Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DESCRIÇÃO O problema das mentalidades na construção política, estudando especificamente os casos do Brasil e da América Latina, com foco nas questões de conciliação, patrimonialismo, impacto das estruturas escravocratas sobre a política, além da relação entre desenvolvimento econômico e política. PROPÓSITO Compreender de que modo as formações políticas são impactadas por mentalidades de longa duração, assim como as relações entre estrutura socioeconômica e relações políticas no Brasil, e o problema do desenvolvimento na América Latina e suas implicações políticas são ferramental imprescindível para qualquer profissional que busque conhecer a realidade brasileira ou latino-americana e, em especial, àqueles preocupados com uma leitura crítica capaz de dar conta de uma análise política dessas sociedades. PREPARAÇÃO Antes de iniciar este conteúdo, é recomendável, mas não indispensável, que tenha em mãos um dicionário de termos políticos e outro de termos econômicos. Recomendamos: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1998; SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia. São Paulo: Abril, 1985. OBJETIVOS MÓDULO 1 Reconhecer o impacto de processos históricos de longa duração na conformação do comportamento político e social e suas relações com a comunicação. MÓDULO 2 Identificar a importância da comunicação na relação entre desenvolvimento econômico e estruturas políticas na América Latina INTRODUÇÃO Compreenderemos de que forma as mentalidades de longa duração e o desenvolvimento socioeconômico impactam nas formações políticas em geral, tendo como exemplo específico a formação política brasileira após a Independência e como exemplo mais geral a questão latino- americana. No dia a dia, nos noticiários e na massiva carga de conteúdos circulantes nas redes sociais, é comum que os processos políticos sejam tratados a partir de um olhar de curto prazo, e essencialmente determinados pelas escolhas conscientes dos agentes. Para uma compreensão aprofundada das formações políticas e do desenvolvimento econômico, é indispensável que sejam levados em conta fenômenos de longa duração reproduzidos sistemicamente ao longo de séculos e altamente resistentes à mudança. Por isso, não trataremos de uma história política do Brasil ou da América Latina em seus detalhes, suas sucessões de governos, golpes de Estado etc., mas sim de evidenciar elementos de mentalidades altamente resistentes, e que seguem deixando sua marca ao longo dos últimos dois séculos, independentemente das forças políticas hegemônicas em cada momento. MÓDULO 1 Reconhecer o impacto de processos históricos de longa duração na conformação do comportamento político e social e suas relações com a comunicação O QUE SÃO MENTALIDADES? A vida em sociedade é marcada pelo choque entre diferentes ideias, aspirações, noções morais e opiniões a respeito de acontecimentos (ou melhor, de interpretações sobre acontecimentos!). Tudo isso pode nos fazer acreditar que seres humanos convivendo socialmente, compartilhando uma língua, costumes e território, pautam seu comportamento exclusivamente por noções superficiais e específicas a respeito de seu ambiente social. Imagine, entretanto, que observamos uma formação política a partir de um conjunto de lentes de aumento e estejamos ampliando a imagem para ver bem de perto. Nesse percentual de zoom, a imagem mostra agentes políticos adversários, com ideias completamente antagônicas, disputando no curto prazo a legitimidade de suas narrativas. Nesse nível de aproximação, portanto, esses agentes podem parecer completamente diferentes e inconciliáveis. Lembre-se, contudo, de que estamos investigando as formações políticas utilizando lentes de aumento e esse é apenas o nível de maior aproximação possível. Se olharmos com nossas lentes para essas formações políticas a partir de uma distância cada vez maior, as particularidades dos agentes se perdem, e passamos a enxergar padrões de comportamento comuns entre eles, padrões esses que não seriam visíveis ao olharmos “de perto”. É claro que sempre haverá, em qualquer formação política, elementos que discordem desses padrões comuns, mas que só serão relevantes ou identificáveis a partir de um nível de zoom mais aproximado. É nesse nível de visualização mais distante, coarse-grained, em oposição a um olhar mais aproximado, fine-grained, que somos capazes de identificar as chamadas mentalidades. Elas são fenômenos: COARSE-GRAINED Coarse-grained, em tradução literal do inglês, significa um aspecto granulado grosso, de partículas ou pontos