, como actuação histórica e como 
esperança do futuro. 
A antropologia das luzes era fundada sobre os seguintes pres-
supostos: 
1. A humanidade é una, e a natureza humana é imutável' é 
a socieda.de que muda, e não o homem. Salvo qualquer exc~p­
ção, os pensadores do século XVIII inscrevem-se na tradição mo-
genista herdada do humanismo cristão e do renascimento. 
2. O curso da história humana é orientado de forma unilinear, 
irrevercível e contínua. Um dos corolários essenciais deste postu-
lado, é que os selvagens são, no sentido próprio do termo, os pri-
mitivos, eles representam portanto, um estádio ultrapassado da 
história. O que é radicalmente novo, em relação às antropologias 
precedentes, é a universalização de uma história que engloba no 
30 
seu movimento o conjunto das sociedades humanas a partir das 
origens, e que excluem concomitantemente a possibilidade de his-
tórias diferenciais: unificação dos regimes de historicidade. 
3. A história humana é sustentada por leis acessíveis à razão 
humana, exactamente como o mundo físico. Se a razãao pode en-
tender as leis divinas do funcionamento do mundo físico, como 
fez Newton, aplicada à história humana produzirá os mesmos 
efeitos .. 
4. Esta perspectiva baseia-se num método cujos pilares são, 
por um lado, a comparação e por outro, a introspecção analógica 
que provém da crença na unidade da natureza humana e da uni-
versalidade da razão. Nós podemos pensar como os primitivos e 
nada, em princípio, impede os selvagens de pensar como nós, na 
condição de que eles progridam no entendimento. 
5. No século XVIII (e XIX) as ciências do homem são militantes 
e utopistas. Trata-se para elas, de encontrar e coadunar o ideal 
entre o homem e a organização social. O critério de avaliação não 
são os sistemas sócio-políticos, mas o indíviduo. Esta ideia de in-
dividualismo «possessivo» encontra-se intimamente ligada à ideia . 
de propriedade sumamente expressa no tratado do governo civil 
de Locke de 1698. 
Entre as propriedades a possuir, existia o escravo negro, o que 
portava consigo, uma discriminação racial, cultural e mesmo on-
tológica. Tais valorizações vão concordar perfeitamente com o iní-
cio do romantismo, que sublinhava a importância das 
características geográficas e nacionais e as diferenças categóri-
cas entre os povos. 
De facto, a partir de 1650 começa a desenvolver-se um racis-
mo com contornos mais nítidos e intensificou-se com a progres-
são da colonização da América do Norte, que comportava duas 
políticas associadas, a do extermínio dos nativos americanos e a 
da escravatura dos africanos. Políticas essas que suscitavam pro-
blemas morais nas sociedades cristãs, nas quais a igualdade de 
todos os homens diante de Deus e a liberdade pessoal eram valo-
res centrais, sendo que só um forte racismo podia alentar as pri-
meiras. 
31 
Geralmente, justificava-se a escravatura citando Aristóteles, que 
tinha largamente teorizado a seu favor: «Os povos que vivem nas 
regiões frias e europeias, são muito corajosos e apaixonados, mas 
não têm habilidade prática e intelecto; por esta razão, mesmo se 
são geralmente independentes, não têm coesão política e não po-
dem governar os outros. Por outro lado, os povos asiáticos têm 
intelecto e habilidade prática mas não têm coragem e força de von-
tade; por isso permaneceram submetidos e escravos. O povo he-
lénico, que ocupa uma posição geográfica intermediária, é dotado 
de todas estas qualidades e por i?so continuou a ser livre, a ter 
as melhores instituições políticas e a ser capaz de governar por 
meio de uma única constituição (8). 
Assim Aristóteles liga a superioridade racial ao direito de es-
cravizar os outros povos, especilamente aqueles «com predisposi-
ção para a escravatura». 
Posições racistas semelhantes, que acabaram por influenciar 
as respectivas filosofias, encontram-se nos filósofos ingleses John 
Locke - proprietário de escravos nas colónias americanas - e 
David Hume. 
