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DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NO CAMPO DA ANTROPOLOGIA À CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MUNDO

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DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NO CAMPO DA ANTROPOLOGIA À 
CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MUNDO 
 
 
Leonardo Romanelli Da Silva 
 
 
RESUMO 
 
O presente artigo visa refletir e sintetizar algumas importantes questões 
contemporâneas no que tange o debate epistemológico que emerge a partir de 
autores e obras identificados com o que denominamos de virada ontológica, e o faz 
advogando a importância de suas conclusões para reflexões sobre os novos rumos 
da antropologia e as questões políticas que a envolvem. 
Para o desenvolvimento desta pesquisa, recorro de maneira majoritária a três 
autores situados no cerne deste debate: Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour 
Ailton Krenak, recorrendo também a uma bibliografia de apoio que conta com uma 
produção acadêmica atual de diversos autores referenciados ao final; além da 
análise da contribuição clássica de Lévi-Strauss, sob o método estruturalista e sua 
obra Mitológicas. 
Palavras-chave: Virada ontológica, epistemologia, perspectivismo, 
capitaloceno. 
 
1. INTRODUÇÃO 
A antropologia sempre teve como notório, por diversos motivos, um 
grande intresse de pesquisa em povos não-ocidentais e minorias[1], sobretudo, 
situando-os sob as noções de natureza e cultura de acordo com a concepção 
ocidental e moderna de pensamento. 
Claude Lévi-Strauss utiliza o paradigma clássico de oposição entre 
natureza e cultura, visando definir, a partir do estudo comparativo dos mitos e do 
método estruturalista, modelos cognitivos gerais partilhados pelos seres humanos. 
As possibilidades levantadas por suas obras são valorosas no campo da etnologia 
e foram, condignamente, objeto de redescoberta sobre o fazer antropológico. 
Autores como Bruno Latour, Phillip Descola e Eduardo Viveiro de Castro, 
dentro outros, ao atualizarem o pensamento de Lévi-Strauss, fornecem uma 
importante contribuição no que se refere a compreensão e conceitualização dos 
modos de pensar dos povos ameríndios. Porém, antes de nos atermos à este 
contexto de questionamentos do paradigma que precedem os autores supracitados, 
retomemos por um momento o pensamento do precursor da antropologia estrutural 
a fim de ponderar um pouco mais as contribuições de Lévi-Strauss nos estudos 
mitológicos. 
 
2. O LEGADO DE LÉVI-STRAUSS: O MÉTODO ESTRUTURALISTA. 
Sendo a estrutura forma de apreensão dos fenômenos de acordo com a 
organização do nosso funcionamento cognitivo e sistema simbólico, pode-se dizer 
que o mito expressa empiricamente a realidade do pensamento objetivo e a forma 
como a linguagem se processa e se dá na ordem do inconsciente; assim, 
subentendendo transformações comparáveis de modelos da natureza em relação 
aos produtos culturais. Durante a abertura das Mitológicas, Lévi-Strauss utiliza-se 
de mitos provindos dos povos indígenas das Américas, tendo como ponto de partida 
o chamado Mito de Referência dos índios Bororo da região central do Brasil, e, 
através dele, vai ampliando progressivamente o âmbito de sua investigação, de 
modo que, ao observar o Mito de Referência, denota a capacidade de relacioná-lo 
com os mitos veiculados pelos povos vizinhos, constatando que as partes diversas 
e antes dispersas, se ordenam e se retiram do caos. 
Os mitos são sempre intermináveis devido a constante reprodução e 
produção de estruturas pré-existentes em sua criação. Cada mito representa um 
nível de organização particular de cada sociedade ou, nas palavras de Claude Lévi-
Strauss, “cada um deles torna visível um nível de organização, cuja verdade é 
apenas relativa, e exclui, enquanto adotado, a percepção dos outros níveis.” 
(STRAUSS, 2004, p. 22). Deste modo, tanto a verdade, quanto o poder de 
explicação dos mitos é particular a realidade observada, ainda que, 
simultaneamente, extrapolando o plano da linguagem articulada, possuindo uma 
origem social, um mesmo mito pode ser contado diversas vezes, de diversas 
maneiras e por diversos povos. Em outras palavras, os mitos evidenciam a 
reprodução de uma estrutura e de determinações, dando forma a um corpo 
multidimensional. 
De forma resumida, o ordenamento das diferentes sociedades se 
estabelece através de uma relação psico-social, baseada na realidade em que cada 
qual está inserida; não se trata, de forma alguma, de uma linha evolutiva de 
pensamento, mas de formas distintas de ordenar o mundo. Em busca de estabelecer 
lógica e construir o corpo de uma narrativa presente no meio social, os fragmentos 
da realidade são arranjados de forma a atribuir-lhe significado e sentido. 
 