mais grosseiros, mas o significado figurado, por oposição a fine- grained, é o de um olhar distanciado e mais geral. FINE-GRAINED Fine-grained literalmente poderia ser traduzido como grãos, partículas ou pontos finos, mas também é usado em sentido figurado para dizer que algo é mais detalhado, justamente por ter um olhar mais aproximado. MACRODIMENSIONAIS Significa que aparecem no comportamento dos agentes de forma difundida por toda a sociedade (a despeito das múltiplas diferenças entre esses agentes em nível específico). MACROTEMPORAIS javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) Significa que se reproduzem ao longo de séculos, a despeito das muitas mudanças de curto prazo pelas quais uma sociedade pode passar. RELEMBRANDO Apesar de toda fúria transformadora da Revolução Russa de 1917, e das profundas mudanças políticas e econômicas empreendidas pelos bolcheviques, persistiu na sociedade russa uma mentalidade política personalista direcionada ao líder, construída lentamente ao longo de centenas de anos, desde o século XVII. Isso tornou Lênin e Stalin, em certa medida, “continuadores” do Imperador Nicolau II, apesar das radicais diferenças específicas entre suas aspirações e visões de mundo. Podemos entender as mentalidades em nível mais geral como padrões cognitivos inconscientes e coletivos. Esses padrões produzem um viés na maneira pela qual os agentes entendem o mundo ao seu redor, as questões éticas, as relações políticas, as práticas culturais, enfim, todo o ambiente social circundante. As mentalidades “rodam em segundo plano”, para usar aqui uma metáfora da informática. Se você não tem familiaridade com essa ideia, seria o mesmo que dizer que as mentalidades estão presentes na sua forma de pensar, mas quase nunca você se dá conta disso. A transformação das mentalidades é um processo muito lento e que tem frustrado gente com a melhor das intenções ao longo dos séculos. Entretanto, tudo na história é mutável, e não devemos nos impressionar pelo fato de que certas coisas mudem a ponto de percebermos e outras não. Nada é eterno, embora alguns fenômenos sejam resistentes e muito longevos. Mentalidades são sistemas de valores, de expectativas a respeito de como o ambiente social e cultural funciona e deve funcionar. Preconceitos estão fortemente enraizados nas mentalidades e, como são fenômenos macrodimensionais e macrotemporais, afetam o comportamento de todos os agentes socializados em uma sociedade. É por isso, por exemplo, que falamos de “racismo estrutural”, algo que provoca a fúria de muita gente que não se vê como racista. Quer você queira, quer não, a experiência escravocrata deixou fortíssima marca no campo das mentalidades na sociedade brasileira e por mais que um agente lute individualmente para “desarmar” a mentalidade racista em seu próprio comportamento, o entorno social o pressionará sutilmente para que desista. Imagem: Inspiring/Shutterstock.com É muito difícil “nadar contra a corrente” das mentalidades, porque há todo um entorno social que se impõe sobre um agente individual a ponto de tentar conformar seu comportamento. Não é necessário qualquer governo, polícia, igreja ou partido para punir os desviantes, embora essas instituições sejam fundamentais na reprodução ou na destruição de complexos de mentalidades: as próprias interações sociais,no dia a dia, funcionam como um sistema de assédio e coerção contra agentes desviantes. Discrepar da norma tem custos sociais, o que leva agentes menos radicais a buscarem alguma acomodação com as mentalidades reinantes. Passemos então aos principais temas ou complexos no campo das mentalidades que são visíveis ao longo de cerca de 200 anos de história do Brasil independente. A NOÇÃO DE CONCILIAÇÃO Na ocasião da independência, o Brasil já compunha um Reino Unido com Portugal desde 1815. RELEMBRANDO A família real portuguesa se transplantou de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1808, de onde governou também seus domínios na Europa até o fim das guerras napoleônicas. Com a deflagração do processo de independência, em 1822, a monarquia brasileira foi constituída por uma elite nobiliárquica de origem lusitana, com um imperador também luso. E por mais que a xenofobia contra os portugueses tenha sido percebida nas cidades brasileiras durante o Primeiro Reinado, em momento algum se procedeu a uma radical ruptura entre elites nascidas no Brasil e aquelas nascidas em Portugal. Foto: Governo do Brasil - Galeria de Presidentes / Wikimedia Commons / Domínio público Getúlio Vargas, presidente do Brasil entre 1930 e 1945 e entre 1951 e 1954. Mais de um