Na sua visão política, Hume denegria sistematicamente os Na-
tivos da América; tinham-se necessidade das terras habitadas pe-
las populações indígenas para dar terras não cultivadas aos 
colonos ingleses. Tal colonização era necessária, como prova do 
argumento, segundo o qual, a todos os homens era dada a possi-
bilidade de se associarem em contrato social, com todas as desi-
gualdades que isso comportava. As agressões da Europa cristã 
contra os «idólatras» africanos e americanos, eram consideradas 
guerras justas, porque estes últimos não defendiam as suas pro-
priedades mas simplesmente terras não cultivadas. Para Hume o 
direito à propriedade da terra, derivava do seu cultivo. A captura 
de escravos africanos pelos europeus era também justificada; além 
disso, a própria existência de escravos africanos em grande nú-
mero, induzia a crer que eles fossem escravos naturais no sentido 
aristotélico. E Hume não hesitou em fazer-se pioneiro da ideia se-
(8) Aristóteles, Política, VIII. 7. 
32 
gundo a qual não, existia uma criação única, mas muitas e dife-
rentes criações. 
Nos anos 1680 era difundida a opinião, segundo a qual os ne-
gros eram simplesmente em pequeno grau superiores aos gran-
des macacos - eles também de origem africana - na grande 
hierarquia dos seres. Este modo de pensar foi facilitado pelo no-
minalismo de Locke, que negava a validade objectiva das espé-
cies aceitando-as simplesmente como conceitos objectivos. Ele era 
particularmente céptico quanto à categoria de «homem». 
«Eu penso que nenhuma das definições que hoje temos da pa-
lavra homem, nem as descrições desta espécie de animal, seja 
assim perfeita e exacta para satisfazer uma pessoa com uma men-
talidade analítica rigorosa, para não dizer de senso comum ... (9). 
Esta posição está em contraste evidente com a proclamação 
bíblica: E Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. E até 
mesmo com Descartes, que insiste sobre a distinção categórica 
entre animais não pensantes e homem pensante. Pode portanto 
concluir-se, que o empirismo acaba por destruir a pequena bar-
reira, que ainda subsistia contra o racismo. 
No século XVIII, a referência, até mesmo a reflexão sobre os 
costumes exóticos dos outros povos, foram um dos meios utiliza-
dos pela crítica social e pela filosofia política, sobretudo quando 
se tratava de denunciar a injustiça ou o absurdo de certas institui-
ções, como a monarquia absoluta. O século das luzes apropriou-
-se, portanto, do «selvagem» para compreender-se e criticar-se. 
Assim existia o selvagem do missionário, que era diferente do sel-
vagem do militar, e ainda mais diferente do selvagem do filósofo. 
O exemplo é dado por Montesquieu, que nas cartas persas, revi-
talizando o modelo de Jean Bodin (século XVI) se serviu dos per-
sas para criticar a Europa, e por outro lado, exaltavaa Europa como 
continente científico e progressista. Este primado era explicado co-
mo consequência do seu benéfico clima temperado. No espírito 
da lei de 1748, o eurocentrismo do Barão de Montesquieu mostra 
(9) Locke (1688, livro III). cf. Jordan, W, D, White Over Black, Baltimore, 1968, pp, 235-236; 
Bracken, Philosophy and racism, "Philosophy", 8:241-60, 1978, p, 246, 
33 
toda a sua relevância, onde aliàs, ele deliberadamente se esque-
ce de fazer qualquer tipo de referência à condição, à qual o negro 
tinha sido reduzido pelo <<Code Noir». 
Esta maneira de apreender o outro, não corresponde a uma 
abertura em direcção ao outro, nem sequer a uma experiência es-
pecial da alteridade europeia no século XVIII. Pelo contrário, a ima-
gem do bom selvagem, como d9 mau sel~agem, anulam toda_a 
distância entre si e os outros, nao se analisa o outro em funçao 
de si mesmo, mas pretende analisar-se as diferenças específicas 
que caracterizam cada uma das partes, ao mesmo tempo ~,ue se 
releva as suas identidades. Esta posição corresponde, alias, ao 
projecto da antropologia como se apresenta no~ nossos dias .. 