3. A VIRADA ONTOLÓGICA NA ANTROPOLOGIA 
Entretanto, o estruturalismo de Lévi-Strauss, assim como os demais 
paradigmas clássicos que serviram – e ainda servem, em muitos sentidos – de 
referencial teórico no desenvolvimento dos estudos em etnologia, tiveram, a partir 
de XXXX, que lidar com a emergência de conceitos que fizeram emergir um novo 
debate epistemológico e político que, sobretudo, faz uma crítica etnológica a noçao 
clássica de Natureza e Cultura para descrever outras formas de interpretação do 
mundo que não seja a ocidental. Eduardo Viveiros de Castro (2004), a esse respeito, 
apresenta o seguinte o juízo: 
 
“Tal crítica, no caso presente, exige a dissociação e redistribuição dos 
predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que 
tradicionalmente se opõem sob os rótulos de ‘Natureza’ e ‘Cultura’: universal 
e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e 
construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, 
corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos.” 
 
Os questionamentos sobre a aplicação destes conceitos à cosmologias 
não-ocidentais, se dá pela percepção e pelo entendimento de que são formas de 
interpretação que distorcem a realidade desses povos ao serem transpostas ao 
campo teórico pelo etnólogo, visto que estas noções mostram-se incapazes de 
abrigar as formas de pensamento que norteiam a vida desses povos. As próprias 
noções de cultura e natureza são construídas de maneira particular à cosmologia 
ocidental e não se encaixam muito bem fora deste contexto, daí a necessidade de 
“reembaralhamento das cartas conceituais” (VIVEIROS DE CASTRO 2004), de 
esvaziar estes conceitos de nossas noções e reestrutura-los a partir de outra óptica. 
A partir deste desafio que fora colocado a antropologia contemporânea é 
que surge a ideia de uma virada ontológica na àrea, impulsionado pela virada 
linguistica promovida no campo da filosofia e da linguística no século XX, figurando 
em muitos debates nas áreas das ciências humanas e das ciências sociais. 
Em suma, esse movimento tratou de colocar em pauta uma discussão 
epistemológica, de conceitos e de método, mas não se pode dizer que há um modelo 
único por onde os autores identificados com este movimento se valem. A esse 
respeito, Armani (2020) pontua: 
 
“Não há um texto canônico sobre o assunto, nem uma corrente específica 
de pensamento que possa ser seu paradigma mestre. Nas palavras de 
Clemens, o realismo especulativo ou a ontologia orientada a objetos (alguns 
dos nomes da virada ontológica) podem ser aproximados entre si a partir de 
três características-chave: uma hostilidade ao antropocentrismo kantiano, a 
convicção da necessidade de um retorno aos objetos e às coisas em si 
mesmas e, por fim, a necessidade de se desenvolver novos modos (e 
desafios) de pensar.” 
 
4. OUTRAS PERSPECTIVAS 
Diante de um contexto qual se fala em diferentes modos de pensar, em 
diferentes ontologias, diferentes cosmologias, sucita-se um debate 
epistemológico onde a diferença aparece como chave para uma ciência que visa 
romper com noções que denotam hierarquias, que se incomoda com a forma 
como se construiu esse conhecimento, não apenas com o compromisso de uma 
produção de saberes mais democrática, mas que dê conta de oferecer novas 
hipóteses onde nossa tradição se mostrou incapaz, até então. O ensaio ‘Jamaisfomos modernos’, de Bruno Latour, publicado pela primeira vez em 1991, propõe 
justamente essa reflexão. A hipótese levantada pelo autor denuncia como o 
antropocentrismo característico do pensamento ocidental negligenciou partes 
substanciais da realidade que, essenciais a produção de conhecimento, deficitou 
seus resultados. Portanto, Latour visou redistribuir o olhar da ciência a fim de 
contemplar estes fenômenos: as coisas, em si mesmas, os objetos e os outros, 
os não-humanos. 
 