século depois, Getúlio Vargas, que chegou ao poder em 1930 com um golpe militar, utilizou-se do Estado para promover um intenso projeto de industrialização, contrariando a ideia de “vocação agrária” do Brasil. Mesmo tendo sido o principal líder na derrubada dos fazendeiros paulistas no poder desde pelo menos 1894 e tendo buscado reorientar a economia brasileira em um sentido urbano-industrial, Vargas buscou a conciliação com seus antigos adversários fazendeiros: por exemplo, fez com que a legislação trabalhista recém-criada permanecesse restrita ao ambiente urbano e não afetasse a exploração do trabalho na economia agrícola. Imagem: Presidência da República do Brasil / Wikimedia Commons / Domínio público CLT publicada no Diário Oficial de 9 de agosto de 1943 Foto: Dan Simonsen/Shutterstock.com Ao final da segunda década do século XXI, um governo nascido da “onda populista de direita” global, com uma estridente retórica reacionária e contrária à dita “velha política”, mergulhou em uma relação de conciliação intensa com os chamados “partidos fisiológicos” (ou seja, partidos sem um claro programa ideológico e dispostos a se adaptar a quaisquer agendas políticas que lhes garantissem cargos e prestígio), que deram suporte a governos progressistas da década anterior. Essa história não figura aqui como fábula. Ela é apenas um brevíssimo exemplo de como a conciliação de elites políticas é um padrão de comportamento esperado na formação política brasileira, mesmo por parte de atores que se dizem contrários a essa conciliação. Manifesta-se uma expectativa por parte dos agentes políticos socializados no âmbito das instituições brasileiras — família, escola, universidade, partidos etc. — de que a luta entre as elites deve prosseguir até o limite da ruptura ou da ameaça representada pelas classes subalternas, momento esse em que a conciliação deverá ser buscada. O ideário de conciliação na formação política brasileira transforma a luta entre elites em um “espetáculo ordeiro”, uma “dança das cadeiras” em termos de poder e prestígio, mas sem que qualquer dos grupos em luta perca prestígio de forma radical ou tenha sua condição de superioridade em relação às massas populares contestada. Como disse o historiador José Honório Rodrigues (1982, p.11), a conciliação era, em síntese, “um apelo à reconciliação da ordem com a liberdade, invocações antes, depois e muitas vezes renovadas sempre que a minoria dominante sentisse a ameaça aos seus interesses pela maioria”. Foto: pcruciatti/Shutterstock.com O PATRIMONIALISMO Estritamente falando, um Estado marcado pela presença do patrimonialismo é aquele em que os limites entre o público e o privado são fluidos, a despeito da existência de leis que estabeleçam claramente esse limite. Isso significa dizer que os chamados “agentes públicos” utilizam-se não só de sua posição de poder e prestígio como vantagem na condução de assuntos pessoais, como também são capazes de empregar os recursos do Estado para fins particulares. Referindo-se ao passado português, que estaria supostamente na origem do patrimonialismo brasileiro, diz Raymundo Faoro: javascript:void(0) RAYMUNDO FAORO Historiador, jurista, sociólogo e cientista político, Raymundo Faoro (1925-2003) foi um grande estudioso da realidade sociopolítica brasileira. É autor do livro de referência Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro. A PROPRIEDADE DO REI — SUAS TERRAS E SEUS TESOUROS — CONFUNDEM-SE NOS SEUS ASPECTOS PÚBLICO E PARTICULAR. RENDAS E DESPESAS SE APLICAM, SEM DISCRIMINAÇÃO NORMATIVA PRÉVIA, NOS GASTOS DA FAMÍLIA OU EM BENS E SERVIÇOS DE UTILIDADE GERAL. (FAORO, 2001, p.23) Embora recentemente no Brasil a denúncia contra o patrimonialismo tenha se tornado a principal arma de ataque de determinadas forças políticas dispostas a controlar patrimonialmente o Estado (a partir de medidas “anticorrupção” que eliminem oponentes políticos), há de se dizer que a ideia é, quando muito, um “tipo ideal”. Cunhada inicialmente por Max Weber, a noção de patrimonialismo é na verdade um instrumento abstrato para determinarmos em que medida agentes políticos em Estados modernos cruzam a fronteira entre o público e o privado. Isso significa dizer, então, que todo Estado moderno traz em si, em alguma medida, certa dimensão patrimonialista na conduta dos seus agentes (não há Estado “perfeito” nesse sentido). Especificamente falando, o entendimento de Raymundo Faoro pode ser falho ao tentar contrapor de forma radical a experiência política luso-brasileira e a de outras sociedades modernizadas. No Brasil, o patrimonialismo aparece nas mentalidades seja