À medida que a ideologia do progresso se afirma co~o a VI-
são legítima do mundo, a imagem do mau selvagem, que vive num 
«habitat» hostil, e numa natureza não domesticada, torna-se a re-
presentação dominante do outro. A possibili~ade de ir. à desco,-
berta do outro, livre de preocupações exclUSivamente Internas a 
sua própria sociedade, supõe antes de mais uma to~a~a de.cons-
ciência crítica de si e uma descentralização do propno universo 
de referência. Ora, o problema principal dos filósofos das luzes, 
é a passagem do estado de nature~a a,o ~stado de civilização" ou 
por outra, explicitar a separação dlcotomlca e~tre «eles» ~ «~OS». 
O progresso optimístico será visto de maneira menos.mgenua 
e mais crítica, pelos filósofos alemães, como Kant, Le,ssl~g, Her-
der e outros; prelúdio do Sturm und Drang dos romantlcos. 
É exactamente o romantismo alemão que vai entender o pro-
gresso como desenvolvimento intrínseco da razão humana, como 
educação do género humano, como missão dos povos, c?mo r~­
ligião da liberdade. O caminho da história é doravante mUito mais 
complexo, porque o homem transforma-se com a mudanç~ do seu 
agir e do seu pensar. Já não é uma razão abs~ract~ qu~ Julga ex-
trinsecamente os factos históricos, mas é o deVIr raCionalizado que 
se configura como desenvolvimento da humanidade, em direcçã.o 
ao futuro e em direcção à transcendência do espírito absoluto. Mais 
do que de historicidade do homem, fala-se do historicismo da ra-
zão, ou seja da coincidência da filosofia e da história, se é verda-
34 
de que a filosofia, como pretendia Hegel é o próprio tempo 
apreendido em conceitos. 
À parte a extraordinária conquista das ciências naturais, con-
seguido durante o período romântico, entre 1790 e 1890, houve 
um grande interesse pela história. Em ambos os campos o mode-
lo principal foi a árvore. As árvores, que se encontram na evolu-
ção darwiniana, na linguística indo-europeia, e na maioria das obras 
historiográficas do século XIX, constituem a imagem romântica 
ideal. As árvores têm um passado simples, um presente e um fu-
turo ramificados e complexos. 
Nas últimas duas décadas do século XVIII, os estudos de his-
tória sofreram uma revolução, sobretudo na universidade de Got-
tingen. Um dos seus mais insignes professores, Gattere, iniciou o 
projecto de escrever não a história dos reis ou das guerras, mas 
a história como biografia de um povo. Um outro, Spittler, estuda-
va as instituições como expressão de povos particulares, e ao mes-
mo tempo modelos, que se lhes plasmavam (10). De importância 
ainda maior, foi a obra do historiador e antropólogo Meiners, que 
introduziu e desenvolveu entre os anos 1770 e 1810 o conceito 
de «Zeitgeist» (11), o espírito do tempo. Meiners, sustentava que 
em cada época e cada lugar tem uma mentalidade particular de-
terminada pela sua posição geográfica e pelas suas instituições. 
Depois das últimas décadas do século XVIII, tornou-se impos-
sível a todos os historiadores sérios, julgar uma acção ou um enun-
ciado, sem ter em conta o contexto social e histórico. Outra grande 
inovação de Meiners foi a «crítica das fontes». Essa, implicava que 
o histórico avaliasse as diferentes fontes históricas com base no 
autor e no contexto social, fundamentando a sua interpretação so-
bretudo ou unicamente em fontes atendíveis. 
Os procedimentos de Meiners que dominariam a historiogra-
fia dos séculos XIX e XX, são essenciais para o historiador enquanto 
o distinguem do cronista: é inevitável que se tenha que dar impor-
(10) Hunger, K. "Di e Bedeutung der Universitat Gottingen fur die Geschichtsforschung 
am Ausgang des achtzehnten Jahrhunderts», Berlim, 1933. 