“A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja para 
saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte. Mas o 
próprio hábito é moderno, uma vez que este continua sendo assimétrico. 
Esquece o nascimento conjunto da “não-humanidade” das coisas, dos 
objetos ou das bestas, e o nascimento, tão estranho quanto o primeiro, de 
um Deus suprimido, fora do jogo. A modernidade decorre da criação 
conjunta dos três, e depois da recuperação deste nascimento conjunto e do 
tratamento separado das três comunidades enquanto que, embaixo, os 
híbridos continuavam a multiplicar-se como uma consequência direta deste 
tratamento em separado. É esta dupla separação que precisamos 
reconstituir, entre o que está acima e o que está abaixo, de um lado, entre 
os humanos e os não-humanos, de outro.” (LATOUR 2013) 
 
O que o autor quer dizer, portanto, é que a assimetria na qual as ciências 
sociais se desenvolvem, ao ignorar aspectos materiais da realidade e como estes 
são constitutivos do homem, tanto quanto o homem é deles, acaba por incumbir em 
uma análise precária que gerou, em teoria, uma separação entre natureza e cultura, 
que jamais existiu na prática. Esta separação, que caracteriza a modernidade, é, 
portanto, resultado de um equívoco, o que leva o autor a sustentar sua tese de que 
jamais fomos modernos na prática. O que Latour propõe é, afinal, uma outra maneira 
de conceber o conhecimento, a do empirismo radical. 
Latour não foi o único, principalmente após a geração de Maio de 1968, 
a indicar uma mudança de rumo do pensamento científico. Giles Deleuze e Félix 
Guattari haviam indicado essa mudança de orientação e suas obras se tornaram 
uma influência para muito autores, como o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros 
de Castro. A ideia de que maio de 68 ainda não terminou, reflete um movimento 
que, de lá para cá, ainda se constrói. Este evento, descrito por Viveiros de Castro 
(2007) como emersão de fluxos desejantes, tomando o conceito de Deleuze e 
Guattari, demarca uma posição política e conceitual radical: 
 
“Para muitos [...], os inservíveis que não conseguiram não escolher uma 
trajetória minoritária, insistindo romanticamente (para usarmos o insulto de 
praxe) que um outro mundo é possível, a propagação da peste neoliberal e 
a consolidação tecnopolítica das sociedades de controle só poderão ser 
enfrentadas se continuarmos capazes de conectar com os fluxos de desejo 
que subiram à superfície por um brilhante e fugaz momento; já lá vão quase 
quarenta anos. Para esses outros, o evento puro que foi 68 ainda não 
terminou, e ao mesmo tempo talvez nem sequer tenha começado, inscrito 
como parece estar em uma espécie de futuro do subjuntivo histórico. 
Gostaria de me incluir, com ou sem razão, entre esses outros. Por isso, diria 
a mesma coisa da influência de Deleuze e de seu parceiro Félix Guattari, 
autores da obra mais radicalmente consistente, do ponto de vista conceitual, 
e mais consistentemente radical, do ponto de vista político, produzida na 
filosofia da segunda metade do século XX: que essa influência está longe 
de ter atualizado todo o seu potencial.” (VIVEIROS DE CASTRO 2007) 
 
Como antropólogo, Viveiros de Castro reflete esse evento e se conecta 
com a crítica a globalização e ao capitaloceno (BARCELOS 2019). O autor se 
posiciona com o compromisso de apreender o conhecimento sob outra visão, visto 
a crítica a razão científica como modelo de legitimação de uma sociedade orientada 
pelo neoliberalismo. O perspectivismo ameríndio, teoria que desenvolveu em 
diálogo com a antropóloga Tânia Stolze Lima, apresenta uma valorosa apreensão 
de uma cosmologia que contempla grande parte dos povos ameríndios, mas que, 
para além da sua abrangência, apresenta uma ontologia distinta da qual a sociedade 
ocidental se orienta. A relevância epistemológica do desenvolvimento deste conceito 
é notável no debate acadêmico e para a valorização de outros modos de pensar, 
visto que o nosso próprio apresenta uma postura política e mesmo epistemológica 
problemática. 
Para nos situarmos no debate, entendamos melhor o que é essa noção 
de perspectivismo ameríndio: 
 