como padrão de comportamento informal (e não oficial) dos agentes políticos, seja como elemento abstrato motivador de uma agenda política moralista por parte de agentes políticos ligados às classes médias urbanas. O moralismo de costumes, somado a denúncias de “corrupção”, têm sido parte recorrente do comportamento político da classe média brasileira desde o início do século XX. Classe média essa justamente privada do acesso patrimonialista ao Estado e desejosa de deslocar as elites políticas tradicionais de suas posições de poder para também ela prosseguir com o uso patrimonialista da estrutura estatal e dos recursos legalmente públicos. A MENTALIDADE ESCRAVOCRATA Após muitas décadas de contestação, rebelião e pressão por parte das massas escravizadas e do movimento abolicionista, e de intenso assédio do governo britânico contra o tráfico de escravos no Atlântico, o governo imperial, em seus momentos finais de existência, viu-se na circunstância de tornar ilegal a escravidão no Brasil através da Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888, a famosa Lei Áurea. Imagem: Arquivo nacional / Wikimedia Commons / Domínio público Cartaz, do acervo do Arquivo Nacional do Brasil, feito em 1888 por uma fábrica de tecidos em que figuram um cidadão branco e um cidadão negro se cumprimentando, com uma flâmula da Bandeira do Império do Brasil, pelo fim da escravidão do Brasil. Enquanto apologistas da monarquia comemoraram esse suposto ato de “civilidade” concedido pela família real (ignorando que, na verdade, a Lei Áurea só foi assinada após muitas décadas de pressão política das classes subalternas), devemos considerar que séculos de escravidão não são apagados por uma canetada em um papel. Para além do fato de que os escravos foram emancipados sem quaisquer direitos econômicos garantidos – o que tornou a população negra no Brasil vítima de “pobreza estrutural” superada apenas por poucas famílias negras a cada geração –, também é grave o fato de que uma “mentalidade escravocrata” entranhou-se no comportamento políticoe social do Brasil independente e está longe de ser eliminada. Uma mentalidade escravocrata, geralmente, se opõe de forma radical a uma mentalidade liberal-democrática. Mas, sim, você pode ser liberal e ter uma mentalidade escravocrata ao mesmo tempo — são os famosos “liberais na economia e conservadores nos costumes”. COMENTÁRIO “Liberal” não se refere, aqui, a uma opção por desregulamentação econômica e mercados livres, mas sim uma mentalidade liberal-democrática, relacionada a padrões de comportamento que vão se sedimentando de modo lento e desigual pelo mundo desde a Revolução Francesa. Mentalidade liberal-democrática diz respeito às seguintes expectativas: A cor de sua pele, seu modo de falar, sua origem social e regional (e mais recentemente, sua identidade de gênero) não guardam qualquer relação com seu valor enquanto cidadão. Não há uma “escala de valor” inviolável que hierarquize os indivíduos. A ascensão social é facultada a qualquer cidadão (embora se saiba que a distribuição de riqueza prévia inviabilize coletivamente a chamada “meritocracia”, já que as condições iniciais são desiguais). Todos são iguais perante a lei. A mentalidade escravocrata presente no inconsciente cultural da formação política brasileira opõe-se às transformações em termos de costumes, hábitos, comportamento e expectativas advindas do processo de modernização das sociedades europeias desde o século XVIII. Lembre-se de que, enquanto mentalidade, ela roda “em segundo plano”, o que significa dizer que mesmo indivíduos francamente contrários à mentalidade escravocrata podem, eventualmente, comportar-se segundo ela. Há, no Brasil, uma aceitação tácita de que determinados grupos sociais desfrutem de “direitos informais” (ou seja, não previstos em lei), e esses grupos confundem-se, normalmente, com os mesmos setores herdeiros da concentração de riqueza e poder do passado escravocrata, ou a ele ligados (como as classes médias). Perceba que a existência de uma “mentalidade escravocrata” na formação política brasileira não significa (na maior parte dos casos) que os agentes políticos achem legítimo manter pessoas presas em correntes e trabalhando de sol a sol sem pagamento. Significa que, nas mentalidades, há uma expectativa de que “cada um tenha seu lugar”, determinado por raça, gênero e origem social. Foto: Ollyy/Shutterstock.com EXEMPLO A expressão “a conversa ainda não chegou à cozinha” indica claramente que há espaços superiores ocupados por pessoas também superiores, onde haverá certas conversas importantes, e outros espaços