(11) Marino, "L. I maestri della Germania, Gottingen 1770-1829», Torino, 1975. 
35 
tância diferente, a diferentes fontes. O perigo está exactamente, 
na falta de consciência crítica em relação si mesmo. 
Quando se tratava das colónias egípcias na Grécia, os histo-
riadores da última parte do século XVIII, negaram pura e simples-
mente o grande número de informações que provinham das 
diferentes fontes históricas. 
Meiners usou as novas técnicas críticas para escrever a histó-
ria romântica progressista dos povos que ele dividia categorica-
mente entre brancos corajosos e livres, e negros, feios, etc. 
J. F. Blumenbach, professor de história natural em Gottingen, 
estabeleceu uma hierarquia racial mais cauta e sistemática. O seu 
«De Generis Humani Varietate Nativa», publicado em 1775, foi a 
primeira tentativa séria de estudar cientificamente as raças huma-
nas, segundo o tipo que Linneo tinha feito algumas décadas an-
tes. Blumenbach não era progressista e não acreditava na 
poligénese. Ele acreditava numa criação única de um homem per-
feito. Para explicar o que lhe pareciam diferenças raciais funda-
mentais, seguia o modelo eurocêntrico do naturalista francês 
Buffon (12). Buffon tinha sustentado nas primeiras décadas do sé-
culo, que os tipos normais da espécie encontram-se na Europa. 
Nos outros continentes tinham degenerado devido às condições 
climáticas desfavoráveis. 
Segundo Blumenbach, a raça branca ou caucasiana era a pri-
meira, a mais bela, a mais rica em talentos, e dela tinham saído 
as raças chinesa e negra por degeneração (13). 
A partir do século XIX para os europeus tornou-se literalmente 
impossível aceitar, que os povos dos outros continentes pudes-
sem ter um espírito científico. As únicas excepções eram o antigo 
Irão e a antiga índia, que porém eram concebidos como membros 
da família indo-europeia. Assim, eles vinham ocupar o núcleo dos 
antepassados exóticos, que tinha sido ocupado precedentemen-
te pelo Egipto e pela Caldeia. 
(12) Baker, J. R., "Race", London 1974; Gerbi, "A. Dispute of the New World", Pittsburgh, 
1973. 
(13) Ibidem; sobre Vivo e o populamento depois do dilúvio, cf. Ngoenha, S. E., "Duas 
interpretações filosóficas da história do século XVIII", Porto, 1992. 
36 
Para o barão Christian Bunsen a China era o estádio mais pri-
mitivo da história mundial; depois vinha o Egipto passando pelos 
turanianos. Depois do dilúvio começou a verdadeira história, que 
consiste na dialéctica entre os semitas e os indo-germânicos. As-
sim com bases «científicas» provenientes da linguística histórica, 
os egípcios e os chineses foram expulsos da história, e atirados 
para um passado anterior ao dilúvio. 
Sob ponto de vista estritamente filosófico-histórico, o interesse 
pelos problemas históricos acentuou-se com a transferência do ân-
gulo de interesse, da natureza para o homem, graças sobretudo 
à obra de W. Dilthey (1833-1911), especialmente em dois traba-
lhos: «Introdução às ciências do espírito» (1883) e «A construção 
do mundo histórico nas ciências do espírito» (1910). Dilthey dá-se 
conta que as ciências do espírito não podem ser tratadas segun-
do os mesmos métodos das ciências naturais. Daqui uma série 
de considerações metodológiase de precisões analíticas sobre dis-
ciplinas novas como a sociologia, a psicologia, a estatística, a pe-
dagogia, a política, a antropologia, etc. 
O século XIX é, portanto, o grande século da história, da an-
tropologia, mas também do colonialismo. 