“Perspectivismo foi um rótulo que tomei emprestado ao vocabulário filosófico 
moderno para qualificar um aspecto muito característico de várias, senão 
todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da noção de que, em primeiro 
lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres (além dos humanos 
propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura e, em segundo 
lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais 
espécies de modo bastante singular: cada uma se vê a si mesma como 
humana, vendo todas as demais como não-humanas, isto é, como espécies 
de animais ou de espíritos.” (VIVEIROS DE CASTRO 2007) 
 
O pressuposto fundamental dessa noção de perspectivismo ameríndio é 
de uma humanidade imanente e uma animalidade transitória a todos os seres. De 
maneira simplificada, o oposto da nossa tradição de pensamento que enxerga na 
animalidade a nossa relação (no pretérito) com os outros. Essa noção se encontra 
expressa nos mitos indígenas, que remontam um lugar originário onde a condição 
humana era compartilhada por todos os seres. A ideia que representa o 
perspectivismo ameríndio se funda nesse pressuposto. A humanidade imanente a 
todo os seres é quem estabelece a possibilidade dessa cosmologia que aponta para 
a multiplicidade de perspectivas estabelecidas no mundo e distribuidas entre os 
seres que o habitam de acordo com sua própria morfologia. 
É, portanto, factível que compreendamos a partir do perspectivismo 
ameríndio que os conceitos de natureza e cultura por nós ocidentais desenvolvidos 
são tão imprecisos para desenvolver uma etnologia destes povos que esta deve ser 
desenvolvida sob novas condições, desafiando nossas bases epistemológicas e 
realizando uma crítica etnológica profunda para não incorrer em equívocos 
conceituais e comparações assimétricas. 
 
5. UM COMPROMISSO POLÍTICO 
Evocando conceitos e refletindo o pensamento de autores como Bruno 
Latour, Eduardo Viveiros de Castro e tantos outros, como Gilles Deleuze, Philippe 
Descola, Roy Wagner, Marilyn Strathern, para citar algumas das referências mais 
habituais ao debate, percebemos um importante movimento epistemológico. 
Entretanto, este movimento, não apenas conceitual e científica, mas apresenta um 
aspecto de crítica social. Na verdade, as duas coisas são uma só. A crítica 
epistemológica se valída pela crítica política e vice-versa. Como foi citado 
anteriormente, este movimento nasceu político e teve sua gênese figurativa em maio 
de 68, tendo, assim, carregado desde então uma compromisso científico vinculado 
ao compromisso político, numa tentativa de construir uma nova ciência que possa 
superar as bases científicas que justificaram e ainda justificam um sistema capitalista 
de violências, racismo e desigualdades; e porque esta é uma sociedade que, 
invariavelmente, caminha para a destruição do mundo, pois assume uma postura 
ecocída. 
Falar em virada ontológica, em superar antigos modelos, em buscar o 
conhecimento na diferença, em debates epistemológicos, em retomar conhecimentos 
invalidados, tudo isso, me leva a crer que uma mudança profunda se faz necessária. 
Mais do que nós refletirmos sobre os outros, que os outros reflitam sobre nós. Além 
de uma antropologia de brancos, uma condução a centralidadedo debate de uma 
antropologia dos brancos. A reflexão do mundo e a produção de conhecimento não-
brancas como ontologias que nos oferecem ferramentas, no campo epistemológico, 
e esperanças, no campo político, se apresentam como fundamentais para a 
construção de um novo mundo. 
 