subalternos, ocupados por gente também subalterna, que serão privados de acesso a essa conversa e às decisões dela advindas. A mobilidade social e a cidadania plena, conquistas das revoluções liberais-democráticas, são firmemente entravadas pela mentalidade escravocrata. Nosso passado de sociedade escravista nos deixou um complexo de mentalidades que justifica, de forma inconsciente, as seguintes afirmativas: Embora em lei se possa garantir que todos são iguais, na prática, alguns têm mais privilégios que outros; assim é a vida, e não há nada a ser feito. O homem branco de alta renda encontra-se em uma “escala de valor” mais elevada, e tem por direito exercer o mando e proferir a última palavra, embora a lei a isso se oponha. Grupos com outras identidades de raça e gênero, e com diferentes níveis de renda, têm seu status definido em contraste ao topo da pirâmide (os homens brancos de alta renda). O nível de status desfrutado segundo a posição de um indivíduo na pirâmide de prestígio o leva a exigir “direitos informais” para si; como exemplos disso, temos a prática da “carteirada” e do “você sabe com quem está falando?”. O ensino superior, sendo tradicionalmente uma marca de “branquitude” e de status, garante privilégio legais (prisão especial, por exemplo), é um critério de distinção social informal, e não deve ser universalizado. A eventual ascensão social, por meio da riqueza, de indivíduos pertencentes a grupos raciais e de gênero diferentes do grupo alfa (homens brancos de alta renda) só se torna legitimada no inconsciente cultural mediante seu “branqueamento” (por meio da adoção de marcadores culturais e estéticos do grupo dominante, salvo raras exceções). Um homem branco brasileiro, residente em bairro nobre e de alta renda, pode ser um militante de esquerda ou um reacionário saudoso da ditadura militar, mas independentemente disso, ele desfrutará dos “direitos informais” de pertencer a uma “casta superior” na formação de inspiração escravocrata brasileira. Um claro exemplo disso é que as abordagens policiais diferem de acordo com o “perfil” do abordado (mesmo que o crime em flagrante seja de mesma natureza), homens brancos de alta renda são mais capazes de subornar agentes públicos do que outros indivíduos em escalões inferiores da pirâmide de status etc. Foto: LightField Studios/Shutterstock.com QUAIS SÃO AS IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DESSA ESTRUTURA DE MENTALIDADES? Nutre-se uma expectativa inconsciente de que o mando político deve ser exercido por indivíduos pertencentes ao grupo alfa. Tentativas jurídicas e políticas de alterar o perfil da representação política brasileira, ampliando-se a diversidade de raça e gênero, encontram fortíssima oposição não só de membros do grupo alfa, mas de indivíduos em escalões inferiores da pirâmide de status (lembre-se de que as mentalidades são um fenômeno amplo e coletivo). Não à toa, têm crescido a violência verbal, simbólica e física contra parlamentares que divergem do “perfil de dominância” nas mentalidades políticas, como senadores, deputados e vereadores LGBTQ+, mulheres, negros e indígenas. A mentalidade escravocrata também tem impacto na resistência à adoção de políticas públicas compensatórias (cotas, por exemplo). Foto: Rido/Shutterstock.com Padrões de comportamento cristalizados na forma de mentalidades exigem esforços intensos para serem desconstruídos, de modo que a formação política brasileira encontrará ainda muitos desafios para livrar-se de tendências deletérias como a legada pelo passado escravocrata. Mas, como tudo na história, também a mentalidade escravocrata tem prazo de validade, embora seu esgotamento ainda pareça algo muito remoto. Nas palavras de Jessé Souza: JESSÉ SOUZA Importante teórico social brasileiro, Jessé Souza formou-se em direito, mas tem mestrado e doutorado em sociologia. Tem três pós-doutorados, além de uma livre-docência pela Universität Flensburg, na Alemanha. Publicou A Ralé Brasileira: quem é e como vive, A Radiografia do Golpe, A Elite do Atraso e A Classe Média no Espelho, A construção social da subcidadania, entre outros. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil / Wikimedia Commons / CC BY 3.0 br Jessé de Souza, durante cerimônia de posse do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) javascript:void(0) O QUE PERMANECE DO ESCRAVISMO É A SUB- HUMANIDADE CEVADA E REPRODUZIDA, A CRENÇA DE QUE EXISTE GENTE CRIADA PARA SERVIR OUTRA GENTE [...]