Foi a influência do evolucionismo que decidiu realmente o nas-
cimento da antropologia no século XIX, pela simples razão de que 
ela teria introduzido uma perspectiva coerente ou um princípio de 
ordem no caos que até então formava, o material recolhido pelos 
viajantes e pelos cronistas dos séculos precedentes. Mas a quem 
toca a paternidade das ideias evolucionistas? Devemos procurá-
-Ia no âmbito das ciências naturais ou no âmbito das ciências so-
ciais? No «Princípios de Sociologia» de H. Spencer, ou na «Origens 
das Espécies» de C. Darwin? Mas sobretudo, o evolucionismo que 
está na base do impulso antropológico, releva-se do científico ou 
do ideológico? 
A constituição da antropologia como uma disciplina científica 
moderna não é resultado de pura curiosidade intelectual. A mu-
dança de paradigma, sobretudo acerca da ideia de evolução, e 
a reflexão do tipo antropológico tornaram-se possíveis graças a 
37 
um outro evento sócio-político de maior relevância: O imperialis-
mo europeu. 
Os ingleses na índia e em África, os franceses na África e na 
Ásia, os portugueses e os espanhóis na África, os holandeses na 
Ásia, para governar necessitavam de conhecer as sociedades às 
quais pretendiam «levar o desenvolvimento e o progresso». O an-
tropólogo ganhava assim, logicamente, o passo ao militar e ao mis-
sionário nos territórios a colonizar. É a época em que começam 
a conceber-se e a organizar-se sob o controlou relacionados com 
os governos coloniais, grandes expedições de investigação cientí-
fica. Estas expedições respondiam essencialmente a necessida-
des de ordem estratégica (inventariar, registar, cartografar e 
denominar os territórios e as populações que neles residiam); de 
ordem económica (avaliar os recursos naturais e humanos a ex-
plorar); de ordem política (controlar as populações, reforçar a do-
minação); de ordem cultural (avaliar as culturas locais para melhor 
inculcar as próprias ideias). 
Estas preocupações deviam traduzir-se num conhecimento ob-
jectivo; para isso era necessário que os antropólogos fizessem uma 
investigação mais orientada sobre o terreno, contrariamente a uma 
visão filosófica das culturas exóticas como era corrente no século 
precedente. Com este propósito foram criadas a «Societé ethnolo-
gique de Paris» em 1834, e a «Ethnological Society» de Londres 
em 1843. Conhecer melhor, para dominar melhor, foi o cunho his-
tórico sob o qual a antropologia nasceu e se desenvolveu como 
ciência do homem, que se quer objectiva e neutra. 
Este paradoxo é simplesmente aparente. Com efeito, Michel 
Foucault demonstrou que o «poder-saber, produção de poder pro-
dução de saber, constituem duas faces da mesma medalha. O sa-
ber releva-se do poder, não no sentido de que ele é simplesmente 
um reflexo, mas mais profundamente, no sentido de que o saber 
está no centro mesmo (no coração) do poder. São as relações so-
ciais, económicas, ideológicas num dado momento da história de 
uma sociedade, que constituem o "saber" e determinam as for-
mas e os domínios possíveis de conhecimento». 
Na antropologia, ciência das sociedades primitivas ou tradicio-
38 
nais, podemos encontrar, exactamente, a história das relações de 
dominação entre o centro e a periferia, e as suas transformações 
sucessivas. A antropologia acaba dando caução científica aos dis-
cursos ideológicos, com vista a legitimar a «necessidade», até mes-
mo, a «racionalidade» da colonização. De facto, ela definiu sempre 
o que é diferente, a partir' da sua experiência histórica, avaliou os 
outros à sua própria medida, e pensou a relação entre ela e o ou-
tro em termos dualísticos: de um lado o «simples», o primitivo e 
do outro o complexo, o evoluído. 
Deve antes de mais criticar-se este dualismo. Admitir uma dife-
rença entre os dois modos de pensar não significa necessariamente 
que se as deva opor, fazendo de uma a forma completa da outra. 