6. CONSTRUIR O NOVO 
Seria, assim entendo, um descuido não buscar em autores não-
brancos ideias que expressem essa necessidade de uma nova construção de 
conhecimento para um novo mundo. No pósfacio da segunda edição do livro 
Ideias para adiar o fim do mundo (2020), transcrição de uma palestra de Ailton 
Krenak – que dispensa apresentações -, Viveiros de Castro reforça essa posição: 
“Ailton Krenak, juntamente com outros intelectuais e ativistas indígenas, 
como Davi Kopenawa e Daniel Munduruku, está escrevendo um capítulo 
essencial da história do Brasil, aquele que conta o que ele definiu como ‘a 
história da descoberta do Brasil pelos índios’: uma contra-história e uma 
contra-antropologia indígenas, cujo objeto é a cultura dominante do Estado-
nação que se abateu sobre os povos originários desta parte do mundo.” 
Os diálogos entre os conhecimentos brancos e não-brancos, ainda que 
timidamente, tem se aberto. Assim como Viveiros de Castro destacou na citação 
acima, outros autores tem buscado respostas e questionamentos em diferentes 
ontologias, como o próprio Bruno Latour em suas conferências sobre o 
antropoceno, transformadas no livro Diante de Gaia, onde o autor toma 
emprestado conhecimentos produzidos por ontologias não-brancas, autores 
indígenas tem ganhado espaço e um justo prestígio. 
Em artigo publicado na revista Espaço Ameríndio, com título Em torno 
de uma “antropologia indígena”: elementos de uma contra-antropologia, o autor, 
Leif Grunwald, reflete, justamente, a gradativa conquista de espaço nos 
programas de pós graduação em antropologia nas universidades brasileiras por 
estudantes indígenas. Para ressaltar as características dessa crescente produção 
acadêmica indígena na área da antropologia, o autor destaca: 
“Essa parada diz respeito à constatação de que na vigência da experiência 
com uma outra antropologia, a alteração nesse campo disciplinar não deve 
absolutamente ser encarada (a exemplo do furor e dos rumores que 
tomaram conta da antropologia durante os anos de 1980) como um novo 
prenúncio de dissolução da disciplina. Melhor é apreendê-la como o fato que 
fornece algumas condições para ‘relançamentos’ da disciplina, 
condicionados ao gesto de seu próprio descentramento, que deve 
possibilitar sua abertura para outros problemas teóricos colocados a partir 
de outros esquemas conceituais.” (GRUNWALD 2020) 
A assunção da importância epistemológica desse movimento, percebe-se, 
tem sido recorrente, pelo menos a partir de um amplo grupo de pesquisadores que 
apreendem sua importância. 
Essa importância decorre, sobretudo, da necessidade, como refletido ao 
longo do artigo, de se construir uma sociedade que tenha futuro, de um novo mundo. 
 
7. HAVERÁ FUTURO? 
Para o título desse tópico, peguei emprestado o nome de um album, da 
banda de punk rock brasileiro, Olho Seco: haverá futuro?. Lançado em 1995, o 
album está inserido no contexto da emergência climática. Não apenas os punks 
estavam preocupados com o futuro, mas essa indagação torna-se cada vez mais 
presente. Haverá futuro? Muito nos leva a crer que caminhamos no sentido 
contrário. 
A globalização, o capitaloceno, são a expressão máxima da exploração 
do mundo pelo homem branco. O ecocídio, que vem acompanhado de genocídios e 
etnocídios, das mais diversas formas de exploração e controle, é tangível pela 
ciência, desde que essa não esteja a serviço do algoz. 
Como exercício para refletir o futuro, tomamos, enfim, a obra de Ailton 
Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. 
O texto, a princípio, pontua como a relação colaborativa, na qual aqui 
tratamos, entre diferentes pensadores de diferentes culturas, representa um 
importante movimento. A partir de uma postura crítica das ciências sociais, que 
justificou a própria colonização de povos “não civilizados”, Ailton Krenak levanta uma 
indagação: “Somos mesmo uma humanidade?”. Essa questão pode ser encarada 
de duas maneiras: somos mesmo uma humanidade? Somos mesmo uma 
humanidade? Seguimos procurando a resposta. 
Estamos repletos de instituições com prestígio consolidado que atuam 
sob como podemos ou não podemos proceder sobre o mundo. Ailton Krenak aponta 
para uma contradição presente nessas instituições que distorce conceitos como o 
de preservação e que, por critérios ineptos e/ou corrompidos, define qual o futuro 
do mundo. 
“Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, 
foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não 
fosse devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse 
manter apenas alguns lugares como amostra grátis da Terra. Se 
sobrevivermos, vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente não 
comeu, e os nossos netos ou tataranetos — ou os netos de nossos 
tataranetos — vão poder passear para ver como era a Terra no passado. 
Essas agências e instituições foram configuradas e mantidas como 
estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, 
aceitamos suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, 
porque estão a serviço da humanidade que pensamos ser.” (KRENAK 2020) 
 