. É NECESSÁRIO REPRODUZIR UMA CLASSE DE CARENTES PELA AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS PARA O SUCESSO ESCOLAR COMO UMA FORMA DE CONTINUAR A ESCRAVIDÃO COM OUTROS MEIOS. UMA RAÇA/CLASSE CONDENADA A SERVIÇOS BRUTOS E MANUAIS DESVALORIZADOS. (SOUZA, 2017) COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA O mestre Muniz Sodré dá uma aula sobre Comunicação e Política! Assista! VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. POR QUE PODEMOS CONSIDERAR A CONCILIAÇÃO, O PATRIMONIALISMO E O PENSAMENTO ESCRAVOCRATA COMO FENÔMENOS PRESENTES NAS MENTALIDADES? A) Porque se manifestam a partir do desejo consciente do agente. B) Porque não têm qualquer relação com a vida material, apenas com as ideias. C) Porque se manifestam de modo inconsciente e estrutural. D) Porque estão presentes apenas nas ideologias e não na vida política. E) Porque podem ser ativados ou desativados de acordo com as circunstâncias. 2. O QUE DEFINE, PRECISAMENTE, A MENTALIDADE ESCRAVOCRATA, HERDADA DO PASSADO COLONIAL EIMPERIAL? A) O desejo por parte das elites de anular legalmente a abolição. B) A noção de que trabalhadores escravizados são mais produtivos. C) A ideia de que todos são iguais perante a lei. D) A noção de que a hierarquia social é predeterminada e imutável. E) A ideia de que a economia brasileira deve ser agrária e não industrial. GABARITO 1. Por que podemos considerar a conciliação, o patrimonialismo e o pensamento escravocrata como fenômenos presentes nas mentalidades? A alternativa "C " está correta. Podemos entender as mentalidades em nível mais geral como padrões cognitivos inconscientes e coletivos. Politicamente, elas são importantes por serem aspectos estruturais e de longa duração. A conciliação, o patrimonialismo e o pensamento escravocrata são mentalidades que participaram na construção política brasileira. 2. O que define, precisamente, a mentalidade escravocrata, herdada do passado colonial e imperial? A alternativa "D " está correta. Na mentalidade escravocrata há uma expectativa de que “cada um tenha seu lugar”, determinado por raça, gênero e origem social. É por isso que a mentalidade escravocrata, mais de um século depois da Lei Áurea, é um entrave à mobilidade social e à cidadania plena. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos que as formações políticas dependem não só da disputa política diária, da ação social por meio dos partidos, dos grupos de pressão e das entidades da sociedade civil, mas também de padrões de comportamento de lenta transformação, que chamamos de mentalidades. Na formação política brasileira, alguns temas nas mentalidades políticas chamam atenção pela sua recorrência ao longo dos séculos: a ideia de conciliação de elites, o patrimonialismo (que não é uma exclusividade brasileira, nem ibérica) e o impacto do passado escravocrata no comportamento político e social. Cada um desses componentes presentes nas mentalidades políticas não funciona como “camisa de força”, impedindo que os agentes deles discrepem; mas, na medida em que são estruturais, todos os agentes são pressionados pelo entorno social a se comportarem de acordo com essas mentalidades arraigadas. Sem dúvida, o problema das mentalidades políticas deve ser levado em conta por todos aqueles que pretendem trabalhar pela transformação política e social, porque as permanências comportamentais podem dificultá-la. Vimos ainda que o problema do desenvolvimento econômico latino-americano também é impactado por fenômenos estruturais, tal como as mentalidades. Nesse caso, foi a divisão internacional do trabalho, calcada na noção de vantagens comparativas, somada ao interesse de parcela das elites econômicas latino-americanas, que fez perdurar o padrão de inserção internacional primário-exportador até meados do século XX. E, ainda, percebemos como a Comunicação, em suas diversas concepções, é fundamental para a Política (também em diferentes entendimentos). A Comunicação pode promover ou cercear a liberdade e a democracia, assim como ser embasada por estruturas mais ou menos profundas da história sócio-política de um povo. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS BIELSCHOWSKY, Ricardo (org). Cinquenta anos de pensamento da CEPAL. Rio de Janeiro: Record, 2000. FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001. RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. EXPLORE+ Para saber mais sobre os assuntos tratados neste tema, assista: Quem Somos Nós? Que País é Esse?, com o professor Jessé Souza. O Pensamento sobre o Desenvolvimento Econômico em Perspectiva Histórica, palestra com o professor Ricardo Bielschowsky do Instituto de Economia da UFRJ. CONTEUDISTA Daniel Barreiros CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);
Compartilhar