Porém, uma vez que as duas lógicas não seguem os mesmos ob-
jectivos, não somente não se opõem como também não se ex-
cluem. Esta constatação torna caduco todo o raciocínio em termos 
progressivos, que queria que o pensamento simbólico, preceda 
necessariamente o pensamento científico, e que o aparecimento 
deste último signifique por sua vez o desaparecimento do primei-
ro. Aliás trabalhos recentes, têm demonstrado que o pensamento 
simbólico propriamente dito, só é possível a partir de um tratamento 
minimamente racional. Por outro lado, não obstante o seu desen-
volvimento industrial, a sociedade ocidental moderna não é livre 
do mito e da imaginação. Basta pensar na criatividade artística (a 
poesia, a pintura, o romance, o cinema, etc.), no imaginário reli-
gioso e sagrado (misticismo, transcendência) ou na metafísica (vi-
são moral e filosófica do mundo e da sociedade). 
Como reacção às teorias evolucionistas, nasceu a corrente «Cul-
turalista americana» que se desenvolveu com F. Boas (1858-1942). 
Esta corrente insistia sobre a necessidade de uma descrição et-
nográfica sem teorias pré-concebidas nem projectos de explica-
ção global, e avançava a ideia de que cada cultura humana tinha 
a sua história específica irredutível às outras culturas. Ela chega 
assim a recusar toda forma de análise comparada de instituições 
sociais e culturais e a contestar mesmo a ideia de que a uma cul-
tura possa corresponder um significado global. 
Com Malinowski, a partir dos anos 20, muda-se o substrato 
39 
mental cultural ou filosófico, sobre o qual assenta todo o edifício 
da antropologia. Para o pai do funcionalismo, todos os homens 
são iguais mas diferentes, e todas as diferenças são iguais. T oda-
via, na origem desta mudança de atitude não está o selvagem, 
mas ela inscreve-se na corrente intelectual e científica da época. 
Com efeito, Freud e a psicanálise tinham-se já levantado contra 
a ideia do indivíduo guiado simplesmente pela razão. A teoria psi-
canalítica evidenciou a espessura psíquica e histórica do homem, 
o que acabou por pôr em causa a visão etnocêntrica do homem 
ocidental, como ser mais racional que os outros. Por outro lado, 
Durkheim tinha posto a descoberto a importância do «contexto so-
ciológico» na explicação dos factos sociais. Assim, já não se po-
dia explicar a sociedade unicamente a partir da história ou da 
influência das outras culturas, mas doravante tinha de se encon-
trar a explicação nas próprias sociedades, isto é, na coerência es-
truturai e funcional. 
Isto explica a dupla perspectiva na qual se inscreve o pensa-
mento de Malinowski: por um lado, tentar uma explicação global 
do homem e da sua cultura através do conjunto das suas dimen-
sões, e, por outro, estar atento às singularidades e particularida-
des de cada cultura. 
Não obstante as aparências humanistas, os motivos pelos quais 
Malinowski se torna antropólogo, são análogos, por exemplo, ao 
conceito de bom selvagem utilizado por Rousseau para criticar a 
sociedade do seu tempo: «A antropologia para mim - confessa 
Malinowski - foi uma invasão romântica na nossa cultura dema-
siado estandardizada». Nas ilhas do Pacífico não obstante fosse 
ainda perseguido pelos produtos da «Standard Oil Company», pe-
los semanários, pelos tecidos de algodão, pelos romances poli-
ciais baratos e pelos motores de combustão interna sobre as 
embarcações que se encontram em todo o lado, era ainda capaz 
de fazer reviver, e de reconstruir sem demasiado esforço, um tipo 
de vida humana modelada pelos intrumentos da idade da pedra, 
compenetrada de crenças grotescas, e circundada de uma vasta 
natureza, virgem e aberta. 
A partir dos anos sessenta assiste-se a uma aproximação en-
40 
tre a história e a antropologia devido a uma renovação interna de 
ambas as disciplinas. I:: antropoloQiacomeçou por abandonar a 
antiga distinção entre sociedâdesprirnitivas(frias e sem históriª) 
e sociedades complexas (quentes e históricas), e descobriu a 9.i:. 
mensão histórica das sociedades que estuda no presente (mudan-
ça social) e no passado (etnologia histórica ou antropologia 
histórica). 