 A crítica de Aílton Krenak, é uma crítica a sociedade ocidental, suas 
bases e suas estruturas de poder e de dominação sobre outros povos. A incoerência 
entre a alienação do exercício de ser dos diferentes e a pretensão de que seja 
possível reformar, aprimorar ou refazer as instituições dessa sociedade demonstra a 
necessidade de se pensar alternativas fora dessa estrutura. E é para isso que Krenak 
chama atenção: como produzir essa alternativa? Em outras palavras, como adiar o 
fim do mundo? É necessário pensar em como produzir respostas a estas perguntas. 
O mito da sustentabilidade nos convence de que é possível manter uma 
relação de exploração com a terra, produzindo espaços de natureza alegóricos, como 
amostras grátis da terra. Ele nos aliena a partir do momento que implanta em nosso 
imaginário que nós somos um e a terra outro, que nós somos vida e a terra é coisa. 
Krenak nos instiga a romper com essa ideia que não nos oferece um caminho viável. 
Para demonstrar uma outra relação com a terra, Krenak recorre as 
cosmologias indígenas e conta como a serra próxima a aldeia krenak possui nome e 
personalidade, conta sobre uma mulher que conversa sua irmã que é uma pedra. O 
que essa cosmologia nos oferece é o ponto de vista de que a terra, portanto, não é 
uma coisa e que não essa separação entre natureza e humanidade, tão discutida em 
termos epistemológicos no debate acadêmico, também é uma questão política e de 
urgência. Na dicotomia que separa o homem da terra é que reside a reprodução da 
narrativa ecocida que coloca em xeque o futuro da vida humana. Como adiar o fim 
do mundo é a questão, reclamar uma nova forma de se relacionar com esse mundo 
pode ser um caminho de esperança e uma maneira de adiar o fim do mundo. 
 
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Os desafios lançados por esses autores, como pudemos ver, não são 
simples ou modestos, abrangem questões epistemológicas, o passado, presente e 
futuro da ciência, o ecocídio, o etnocídio e para onde nossa sociedade está 
avançando – o seu fim – e para onde ela poderia avançar, com a construção de um 
novo mundo. Alternativas são propostas, as propostas são as alternativas e todas 
estas questões parecem estar interligadas. Como conceber um mundo onde a 
exploração da natureza e do homem pelo homem não conceba seu fundamento e 
uma ciência engajada, não na manutenção de uma sociedade fadada a produzir seu 
próprio fim, mas de uma sociedade alternativa a esta do capitaloceno. 
“O fim do mundo – da vida, doplaneta, do sistema solar etc - como 
sabemos, é inevitável; [...] resta saber se teremos imaginação e força 
suficientes para adiar o fim de nossos mundos, isto é, nosso próprio 
fim como espécie.” (VIVEIROS DE CASTRO 2020) 
 
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: 
DURHAM, Eunice Ribeiro. A pesquisa antropológica com populações urbanas: 
problemas e perspectivas. In: CARDOSO, Ruth (org.). A aventura 
antropológica: teoria e pesquisa. 1. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986. cap. 1, 
p. 18. 
 
ARMANI, C. (2019). A história intelectual e a virada ontológica na 
antropologia. Revista História: Debates E Tendências, 20(1), 36 - 52. 
 
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São 
Paulo: Editora 34, 2013. 
 
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Filiação intensiva e aliança 
demoníaca. Novos Estudos, 2007. 
 
BARCELOS, Eduardo. Antropoceno ou Capitaloceno: da 
simples disputa semântica à interpretação histórica da crise 
ecológica global. Revibec-Revista Iberoamericana De 
Economía Ecológica, v. 31, n. 1, p. 1-17, 2019. 
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). Editora 
Companhia das Letras, 2020. 
 
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Pósfacio – perguntas inquietantes. In: 
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). Editora 
Companhia das Letras, 2020. Posfácio, p. 75. 
 
GRUNWALD, Leif. Em torno de uma “antropologia indígena”: Elementos de 
uma contra-antropologia. Espaço ameríndio, v. 14, ed. 1, 2020. 
OLHO SECO. Haverá futuro?. Guarulhos: 1995. Disponível em: 
<https://www.youtube.com/watch?v=Sno3qgT3814>

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