Num segundo momento, a renovação da antropologia consis-
tiu na sua conversão ao estudo das sociedades europeias. Dora-
vante ela interessa-se pela alteridade interna as sociedades 
europeias: sociedades rurais, grupos marginais ou minorias, no-
vas expressões modernas; e a alteridade histórica: o passado das 
sociedades rurais, das cidades, história das tecnologias industriais. 
Quanto à historia, ela começou antes da segunda guerra mun-
dial, uma mudança assaz importante. Sob o impulso da escola dos 
anais (Annales), do nome da revista que publicava os trabalhos 
desta corrente, cujos representantes mais eminentes foram Marc 
Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, a história redefiniu o seu 
campo de acção: reacção contra a história dos poderosos (o Es-
tado, as classes dirigentes e as elites) e a história factual (sobretu-
do política: constituição dos Estados, história das instituições e das 
batalhas militares), e alargou-se o território da história das realida-
des institucionais à realidade profunda das massas e dos fenóme-
nos sociais. 
Sob a influência da escola dos anais, o princípio da explica-
ção da história tende a apreender o outro na sua singularidade, 
cada sociedade tornou-se uma outra sociedade. Hoje, a história 
das mentalidades ou história antropológica, tornou-se a ciência das 
mudanças e da lógica social, história das estruturas e da mentali-
dade, estudo dos objectos tradicionais da antropologia como os 
mitos, a morte, a sexualidade, a família, as festas, etc. 
Depois de um divórcio de mais de dois séculos, os historiado-
res e os etFlólogos tendem a reaproximar-se. A nova história de-
pois de se ter feito sociológica, tende a tornar-se etnológica. O que 
é que a perspectiva etnológica faz descobrir ao historiador no seu 
próprio domínio? 
41 
Pretende-se que a etnologia modifique as perspectivas crono-
lógicas da história. Que conduza a um esvaziamento radical do 
evento, realizando assim o ideal de uma história não factual; pro-
põe uma história feita de eventos repetidos ou esperados, festas 
do calendário religioso, eventos e cerimónias ligadas à história bio-
lógica e familiar: nascimento, casamento, morte. 
Obriga a recorrer a uma diferenciação dos tempos históricos 
e a conceder uma atenção especial ao domínio da «longa dura-
ção», a esses tempos quase imóveis como os definiu Fernand 
8raudel. 
Um olhar etnológico sobre as sociedades, permite ao historia-
dor compreender melhor o que existe de litúrgico, de iniciático nu-
ma sociedade histórica. A etnologia conduziria o historiador a pôr 
em relevo certas estruturas sociais mais ou menos obliteras em so-
ciedades históricas e a complicar a sua visão da dinâmica social. 
Para além do esforço levado a cabo nos últimos anos para di-
minuir a divergência, a história e a antropologia, que na realidade 
simboliza a divisão da humanidade em duas partes irredutíveis, 
e a grande recusa do ocidente em aceitar a plena e total humani-
dade do outro. 
Para além de algumas tentativas simbólicas de homens como 
8alandier de aplicar o estudo da etnologia às sociedades ociden-
tais, que aliás se confrontam com a história e a sociologia, à etno-
logia resta uma prerrogativa dos povos sem história. Quando se 
fala do mundo selvagem, é sempre a etnologia que tem a pala-
vra. Da mesma maneira que a história continua de certa maneira 
colonizada por uma visão eurocêntrica. E quando os povos não 
europeus tentam desprender-se das garras da etnologia para par-
ticipar como agentes históricos, fazem-no simplesmente em rela-
ção e em função da história ocidental. 
No momento em que a etnologia se recarga de historicidade, 
em que Georges 8alandier sustenta que não existem sociedades 
sem história e que a ideia de sociedades imóveis é uma ilusão, 
é sinal de que o historiador vai doravante fazer uma história fora 
da temporalidade historicamente tradicional? Ou em termos lévi-
-straussianos', se não existem sociedades quentes e frias, mas evi-
42 
dentemente sociedades mais ou menos quentes e sociedades mais 
ou menos frias, é legítimo manter a divisão entre sociedades mais 
ou menos quentes (o que quer dizer que são também mais ou me-
nos frias) e sociedades mais ou menos frias (que são também mais 
ou menos quentes)? 
Se se considerassem os factos etnológicos com a mesma di-
mensão dos eventos históricos, a coerência quereria que se lhes 
atribuíssem o mesmo grau de irrepetibilidade e de imprevisibilida-
de; mas adoptando um tal rigor deveria necessariamente declarar-
-se o fim da divisão existente entre a etnologia e a história. Por 
outras palavras, declarar-se-ia o fim da etnologia. 
Claude Lévi-Strauss, que Dan Sperber considera o antropólo-
go contemporâneo mais ambicioso, pergunta-se; como reconci-
liar o eu e o outro, a minha sociedade e as outras sociedades, como 
realizar o universal a partir do singular? O antropólogo francês cri-
tica veementemente o relativismo cultural da escola antropológica 
britânica, que se contentou em fazer dos inventários das diversi-
dades, o objectivo da antropologia. Para ele as culturas humanas 
constroem-se uma em relação à outra, numa relação de alterida-
de, num fundo de identidade. Para Lévi-Strauss, deve passar-se 
da etnografia, como descrição de uma sociedade concreta, pro-
duto de uma história particular, à antropologia, como esforço de 
explicação desta diversidade, num nível mais geral, mais funda-
mentai, o da determinação universal. O método estrutural de Lévi-
-Strauss consiste em dissolver as especificidades de cada cultura 
no universal. 
Segundo M. Duchet, o projecto de Lévi-Strauss é «fundar so-
bre os textos "selvagens" um discurso coerente sobre as socie-
dades que as produziram, e produzir ao mesmo tempo o princípio 
da sua inteligibilidade» (14). Mas donde é que as sociedades sel-
vagens tiram este privilégio? Se os selvagens incarnam a ideia de 
uma natureza universal, é porque possuem ainda uma natureza 
aculturada mas não desfigurada. Lévi-Strauss coloca este princí-
(14) M. Duchet, "Le partage des savoirs. Discours historique e discurs etnologique», Pa-
ris, 1984, p. 196. 
43 
pio de autenticidade conferida às sociedades selvagens na lingua-
gem. A linguagem é comum a todos nas sociedades selvagens, 
enquanto a memória escrita das sociedades históricas é artificial 
e a sua tradição opaca. Donde a ideia, segundo Derrida, de um 
mito do mito, de um mito de uma palavra originariamente boa. 
Lévi-Strauss realiza assim uma divisão entre as sociedades sel-
vagens e as sociedades históricas. A primeira seria caracterizada 
pelo sentido, pela autenticidade, pela transparência, e a segunda 
pelo poder, pela inautenticidade e opacidade. Mais precisamen-
te, ele introduz uma separação entre uma história «cumulativa» ca-
racterística das sociedades quentes e uma história estacionária, 
característica das sociedades frias; uma separação entre a histó-
ria que organiza os seus dados em relação às expressões cons-
cientes e a etnologia que organiza os seus dados em relação às 
condições inconscientes da vida social. Uma tal perspectiva faz 
desaparecer a historicidade das sociedades selvagens ... 
~ Mas imaginemos, ao contrário, que para reconciliar o eu e o 
outro, a minha sociedade e a sociedade dos outros, o estruturalis-
mo propusesse a imolação da etnologia sobre o altar da unidade 
do género humano; bastaria este rito sacrificial para repredestinar 
a unidade histórica do homem? Eliminar a etnologia como ciência 
comportaria a eliminação da exploração das terras, dos homens, 
dos recursos naturais e portanto da exploração económica que 
estão na sua origem? A eliminação da etnologia significaria auto-
maticamente a nossa admissão no terreno da história? E se sim, 
em qual história? Huizinga não hesita em afirmar que o espírito 
e

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